Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/11.8TATNV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIDADE INTELECTUAL
ACTAS
ASSEMBLEIA GERAL
SOCIEDADE COMERCIAL
FACTO FALSO
FALTA
PASSIVO
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256.º, N.º 1, AL. D), DO CP
Sumário: I - Não é de confundir a situação em que o agente não tem o domínio sobre a produção do documento, limitando-se à declaração do facto no mesmo reportado, daquela outra em que os agentes praticam um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante, como sucede quando as arguidas, únicas sócias de uma sociedade por quotas, deliberam em conjunto extinguir o ente colectivo, lavrando, de comum acordo, para o efeito, uma acta com o teor inverídico/falso relativo à inexistência de activo e passivo, por ambas subscrita, destinada a instruir - como instruiu - pedido de instauração, no Registo Comercial, de procedimento administrativo de extinção imediata da pessoa colectiva, o que veio a ocorrer.

II - O primeiro caso, não configura crime de falsificação; o segundo, preenche o tipo objectivo descrito no artigo 256.º, n.º 1, al. d), do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I. Relatório
1. No âmbito do processo comum singular n.º 651/11.8TATNV, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas foram as arguidas A... e B... , melhor identificadas nos autos, submetidas a julgamento, acusadas e pronunciadas pela prática em co-autoria material de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, al. d) do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, por sentença de 02.07.2013, o tribunal decidiu [transcrição parcial do dispositivo]:
«Assim e pelo exposto, o Tribunal decide, julgar a acusação procedente por provada e, consequentemente,
1) CONDENAR a arguida A... pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de 8 euros (oito euros), o que perfaz o total de 1.120 euros (mil cento e vinte euros).
2) CONDENAR a arguida B... pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de 10 euros (dez euros), o que perfaz o total de 1.000 euros (mil euros).
(…)
Decide-se ainda declarar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil D..., e CONDENAR, solidariamente, as demandadas civis e arguidas, A...e B..., no pagamento àquela, como indemnização pelos danos patrimoniais que ficou demonstrado terem sido por ela sofridos em consequência da prática por aquelas do crime de falsificação de documento, e que se traduzem:
a) Da quantia de 24.856,07 euros a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pela demandante D..., correspondente ao valor do seu crédito sobre a referida sociedade “ C..., B... & A...”.
b) Do valor dos juros de mora que se vencerem, calculados sobre o montante referido na alínea a), desde a notificação das demandantes B... e A... para a presente acção, à taxa legal que vigorar para os juros civis, e que se encontra actualmente fixada em 4%.

Por outro lado, decide-se ABSOLVER as demandadas civis A... e B... da restante parte do pedido de indemnização deduzido pela demandante civil D... pelos restantes juros de mora reclamados neste pedido de indemnização civil, designadamente os que se teriam vencido antes da notificação das demandadas no requerimento onde foi formulado o pedido de indemnização civil.
(…)»

3. Inconformadas recorrem as arguidas, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
a) Foi em estado de assombro que as ora arguidas tomaram conhecimento do teor de douta sentença, que de forma absolutamente impiedosa as condenou pelo crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º n.º 1 alínea d) do Código Penal, e em subsequente multa no valor de 1120,00€ relativamente à arguida A..., e 1000,00€ à arguida B....
b) O Tribunal não podia, com o devido respeito, condenar as arguidas com tamanha impetuosidade face, primeiramente, à inexistência do tipo legal de crime em causa, ou, caso assim não seja douto entendimento superior, face à absoluta ausência dos elementos subjetivos tendentes à confirmação da prática deste tipo legal de crime.
c) No seguimento da produção de prova ocorrida em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal entendeu que a mesma se enquadrava no tipo legal de crime de falsificação de documento p.p. no artigo 256.º do CPP.
d) Ocorre contudo que, é notório, na perspectiva das Recorrentes, que face à prova dada como provada, e que infra se coloca em crise, a mesma não é apta seguramente à constatação seguramente à constatação de estarmos perante o crime de falsificação de documento p.p. no artigo 256º do CPP.
e) A verdade é que, o bem jurídico tutelado pelo crime de Falsificação de Documento, é a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.
f) O que se pretende no tipo legal de crime em causa, é a proteção do “documento” em si, e nem sequer a fé pública ou a confiança pública que deles emane, mas sim a força probatória do documento, a segurança, e a credibilidade dos meios de prova documentais no tráfico jurídico-probatório.
g) A doutrina e a jurisprudência dominantes têm considerado que a previsão do artigo 256º do CPP engloba tanto a falsidade material (quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente – o documento não é genuíno), como a falsidade intelectual (quando o documento é genuíno mas não traduz a verdade por haver desconformidade entre a declaração e o que dele consta).
h) Nesses casos, pode efetivamente defender-se estarmos perante a prática de crime de falsificação de documento p.p. no artigo 256.º do CPP.
i) Sendo que, in casu, não ocorreu nenhuma destas situações, dado que se deu como provado que as arguidas declararam com o fito de dissolver a sociedade, que esta não possuía passivo a liquidar, tendo sido efetivamente tal declaração, que ficou plasmada no aludido documento.
j) Em caso semelhante ao dos autos, pode ler-se em sumário do AC. de 14-04-2010, proferido pelo TRP:
k) “A declaração inverídica perante o notário, no ato da celebração da escritura pública da dissolução da sociedade, segundo a qual não tinha qualquer passivo a liquidar não é suscetível de constituir o crime de falsificação de documento do artigo 256º do C.P”.
l) Face à sua absoluta pertinência e atualidade, pela reprodução de sumário de Acórdão proferido a 19-06-2013, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, num caso análogo ao dos presentes autos:
1 - A declaração inverídica perante notário no ato de celebração de escritura pública de dissolução da sociedade, segundo a qual esta não tinha passivo a liquidar, não é suscetível de constituir o crime de falsificação de documento;
2 - Na falsificação intelectual ou ideológica é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração surgirá aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que é realizada;
3 - Ora, a arguida declarou na ata da assembleia-geral que deliberou pela dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso, e apenas isso mesmo que declarou perante o oficial público e este incorporou na escritura outorgada. Logo, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o ato;
4 - Por outro lado, a mesma assembleia e a ata que narra a deliberação tomada tinha por objetivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar. A ata não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar; não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos.
m) Ocorre ainda vício na fundamentação da sentença – que se invoca 410º n.º 2 a) e b) do C.P. Penal, pois que da prova produzida não se provaram fatos suscetíveis de revelar o elemento o elemento subjetivo do tipo legal de crime – falsificação de documento – em concreto a intenção de causar prejuízo a outra pessoa, ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.
n) Ao provar-se, mercê de prova documental (fls. 442 a 496) e testemunhal, que foram pagos créditos após a dissolução da presente sociedade, como pode defender-se, sem cair em contradição insanável que a dissolução da presente teve como fito principal a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao estado, ou obter para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo?
o) Resultando também provado em 15, 15, 17 e 18 da matéria provada que as arguidas nunca se furtaram a negociações tendentes ao pagamento à sociedade demandante a D..., não pode defender-se pela verificação do elemento subjetivo deste tipo legal de crime.
p) Por último, e caso não colha nenhuma das argumentações supra, não se entende, como é que, face à prova testemunhal, totalmente unânime no que concerne ao alegado alheamento da arguida B... relativamente ao funcionamento da presente sociedade, o Tribunal considera que tal evidência não resultou provada.
q) Espanta tal constatação pelo Tribunal a quo, porquanto manifestamente oposta aos depoimentos ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento, incluindo as testemunhas da demandante.
r) Pelo que face ao total alheamento do funcionamento da sociedade, deve a ora arguida, ser absolvida por inexistência dos elementos suscetíveis de revelar os elementos subjetivos do tipo legal de crime em apreço.
s) Por último, face à prova documental junta aos autos, não podia o Tribunal ter mencionado na prova provada a 19) “(…) em data não concretamente apurada, mas situada entre o último trimestre de 2009 e o início de 2010, vendeu o estabelecimento comercial que pertencia àquela sociedade”, na medida em o documento junto a fls, atesta que o referido negócio ocorreu objetivamente em data anterior à das declarações alegadamente concretizadoras do tipo legal de crime de falsificação de documento.

Termos em que face ao exposto, e sempre com o douto suprimento de V. Ex.as deve:
Conceder-se provimento ao presente;
Revogar a sentença ora em crise, absolvendo as arguidas do crime que lhes vem imputado.

