Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
301/17.9PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DEVERES
PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
Data do Acordão: 01/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 50.º, N.ºS 1 E 2, 51.º, N.º 1, E 52.º, N.ºS 1 E 2, DO CP
Sumário: A lei substantiva penal não permite a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à condição de cumprimento de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:                       

                                                                                  

I. Relatório:

No âmbito do processo abreviado n.º 301/17.9PBFIG que corre termos na Comarca de Coimbra – Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, em 17/7/2018, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:

DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se:

1. Absolver o arguido A., em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de crime de extorsão, na forma tentada, previsto e punível pelo artigo 223.º, n.º 1, com referência ao artigo 22.º, ambos do Código Penal.

2. Condenar o arguido A., em autoria material e sob a forma consumada, pela prática de um crime de coação, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 154º, n.º 1, e nº2 do Código Penal, numa pena de doze meses prisão.

3. Determinar a suspensão da sua execução da pena referida em 2), doze meses prisão suspensa na sua execução, ainda que com regime de prova, assente em plano de reinserção social a elaborar e supervisionar pela DGRSP em que se contemplem ações de sensibilização do arguido para que adote uma postura ativa de colocação profissional, e ainda que especificamente preveja a imposição da obrigação/regra de conduta de sujeição a 250 horas de trabalho cívico em instituição pública ou de carácter social a indicar pela DGRSP, conforme projeto de plano de trabalho a elaborar pela DGRSP, porquanto ainda se mostra uma punição simultaneamente ressocializadora (uma vez que responsabiliza o arguido por forma a exigir dele um comportamento futuro consentâneo com o que lhe é esperado e reclamado pelo Direito, designadamente, obrigando-o a trabalhar nas suas horas de folga/lazer, assim melhor interiorizando a ilicitude dos factos), que responde às já enunciadas exigências de prevenção geral positiva, e, consequentemente, ainda permite vincar a validade e vigência da norma violada, ao abrigo do disposto nos artigos 50º, nº1, 2, e 5, 52º, nº1, al. c), 53º e 54º do Código Penal.

4. Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, nos termos dos art.ºs 513º e 514º, n.º1 do C.P. Penal e 8º, n.º 9 do RCP e tabela III em anexo, em 3 UC de taxa de justiça.

(…).

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Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 20/7/2018, o arguido, extraindo da motivação as seguintes CONCLUSÕES:   

1. Foi o ora Recorrente condenado por sentença proferida em 17 de Julho de 2018 na pena de 12 meses de prisão suspensa na sua execução com imposição de sujeição a 250 horas de trabalho cívico em Instituição Pública ou de carater pessoal.

2. Não se conforma o Recorrente, nem se poderia de modo algum, conformar, com a Douta Decisão proferida, no que tange à pena concretamente aplicada. Uma vez que, no entendimento do ora Recorrente a mesma ser manifestamente excessiva, tendo em conta as penas aplicadas em casos semelhantes e o seu grau de culpa.

3. O Recorrente não se conforma com a pena que lhe foi aplicada, quer no que tange à medida da pena, quer no que tange à imposição de sujeição a 250 horas de trabalho cívico. Sendo que no modesto entendimento do Arguido ora Recorrente, não é juridicamente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, no âmbito de um regime de prova ou fora dele, mesmo que em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado.

4. Considerando ainda, que a pena a que foi condenado é ainda manifestamente excessiva, quando comparada com as penas habitualmente aplicadas em situações semelhantes.

5. O ora Recorrente humildemente se conforma com a matéria de facto provada. A medida da pena, é construída nos termos do binómio culpa e prevenção.

6. A exigência legal de que a medida de que a medida da pena seja encontrada pelo Juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável.

7. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável às exigências de prevenção.

8. De facto, o Arguido reconhece a gravidade da conduta levada a cabo nos presentes autos. Contudo, não podemos olvidar, que os factos decorreram durante um período turbulento da vida do Arguido.

