Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
952/18.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
INDEMNIZAÇÃO ARBITRADA EM SEDE DE ACIDENTE DE TRABALHO
VENCIMENTO DOS JUROS DE MORA
Data do Acordão: 05/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 562.º; 563.º; 564.º; 566.º, 2 E 3; 804.º; 805.º, 3 E 806.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I- Nas situações em que é atribuído ao lesado um défice funcional genérico compatível com a sua atividade profissional habitual, envolvendo, porém, esforços suplementares, estará em causa o chamado dano biológico, que pode envolver uma vertente patrimonial ou uma vertente não patrimonial.
II- A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.
III- Só se a sentença ou decisão que fixe a indemnização atualizar o respetivo valor a momento posterior à data da citação, nomeadamente à data da prolação dessa decisão é que, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002, de 09.5.2002, os juros de mora devidos se vencerão a partir da decisão atualizadora e não a partir da citação.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

                  RELATÓRIO:

NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO instaurou a presente ação com processo comum contra AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de €99.247,17, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento pelos danos sofridos em consequência de acidente de viação de que foi vítima no dia 2-10-2015, quando circulava no motociclo de passageiros com a matrícula 3O-OU-39.

Alegou para tanto e em síntese que o referido acidente ficou a dever-se a culpa do condutor do veículo BM, que na EM 534-4, localidade de Bouça, concelho e distrito de Leiria, saiu da hemi faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha (Vermoil / Barracão) pela qual circulava e invadiu a hemi-faixa contrária, indo embater na parte frontal do motociclo conduzido pelo autor, que circulava nesta mesma faixa, no sentido Barracão/Vermoil.

 A ré, contestou, reconhecendo a culpa do condutor do veículo BM na produção do acidente e em consequência aceita a obrigação de indemnizar o autor, mas, entende que, os montantes ora peticionados, não são adequados aos danos produzidos.

Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“1. Julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,

2. Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até efectivo pagamento.

3. Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €29.591,79 (vinte e nove mil, quinhentos e noventa e um euros e setenta e nove cêntimos), a título de dano patrimonial futuro [após descontar a quantia de €14.710,49 de capital de remição já pago ao montante de €44.302,28], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.

4. Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €12.000,00 (doze mil euros), a título de dano biológico, na vertente patrimonial, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.

5. Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €5.351,52 (cinco mil, trezentos e cinquenta e um euros e cinquenta e dois cêntimos), a título de dano patrimonial [perda de salário durante período de incapacidade total], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.

6. Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €256,14 (duzentos e cinquenta e seis euros e catorze cêntimos), a título de dano patrimonial [perda de salário durante período de incapacidade parcial], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.

7. Absolve-se a Ré do restante pedido.

8. Custas a cargo da Autora e da Ré, na proporção do decaimento.

9. Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, a ré interpôs ré recurso terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

 “1ª- O autor Nelson José Ribeiro Sousa Serrano demanda a ora Recorrente a fim de ser ressarcido dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, que sofreu em consequência do acidente de viação, ocorrido em 2 Outubro 2015, entre o motociclo por si conduzido e o veículo automóvel, pesado de mercadorias, com a matrícula 92-25-BM.

2º A ora Recorrente, em sede de contestação, aceitou a culpa do condutor do veículo de matrícula 92-25-BM e a sua responsabilidade civil, em consequência do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 0045.10.088003, estando em causa, essencialmente, o apuramento das lesões sofridas pelo Autor, das respectivas sequelas e a sua repercussão na profissão e na vida diária deste.

3ª- A ora Recorrente não se conforma com a decisão a quo relativamente ao montante indemnizatório fixado a título de dano patrimonial futuro (ponto 3 do dispositivo) e a título de dano biológico (ponto 4 do dispositivo), bem como nos juros de mora relativamente a cada um dos referidos segmentos indemnizatórios, questões que delimitam o presente recurso.

4ª A decisão a quo não faz uma correcta subsunção jurídica dos factos, com a consequente desapropriada aplicação do direito, no que diz respeito à fixação dos referidos danos patrimoniais – dano patrimonial futuro e dano biológico – por se reputarem excessivos e em desacordo com os critérios propugnados pela nossa Jurisprudência.

5ª- O direito à indemnização por danos de natureza patrimonial tem a medida estabelecida pelos Artigos 562º e seguintes do Código Civil, ou seja, o seu quantum deve repor a situação que existia no momento da lesão.

6ª- Sempre que não se revele possível ou adequado à situação concreta, a reconstituição natural, proceder-se-á à fixação de uma indemnização em dinheiro que, nos termos do Artigo 566º C.C. terá como medida “a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.”

7ª- O Autor, ora Recorrido, peticiona, a título de dano futuro, o pagamento da quantia de € 55.350,00 (à qual deve ser descontado o valor que já recebeu, a título de capital de remição - €14.710,49) e ainda a quantia de €15.000,00, a título de dano biológico patrimonial.

8ª- O Tribunal a quo, com recurso à fórmula matemática “adoptada no acórdão do STJ de 5-5-94, in CJSTJ, ano II, Tomo II, pág. 87,” apura o valor de € 44.302,28 (quarenta e quatro mil, trezentos e dois euros e vinte e oito cêntimos), como sendo o “que corresponde a uma presumível perda da capacidade de ganho do Autor”.