4. Por despacho exarado a fls. 738 foi o recurso admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:
1.º Não violou o Tribunal “a quo” qualquer disposição legal ao condenar as arguidas pela prática do crime de falsificação de documento de que se encontravam acusadas.
2.º Não enferma tal decisão de qualquer dos vícios que lhe é apontado pelas recorrentes.
3.º Pretendendo ver reapreciada a matéria de facto, as arguidas não deram cumprimento ao comando previsto no artigo 412.º, n.º 3 do C.P.P., não fazendo qualquer referência às concretas passagens ou excertos das declarações que no seu entendimento impunham decisão diversa da assumida – cf. o Ac. de Fixação de Jurisprudência 3/2012 de 18 – 04 – nem indicam as passagens em que se funda a sua impugnação.
4.º Pelo que, não poderá a sua pretensão, nessa parte ser atendida.
5.º Sempre se dirá, que decorre do depoimento prestado pelas próprias arguidas na sessão de julgamento de 16-06-2013, que ambas decidiram assinar a acta em causa nos autos após lerem o seu conteúdo, estando cientes que a sociedade de que eram sócias à data em que foi elaborada a mesma acta tinha várias dívidas a fornecedores, não sendo assim verdadeira a declaração exarada na mesma que a sociedade «não tinha activo nem passivo».
6.º Ambas reconheceram que o objectivo da declaração efetuada era obter junto da Conservatória de Registo Comercial a inserção no registo da extinção da pessoa colectiva e encerramento da sua liquidação – como efectivamente ocorreu.
7.º Mostram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, al. d) com referência ao artigo 255.º, ambos do Código Penal.
8.º A mentira inserida em documento (declaração e facto falso) integra o conceito de falsificação e a relevância jurídica de tal declaração verifica-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do direito, isto é, «abra ensejo à obtenção de um benefício» - cf. o Acórdão do TRC de 20-12-2011 in www.dgsi.pt.
9.º O facto de após a extinção e liquidação da sociedade a arguida ter pago alguns credores as dívidas pendentes, não exclui o elemento subjectivo do tipo legal em apreço, a «intenção de obtenção de benefício ilegítimo» consistente in casu no encerramento da sociedade e consequente cessação das responsabilidades dos gerentes e a impossibilidade de os credores poderem requerer a insolvência da sociedade, para verem pagos de forma equitativa os seus créditos.
10.º Não se verifica a pretendida contradição na fundamentação nem qualquer dos vícios elencados no artigo 412.º, n.º 2 do C.P.Penal.
11.º Pelo que, negando provimento ao mesmo, mantendo a decisão recorrida, farão V. Exas. Justiça!