9. O Recorrente, não olvida os seus já antecedentes criminais, constantes do seu CRC, junto aos presentes autos, contudo a prática desses mesmos factos remontam aos anos de 2002, 2003,2008 e 2011. Ou seja, crimes cometidos há mais de 10 anos, à exceção do praticado em 2011, há mais de cinco anos.

10. Acresce que, todas as penas aplicadas ao Arguido se encontram já extintas pelo cumprimento. Quando se fala de prevenção como princípio regulativo da atividade judicial de medida da pena, não pode ter-se em vista o conceito de prevenção em sentido amplo, como finalidade global de toda a política criminal, ou seja, como conjunto dos meios e estratégias preventivos de luta contra o crime.

11. O que está aqui em causa, é na verdade, a aplicação de uma concreta consequência jurídico-penal, num momento em que o crime já foi cometido e não pode por isso, e não pode por isso, falar-se com sentido de prevenção na aceção referida.

12. “Prevenção” tem, no contexto que aqui releva, o preciso sentido que possui quando se discute o sentido e as finalidades de aplicação de uma pena, quando se discute, numa palavra, a questão das finalidades das penas. Dito por outras palavras, “prevenção” significa, por um lado prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição.

13. Porém, a prevenção geral, no seu entendimento mais atual, como prevenção geral positiva ou de integração, é um momento irrenunciável – e na verdade, o mais essencial – de aplicação da pena, e não pode, por isso deixar de revelar decisivamente para a medida daquela.

14. Assim, a prevenção geral positiva traduz-se na confiança que a sociedade precisa de manter na vigência da norma, é o mínimo exigível da pena, ora no presente caso do ora Recorrente, ainda, que as necessidades de prevenção geral positiva, possam ser consideradas elevadas, tendo em conta que o grau de ilicitude dos factos.

15. Pois à data dos factos, e pelo menos no que toca ao Recorrente, este encontrava-se com problemas de adição. Atualmente o Arguido, já não consome qualquer produto estupefaciente.

16. Deste modo, as necessidades de prevenção quer geral quer especial, ainda que sejam elevadas, encontravam-se fortemente diminuídas. A medida da pena, não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

17. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efetivamente, numa incondicional proibição de excesso. A culpa constitui um limite inultrapassável, de todas e quaisquer considerações preventivas, sejam elas de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização.

18. Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa. De qualquer modo, e qualquer que seja a solução encontrada, de uma ou de outra forma, a culpa é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado.

19. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, como é nos presentes autos, por razões Jurídico constitucionais, inadmissível.

20. Ora, no modesto entendimento do Recorrente, tal limite foi claramente e grosseiramente ultrapassado, na pena que concretamente foi aplicada ao ora Recorrente de 12 meses de prisão suspensa na sua execução.

21. Mormente, quando comparada com as penas habitualmente aplicadas nestas situações. De facto, a medida da pena não pode exceder a medida da culpa, contudo a pena concretamente aplicada ao ora Recorrente excede claramente a medida da sua culpa.

22. Face ao supra exposto, o Arguido ora Recorrente, entende que para que lhe seja aplicada uma pena justa, adequada e proporcional, a qual não exceda o seu grau de culpa e participação nos factos ora em apreço, esta não poderá ser em caso algum superior a 6 meses de prisão.

23. Esta medida concreta da pena que a ora Recorrente pretende que agora lhe seja aplicada por este Alto.

24. Por outro lado, e em nome do princípio da Igualdade previsto no artigo 13º da CRP, reclama-se que a pena aplicada ao aqui recorrente seja reduzida se a mesma for comparada com a pena aplicada em casos semelhantes ao do Arguido.

25. Assim, e por todo o exposto, e independentemente da pena de prisão que for concretamente aplicada por vós, Venerandos Juízes, a verdade é que a mesma deverá ser, sempre, inferior à pena aplicada pelo Tribunal a quo.