Descontando o montante pago pela seguradora laboral (€14.710,49) fixa em €29.591,79 a quantia devida pela ora Recorrente a título de dano patrimonial futuro

9ª- Além deste montante, o Meritíssimo Juiz a quo consigna “que o valor assim apurado deverá sofrer uma ampliação de acordo com a equidade, uma vez que tal incapacidade terá sempre repercussão na sua vida futura, nesta vertente patrimonial, não só para a profissão para a qual adquiriu formação, como ainda, fica com um leque mais reduzido de opções laborais ou pelo menos para as quais será sempre exigido um esforço acrescido para o resto da vida como consequência de tal incapacidade, aspectos que integram a vertente patrimonial do dano biológico.”

10ª- E entende “adequado e equilibrado”, por este mencionado dano biológico, fixar o montante de €12.000,00 (doze mil euros).

11ª- A Recorrente considera que a cumulação destes referidos valores – € 44.302,28, a título de dano patrimonial futuros e € 12.000,00, a título de dano biológico – não é adequada, face às sequelas apresentadas pelo Autor, e representa uma duplicação de indemnizações com prejuízo para o responsável civil e locupletamento indevido do lesado.

12ª- Neste segmento da indemnização incluem-se os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência do facto danoso, compreendendo, conforme se lê no Ac. do S.T.J. de 28.10.92 (C.J., 1992, tomo 4º, p.29), “perda de ganhos futuros, em vias de concretização, de natureza eventual ou sem carácter de regularidade, que o lesado não consegue obter em consequência do acto ilícito”.

13ª- Na determinação do montante da justa indemnização de tais danos e porque insusceptíveis de contabilização exacta, deverá fazer-se apelo a juízos de equidade (Art.º 566º, n.º3 do C.C.) tendo, como ponto de partida, os elementos de facto apurados; como factor de ponderação, as regras da experiência e a razoabilidade do curso natural das coisas; e como parâmetro, os casos análogos (Art.º 8º, n.º 3 do C.C.).

14ª- Conforme resulta da matéria de facto provoca, elencadas nos pontos 57 e 58 da decisão, da prova pericial realizado nos presentes autos – avaliação do dano corporal em direito civil através do Instituo Nacional de Medicina Legal – resulta, inequivocamente, que, em consequência das lesões sofridas, o ora Recorrido tem sequelas compatíveis com o exercício da sua actividade profissional, mas que implicam esforços suplementares.

15ª- O ora Recorrido não se encontre impossibilitado de exercer a sua actividade profissional. A incapacidade que lhe é atribuída importa, apenas, uma acrescida dificuldade na sua realização.

16ª- O défice funcional de 10 pontos de que o Autor, ora Recorrido, ficou a padecer, sendo importante, não tem um específico e permanente rebate profissional, apenas implicando esforços suplementares. Em rigor, não estamos perante uma verdadeira perda da capacidade aquisitiva de ganho.

17ª- A situação de compatibilidade das sequelas com a actividade profissional, embora com esforços suplementares, remete-nos para o ressarcimento através do dano biológico.

18ª- O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais, estando na sua origem o direito à saúde, concretizado numa situação de bem-estar físico e psíquico.

19º A tutela deste dano encontra o seu fundamento último no âmbito do direito civil, nos Art.ºs 25º n.º 1 da C.R.P. – que considera inviolável a integridade física das pessoas – e 70º n.º 1 do C.C. – que protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

20ª- A Jurisprudência tem estabelecido critérios de apreciação e de cálculo do dano biológico (quer ele se reconduza, em concreto, a um dano patrimonial – quando se prove a perda/diminuição dos rendimentos profissionais – ou a um dano não patrimonial – quando não ocorra essa perda/diminuição) para que haja uma maior uniformidade na sua quantificação

21ª- No nosso caso concreto, com relevo para aferição do dano ora em apreço, foi apurado que o Autor tinha 45 anos à data do acidente; as sequelas de que é portador implicam um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 10 pontos (10%) e, em termos de Repercussão Permanente na Actividade Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

22ª- O dano sofrido, avaliado em 10 pontos de défice permanente da integridade físico- psíquica, determinará um esforço acrescido por parte do Recorrido, não só para o exercício de actividade profissional, como para qualquer outra actividade económica ou de lazer, susceptível de ser compensado, mas sempre a título de dano biológico.

23ª- A fórmula matemática de que o Tribunal a quo lança mão para determinar o montante do dano patrimonial futuro, tal como outras fórmulas mencionadas na nossa jurisprudência (acompanhando o decidido no Acórdão do STJ no processo 7614/15.2T8GMR.G1.S1), “costuma ser usada para calcular a indemnização  devida por um défice funcional permanente que atinja, de modo directo e imediato, a capacidade de ganho do lesado. Ao usá-la, a 1ª instância, fez corresponder, na prática, o défice funcional permanente fixado ao Autor a uma efectiva perda da capacidade de ganho, o que, podemos já adiantar, não se nos afigura correcto

24ª- Uma vez utilizada aquela fórmula matemática, o seu resultado apresenta-se como “uma linha vermelha, inultrapassável: a indemnização pelo dano patrimonial futuro (sem rebate profissional), não deve ultrapassar o valor da indemnização que seria devida se tal dano viesse a projectar-se, directa e imediatamente, na capacidade de ganho do lesado (com rebate profissional

25ª- Ponderando a esperança média de vida, a incapacidade de que ficou portador, a concreta ausência de perdas remuneratórias, os casos similares da Jurisprudência, cremos que, à luz dos critérios que norteiam a equidade, a indemnização justa e adequada ao dano patrimonial futuro/dano biológico do Recorrido não deve ser por este Venerando Tribunal fixada em quantia superior a €40.000,00 (quarenta mil euros).