6. Também a assistente/demandante “D....-, Lda.” respondeu ao recurso, concluindo:

1. Na perspectiva da Demandante Civil/Assistente/Recorrida, pode concluir-se que a alegação das Arguidas/Recorrentes assenta, tanto no que concerne ao direito, como no que toca aos factos, em quatro traves mestras:
A) As alegadas declarações falsas prestadas na conservatória do registo predial, não são susceptíveis de constituírem crime!
B) A matéria de facto dada como provada nos autos não integra os elementos do tipo subjectivo do crime de falsificação de documentos – vício na fundamentação da sentença – que se invocou nos termos do 410º n.º 2 a) e b) do C.P.Penal.
C) O alheamento da arguida B... no que concerne à gestão da sociedade “ C... B... & A..., Lda.”.
D) Que em face à prova documental junta aos autos, não podia o Tribunal ter mencionado no facto provado 19, em data não concretamente apurada, mas situada enter o último trimestre de 2009 e o início de 2010, vendeu o estabelecimento comercial que pertencia aquela sociedade, em face à prova documental junta aos autos, que atesta que o negócio ocorreu objectivamente em data anterior à das declarações alegadamente concretizadoras do tipo legal de crime de falsificação de documento.
2. As arguidas cometeram em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de falsificação, que se encontra p.p. pelo artigo 256º nº 1, alínea d), do Código Penal. Dispõe a alínea d), do n.º 1 deste preceito que: “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante, é punido …”
3. Documento – para efeitos do presente tipo criminal (dá-nos a noção a alínea a), do artigo 255 do Código Penal) será entre outros, “a declaração corporizada em escrito … inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente …” No caso dos autos, o documento em causa é uma acta de uma assembleia geral da sociedade denominada de “ C..., B... & A... – Panificação e Pastelaria, Lda.”. Esta acta enquadra-se no conceito de documento nos exactos termos dispostos no artigo 255.º, do Código Penal. É uma declaração corporizada num escrito, inteligível para a generalidade das pessoas, que é idónea para a prova de facto juridicamente relevante.
4. “O tipo objectivo pode assumir as seguintes modalidades: (1) a fabricação ex novo de documento, (2) a modificação a posteriori de um documento já existente; (3) a integração no documento de uma assinatura de outra pessoa; (4) a declaração de um facto falso juridicamente relevante; (5) a integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada; (6) e a circulação do documento falso …”
5. No caso dos autos estamos perante uma falsificação ideológica, prevista na alínea d), do n. 1, do artigo 256º “O crime de falsificação ideológica de documentos verifica-se sempre que o documento não está conforme com a declaração (isto é o documento é diferente do declarado … ou quando o documento, embora conforme com a declaração, incorpora, porém, um facto falso juridicamente relevante, pois o facto declarado não corresponde à realidade.”
6. “o bem jurídico protegido por este crime será o da segurança e credibilidade no tráfego jurídico probatório no que respeita à prova documental … a fé pública não é um bem jurídico criminal, mas uma característica que emana de certos documentos, e a fé pública, a confiança pública na autenticidade e veracidade dos documentos será tanto maior quanto maior for a força probatória do documento. É este documento enquanto meio de prova que o direito quer proteger, quer tal destino (o de provar um facto) lhe seja dado desde o início quer posteriormente … - o direito penal não pretende proteger apenas certo tipo de documentos, mas todos os documentos cuja falsidade venha colocar em risco a segurança e credibilidade no tráfico jurídico – probatório, em especial dos meios de prova documentais”, refere a Dra. Helena Moniz, a mesma refere in obra citada, pág. 680.
7. O crime de falsificação de documentos constitui pois um crime de perigo …ou seja, após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório apenas foi colocado em perigo. Trata-se de um crime de perigo abstracto pois o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador, basta pois que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico …, é também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessária a produção de qualquer resultado. Porém, o crime de falsificação de documentos exige uma certa actividade por parte do agente, no sentido de fabricar, modificar ou alterar o documento: é necessário uma modificação do mundo exterior, neste caso a modificação do documento, modificação esta que ocorre logo aquando da criação do documento ou posteriormente.
8. “O documento constitui o objecto da acção. Será sobre ele que incidirá a conduta do agente, bastando para a consumação do tipo legal o acto de falsificação.”
9. As arguidas, juntas, na sede, elaboraram um documento no qual fizeram constar declarações falsas ou seja, de que não a sociedade não tinha quer activo quer passivo.
10. Em julgamento foi provado que a Sociedade possuia à data das declarações quer activo – tinha ou um estabelecimento comercial ou o crédito do trespasse desse estabelecimento comercial caso já tivesse ocorrido naquela data – quer passivo, que a Sociedade tinha uma dívida pelo menos para com a Demandante Cível/Assistente/Recorrida.
11. Logo, está preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime de falsificação de documento pelo qual as Arguidas acusados, ou seja, pela alínea d) do n.º 1 do artigo 256º do Código Penal, que consiste em ter feito constar falsamente de documento.
12. Dúvidas não restam de que se tratam de factos juridicamente relevantes porque só assim conseguiram obter a dissolução e extinção imediata da sociedade, o que aconteceu, tendo a sua matrícula sido cancelada. E tudo isto sem terem de proceder à sua liquidação.
13. Ora se constasse da acta o facto verdadeiro quanto à situação da sociedade, ou seja que a mesma tinha activo e passivo, os artigos 146º, e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, impunham a mesma a proceder previamente à liquidação do seu património, composto pelo seu activo e pelo seu passivo. Não teriam como não liquidar o activo da sociedade e como não proceder ao pagamento das dívidas da mesma com o produto daquela liquidação, cumprindo assim estritamente a Lei. Só depois da liquidação estar encerrada é que seria possível à sociedade solicitar a sua extinção.
14. Mas mesmo que as Arguidas tivessem apenas declarado falsamente facto juridicamente relevante como foi o caso e posteriormente não tivessem utilizado o documento também já teriam praticado o crime porquanto é um crime de perigo abstracto, formal, de mera actividade, como já supra se explicitou.
15. Os pagamentos, efectuados após as datas referidas em 3) e 4), aos credores “E..." e "F...” na totalidade dos créditos que estes tinham sobre a sociedade “ C..., B... & A...”, não servem para infirmar a conclusão de que praticaram o crime. O que releva para se concluir pela prática da actividade ilícita em questão é que à data em que foi elaborado o documento, ou seja a acta da assembleia geral, existiam as referidas dívidas aos credores, sendo assim falso que a sociedade em questão não tinha passivo. O pagamento posterior é irrelevante e não sana a actividade ilícita praticada pelas arguidas.
16. O seu comportamento integra-se assim no tipo objectivo previsto na alínea d), do n.º 1, do artigo 256º, do Código Penal, encontrando-se os elementos que compõem o tipo objectivo de ilícito do crime em causa de falsificação ideológica de documentos devidamente preenchidos nos presentes autos.
17. A matéria de facto dada como provada integra o tipo subjectivo ou dolo do tipo, no crime de falsificação de documentos.
18. Na fundamentação de facto da sua douta decisão, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre toda a factualidade com relevo para a decisão da causa, designadamente os factos constantes da acusação pública, dando-os como provados ou não provados, valorando criticamente diversos elementos probatórios, conjugando-os à luz das regras da experiência e do normal acontecer e articulando-os num raciocínio lógico.
19. A apreciação da matéria de facto encontra-se profusamente motivada, com indicação exaustiva e detalhada das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal a quo, nenhuma delas proibida por lei, e todas, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção (artigos 127.º e 163.º, n.º 1 do CPP), operando a sua análise crítica (artigo 374.º, n.º 2 do CPP).
20. Tal fundamentação afigura-se convincente, faz a análise das várias provas produzidas, relatando exemplarmente a consagração no direito processual penal dos princípios da oralidade e da imediação, no que toca ao processo psicológico de formação da convicção do julgador.
21. A sentença em crise indica quais os fundamentos que levaram o juiz a quo a considerar provada a matéria de facto consubstanciadora da conduta criminosa das Arguidas e suas consequências para a Demandante Civil/Assistente/Recorrida, sendo suficientemente explícita quanto às razões do convencimento alcançado.
22. “O crime de falsificação de documentos é um crime intencional, isto é, o agente necessita de actuar com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo” Não se exige, no entanto, uma específica intenção de provocar um engano no tráfico jurídico … Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado. “refere quanto ao tipo subjectivo do crime a Dra. Helena Moniz, in obra citada, pág. 684.