26. Foi o ora Recorrente condenado no âmbito dos pressentes autos na pena de 12 meses de prisão suspensa na sua execução sujeita à prestação de 250 horas de trabalho cívico.

27. Ora, não pode obviamente por razões de justeza o Recorrente concordar com esta decisão, bem como com a sua – salvo o devido respeito – parca fundamentação apresentada. Nos termos do nº 2, o regime de prova assentará num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo da suspensão, dos serviços de reinserção social.

28. Este plano, nos termos do art.º 54º, nº 1 do Código Penal, conterá os objetivos de ressocialização a atingir pelos arguidos, as atividades que este deve desenvolver, o respetivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância a adotar pelos referidos serviços.

29. O nº 3 do artigo 54º preceitua que o tribunal pode impor os deveres e regras de conduta referidos nos artigos 51º e 52º e ainda outras obrigações que interessem ao plano de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentimento de responsabilidade social do condenado, exemplificando-se nas als. a) a d) algumas dessas obrigações, nas quais não se inclui a prestação de trabalho comunitário.

30. O art.º 52º nº 1 do Código Penal, prevê a imposição ao condenado, pelo tempo de duração da suspensão, do cumprimento de regras de conduta de conteúdo positivo, suscetíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade. Complementarmente, o nº 2 prevê a imposição de outras regras.

31. O regime de prova, bem como a suspensão condicionada a outras regras, visam a reintegração social do condenado fora da prisão, apostando, o primeiro, ainda no acompanhamento do condenado por técnico da DGRS que o ajude no processo de ressocialização.

32. A suspensão condicionada, em qualquer das suas modalidades, é sempre um “meio razoável e flexível para exercer uma influência ressocializadora sobre o agente, sem privação da liberdade”. A sua vantagem “reside na possibilidade de adaptar a sanção às circunstâncias e necessidades do agente” (JeschecK, Weigend, Tratado de Derecho Penal, 2002, p. 898-899).

33. Permite potenciar largamente as virtualidades do instituto da suspensão da execução da pena, que não se limita assim a descansar na “ideia da ameaça da pena e do seu efeito intimidativo”, sendo antes integrado pela imposição ao agente de deveres e regras de conduta que reforçam tanto a socialização do delinquente como a reparação das consequências do crime (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005 reimp., p.339).

34. As regras de conduta ligam-se “ao cerne socializador da pena de suspensão de execução da prisão” (Figueiredo Dias, loc. cit. p. 349), socialização que, no entanto, não deve ser alcançável a qualquer preço, devendo ser “de negar a legitimidade da imposição de deveres que representem uma limitação de direitos fundamentais de qualquer espécie” (loc. cit. p. 351).

35. A regra de conduta imposta – “de 250 horas de trabalho a favor da comunidade” – apresenta-se fixada ao abrigo do art.º 53º do Código Penal (“O regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade…”) sendo esta a única norma legal ali invocada para imposição do trabalho.

36. Mas as normas legais convocáveis para a elaboração do plano de reinserção social seriam também, pelo menos, os artigos 54º nº 3 e 51º e 52º, por via daquele.

37. Estas normas preveem a possibilidade de imposição do cumprimento de determinadas obrigações ao condenado, como se disse.

38. Mas o aditamento de regras de conduta à suspensão da prisão, seja por via do regime de prova, seja por via da suspensão condicionada fora dele, justifica-se apenas quando a suspensão, por si só, não garanta as finalidades da punição.

39. Os princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e proibição do excesso mantêm-se como referentes em todo o processo de decisão sobre as consequências do crime (arts. 18º, nº 2 e 30º, 1 a 3 da Constituição da República Portuguesa).

40. Daí que a imposição de regras que reforcem a suspensão da pena devam ser sempre concretamente justificadas na decisão condenatória. O que de todo não sucedeu no caso concreto.