26ª- A este valor deve ser descontado o montante que o ora Recorrido já recebeu da seguradora laboral, no montante de € 14.710,49, resultando assim, a este título, uma indemnização de € 25.289,51 (vinte e cinco mil, duzentos e oitenta e nove euros e cinquenta e um cêntimos) a pagar pela ora Recorrente.

27ª- O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as disposições conjugadas dos Art.ºs 8º, n.º 3, 562º; 563º; 564º e 566º todos do Código Civil

28ª- A ora Recorrente foi condenada, relativamente aos montantes fixados pelo Tribunal a quo a título de dano patrimonial futuro e a título de dano biológico, no pagamento “de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento”.

29ª- Independentemente das quantias fixadas em cada um dos referidos segmentos indemnizatórios, com as quais não se concorda pelos fundamentos expostos, não pode a Recorrente aceitar a condenação no pagamento de juros contados desde a data da sua citação.

30ª- O artigo 562º do CC consagra o princípio geral da obrigação de reparação integral do dano por parte do responsável pela lesão, obrigação esta que inclui a mora, por força do determinado pelos artigos 804º e 806º, nº 1, ambos do CC.

31ª- A norma constante do artigo 805º do CC fixa o momento da constituição em mora, sendo que o seu n.º 3, no caso de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, designa, como dies a quo, a data em que ocorre a citação.

32ª- Porém, na fixação de juros moratórios impera a jurisprudência obrigatória do Acórdão n.º 4/2002 (Processo nº 1508/2001 — 1ª Secção) do STJ de 9 de Maio de 2002 segundo a qual “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805 n. 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n. 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

33ª- Nos presentes autos, a recorrente é condenada no pagamento do dano patrimonial futuro/dano biológico devido ao Recorrido, o qual integra o disposto no artigo 566º, n.º 2, do CC

34ª- A decisão recorrida, ao condenar a ora Recorrente no pagamento dos juros de mora vencidos desde a sua citação até efectivo pagamento e não desde a prolação da sentença condenatória, viola o disposto nos artigos 562º, 566º, n.º 2, 804º, 805º, n.º 3 e 806º, n.º 1, todos do CC.

TERMOS EM QUE

Deve este Venerando Tribunal dar provimento ao presente Recurso, revogando os pontos 3 e 4 do dispositivo da sentença sob recurso e condenando a Recorrente a pagar ao Recorrido, a título de dano biológico, quantia não superior a €25.289,51 vinte e cinco mil, duzentos e oitenta e nove euros e cinquenta e um cêntimo), acrescida de juros de mora vencidos desde a data da decisão.

O recorrido apresentou contra-alegações, sustentando que deve ser mantida a sentença recorrida.

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

OBJETO DO RECURSO

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são as seguintes:
1- Valoração das indemnizações devidas ao autor por danos patrimoniais futuros e por dano biológico.
2- Momento inicial da contagem dos juros de mora.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Resultaram provados os seguintes factos:
A. Factos provados

I- Do Acidente

2. No dia 2 de Outubro de 2015, pelas 08:30h, ocorreu um acidente de viação, na EM 534-4, ao Km2, na localidade de Bouça, Concelho e Distrito de Leiria.

3. No qual foram intervenientes os seguintes veículos:

- O veículo pesado de mercadorias de matrícula 92-25-BM, conduzido por Adelino Henriques António, que circulava no sentido de marcha Vermoil / Barracão,

- O motociclo de passageiros de matrícula 30-OU-39, conduzido pelo ora A, que circulava no sentido de marcha Barracão/Vermoil.

4. O acidente ocorreu na localidade de Bouça.

5. No local onde ocorreu a acidente a faixa de rodagem tem a largura de 5,30 metros.

6. Possui dois sentidos de trânsito, sendo que cada um possui uma hemi-faixa de rodagem em cada sentido.

7. Sendo a velocidade máxima permitida naquela via de 50 km/h.

8. Caracterizando-se por, no sentido de marcha Barracão-Vermoil, o mesmo sentido de marcha do A., ser uma curva para a direita.

9. No momento em que ocorreu o acidente o tempo estava seco e as condições de visibilidade eram superiores a 50m;

10. Nestas circunstâncias, o condutor do veículo de matrícula 92-25-BM deslocava-se no sentido de marcha Vermoil / Barracão quando,

11. Na localidade de Bouça,

12. Se deparou com um acidente que tinha acabado de ocorrer na sua hemi-faixa.

13. Ao deparar-se com o acidente o condutor do veículo 92-25-BM imobilizou o veículo por si conduzido

14. Contudo,

15. Tendo em consideração que a hemi faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha contrário, se encontrava desobstruída, e pretendia seguir a sua marcha,

16. O condutor do veículo de matrícula 92-25-BM reiniciou a marcha,

17. Saindo da hemi faixa de rodagem destinada ao sentido da marcha pela qual circulava,

18. Invadindo a hemi-faixa contrária, na qual circulava o veículo conduzido pelo A.,

19. Indo embater na parte frontal do motociclo conduzido pelo A.

20. Tendo, o embate ocorrido na hemi faixa de rodagem destinada ao sentido de marcha do A.

21. Em consequência deste embate, o A. foi projectado.

22. À data do acidente o veículo de matrícula 92-25-BM tinha a responsabilidade civil decorrente da sua circulação transferida para a ora Ré, através de um contrato de seguro do Ramo Automóvel, titulado pela apólice n.º 004510088003

23. No momento em que o veículo de matrícula 92-25-BM atingiu o motociclo conduzido pelo A. e o projectou para o asfalto, o A. sentiu dores, perdendo a consciência.