23. “ … para preencher este tipo de crime o agente deverá ter conhecimento de que está a falsificar um documento … constituindo o documento um elemento normativo do tipo apenas se exige que o agente tenha sobre ele o conhecimento normal de um leigo de acordo com as regras gerais” esclarece a Dra Helena Moniz na obra citada, in pág. 685.
24. O tipo inclui ainda um elemento típico subjectivo, cujo âmbito foi alargado pela Lei n.º 59/2007: a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo – Não é exigível que se verifique o prejuízo objectivo de outra pessoa ou do Estado, nem o benefício ilegítimo do agente ou de terceira pessoa e nem mesmo o cometimento de outro crime. Portanto, o crime de falsificação de documento é um crime de resultado cortado …” refere o Dr. Paulo Pinto de Albuquerque, in obra citada, pág. 756 e seguintes.
25. Neste tipo de crime, para além do dolo genérico exige-se ainda a existência de um dolo específico. Este consiste na intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo.
26. Trata-se, contudo, de um crime de resultado cortado, ou seja para que o mesmo se consume não é necessário que se concretize na prática a intenção que esteve subjacente à realização da conduta em causa. Bastará assim que o agente ao agir tenha aquela intenção de provocar um prejuízo ou obter a vantagem.
27. Ficou provado que as Arguidas, na posse da acta referida em 3), previram e quiseram mandatar a arguida A... para apresentar tal documento subscrito por ambas na Conservatória do registo Comercial competente a fim de ali ser iniciado e concluído o respectivo procedimento administrativo de dissolução e extinção da mencionada sociedade “ C..., B... & A..., proceder ao registo na matrícula da sociedade do acto e das informações documentadas na acta referida em 3), conforme inscrição de “Dissolução e Encerramento da liquidação, data da provação das contas: 2009-12-28”, o que realizaram na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, visando assim publicitar tal acto.
28. Ficou provado que sabiam ambas as arguidas que a declaração exarada por si na acta referida em 3), que a sociedade “ C..., B... & A...” não tina activo, nem passivo, não era verdadeira, e que tal declaração era juridicamente relevante, pois mediante a apresentação da mesma na Conservatória do Registo Comercial logravam inscrever no registo e tornar pública a dissolução e extinção da referida sociedade enquanto pessoa colectiva, que quiseram através do comportamento atrás descrito obter para si um benefício ilegítimo a que sabiam não terem direito.
29. Ficou igualmente provado que as arguidas previram e quiseram causar, desse modo, aos credores da referida sociedade “ C..., B... & A...” um prejuízo patrimonial, impossibilitando-os de demandar esta sociedade para obter o pagamento dos seus créditos, na medida em que teria sido declarada extinta.
30. Encontram-se assim preenchidos o elemento intelectual e o volitivo do dolo genérico. Nos termos do artigo 256º, n.º 1, do Código Penal trata-se de dolo directo.
31. Quanto ao elemento da intenção por parte das arguidas em obter para si um benefício, resulta dos autos, que ao fazerem a declaração falsa na acta da assembleia-geral de que a empresa “ C..., B... & A..., pretenderam que esta última fosse beneficiada.
- deixou de poder ser executada pelos credores com vista à obtenção do pagamento dos seus créditos com a utilização para o efeito do activo da sociedade – ficaram igualmente impossibilitados os credores de instaurar uma acção de insolvência para obter o pagamento dos seus créditos.
32. Tal constitui igualmente um benefício para a arguida A... que passou a poder dispor como bem entendesse do activo da sociedade e também para a arguida A..., que ficou livre de ser responsabilizada pela eventual insolvência da sociedade no âmbito de um eventual processo de insolvência, e de sofrer os efeitos negativos inerentes a essa qualificação culposa da insolvência, designadamente a inibição para o exercício do comércio, e, actualmente, a obrigação de pagar os créditos dos credores da empresa.
33. Os credores da sociedade sofreram um prejuízo patrimonial, na medida em que ficaram impossibilitados de demandar a sociedade extinta para obter o pagamento dos seus créditos.
34. Não pode deixar de se concluir que existe no caso dos autos o dolo específico exigido para este tipo legal de crime de falsificação de documento.
35. Está assim igualmente preenchido no caso dos autos o tipo subjectivo de ilícito do crime em causa de falsificação de documento em relação ao comportamento ilícito realizado pelas arguidas, pelo que não têm qualquer razão as arguidas com esta alegação.
36. Não padece assim a sentença recorrida de nenhum dos vícios previsto no artigo 410.º, nº 2 al. a) e b) que as Arguidas vieram em desespero invocar:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada;
- a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
37. A prova testemunhal que as Arguidas transcreveram nas suas alegações não são passíveis de provar o pretenso alheamento, esquecendo-se as arguidas do Princípio da livre convicção da prova e de que não foi só no depoimento da testemunha M...que o Tribunal a quo se socorreu para formar a sua convicção mas de toda a prova produzida em julgamento.
38. Sob o Princípio de livre convicção do juiz, refere o PROF. FIGUEIREDO DIAS que a mesma é «[…] uma convicção pessoal – até porque nela desempenha um papel de relevo não s´a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros» (Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, 1988-89, Coimbra Editora, p. 139).
39. Relativamente aos outros dois princípios indispensáveis ao julgamento da matéria de facto – oralidade e imediação na produção da prova – só estes princípios viabilizam o contacto directo e próximo com todos os intervenientes processuais, permitindo ajuizar da credibilidade das respectivas declarações.
40. O princípio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo e pessoal entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar, e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
41. O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 198/2004, de 24.03.2004 considerou que «A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o tribunal […] permite ao tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e incerteza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, por exemplo
42. Ora, o que as Arguidas/Recorrentes parecem pretender é que o Tribunal ad quem faça um novo julgamento e que julgue de acordo com as suas (das Arguidas) próprias convicções (de que a prova testemunhal afirma o pretenso alheamento) e não segundo as regras de experiência e a livre convicção do Tribunal a quo.
43. Nessa senda, limitam-se as Arguidas/Recorrentes a contrapor a sua versão dos factos – baseada em pequenos excertos de depoimentos que não são passíveis de contrapor que a arguida B... não tinha conhecimento da vida da sociedade nem tinha participação dela – àquela que foi a apreciação da prova efectuada pelo Juiz a quo, sendo que tal acto de decisão pertence em exclusivo ao Tribunal, que apreciou a prova.
44. Na realidade, o Tribunal recorrido, ao decidir teve em consideração toda a prova produzida, designadamente as declarações das Arguidas, da Demandante Civil e das demais testemunhas. Foi no conjunto de todos os elementos que o tribunal fundou a sua convicção.
45. O que, afinal, as Arguidas/Recorrentes fazem é impugnar a convicção adquirida pelo Tribunal a quo sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos elas próprias (Arguidas) queriam que se tivesse adquirido em Julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova, inserta no artigo 127.º do CPP aludirá.
46. E fazem-no esquecendo-se que, na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de 2.ª instância não vai à procura de uma nova convicção, mas sim à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação de prova – com os demais elementos existentes nos autos – pode exibir perante si.
47. Em respeito àqueles princípios basilares do processo penal, se a decisão do julgador a quo estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, não deverá nem poderá ser alterada pelo Tribunal de recurso.
48. Deverá manter-se a sentença que condenou a Arguida B... pelo crime de falsificação de documentos.
49. O Tribunal a quo é livre de valorar as provas, não existindo hierarquia das mesmas. Conjugada a livre apreciação da prova com os princípios da oralidade e da imediação, sobre os quais já nos detivemos supra, melhor do que ninguém é o Julgador que está mais bem posicionado para, em audiência de julgamento, formar a sua convicção face aos elementos da prova produzida que lhe cabe criticamente apreciar.
50. E ainda que o Tribunal a quo tivesse dado como provado que o trespasse ocorreu em data anterior à produção da cata, em nada alterava porquanto continuava e existir um crédito, logo existia activo, pelo que se mantinham as declarações falsas e a intenção de poder gerir aquele activo da forma que bem entendessem pois os credores nunca forma informados da existência desse crédito nem do seu valor.
51. Não violou a sentença recorrida qualquer norma legal e muito menos as indicadas pelas Arguidas/Recorrentes, tendo feito em contrário uma criteriosa e adequada aplicação do direito ao caso concreto.