41. Na verdade, não se apresenta como jurídico-penalmente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, no âmbito de um regime de prova ou fora dele, “mesmo que em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).

42. As consequências jurídicas do crime encontram-se submetidas ao princípio da legalidade e da tipicidade (art. 29º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e art. 1º do Código Penal) que abrange a definição das penas, as condições da sua aplicação, o controlo das fontes, a proibição da retroatividade, a proibição da analogia contra reo.

43. A “suspensão da execução da prisão” (simples, com imposição de condições ou com regime de prova) e a “prestação de trabalho a favor da comunidade” são duas penas de substituição de diferente natureza, que o Código Penal prevê e trata, respetivamente nos arts 50º a 57º e nos arts 58º e 59º. Condicionar a suspensão da prisão a uma prestação de trabalho comunitário redundaria numa “mistura arbitrária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o seu sentido e os seus pressupostos próprios” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).

44. As normas que disciplinam o regime de prova, incluindo as que tratam da elaboração do plano de reintegração social, não prevêem expressamente a possibilidade de imposição ao condenado de uma prestação de trabalho comunitário, nem essa oportunidade se retira do elenco das possibilidades de imposições ali previstas.

45. Em face do exposto, deverá a Decisão Recorrida ser revogada e substituída por outra que não obrigue o Arguido ora Recorrente a Trabalhar no âmbito da suspensão da pena de prisão aplicada.

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            O recurso, em 10/10/2018, foi admitido.

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            O Ministério Público, em 31/10/2018, respondeu ao recurso, defendendo que merece parcial provimento, apresentando as seguintes conclusões:      

1. As referências norteadoras da determinação da medida da pena são a culpa e a prevenção;

2. Estando em causa a prática de um crime de coação na forma tentada, nos termos dos artigos 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, 72.º, 73.º e 154.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, a moldura penal abstrata aplicável ao ilícito em apreço está compreendida entre 1 mês (vide o artigo 41.º, n.º 1, do citado Código) e 24 meses de prisão;

3. No caso concreto, cumpre referir que a culpa do arguido é elevada, tendo em conta o dolo direto (grau de intensidade da vontade criminosa) da sua conduta, que a ilicitude é média-alta, atento o grau de violação do interesse da ofendida e as suas consequências, que o arguido, ao não prestar declarações, não permitiu ao Tribunal «a quo» valorar positivamente a sua eventual capacidade de autocensura e contrição, e que são prementes as exigências de prevenção geral positiva, exigindo-se um reforço da repressão, dado que a nossa sociedade rejeita que os indivíduos recorram ou utilizem meios físicos/ameaças, para tanto utilizando expressões dirigidas à incolumidade dos seus semelhantes, ou do seu património, a fim de os constranger, a si ou a terceiro, ao pagamento de dívidas (ainda que legitimamente devidas);

4. Ademais, revelam-se significativas as exigências de prevenção especial, supostas as quatro condenações anteriormente sofridas pelo arguido, a última das quais, em 2013, numa pena de prisão suspensa de 2 anos e 6 meses, já com regime de prova assente em plano de reinserção social e por crimes causadores de alarme social (detenção de arma proibida e tráfico de menor gravidade);

5. Esta confluência de vetores aconselhava a Insigne Julgadora a afastar-se, com alguma amplitude, do limiar mínimo punitivo, pelo que, em tal contexto, a pena de prisão em causa, situada a meio da moldura abstrata máxima aplicável (12 meses), mostra-se criteriosamente fixada, não devendo, por conseguinte, merecer qualquer censura;

6. Não é juridicamente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, no âmbito de um regime de prova ou fora dele, mesmo em que em instituições de solidariedade social e ainda que haja o consentimento do arguido.

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Já no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 23/11/2018, limitou-se a apor visto nos autos. 

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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a legal conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II. Decisão Recorrida:

            “FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Factos Provados

Da Acusação Pública:

1. No dia 20 de Maio de 2017, cerca das 09:00h, A., dirigiu-se à residência de B., de 17 anos de idade, sita na Rua (…), na (...) .