24. Provocando ao A., entre outros danos físicos, traumatismo craniano com perda de conhecimento, fractura do rádio e do cúbito da mão direita, bem como deslocamento do joelho.

25. O A. foi socorrido no local pelos bombeiros, e depois de prestados os primeiros socorros e sido imobilizado, foi transportado de transportado de ambulância para o Centro Hospital de Leiria, E.P.E., onde deu entrada nos serviços de urgência.

26. Após a entrada no serviço de emergência, foi submetido a múltiplos exames complementares de diagnóstico, nomeadamente Raio X, TAC, análises, no sentido de determinar as lesões sofridas e gravidade das mesmas.

27. Em sequência dos quais lhe foi diagnosticado:

-Traumatismo crânio-encefálico, com perda de conhecimento;

-Contusão toráxica;

-Fractura fechada das diáfise do rádio e do cúbito do braço direito;

-Fractura bimaleolar do tornozelo, fechada da perna direita;

-Hemorragia subdural

28. Face às lesões apresentadas, o A. ficou internado

29. No dia 4 de Outubro, terceiro dia de internamento, o A. foi submetido a uma intervenção cirúrgica, na qual foi sujeito a:

- Osteossíntese dos ossos do antebraço com placas cpc;

- Osteossíntese maléolo tibial com parafuso maleolar e anilha;

- Osteossíntese maléolo peroneal com placa DCP

30. Permaneceu internando neste hospital e serviço, acamado, até ao dia 8 de Outubro de 2015, data em que lhe foi dada alta, com indicação de recolha ao domicilio.

31. Foi indicado ao A. que teria de continuar acamado e estar em repouso absoluto.

32. Tendo em consideração que à data do acidente o A. se deslocava para o seu local de trabalho e se encontrava coberto por um contrato de seguros do Ramo de Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice nº 0001538761, o mesmo foi participado à Tranquilidade Companhia de Seguros, S.A.

33. Ao abrigo da referida Apólice, a Tranquilidade Companhia de Seguros, S.A., assumiu o acompanhamento clínico do sinistrado.

34. Após a alta hospitalar, o A. continuou a ser acompanhado clinicamente pelos serviços clínicos da Seguradoras Unidas, S.A, no Clínica de São Francisco em Leiria e no Hospital da Luz em Lisboa.

35. No dia 13 de Junho de 2016, o A. voltou a ser intervencionado cirurgicamente, no Clínica de São Francisco em Leiria.

36. Durante todo o período que foi acompanhado pelos serviços clínicos da seguradora de acidentes de trabalho, tendo sido prescritos ao A. tratamentos médicos, de fisioterapia e reabilitação.

37. Durante o período de convalescença das duas intervenções cirúrgicas, o A. realizou na Clínica de São Francisco, Leiria, 27 (vinte sete) sessões de fisioterapia.

38. O A. esteve com Incapacidade Temporária Absoluta de 3 de Outubro de 2015 a 18 de Novembro de 2016.

39. Com Incapacidade Temporária Parcial de 50%, de 19 de Novembro de 2016 a 5 de Dezembro de 2016.

40. Tendo sido dada alta médica, no dia 5 de Dezembro de 2016.

41. Em consequência do acidente e da incapacidade que ficou portador o acidente de trabalho foi participado ao Tribunal de Trabalho de Leiria, tendo corrido o Proc. N.º 3065/16.0.T8LRA.

42. Ao abrigo do referido processo, o A. foi submetido a um exame de avaliação de dano corporal, pelo Gabinete Médico Legal

43. O A. apresenta queixas em consequência do acidente, tais como, dores no braço e mão

direita, com dificuldades em manipulação de pesos, rotação e perca de força, impedindo-

o de estar muito tempo a escrever à mão e ao computador.

44. Dores nas costas e na cervical.

45. Problemas de concentração, perda de memória, de visão e tonturas.

46. Acrescidas de fortes dores de cabeça.

47. Ao acordar por vezes tem fortes dores de pescoço e cabeça.

48. Muitos dias, as fortes dores nos olhos e a dificuldade de encarar a luz do dia obrigam-no a deitar e fechar os olhos.

49. Dores nos joelhos, onde foi diagnosticado um derrame no cesso supra-patelar e bursite.

50. Submetido a exame de avaliação, o A. apresenta as seguintes sequelas:

- Raquialgia residual moderada;

- Dor na face anterior e media do externo;

- Membro superior direito: cicatrizes operatórias da face cubital e radial com 12 cm cada, com limitação de pronação de 60º;

- Membro superior esquerdo: cicatriz residual bordo cubital da mão e face dorsal da articulação MF do 3º dedo;

- Membro inferior direito: cicatrizes operatórias da face externa e interna do tornozelo, com dor residual da faxe externa, edema residual e discreta instabilidade ligamentar;

51. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 05/12/2016.