Termos em que deverá ser negado provimento ao recurso pelas Arguidas interposto da decisão de 1.ª instância, mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida, assim se fazendo a sã e acostumada Justiça!

7. Remetidos os autos a este tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, subscrevendo a resposta apresentada pelo Ministério Público, se pronunciou no sentido de o recurso não merecer provimento – [cf. fls. 824/825].

8. Cumprido o artigo 417.º, nº 2 do CPP nenhum dos sujeitos interessados reagiu.

9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No caso em apreço invocam as recorrentes:
- «Erro» de julgamento;
- Os vícios do artigo 410, n.º 2, alíneas a) e b) do CPP;
- A «errada» subsunção dos factos ao direito.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar da sentença recorrida [transcrição parcial]:

Em resultado da prova produzida nos presentes autos e da discussão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:
1. A arguida A... era sócia e única gerente da sociedade “ C..., B... & A... – Panificação e Pastelaria, Lda.”, com sede na Rua J (...), na área desta comarca de Torres Novas, sendo a arguida B... sócia desta empresa, sem poderes de gerência.
2. No dia 28 de Dezembro de 2009, na sede social daquela sociedade “ C..., B... & A...”, estando presentes as duas únicas sócias, ou seja as arguidas A... e B..., foi por elas deliberado em conjunto extinguir aquela sociedade.
3. Para o efeito da realização dessa extinção, as arguidas lavraram de comum acordo uma acta com o nº9, na qual fizeram constar o seguinte: “…tendo a sociedade sido constituída no ano de 2001 com vista ao fabrico de pão e pastelaria, que constituía a sua actividade exclusiva, e tendo cumprido integralmente o seu objecto social, propôs à assembleia que a mesma fosse dissolvida, por se reconhecer que o mesmo se encontra esgotado. Foi colocada à discussão e votação a proposta de dissolução da sociedade, tendo sido a mesma aprovada por unanimidade. Relativamente ao ponto dois da ordem de trabalhos decidiu-se que, em virtude da sociedade, na presente data, já não ter qualquer activo nem passivo, se encontra em condições de poder ser dada como liquidada, conforme tudo decorria da contabilidade social. Os sócios concordaram que os documentos em apreciação eram do seu perfeito conhecimento, pelo que dispensaram a sua leitura e outras formalidades (…). Postas à votação foram aprovadas por unanimidade, as contas e o respectivo balanço de exercício final, assim como a declaração de encerramento da liquidação, por inexistência de activo e passivo, tendo sido nomeada a sócia-gerente A... depositária da escrituração comercial e designada para formalizar os actos de registo comercial”.
4. Na qualidade de sócia-gerente, e na sequência da decisão tomada em conjunto com a arguida B..., que se encontra descrita supra, no dia 29 de Dezembro de 2009, a arguida A... apresentou na Conservatória do Registo Comercial competente um pedido de instauração de procedimento administrativo de extinção imediata da referida sociedade “ C..., B... & A...”, que instruiu com a referida Acta nº9, descrita em 3), que tinha sido assinada por si e pela arguida B....
5. As arguidas mencionaram na acta nº9 referida em 3) que a mencionada sociedade “ C..., B... & A...”, de que eram sócias, não tinha activo, nem passivo, designadamente que não tinha dívidas a terceiros, o que bem sabiam não corresponder à realidade, pois na altura da elaboração de tal acta aquela sociedade devia, e ainda deve, à demandante D... a quantia total de 24.856,07 euros.
6. As arguidas, na posse da acta referida em 3), previram e quiseram mandatar a arguida A... para apresentar tal documento subscrito por ambas na Conservatória do Registo Comercial competente a fim de ali ser iniciado e concluído o respectivo procedimento administrativo de dissolução e extinção da mencionada sociedade “ C..., B... & A...”, proceder ao registo na matrícula da sociedade do acto e das informações documentadas na acta referida em 3), conforme inscrição de “Dissolução e Encerramento da liquidação, data da aprovação das contas: 2009-12-28”, o que realizaram na Conservatória do Registo Comercial de Cascais, visando assim publicitar tal acto.
7. Sabiam ambas as arguidas que a declaração exarada por si na acta referida em 3), que a sociedade “ C..., B... & A...” não tinha activo, nem passivo, não era verdadeira, e que tal declaração era juridicamente relevante, pois mediante a apresentação da mesma na Conservatória do Registo Comercial logravam inscrever no registo e tornar pública a dissolução e extinção da referida sociedade enquanto pessoa colectiva.
8. Quiseram através do comportamento atrás descrito obter para si um benefício ilegítimo a que sabiam não terem direito.
9. As arguidas previram e quiseram causar, desse modo, aos credores da referida sociedade “ C..., B... & A...” um prejuízo patrimonial, impossibilitando-os de demandar esta sociedade para obter o pagamento dos seus créditos, na medida em que teria sido declarada extinta.
10. As arguidas actuaram na sequência de decisão que tomaram em conjunto, em comunhão e conjugação de esforços.
11. As arguidas actuaram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
12. No exercício da sua actividade comercial, e a pedido da arguida A..., na qualidade de gerente da referida sociedade “ C..., B... & A...”, a demandante D... forneceu a esta sociedade os bens que se encontram descritos nas seguintes facturas: a) nº 08A26051, datada de 11-12-2008, no valor da contrapartida de 911,35 euros; b) nº 08A26287, datada de 15-12-2008, no valor da contrapartida de 274,50 euros; c) nº 08A26697, datada de 18-12-2008, no valor da contrapartida de 2.144,89 euros; d) nº 08A27212, datada de 23-12-2008, no valor da contrapartida de 1.357,55 euros; e) nº 08A27507, datada de 29-12-2008, no valor da contrapartida de 150,11 euros; f) nº 09A434, datada de 8-1-2009, no valor da contrapartida de 882,60 euros; g) 09A908, datada de 15-1-2009, no valor da contrapartida de 795,40 euros; h) 09A942, datada de 15-1-2009, no valor da contrapartida de 36,90 euros; i) 09A1009, datada de 16-1-2009, no valor da contrapartida de 48,65 euros; j) 09A1431, datada de 2-1-2009, no valor da contrapartida de 1.425,32 euros, cujas cópias se encontram juntas de fls. 13 a 22, e que aqui se dão por reproduzidas.
13. A demandante D... arcou com encargos bancários resultantes de desconto bancário cuja responsabilidade foi assumida pela empresa “ C..., B... & A...”, no valor total de 2.519,83 euros.
14. A referida sociedade “ C..., B... & A...” aceitou as seguintes letras, de que a demandante D... era a sacadora e que foram entregues a esta, que não foram pagas na data do seu vencimento: a) Letra nº 44, datada de 5-7-2009, com vencimento em 1-10-2009, que tinha aposto o valor de 7.154,11 euros; b) Letra nº 57, datada de 8-1-2009, com vencimento em 30-12-2009, que tinha aposto o valor de 7.154,86 euros.
15. A arguida A..., na qualidade de sócia-gerente da referida sociedade “ C..., B... & A...” foi várias vezes interpelada pela demandante D... para se proceder ao pagamento dos valores referidos de 12) a 15), não o tendo feito, justificando-se com dificuldades económicas.
16. Após muitas insistências da demandante D..., em Novembro de 2009, a arguida A... propôs-se liquidar o valor em dívida através de cheques pré-datados, sendo os dois primeiros no valor de 8.000 euros, cada um deles, não tendo sido entregue qualquer cheque à demandante.
17. Em Dezembro de 2010 a arguida A... acordou verbalmente com a demandante D... proceder ao pagamento da dívida da referida sociedade “ C..., B... & A...”, que fixaram na quantia de 29.508,44 euros.
18. A arguida A... não compareceu na data designada para a recolha das assinaturas do documento que formalizava o acordo referido em 17), que se encontra junto de fls. 33 a 35, tendo mais tarde da arguida A... comunicado que não tinha possibilidade de liquidar o valor das prestações fixadas.
19. A referida sociedade “ C..., B... e A...”, representada pela sua sócia-gerente, ou seja a arguida A..., em data não concretamente apurada mas situada entre o último trimestre de 2009 e o início do ano de 2010, vendeu o estabelecimento comercial que pertencia àquela sociedade, que era composto, designadamente, pelo direito ao arrendamento e pelos bens móveis nele existentes, nomeadamente máquinas para a sua laboração, estabelecimento esse onde aquela exercia a sua actividade de panificação, à testemunha C..., pela contrapartida total de 200.000 euros, tendo sido entre elas acordado que esta última pagaria tal valor em prestações mensais de 1.500 euros, cada uma delas.
20. Durante o 1º ano a testemunha C... entregou as prestações mensais de 1.500 euros, referidas em 19), directamente aos credores da empresa “ C..., B... & A...” para pagar as dívidas desta última.
21. Desde há cerca de 2 anos e até ao início do ano de 2013, a testemunha C... passou a pagar as prestações mensais de 1.500 euros, referidas em 19), directamente à arguida A....
22. Foram pagos, após as datas referidas em 3) e 4), aos credores “ E...” e “Prodite Zeelandia” a totalidade dos créditos que estes tinham sobre a sociedade “ C..., B... & A...”.
23. Após a dissolução da sociedade “ C..., B... & A...” a demandante D... realizou fornecimentos de bens do seu comércio à testemunha C..., que se estabeleceu por conta própria, numa pastelaria com fabrico próprio.
24. A arguida A... aufere um rendimento não determinado da colaboração que presta para a testemunha C... na empresa de panificação desta última.
25. A arguida A... não tem companheiro, nem filhos a seu cargo.
26. Vive em casa de um amigo, não pagando qualquer compensação por esse facto.
27. Tem a 4ª classe como habilitações literárias.
28. A arguida A... declarou para efeito de IRS ter auferido no ano de 2011 o rendimento bruto anual de 6.099,04 euros.
29. A arguida B... aufere o vencimento mensal de 1.207 euros da actividade de assistente social que presta para a Câmara Municipal de (...).
30. Não tem companheiro.
31. Tem 1 filho com 4 anos que se encontra a seu cargo.
32. Vive em casa própria, encontrando-se a pagar a amortização do empréstimo contraído para a sua aquisição.
33. A arguida B... declarou para efeito de IRS ter auferido no ano de 2011 o rendimento bruto anual de 16.821,92 euros.
34. Do certificado de registo criminal de ambas as arguidas nada consta.