2. Após o que, em virtude de uma quezília relacionada com a exigência por parte do arguido do pagamento da reparação de um veiculo de que teria a posse, em virtude de, no dia anterior, com o intuito de ensinar a B. a conduzir, ter ocorrido um acidente de viação/despiste enquanto esta estava ao volante da viatura, do qual resultaram danos materiais no dito veiculo, foi chamada a Polícia de Segurança Pública àquele local.

3. Já com a presença do Agente da Polícia de Segurança Pública, C., a prestar funções na Esquadra da (...) , o arguido dirigiu-se a D., mãe da B., dizendo em tom agressivo que deitaria fogo aos seus veículos automóveis, caso não lhe pagasse o arranjo da sua viatura de marca e matrícula não concretamente apuradas, no valor de cerca de €5.000,00 (cinco mil euros).

4. O arguido actuou, de forma livre, voluntária e consciente, com intuito concretizado de perturbar D. nos seus sentimentos de segurança e liberdade, provocando-lhe o receio de que o mesmo concretizasse a ameaça feita, nomeadamente que deitaria fogo aos seus veículos automóveis, perturbando os seus sentimentos de segurança e liberdade.

5. As palavras proferidas pelo arguido e dirigidas a D. eram adequadas a perturbar a liberdade de decisão e de acção e a constranger a ofendida a praticar o acto referenciado pelo arguido (pagar-lhe a quantia que lhe solicitou de cinco mil euros, para que não lhe queimasse os carros), ou seja, à produção do resultado típico, mas este não se chegou a concretizar, por motivos alheios à sua vontade, uma vez que esta veio a liquidar directamente à oficina o valor da reparação do referido veicula no montante de 3.680,00€.

6. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Outros Factos Provados:

7. O arguido como habilitações tem o 3º ano de escolaridade.

8. Sobrevive do RSI no valor de 155,00€, e de actividade esporádica de vendedor ambulante, fazendo mercados com a mãe.

9. Consta como última remuneração auferida por conta de outrem nas bases de dados da Segurança Social, o valor de 280,94€, por referência já a maio de 2012 (fls. 112).

10. Tem dois filhos de 21 e 14 anos de idade, mas vive sozinho num apartamento arrendado à (...) , cuja renda se cifra no montante de 7,00€.

11. Encontra-se averbado em seu nome nas bases de dados do registo automóvel, um veiculo Ford Fiesta, (…), que se encontrará penhorado a favor da Autoridade Tributária (fls. 113).

12. O arguido já sofreu quatro condenações, por crimes de ameaça, condução em estado de embriaguez, detenção de arma proibida e tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, a saber:

a. Pela prática do crime de ameaça praticado em 22/08/2002, por sentença transitada em julgado em 30/09/2002, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 4€, o que perfaz o total de 800,00€, já extinta.

b. Pela prática do crime de condução em estado de embriaguez praticado em 13/04/2003, por sentença transitada em julgado em 14/04/2003, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 2,00€, o que perfaz o total de 240,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos sem motor por quatro meses, já extinta.

c. Pela prática do crime de detenção de arma proibida, praticado em 11/02/2008, por sentença transitada em julgado em 12/03/2008, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 1.500,00€, já extinta.

d. Pela prática do crime de detenção de arma proibida e de tráfico de quantidades diminutas praticado em 28/11/2011, por sentença transitada em julgado em 30/09/2003, na pena única de dois anos e seis meses de prisão suspensa por igual período, com regime de prova assente em plano de reinserção social, já extinta.