52. O Período de Défice Funcional Temporário Total é fixável num período de 22 dias.

53. O Período de Défice Funcional Temporário Parcial é fixável num período de 409 dias.

54. O Período de Repercussão Temporária na Actividade profissional Total é fixável num período total de 413 dias.

55. O Período de Repercussão Temporária na Actividade profissional Parcial é fixável num período total de 17 dias.

56. O Quantum Doloris é fixável no grau 5/7.

57. O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica é fixável em 10 pontos (10%).

58. As sequelas descritas, em termos de Repercussão Permanente  na Actividade Profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

59. O Dano Estético é fixável no grau 3/7.

60. A Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer é fixável no grau 3/7.

61. Não é de considerar a Repercussão Permanente na Actividade Sexual.

62. O acidente dos presentes autos foi considerado acidente de viação e de trabalho.

63. À data do acidente o A. tinha 45 anos de idade.

64. Exercia a actividade profissional de condutor de máquina pá carregadora.

65. Auferindo o salário base de € 1.004,00 x 14 meses, mais € 5,12 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação e ainda € 106,47 x 11 meses a título de prémio de produção, num total anual de € 16.466,21.

66. No âmbito do processo n.º 3065/16.0T8LRA, que correu termos no Juízo do Trabalho de Leiria – Juiz 1, foi realizada tentativa de conciliação, e tendo por base o salário, a idade do A., e a Incapacidade Parcial Permanente que ficou portador, foi atribuída uma pensão anual e vitalícia de € 1.016,62, sendo o capital de remição da pensão no valor de €14.710,49.

67. No dia 26 de Outubro de 2017, foi entregue ao A. o capital de remição no valor de €14.710,49.

68. O A. esteve com Incapacidade Total Absoluta de 3 de Outubro de 2015 a 18 de Novembro de 2016, tendo durante este período recebido da Seguradoras Unidas, S.A., ao abrigo do contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho apenas 70% da remuneração média mensal.

69. Ora, tendo em consideração o salário médio mensal de € 1.372,18, tendo estado com incapacidade total durante treze meses e apenas recebido 70% do salário, o A. teve uma perda salarial e consequente prejuízo patrimonial de €5.351,52 (cinco mil trezentos e cinquenta e um euros e cinquenta e dois cêntimos).

70. Durante o período de Incapacidade Temporária Parcial de 50%, o A. devia ter auferido €365,92, tendo apenas recebido da Seguradoras Unidas, S.A., ao abrigo do contrato de seguro do Ramo Acidentes de Trabalho apenas € 109,77.

71. Teve assim um prejuízo patrimonial de € 256,14 (duzentos e cinquenta e seis euros e catorze cêntimos).

72. O A. em consequência do acidente de viação que foi vítima, sofreu lesões que determinaram internamento Hospitalar.

73. Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, uma realizada no Hospital de Santo André– Leiria e a outra realizada no Hospital de São Francisco – Leiria.

74. As intervenções cirúrgicas realizadas criaram medo, receio, ansiedade ao A. na sua recuperação.

75. Acrescido das muitas e intensas dores tidas nos pós-operatório.

76. O A. teve de se deslocar dezenas de vezes ao Clínica de São Francisco, para efectuar a mudança de pensos.

77. Teve de realizar 27 (vinte sete) sessões de fisioterapia.

78. As sessões de fisioterapia realizadas eram muito dolorosas, exigindo uma grande capacidade de sofrimento por parte do A., não conseguindo muitas vezes resistir à dor, chorando, o que obrigava a parar o tratamento.

79. O A. deslocou-se a cerca de 15 (quinze) consultas no Clínica de São Francisco e Hospital da Luz em Lisboa, para ser acompanhado pelos serviços clínicos da R.

80. A deslocação aos tratamentos, consultas, causaram muitos transtornos e incómodos ao A., porquanto, pelo facto de não poder conduzir tinha de pedir a amigos e a familiares para o transportarem.

81. Acresce ainda, que pelo mesmo facto, ou seja, por não poder conduzir o A. tinha de permanecer muitos dias em casa pois não se podia deslocar.

82. O A. devido às lesões sofridas não podia caminhar autonomamente, tendo de se deslocar de cadeiras de rodas, situação que se manteve cerca de dois meses.

83. O A. necessitou da ajuda de terceira pessoa, nos dois meses subsequentes a cada uma das duas intervenções cirúrgicas realizadas.

84. Não conseguia tratar da sua higiene pessoal sozinho, nomeadamente tomar banho.

85. Não conseguia vestir-se sozinho, nomeadamente não conseguia apertar os botões e apertar os atacadores dos sapatos ou ténis.

86. Nas refeições pelo facto de não conseguir utilizar os dois talheres, tinha de pedir ajudar para cortar os alimentos confecionados.

87. O facto de o A. estar totalmente dependente para realizar actos básicos da sua vida diária, ficava revoltado, desgostoso e angustiado.

88. Ainda em consequência do acidente, o A. partiu um dente do maxilar superior e a dentadura do mesmo maxilar.

89. Tendo ficado durante mais de dois meses sem possibilidade de comer alimentos sólidos.

90. Facto que muito o envergonhava sempre que saia à rua;

91. À data do acidente o A. tinha 45 anos de idade, era uma pessoa activa, saudável, não lhe sendo conhecida qualquer deformidade.