*
Por outro lado, o tribunal considerou que não ficaram provados os seguintes factos com relevância para os presentes autos:
A. Na altura em que elaboraram a acta referida em 3), a empresa “ C..., B... & A...” tinha valores em caixa e tinha créditos sobre seus clientes que estes não haviam pago.
B. As arguidas utilizaram os activos da sociedade “ C..., B... & A... para financiar outros negócios da arguida A....
C. A arguida B... sempre foi alheia ao funcionamento da empresa “ C..., B... & A...”, tendo-se limitado à mera subscrição de documentos necessários ao regular funcionamento da sociedade, designadamente de mero expediente, a pedido da arguida A....
D. Com a ressalva do referido no ponto a arguida A... procedeu ao pagamento aos respectivos credores de todas as dívidas da sociedade “ C..., B... & A...”, com excepção da demandante D....
E. Em Setembro de 2011 a arguida A... preparava-se para proceder ao pagamento do crédito da demandante D....
F. A Letra nº 44, referida em 14), foi entretanto paga na íntegra.
  • *
MOTIVAÇÃO DE FACTO E DE DIREITO E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS:

O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos descritos em cima como estando provados essencialmente nas declarações das arguidas, das testemunhas arroladas na acusação, nos documentos juntos aos autos, e na ponderação daí advinda. Designadamente, para a prova dos elementos de identificação da sociedade referida no ponto 1), de que a arguida A... é a sua sócia e gerente, e que a arguida B... é a sua outra sócia, levou-se em consideração a certidão de registo comercial referente à mesma que se encontra junta de fls. 57 a 60. Daí a prova dos factos referidos no ponto 1).
Para a prova dos factos referidos nos pontos 2) e 3), levou-se em consideração a análise da cópia da acta em causa, que se encontra junta a fls. 53. Resulta da análise desse documento qual a data em que a mesma foi elaborada e quais as declarações que constam da mesma. Resulta ainda da sua análise que está em causa a acta de uma assembleia geral em que intervieram as arguidas, na qualidade de únicas sócias da sociedade em causa, e que nela declararam que a mesma não tinha activo, nem passivo.
Confrontadas com a acta em causa, ambas as arguidas confirmaram ter intervido na assembleia-geral a que ela faz menção, que aceitaram o teor da acta e que a assinaram voluntariamente e livremente. Além disso, ambas assumiram que era do seu conhecimento que na altura da elaboração da acta a sociedade em causa tinha dívidas a vários credores, designadamente, à demandante D....
Refira-se que o Tribunal não deu credibilidade à alegação das arguidas que na altura da elaboração da acta em causa, a arguida A... teria previamente celebrado um acordo com todos os credores com vista ao pagamento das dívidas daquela empresa. Na verdade, não foi efectuada qualquer prova da existência desse acordo com os credores. Além disso, a testemunha G..., que era o legal representante da demandante D..., e as testemunhas H..., J...e L..., que são e eram funcionários da demandante, negaram que tivessem chegado a um acordo de pagamento da dívida da sociedade “ C..., B... & A...” para com a demandante, designadamente através de alguma reunião que tivessem tido com a arguida A....
Por outro lado, com base na análise dos documentos juntos de fls. 54 e 55 se fez a prova dos factos referidos no ponto 4), designadamente, que mandatada pela sociedade em causa, a arguida A... solicitou na Conservatória do Registo Comercial a instauração do processo administrativo de extinção daquela sociedade. Confrontada com esses documentos, veio a arguida A... confirmar ser sua a assinatura que consta dos mesmos.
Por sua vez, as testemunhas H..., que trabalha como escriturária para demandante D..., e as testemunhas J...e L..., que trabalham como comerciais para aquela mesma D..., confirmaram que a empresa de que a arguida A... era sócia e gerente, ou seja a “ C..., B... & A...”, era cliente da demandante D... na altura em que ocorreram os factos. Confirmaram ainda a realização de fornecimentos a favor da empresa das arguidas, e ainda que as facturas acompanhavam esses fornecimentos. Confirmaram ainda que no ano de 2008 a empresa dos arguidos deixou de pagar as contrapartidas desses fornecimentos. Que se manteve esse incumprimento, não obstante os contactos que foram efectuados para que fossem realizados os pagamentos em atraso. Informaram ainda que a empresa das arguidas deixou de pagar o montante total que se encontra indicado na acusação e que consta da conta-corrente junta aos autos a fls. 12. Além disso, confrontados com os documentos juntos de fls. 13 a 32, informaram que os mesmos consistem nas facturas que titulam os fornecimentos efectuados pela demandante e não pagos, letras para pagar fornecimentos que não foram igualmente pagas, e ainda notas de débito referentes aos encargos com as letras. Estas testemunhas confirmaram igualmente que a demandante passou a fornecer os produtos do seu comércio à testemunha C..., na medida em que esta tinha crédito e que nunca incumpriu nos pagamentos de tais fornecimentos.
A testemunha H... veio igualmente confirmar que após muitas insistências da demandante D..., em Novembro de 2009, a arguida A... propôs-se liquidar o valor em dívida através de cheques pré-datados, sendo os dois primeiros no valor de 8.000 euros, cada um deles, não tendo sido entregue qualquer cheque à demandante. Que em Dezembro de 2010 a arguida A... acordou verbalmente com a demandante D... proceder ao pagamento da dívida da referida sociedade “ C..., B... & A...”, que fixaram na quantia de 29.508,44 euros. Que, contudo, a arguida A... não compareceu na data designada para a recolha das assinaturas do documento que formalizava o acordo referido em 17), que se encontra junto de fls. 33 a 35, tendo mais tarde da arguida A... comunicado que não tinha possibilidade de liquidar o valor das prestações fixadas.
Refira-se que a arguida A... também confirmou os negócios com a demandante D... por parte da empresa em causa de que era gerente e ainda que parte do preço dos fornecimentos efectuados não foram pagos.
Deste modo, se fez a prova dos factos referidos nos pontos 5), 12) a 18), inclusive, e 23).
Com base na análise da certidão de registo comercial referente àquela empresa “ C..., B... & A...”, que se encontra junta de fls. 58 a 60, verifica-se que foi registada a dissolução da sociedade em causa, certamente através do procedimento administrativo de extinção instaurado pela arguida A..., e ainda o cancelamento da respectiva matrícula. Este cancelamento corresponde na prática à extinção da sociedade em causa.
A testemunha C... veio informar os termos da sua aquisição do estabelecimento comercial onde laborava a referida empresa “ C..., B... & A...”, que era a esta pertencente, e que era composto pelo direito ao arrendamento e pelos bens móveis, designadamente as máquinas utilizadas na indústria da panificação. Designadamente, esclareceu que essa transacção ocorreu nos termos referidos nos pontos 19) a 21).
Para a prova de que os créditos de alguns credores da empresa “ C..., B... & A...”, de nome “ E...” e “Prodite Zeelandia”, foram pagos depois dos factos em causa na acusação terem ocorrido, levou-se em consideração os documentos juntos aos autos de fls. 442 a 496. Deste modo, se fez a prova dos factos referidos no ponto 22).
Para concluir pela prova de que os arguidos realizaram as suas condutas ilícitas de forma intencional, o Tribunal utilizou a experiência comum. Na verdade, tendo em conta os elementos de prova existentes nos autos e o comportamento adoptado pelos arguidos, ter-se-á que concluir que eles agiram intencional, voluntária e conscientemente, na medida em que sabiam que o facto por si declarado na acta da assembleia geral que a empresa em causa, ou seja a “ C..., B... & A...”, não tinha activo, nem passivo não correspondia à realidade. Na verdade, a empresa em causa tinha activo, como era do conhecimento das arguidas, designadamente, o estabelecimento comercial, composto pelo direito ao arrendamento, e as máquinas para a panificação, ou pelo menos pelo preço acordado com a testemunha C... para a aquisição do estabelecimento. Além disso, a sociedade em questão tinha igualmente várias dívidas quando foi elaborada a acta, designadamente em relação à demandante D..., mas também em relação àqueles credores E... e F.... Na verdade, a arguida A... tinha recebido as facturas, representativas dos fornecimentos realizados por aqueles fornecedores e credores e sabiam que os mesmos não tinham sido pagos. Aliás, as arguidas assumiram no seu depoimento que sabiam que existiriam dívidas da sociedade a fornecedores. Não obstante terem conhecimento da existência do património e das dívidas da sociedade em causa, os arguidos resolveram prestar as falsas declarações na acta da assembleia geral de que a empresa de que eram sócios não tinha qualquer activo, nem passivo, de forma intencional, voluntária e consciente. O objectivo dos arguidos foi necessariamente de extinguirem a sua empresa de forma a eximirem a mesma ao pagamento das dívidas que a mesma tinha para com os fornecedores e, desta forma, prejudicarem estes últimos. Por outro lado, necessariamente que tinham que saber que não podiam prestar falsas declarações na acta da assembleia geral, sob pena de cometerem um ilícito criminal, pois tal resulta do senso comum.
Por outro lado, o Tribunal não deu qualquer credibilidade ao depoimento das arguidas nesta parte em que os mesmos vêm negar que tivessem conhecimento de que estavam a realizar declarações falsas e que as mesmas constituíam crime, na medida em que, não só o mesmo foi desmentido pelos restantes elementos de prova, como também não considerou o mesmo minimamente convincente.
Verifica-se assim que os arguidos limitaram-se a vir fazer o que normalmente fazem a maior parte dos arguidos, mesmo quando confrontados com provas no sentido contrário, ou seja negaram que os factos que subsumiriam na actividade ilícita por eles desenvolvida tivessem ocorrido. Para além disso, tais afirmações foram de forma convincente desmentidas pelos meios de prova referidos supra.
Por outro lado, as declarações dos arguidos não constituem qualquer presunção de veracidade. Presunção essa que teria de ser ilidida por prova em contrário. Pelo contrário, tendo em conta que os arguidos não estão obrigados a falar com verdade, nem prestam juramento, o grau de fidedignidade das suas declarações é muito relativo. Desse modo, não se ponderou o depoimento dos arguidos para efeito de prova nesta parte.
Com base naqueles elementos de prova se fez assim a demonstração dos factos referidos nos pontos 6) a 11), inclusive.
O conhecimento da situação económica e familiar dos arguidos resultou das suas declarações. O Tribunal não deu, no entanto credibilidade à afirmação da arguida A... que não tem qualquer actividade laboral, nem fonte de rendimentos, na medida em que as testemunhas J...e L... referiram que a viram no estabelecimento comercial de panificação mesmo depois de ele ser transmitido à testemunha C....
A prova do valor declarado pelos arguidos para efeito de IRS foi efectuada através da análise da certidão da respectiva declaração, que se encontra junta aos autos de fls. 570 a 577.
Para a prova da falta de antecedentes criminais dos arguidos utilizou-se o respectivo Certificado de Registo Criminal junto aos autos, a fls. 557 e 604.
A conclusão de que os factos referidos acima não se encontram provados, resultou do facto de não ter sido realizada qualquer prova, ou prova convincente sobre os mesmos.

3. Apreciando
a.
Analisadas as conclusões e a correspondente motivação é patente não se conformarem as recorrentes com a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
Quando o recorrente pretende colocar em causa a matéria de facto tem dois modos de proceder, os quais se traduzem na invocação ou dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – vícios, esses, aliás, de conhecimento oficioso –, caso em que a sindicância da mesma fica confinada ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, ou no erro de julgamento, cuja apreciação exige da sua parte um labor argumentativo distinto - bem mais exigente - na medida em que não dispensa o cumprimento dos ónus, que sobre ele racaiem, contemplados no artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP, abrangendo, então, o rastreio do tribunal de recurso um universo que vai para além do que resulta da própria decisão recorrida.
Nesta segunda modalidade deve, o recorrente, especificar:
a. Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b. As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e, eventualmente
c. As provas que devem ser renovadas.
Tal nível de exigência, reforçado com a Reforma de 2007, tem de ser lido à luz do entendimento sistematicamente afirmado pelos tribunais superiores de que os recursos constituem remédios jurídicos destinados a corrigir erros de julgamento, não configurando, como tal, o recurso da matéria de facto para a Relação um novo julgamento em que este tribunal aprecia toda a prova produzida na 1.ª instância como se o julgamento ali realizado não existisse [cf. vg. os acórdãos do STJ de 15.12.2005, de 09.03.2006, de 04.01.2007, proferidos nos processos n.ºs 05P2951, 06P461 e 4093/06 – 3.ª].