13. O arguido consentiu em prestar trabalho a favor da comunidade/cívico.

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Factos Não Provados:

Não se provou:

A. Que nas circunstâncias referidas em 3) o arguido se tivesse dirigido a B..

B. Que com a conduta descrita, o arguido A. agiu com o propósito de, usando o pretexto da existência de danos no seu veículo e o argumento de que tinha sido a mesma a produzi-los, determinar B. a entregar-lhe a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), sem intenção de lhe restituir tal quantia, que sabia não lhe pertencer, bem sabendo ainda que com tal conduta resultaria prejuízo patrimonial à ofendida.

C. Que ao dirigir tais palavras a B., o arguido agiu com o propósito de produzir receio, medo e inquietação àquela e de assim a determinar a entregar a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) que sabia não lhe ser devida e ainda com o objectivo de produzir prejuízo patrimonial à ofendida, o que representou mas não logrou conseguir.

(…).

ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA:

(…).

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III. Apreciação do Recurso:

O objecto de um recurso penal é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – artigos 403.º e 412.º, n.º 1, ambos do C.P.P.

Na realidade, de harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

As questões a conhecer são as seguintes:

            1 – Saber se a pena aplicada em concreto (12 meses de prisão, ainda que suspensa na sua execução) se mostra desadequada.

            2 – Saber se é juridicamente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, no âmbito de um regime de prova ou fora dele, mesmo que em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado.                                                      

                                                           ****

1 – Da medida da pena aplicada em concreto: 

Como dispõe o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. As finalidades das penas, na previsão, na aplicação e na execução, são assim na filosofia da lei penal vigente a proteção de bens jurídicos e a integração do agente do crime nos valores sociais afetados.

Na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).

As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.

No caso concreto a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há-de constituir o motivo fundamento da escolha do modelo e da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.

Por seu lado, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser em cada caso prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.

Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização será encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, nos termos do artigo 40º, nº 2 do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena (cfr. nomeadamente Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª edição, pags. 238 a 255).

Postas estas considerações gerais, que devem estar presentes no juízo conducente à pena concreta e adequada, o artigo 71º, nº 1 do Código Penal preceitua, na senda do citado artigo 40º, que a determinação concreta da pena, dentro dos limites legalmente definidos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e o nº 2 do mesmo artigo determina que o tribunal atenda a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, enumerando algumas a título exemplificativo, circunstâncias estas que nos darão a medida das exigências de prevenção em concreto a realizar porque indicadoras do grau de violação do valor em causa e da prognose de no futuro o agente se poder determinar com o respeito pelo valor penalmente protegido (a necessidade da pena revela-se desse modo em função da menor ou maior exigência do exercício da prevenção e da reintegração).

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No caso em apreço, deparamos com uma moldura penal situada entre 1 mês e 24 meses de prisão.

A culpa do arguido é elevada, pois agiu com dolo direto.

A ilicitude dos factos é media-alta, pois atitudes agressivas como a descrita nos atos não devem ser banalizadas, já que geram medo nos visados, sendo certo que são repudiadas pela generalidade da sociedade.

O arguido foi motivado por um intuito de pressionar alguém, pelo medo, a efetuar o pagamento de uma reparação de um veículo, conduta própria de uma certa “justiça privada”, já erradicada da nossa atual sociedade.

Note-se que o arguido, mesmo na presença de um Agente da PSP, não teve pejo em proferir as expressões em causa nos autos.

O arguido não manifestou ter interiorizado o desvalor da sua conduta.

O arguido apresenta antecedentes criminais, designadamente pela prática de crime de detenção de arma proibida.

Em termos de prevenção geral, acompanhamos o Tribunal a quo, quando este afirma “são prementes as exigências de prevenção geral positiva, já que este tipo de situações de coação, são fortemente censuradas pela nossa comunidade, exigindo-se um reforço da repressão. De facto, a nossa comunidade rejeita que os indivíduos recorram ou utilizem meios físicos/ameaças para tanto utilizando expressões dirigidas à incolumidade física dos seus semelhantes, ou do seu património, a fim de os constranger, a si ou a terceiro, ao pagamento de dividas (ainda que devidas). O correto é o recurso aos tribunais e não a utilização de ações de intimidação desta natureza de molde a constranger ao pagamento, as quais suscitam intranquilidade pública e afetam a paz social.