92. O A. era um apaixonado por motas, fazendo destas o seu meio de transporte habitual.

93. Em consequência do acidente ficou com medo de conduzir motociclos.

94. Bem como, deixou de jogar futebol com os amigos.

95. O A. conforme supra alegado, foi submetido a duas intervenções cirúrgicas ao braço e à perna direita, tendo em consequência das intervenções cirúrgicas ficado com cicatrizes pós-operatórias.

96. Anteriormente ao acidente, o A. não apresentava qualquer deficiência ou deformidade no braço ou na perna, nem qualquer cicatriz, pelo que, o estado em que se encontram os dois membros muito o entristece e envergonha, tornando-o uma pessoa complexada, evitando a sua exposição.

97. O A. sofreu muitas e intensas dores com as intervenções cirúrgicas a que foi submetido, bem como, teve igualmente muitas e intensas dores nas muitas sessões de fisioterapia realizadas.

98. Desde o acidente que A. tem igualmente muita dificuldade em subir escadas, pois logo que inicia a subida, fica acometido de fortes dores em ambos os joelhos,

99. O A. não consegue pegar em pesos nem fazer força com o braço.

100. Devido às suas limitações, teve de haver uma readaptação do seu posto de trabalho, pois não consegue exercer as mesmas funções que exercia anteriormente ao acidente.

101. Atendendo às dores de que padece nos membros inferiores e superiores, acrescidos das dificuldades de memória e de concentração, o Autor não mais pode conduzir veículos pesados de passageiros.

102. Pelo que não poderá renovar a licença de condução de veículos pesados de passageiros.

103. Tal facto revolta muito o A., pois anteriormente não tinha qualquer limitação física e hoje sente-se um inválido.

104. A esperança de vida em Portugal para os homens é de 78 anos.

B. Factos Não Provados

Não se provaram os seguintes factos:

Que o Autor despendeu antecipadamente a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), em férias, que não recuperou.

b) Que deixou de conduzir motociclos ou fazer musculação.

c) Que continua a ter dores no braço direito que, quando faz algum, esforço, por mais leve que seja, fica vermelho, o que o impede de executar de uma forma autónoma tarefas que anteriormente realizava com gosto, como pintar, tratar da mecânica dos seus veículos e mesmo cortar a relva pois, neste caso, passou a não conseguir colocar o motor do corta relvas a funcionar.

d) Que continua ainda a ter fortes dores no esterno, sempre que se baixa para vestir, quando tosse ou se espreguiça e mesmo quando está deitado.

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1- Valoração das indemnizações devidas ao autor por danos patrimoniais futuros e por dano biológico (segmentos 3 e 4 da parte decisória)

Antes de mais, importa reter que autor peticionou a indemnização de €12.000,00, a título de dano biológico na sua vertente patrimonial e de €40.639,51 por dano patrimonial futuro.
Na sentença recorrida condenou-se a ré a pagar ao autor as quantias de €29.591,79, a título de dano patrimonial futuro [após descontar a quantia de €14.710,49 de capital de remição já pago ao montante de €44.302,28] e de €12.000,00, a título de dano biológico, na vertente patrimonial.

Sustenta a recorrente que a cumulação destes valores €44.302,28, a título de dano patrimonial futuro e €12.000,00, a título de dano biológico- não é adequada, face às sequelas apresentadas pelo autor, e representa uma duplicação de indemnizações com prejuízo para o responsável e locupletamento indevido do lesado. Assim, ponderando a esperança média de vida, a incapacidade de que ficou portador, a concreta ausência de perdas remuneratórias, os casos similares da Jurisprudência, cremos que, à luz dos critérios que norteiam a equidade, a indemnização justa e adequada ao dano patrimonial futuro/dano biológico do recorrido não deve ser por este Venerando Tribunal fixada em quantia superior a €40.000,00. A este valor deve ser descontado o montante que o ora recorrido já recebeu da seguradora laboral, no montante de €14.710,49, resultando assim, a este título, uma indemnização de €25.289,51 a pagar pela ora recorrente (conclusões 11ª, 25º e 26).

No caso não se discutem os demais pressupostos da responsabilidade civil, designadamente a ilicitude e a culpa, no caso, grave, do condutor do veículo segurado cuja responsabilidade civil foi transferida, pelo contrato de seguro, para a ré.

Nesta medida, todos os danos que causalmente forem imputados a tal conduta devem ser ressarcidos pela R. (arts. 562º a 564º do CC), sendo que em matéria que lida com lesões de ordem física que se projetam no futuro se mostra necessário o recurso à equidade (art.º 566º, nº 3, do CC), instrumento que permite encontrar o valor da compensação que seja concretamente ajustado à situação.

Decorre da matéria dada como provado que das sequelas descritas em 50), determinaram um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica do autor fixável em 10 pontos (10%) (facto 57), sequelas compatíveis com o exercício da atividade profissional habitua, embora implicando esforços suplementares (facto 58).

Com este quadro, estamos colocados no campo do dano biológico, não havendo, desde logo, razões para se autonomizarem os invocados danos futuros que levaram o tribunal a quo a condenar a ré/recorrente no ponto 3 do segmento decisório[1].

Segundo o Ac. do STJ, de 12-07-2018[2]:

I- As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria, não sendo cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao lesado/sinistrado.

II- Esta concorrência de responsabilidades configura uma solidariedade imprópria ou imperfeita, podendo o lesado/sinistrado exigir, alternativamente, a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, sendo que o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente.

III- A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.