Isto dito, vejamos como procedem as recorrentes.
Seguindo um percurso inverso ao que ditam as regras – na medida em que começam por contrariar a decisão de direito – nas conclusões m., n., o., p., q., e s. não deixam de colocar em crise os factos, enquanto invocam:
- «Ocorre ainda vício na fundamentação da sentença – que se invoca 410º nº 2 a) e b) do CPP, pois que da prova produzida não se provaram fatos suscetíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo legal de crime – falsificação de documento – em concreto a intenção de causar prejuízo a outra pessoa, ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo» - [cf. ponto m. das conclusões];
- «Ao provar-se, mercê de prova documental (fls. 442 a 496) e testemunhal, que foram pagos créditos após a dissolução da presente sociedade, como pode defender-se, sem cair em contradição insanável que a dissolução da presente teve como fito principal a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou obter para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo?» - [cf. ponto n. das conclusões];
- «Resultando também provado em 15., 16., 17. e 18. da matéria provada que as arguidas nunca se furtaram a negociações tendentes ao pagamento à sociedade demandante a Dispar, não pode defender-se pela verificação do elemento subjectivo deste tipo legal de crime» - [cf. ponto o. das conclusões];
- «Por último, e caso não colha nenhuma das argumentações supra, não se entende, como é que, face à prova testemunhal, totalmente unânime no que concerne ao alegado alheamento da arguida B... relativamente ao funcionamento da presente sociedade, o tribunal considera que tal evidência não resultou provada» - [cf. o ponto p. das conclusões];
- «Espanta tal constatação pelo tribunal a quo, porquanto manifestamente oposta aos depoimentos ouvidos em sede de audiência de discussão e julgamento incluindo as testemunhas da demandante» - [cf. o ponto q. das conclusões];
- «Por último, face à prova documental junta aos autos, não podia o tribunal ter mencionado na prova provada a 19) “(…) em data não concretamente apurada, mas situada entre o ultimo trimestre de 2009 e o início de 2010, vendeu o estabelecimento comercial que pertencia àquela sociedade”, na medida em que o documento junto a fls., atesta que o referido negócio ocorreu objetivamente em data anterior à das declarações alegadamente concretizadoras do tipo legal de falsificação de documento» - [cf. o ponto s. das conclusões].

Significa, pois, que enquanto nos pontos p., q. e s., supra transcritos, pretendem as recorrentes impugnar a matéria de facto, convocando, para o efeito, a prova produzida e analisada no decurso da audiência de julgamento, nos pontos m., n. e o., limitam-se a chamar à colação o texto da decisão recorrida, com vista a concluir pelos vícios do artigo 410.º, nº 2, als. a) e b) do CPP, pese embora, decorra do desenvolvimento dado, apenas, identificarem a contradição insanável da fundamentação e não já a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Tendo nós por pacífico que, uma vez accionados os dois procedimentos acima descritos tendentes à impugnação da matéria de facto, deve o tribunal de recurso iniciar pela sindicância alargada – para além, portanto, do texto da decisão recorrida – vejamos se se mostram cumpridos os ónus previstos nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412.º.
Em causa estariam:
- O ponto 19. dos factos provados, no segmento: «em data não concretamente apurada mas situada entre o último trimestre de 2009 e o início do ano de 2010, vendeu o estabelecimento comercial que pertencia àquela sociedade»;
- O ponto C. dos factos não provados, no segmento: «A arguida B... sempre foi alheia ao funcionamento da empresa “ C..., B... & A...”.
Relativamente ao ponto 19., nem em sede de conclusões, nem na correspondente motivação indicam as recorrentes as concretas provas que imporiam decisão diversa da recorrida, limitando-se a remeter para a prova documental junta aos autos, sem especificar o ou os concretos documentos capazes de contrariar a asserção.
É, pois, quanto basta para que este tribunal não o possa sindicar.
Quanto ao aludido ponto C., concernente ao alheamento da arguida/recorrente C...relativamente ao funcionamento da empresa, transcreve a mesma, na motivação do recurso, os seguintes segmentos dos depoimentos prestados:
Testemunha N...:
«Comigo nunca» [na sequência de ter sido questionado se alguma vez a recorrente tratou de algum assunto da sociedade];
Testemunha C...:
«A minha irmã é assistente social, tinha o trabalho dela»;
«Que eu tenha conhecimento não!» [na sequência de ter sido questionada sobre se a irmã tinha uma intervenção activa na sociedade e, bem assim, se era tida ou achada nas coisas da empresa];
Testemunha M...:
«É a filha da D.ª A..., conheço-a (…) é natural que a tenha encontrado algumas vezes»;
«Não (…) comigo nunca» [na sequência de ter sido questionado, respectivamente, sobre se alguma vez a B... o atendeu e se era ela quem fazia os pagamentos].
Para além do fraco ou nulo alcance no universo dos factos provados - não objecto de impugnação –, o certo é que os segmentos dos depoimentos convocados não conduzem à conclusão de que a arguida/recorrente B... «sempre foi alheia ao funcionamento da empresa» - desde logo em função de a gestão de uma empresa não se confinar aos actos sobre os quais as testemunhas depuseram - e, nessa medida não impõem decisão diversa da recorrida, no que tange ao ponto em análise.
Acresce que é a própria recorrente quem avança que nem todas as testemunhas teriam prestado depoimento em idêntico sentido, indicando – neste círculo - a testemunha J...para, de seguida, – sem surpresa, diga-se – concluir por ser esta pouco credível face ao vínculo de trabalho com a demandante, juízo que, contudo, não formulou relativamente ao depoimento da testemunha C..., sua irmã …!
É, assim, de manter inalterado o aludido ponto.

Resta, em sede de sindicância da matéria de facto, a apreciação dos invocados vícios.
A propósito dos mesmos escreve Germano Marques da Silva … tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso portanto a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, salientando-se, ainda, que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” – [cf. Curso de Processo Penal, Vol. III, Editorial Verbo, 2000, págs. 338/339].
Trata-se, por conseguinte, de vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confecção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão – [cf. acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ, ASTJ, T. III, 2005, pág. 224].

O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão só é de afirmar quando o texto da decisão evidencia uma incompatibilidade inultrapassável entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Isto é «...há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluirem-se mutuamente» - [cf. Simas Santos e Leal – Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 2007, págs. 71/72].
Aqui chegados, afigura-se-nos claro que o facto de a sociedade “ C..., B... & A...”, após Dezembro de 2009, ter satisfeito alguns créditos detidos por empresas sobre a mesma, não representa qualquer contradição – menos ainda insanável – com o que vem dado por assente, designadamente nos pontos 8. e 9. dos factos provados, desde logo porque a «intenção» relevante para o efeito reporta-se a momento anterior ao do pagamento dos referidos créditos – remontando à data da deliberação, elaboração e aprovação da Acta n.º 9, com vista a instruir, como instruiu, a apresentação na Conservatória do Registo Comercial do pedido de instauração de procedimento administrativo de extinção imediata da dita sociedade – logrando publicitar no registo o acto - com o que tal significa ao nível das consequências jurídicas, para os credores.
E menos ainda ocorre incompatibilidade – ou contradição – entre o que assente vem nos factos 15., 16., 17. e 18. e a afirmação do «elemento subjectivo do crime», pois se alguma coisa dos mesmos se pode retirar é precisamente a situação de incumprimento em que a sociedade se encontrava em data anterior à da deliberação e aprovação da dita Acta e o falhanço, já então, das negociações tendentes ao pagamento dos créditos à D..., aspectos que não surgem indiferentes na leitura dos factos que se seguiram – tendentes à extinção imediata da sociedade - não obstante, em sentido contrário, ao preconizado pelas recorrentes. Tão pouco os acordos com vista ao pagamento à D... – todos frustrados – celebrados em momento posterior aos factos em apreço nos autos são susceptíveis de entrar em contradição com o acervo factual apurado, na parte que ora se discute, não sendo mesmo de excluir, à luz das regras da experiência, do normal acontecer das coisas da vida, a eventual influência da pressão de uma futura «denúncia» dos factos em apreço nos autos – como, de resto, veio a suceder pela mão da D... – na disponibilidade para negociar, como forma de evitar males maiores.
Seja como for, é manifesto não ocorrer o referido vício.

Quanto à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício invocado no ponto m. das conclusões, é evidente o lapso em que incorrem as recorrentes ao fazê-lo emergir da mera discordância quanto à forma como o tribunal recorrido apreciou a prova produzida, domínio, que extravasando do mesmo, apenas se pode traduzir em «erro de julgamento», insindicável, por via do incumprimento dos ónus de impugnação especificada, por este tribunal.