Por sua vez, em termos de prevenção especial, não estamos perante um delinquente primário, antes perante um cidadão já punido por duas vezes, além do mais, por crime de detenção de arma proibida, o que denota, na falta de uma explicação para tanto, estarmos perante uma pessoa de potencialmente agressiva.

Tudo ponderado, consideramos que a pena de prisão aplicada em concreto não merece censura.

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Antes de avançarmos para o conhecimento da segunda questão suscitada no presente recurso, não podemos deixar de realçar que na sentença ora em crise, datada de 17/7/2018, não foi fixado, de modo expresso, o prazo da suspensão da execução da pena (quer na fundamentação de direito quer no dispositivo), sendo certo que, nos termos da redação do artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, então em vigor, aquele sempre teria, forçosamente, duração igual à pena aplicada.

Tal omissão acarreta a nulidade decorrente da previsão, conjugada, dos artigos 374.º, n.º 3, al. d), e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Dada a sua natureza e simplicidade, nada obsta a que tal vício possa ser sanado pelo Tribunal da Relação.

Assim sendo, há que declarar a execução da pena suspensa pelo período de um ano.

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2 – Da suspensão da execução da pena de prisão sujeita à condição de prestação de trabalho a favor da comunidade:

A lei, ao referir-se à prestação de trabalho a favor da comunidade, enquanto pena de substituição, impõe a aceitação do condenado.

O arguido consentiu em prestar trabalho a favor da comunidade/cívico (facto provado n.º 13).

Simplesmente, tal consentimento só poderia ter efeito útil caso a pena de prisão aplicada tivesse sido substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.

Impor uma condição como a que consta da sentença recorrida não se coaduna com a natureza da suspensão da execução da pena - ver o Acórdão do TRE, de 20/1/2015, Processo 584/12.0GEALR.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Ana Barata de Brito, in www.dgsi.pt, no qual pode ser lido o seguinte:

“(…). Na verdade, não se apresenta como juridicamente admissível condicionar a suspensão da execução da pena de prisão à prestação de trabalho, “mesmo que em instituições de solidariedade social e ainda que dispondo do consentimento do condenado” (assim, Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).

As consequências jurídicas do crime encontram-se submetidas ao princípio da legalidade e da tipicidade (art. 29º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e art. 1º do Código Penal), que abrange a definição das penas, as condições da sua aplicação, o controlo das fontes, a proibição da retroatividade, a proibição da analogia contra reo.

A “suspensão da execução da prisão” e a “prestação de trabalho a favor da comunidade” são duas penas de substituição de diferente natureza, que o Código Penal prevê e trata nos arts 50º a 57º e arts 58º e 59º, respetivamente.

Condicionar a suspensão da prisão a uma prestação de trabalho comunitário redundaria numa “mistura arbitrária – e violadora, por conseguinte, do princípio da legalidade da pena – de duas diferentes penas de substituição, cada qual com o seu sentido e os seus pressupostos próprios” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 354).”

Em resumo, a atual lei substantiva penal não permite a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão à condição de cumprimento de prestação de trabalho a favor da comunidade – ver, no mesmo sentido, nosso anterior Acórdão, de 17/5/2017, Processo n.º 149/15.5PFCBR.C1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 20/11/2017, Processo n.º 13/12.0GAVVD-A.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Armando Azevedo, in www.dgsi.pt.

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IV – DECISÃO:

Nos termos expostos, acordam os Juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a decisão na parte em que condicionou a suspensão da pena de prisão à prestação de trabalho a favor da comunidade, determinando-se a suspensão da pena aplicada (doze meses de prisão) pelo período de um ano, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.

Sem custas.

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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

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Coimbra, 22 de Janeiro de 2019

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)