IV - A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.

V - A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.”

Conforme se refere no Ac. do STJ, de 30-11-2021[3] “Não estando provada qualquer perda da capacidade de ganho, que aquilo que o recorrente pretende ver indemnizado a título de perda futura de capacidade de ganho (…) e a título de dano biológico (…) só pode ser indemnizado como dano biológico, na sua vertente patrimonial.

No Ac. do STJ de 25-05-2017[4] considerou-se o seguinte:

«I - O STJ tem admitido, de forma reiterada, que as consequências danosas que resultam da incapacidade geral permanente (“dano biológico”) são, em abstracto, reparáveis como danos patrimoniais, ainda que essa incapacidade não tenha repercussão directa no exercício da profissão habitual, por aquelas poderem compreender igualmente a afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais.

II - A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais.

III- Consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual. Considera-se ainda que o aumento da penosidade e esforço pode ser atendido nesse mesmo âmbito (danos patrimoniais) – e não apenas no âmbito dos danos não patrimoniais –, desde que seja provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.

IV - No domínio dos danos patrimoniais indetermináveis a reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cfr. art.º 566º, nº 3, do Código Civil), dentro dos limites que o tribunal tiver como provados.

V - A atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho – antes da lesão -, tanto na profissão habitual do lesado, assim como em actividades profissionais ou económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A estes acresce um outro factor: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como das actividades profissionais alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).»

Foi decidido no Ac. do STJ, de 6-12-17[5],

«IV. O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer atividades ou tarefas de cariz  económico, mesmo fora da atividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis.

[…]

VI. Neste tipo de situações, a indemnização reparatória não deve ser calculada com base no rendimento anual do lesado auferido no âmbito da sua atividade profissional habitual, já que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para

o exercício dessa atividade, envolvendo apenas esforços suplementares nesse exercício.

VII. Em tais casos, a solução seguida pela jurisprudência do STJ é a de fixar um montante indemnizatório por via da equidade, ao abrigo do disposto no artigo 566.º, n.º 3, do CC, em função das circunstâncias concretas de cada caso, segundo os padrões que têm vindo a ser delineados, atentos os graus de gravidade das lesões sofridas e do seu impacto na capacidade económica do lesado, considerando a expetativa de vida ativa não confinada à idade-limite para a reforma.

VIII. A comparação com os diversos casos já tratados na jurisprudência nem sempre se mostra fácil, dada a multiplicidade de fatores variáveis e as singularidades de cada caso, relevando, em especial, o impacto concreto que determinado grau de défice funcional genérico é suscetível de provocar no contexto da atividade económica que estava ao alcance da iniciativa do sinistrado com a inerente perda de oportunidade de ganho.»

A equidade, todavia, não dispensa a observância do princípio da igualdade; o que obriga ao confronto com indemnizações atribuídas em outras situações. “A prossecução desse princípio implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso[6]. Nas palavras do acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2012 (www.dgsi.pt, proc. nº 875/05.7TBILH.C1.S1), “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição[7].

Impõe-se, assim, que se faça um cotejo com casos similares, apesar da dificuldade de que se reveste uma tal operação, dadas as particularidades de cada caso: ponderação conjugada da idade, grau de défice funcional de que o lesado fica a padecer, função que vinha desempenhando e reflexos na continuação dessa actividade, bem como, nalguns casos, tendo em conta as qualificações e competências do lesado, as limitações, advindas das sequelas, em encontrar alternativas profissionais.

No caso em apreço, o autor tinha 45 anos, à data do acidente (que ocorreu em 2 de outubro de 2015), e 46, à data da consolidação médico-legal das lesões (5 de dezembro de 2016), e, ficou portador de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 10 pontos (factos 2), 50), 57), 63).

O autor apresenta as seguintes sequelas em consequência do acidente de viação:

- Raquialgia residual moderada;

- Dor na face anterior e media do externo;

- Membro superior direito: cicatrizes operatórias da face cubital e radial com 12 cm cada, com limitação de pronação de 60º;

- Membro superior esquerdo: cicatriz residual bordo cubital da mão e face dorsal da articulação MF do 3º dedo;

- Membro inferior direito: cicatrizes operatórias da face externa e interna do tornozelo, com dor residual da faxe externa, edema residual e discreta instabilidade ligamentar (facto 50).

-O autor exercia a atividade profissional de condutor de máquina pá carregadora e auferia o salário base de € 1.004,00 x 14 meses, mais € 5,12 x 22 dias x 11 meses de subsídio de alimentação e ainda € 106,47 x 11 meses a título de prémio de produção, num total anual de € 16.466,21 (factos 64) e 65).

-As sequelas descritas, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares (facto 58).

-A esperança de vida dos homens em Portugal é de 78 anos (facto 104).

-No âmbito do processo n.º 3065/16.0T8LRA, que correu termos no Juízo do Trabalho de Leiria – Juiz 1, foi realizada tentativa de conciliação, e tendo por base o salário, a idade do autor, e a Incapacidade Parcial Permanente que ficou portador, foi atribuída uma pensão anual e vitalícia de €1.016,62, sendo o capital de remição da pensão no valor de €14.710,49 (facto 66).

- No dia 26 de outubro de 2017, foi entregue ao autor o capital de remição no valor de €14.710,49 (facto 67).

Na sentença recorrida, considerou-se ajustada, para o dano biológico, na vertente de patrimonial, a quantia de €12.500,00.