Em conclusão, improcedendo a impugnação da matéria de facto, não se detectando no texto da decisão recorrida lacuna susceptível de comprometer a decisão de direito, contradição a denunciar incoerência interna nos termos da decisão, tão pouco qualquer raciocínio ilógico, irrazoável, de todo em todo insustentável aos olhos do comum das pessoas, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto.

b.
Divergem, ainda, as recorrentes do enquadramento jurídico-penal levado a efeito na sentença recorrida.
No essencial em função da inconformidade revelada quanto ao acervo factual apurado, o qual, contudo, se manteve imodificado, comprometendo, assim, parte significativa da argumentação recursiva, centrada basicamente no esforço tendente à demonstração da falência do elemento subjectivo do crime, o qual, em consequência de tal inalterabilidade, resulta inequívoco dos factos provados.
Contudo, ressalta das respectivas conclusões um aspecto, a merecer especial atenção, visando afastar o crime de falsificação pelo qual sofreram condenação, que assenta na comparação com a declaração inverídica prestada, perante o notário, no acto de celebração de escritura pública de dissolução de uma sociedade, de acordo com a qual não tinha a mesma activo e passivo a liquidar.
Malgrado os arestos identificados, por certo estarão as recorrentes cientes não se tratar de matéria pacífica, designadamente na jurisprudência, podendo apontar-se num outro sentido vg. o acórdão do TRC de 20.12.2011, proferido no âmbito do processo n.º 40/08.1TAPNH.C1.
De qualquer forma, como ainda recentemente defendemos no acórdão do TRC de 18.12.2013 [proc. n.º 18/13.3TAVCF.C1], a propósito de declarações inverídicas/falsas – juridicamente relevantes, naturalmente - prestadas perante notário, ao nível da conformação objectiva do tipo, afigura-se-nos não ser de confundir a situação em que o agente não tem o domínio sobre a produção do documento, limitando-se à declaração do facto no mesmo reportado, daquela outra em que o agente pratica um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante, como sucedeu no caso em análise em que as arguidas/recorrentes, únicas sócias da sociedade “ C..., B... & A... – Panificação e Pastelaria, L.da”, deliberaram em conjunto extinguir a sociedade, lavrando, de comum acordo, para o efeito, a dita Acta n.º 9 com o teor inverídico/falso [relativo à inexistência de activo e passivo] descrito nos pontos 3. e 5. dos factos provados, por ambas subscrita, destinada a instruir – como instruiu – o pedido de instauração no Registo Comercial de procedimento administrativo de extinção imediata da referida sociedade, o que veio a ocorrer.
Acompanhamos, assim, as palavras de Paulo Dá Mesquita quando, a propósito da distinção entre as falsas declarações e o crime de falsificação de documento, escreve: «Estabelecido que «não é típica a conduta do agente que faz declaração de um facto facto juridicamente irrelevante», importa esclarecer se o violar ou atingir da «função de perpetuação» por via da declaração oral destinada a ser reduzida a escrito por funcionário e incorporada em documento autêntico, sem que o autor da declaração conforme a produção do documento em sentido estrito, nomeadamente não tendo intervenção material ou directiva nos actos de redução a escrito, é subsumível ao tipo previsto na al. d) do n.º 1 do art. 256.º, do Código Penal» para, adiante, concluir: «Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão do documento com informação sobre factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento.
Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.
(…)
Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento …» - [cf. “Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante a autoridade pública”, Revista do Ministério Público, n.º 134, Abril/Junho de 2013, págs. 90-92].

Em conclusão, entende-se que, também aqui falece razão às recorrentes.

No que concerne à inidoneidade da dita acta para «causar dano» ou «pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projectar» [c. ponto 4. das conclusões], com o respeito devido por posição contrária, não comungamos de semelhante pensamento, sufragando, antes, o essencial, da análise do tribunal a quo, quando em sede de direito, com extensa referência a elementos doutrinários, fez consignar:
«Na presente situação não restam dúvidas que o facto falso que as arguidas fizeram constar do documento em causa, ou seja a acta da assembleia-geral, designadamente que a empresa “ C..., B... & A...” não tinha activo, nem passivo, é juridicamente relevante. Na verdade, com base nessa declaração falsa foi possível às arguidas obter a dissolução e a extinção imediata da sociedade em causa, designadamente em relação à sua matrícula no registo comercial, que foi cancelada, através do pedido que apresentaram para o efeito. Para obter essa dissolução e extinção da sociedade, atento o facto de ter sido declarado que a mesma não tinha activo, nem passivo, não houve necessidade de previamente proceder à sua liquidação. Na verdade, determina o artigo 160.º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais que a sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação.
Se constasse da acta o facto verdadeiro quanto à situação da sociedade, ou seja que a mesma tinha activo e passivo, haveria necessidade, por tal estar imposto legalmente, designadamente nos artigos 146º e seguinte do Código das Sociedades Comerciais, da mesma proceder previamente à liquidação do seu património, composto pelo seu activo e pelo seu passivo. Nesse caso, haveria necessidade de liquidar o activo da sociedade e proceder ao pagamento das dívidas da mesma com o produto daquela liquidação. Só depois da liquidação estar encerrada é que seria possível à sociedade … solicitar a sua extinção. Verifica-se assim que aquele facto falso, de que a sociedade em causa não tinha activo, nem passivo, foi apto a extinguir uma relação jurídica, designadamente aquela empresa …, no âmbito do registo comercial, e com eficácia geral para todas as pessoas, incluindo os credores da empresa, após a realização de extinção e o cancelamento da matrícula.
Não se compreende que maior relevância jurídica será possível exigir a tal facto falso.
(…)
Sabiam ambas as arguidas que a declaração exarada por si na acta referida em 3), que a sociedade … não tinha activo, nem passivo, não era verdadeira, e que tal declaração era juridicamente relevante, pois mediante a apresentação da mesma na Conservatória do Registo Comercial logravam inscrever no registo e tornar pública a dissolução e extinção da referida sociedade … Quiseram através do comportamento atrás descrito obter para si um benefício ilegítimo a que sabiam não terem direito. As arguidas previram e quiseram causar, dese modo, aos credores da referida sociedade … um prejuízo patrimonial, impossibilitando-os de demandar esta sociedade para obter o pagamento dos seus créditos, na medida em que teria sido declarada extinta …, pretenderam que esta última fosse beneficiada, na medida em que deixou de poder ser executada pelos credores com vista à obtenção do pagamento dos seus créditos com a utilização para o efeito do activo da sociedade. Ficaram igualmente impossibilitados os credores de instaurar uma acção de insolvência para obter o pagamento dos seus créditos. Tal constitui igualmente um benefício para a arguida A... … que passou a poder dispor como bem entendesse do activo da sociedade. Designadamente, livremente vendeu tal activo da sociedade, consistente no estabelecimento comercial, que, por sua vez, era composto pelo direito ao arrendamento e das máquinas nele existentes … Finalmente, a arguida A... … ficou livre de ser responsabilizada pela eventual insolvência da sociedade no âmbito de um eventual processo de insolvência e de sofrer os efeitos negativos inerentes a essa qualificação culposa da insolvência, designadamente a inibição para o exercício do comércio, e, actualmente, a obrigação de pagar os créditos dos credores da empresa. Além disso, os credores da sociedade sofreram um prejuízo patrimonial, na medida em que ficaram impossibilitados de demandar a sociedade extinta para obter o pagamento dos seus créditos» [destaques nossos].

Apreciação que no geral se subscreve, adoptando-se, nesta parte, o entendimento perfilhado no já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.12.2011, quando a propósito refere:
«Em concreto, a relevância jurídica resulta da própria lei: o acto permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzido na extinção de uma pessoa colectiva, com o consequente benefício, que no caso não tem relevância patrimonial directa, traduzido no próprio encerramento, gerador de aparência perante terceiros de uma realidade diferente da existente, susceptível de gerar inacção daqueles na reclamação de créditos. Acrescida da cessação das responsabilidades dos arguidos enquanto gerentes. E impediram que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, o que teria consequências directas para as suas pessoas. E conclui-se que a influência de um acto destes no mundo do Direito é de tal ordem, que a simples extinção da sociedade, quando havia património e dívidas a cobrar, se traduziu num benefício que, de outra forma não lograriam e, logo, injusta e legalmente não tutelada.
De notar que o art. 1º, n.º 1 do Código de Registo Comercial dispõe que “O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”».

Em suma, não merece censura a decisão recorrida enquanto julgou presentes os elementos objectivo e subjectivo do crime de falsificação de documento, na modalidade de falsificação intelectual, atenta a relevância da acção das arguidas/recorrentes no mundo do direito, geradora da aparência perante terceiros de uma realidade inexistente, com o consequente prejuízo – o qual, consabidamente, no tipo de crime em questão não tem de revestir natureza patrimonial – e, sobretudo, benefício, ambos nas diferentes vertentes ali assinaladas, aspecto de que as arguidas estavam conscientes.

III. Decisão
Termos em que acordam os juízes que integram este tribunal em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Condena-se cada uma das recorrentes em 3 [três] Ucs de taxa de justiça

Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014

(Maria José Nogueira - relatora)
(Isabel Valongo - adjunta)