Vejamos alguns casos (de indemnizações por dano biológico, na dita vertente):

-No Ac. do STJ de 29-10-2019[8], atribui-se ao lesado, com 34 anos, com um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional, mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas), o montante de €36.000,00.

-No Ac. do STJ, de 5-05-2020[9], atribui-se ao lesado, com 34 anos, com um défice funcional de 5 pontos percentuais, com acréscimo de esforço físico no desenvolvimento da sua atividade de trabalhador da construção civil, o montante de €25.000,00.

-No Ac. do STJ, de 29-11-2020[10], atribui-se à lesada, economista e formadora, com 44 anos, auferido nos três últimos anos (2016, 2017 e 2018), uma média de €9.090,40 por ano e tendo ficado, em consequência do acidente ocorrido em novembro de 2018, com um défice funcional permanente de 8 pontos, justifica-se a fixação da indemnização por danos patrimoniais futuros (dano biológico) em €21.500,00.

Tendo em conta estes exemplos, considera-se que, no presente caso, o montante atribuído na sentença recorrida peca por defeito. Porém, como a sentença recorrida foi apenas objeto de recurso pela ré/seguradora, mantém-se o montante fixado em €12.500,00, a título de dano biológico na vertente patrimonial.


2- Momento inicial da contagem dos juros de mora

Na sentença recorrida considerou-se a propósito dos juros de mora:

“Tratando-se de obrigação pecuniária, tem o Autor direito aos juros de mora, à taxa legal, ao abrigo do disposto no art.º 805.º, n.º 3, do Código Civil, contados do seguinte modo:

-Para os danos patrimoniais, tais juros contam-se desde a data da citação da Ré, até efectivo e integral pagamento.

- Para os danos não patrimoniais os juros contam-se desde a data da presente sentença (cfr. interpretação do disposto no art.º 805.º, n.º 3, Código Civil, dada pela Jurisprudência n.º 4/2002, de 09/05/2002, publicado no DR. N.º 164, I-A, de 27/06/2002), até efectivo e integral pagamento”.

Sustenta a recorrente que nos presentes autos, é condenada no pagamento do dano patrimonial futuro/dano biológico devido ao recorrido, o qual integra o disposto no artigo 566º, n.º 2, do CC., pelo que a decisão recorrida, ao condenar a ora recorrente no pagamento dos juros de mora vencidos desde a sua citação até efetivo pagamento e não desde a prolação da sentença condenatória, viola o disposto nos artigos 562º, 566º, n.º 2, 804º, 805º, n.º 3 e 806º, n.º 1, todos do CC.

O acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 9-05-2022[11], fixou como jurisprudência:

               “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do art.º 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação”.

               Não resulta dos autos que o montante indemnizatório fixado a título indemnizatório, tenha sido alvo de qualquer atualização depois da propositura da presente ação, pelo que se vencem juros de mora desde a data da citação nos termos do disposto no art.º 805.º, n.º 3 do código civil. 

(…)

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação interposta pela ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., e, em consequência:

-Revoga-se a sentença recorrida na parte em se condenou a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €29.591,79 (vinte e nove mil, quinhentos e noventa e um euros e setenta e nove cêntimos), a título de dano patrimonial futuro [após descontar a quantia de €14.710,49 de capital de remição já pago ao montante de €44.302,28], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo pagamento (ponto 3 do segmento decisório).

-Mantém-se o demais decidido pela sentença recorrida.

Custas pela apelante e apelado na 1ª instância e no recurso, na proporção dos respetivos decaimentos- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

                                                                                                    Coimbra, 30 de maio de 2023

Mário Rodrigues da Silva- relator

Cristina Neves- adjunta

Teresa Albuquerque- adjunta

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original



([1]) Condena-se a Ré AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor NÉLSON JOSÉ RIBEIRO SOUSA SERRANO a quantia de €29.591,79 (vinte e nove mil, quinhentos e noventa e um euros e setenta e nove cêntimos), a título de dano patrimonial futuro [após descontar a quantia de €14.710,49 de capital de remição já pago ao montante de €44.302,28], acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efectivo pagamento.
([2]) Proc. 1842/15.8T8STR.E1.S1, relatora Rosa Tching, www.dgsi.pt.
 
([3]) Proc. 1544/16.8T8ALM.L1.S2, relator Barateiro Martins, www.dgsi.pt.
([4]) Proc. nº 37/13.0TBMTR.G1.S1, relatora Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt.

([5]) Proc. 1509/13.1TVLSB.L1.S1, relator Tomé Gomes, www.dgsi.pt.

([6]) Ac. do STJ, de 22-01-2009, proc. 07B4242, relatora Maria dos Prazeres Beleza, www.dgsi.pt.
([7]) Cf. ainda, Ac. do STJ, de 3-02-2022, proc. 24267/15.0T8SNT.L1.S1, relator Tibério Nunes da Silva, www.dgsi.pt.

([8]) Proc. 7614/15.2T8GMR.G1.S1, relator Henrique Antunes, www.dgsi.pt.
([9]) Proc. 30/11.7TBSTR.E1.S1, relator Raimundo Queirós, www.dgsi.pt.
([10]) Proc. 9957/19.7T8VNG.P1.S1, relator António Magalhães, www.dgsi.pt.

([11]) Publicado no DR- I Série- A, de 27 de Junho de 2002.