Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1007/23.5T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA UNIÃO DE FACTO COM VISTA À AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 3.º, N.º 3, DA LEI DA NACIONALIDADE
ARTIGO 122.º, 1, G), DA LOSJ
Sumário: Face à atribuição específica de competência constante do artigo 3.º, nº 3, da Lei da Nacionalidade, são os tribunais cíveis os competentes para preparar e decidir as ações de reconhecimento da união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.
Decisão Texto Integral: *

            Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

            Está em causa a seguinte decisão:

(…) “A realidade jurídica portuguesa revela que, presentemente, a união de facto integra o Direito da Família, e ao reportar-se ao “estado civil das pessoas e família” (cfr. artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ), o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas abrangendo todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família, em conformidade, aliás, com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por referência ao artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

“Assim sendo, conclui-se, é o juízo de família e menores, e não o juízo local cível, o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciar e decidir das acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto.

“A violação das regras de competência em razão da matéria constitui uma exceção

dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância – artigos 96.º, 97.º, n.º 1, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º s 1 e 2, 577.º, alínea a), e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

“Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da

matéria deste Juízo Local Cível e, consequentemente, absolvo o réu da instância.


*

           Inconformados, os Autores recorreram e apresentam as seguintes conclusões:

A) A sentença recorrida ao decidir pela sua incompetência em razão da matéria, enferma de violação de lei substantiva, por erro de interpretação de normas jurídicas e, especificamente, violação do artigo 3º, nº 3 da Lei da Nacionalidade, porquanto deve ser revogada.

B) A ação onde foi proferida a sentença que ora se recorre tem por causa de pedir e pedido, o reconhecimento judicial de que os Autores têm a qualidade de titulares de uma relação equiparada à dos cônjuges, desde novembro de 2018, para efeito de aquisição da nacionalidade.

C) Pelo que importa convocar as normas que, a este respeito, se reportam ao regime de aquisição da nacionalidade, por decorrência da comprovação de uma situação de união de facto dos respetivos requerentes, ou seja, o artigo 3.º, nº 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), o artigo 14º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado em anexo ao DL n.º 237-A/2006, de 14 de dezembro, alterado pelo DL n.º 43/2013, de 1 de abril, pelo DL n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro e pelo DL n.º 71/2017, de 21 de junho), os artigos 130º e 122.º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto/ Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário.

D) Ora, os processos de jurisdição voluntária relativos aos cônjuges estão previstos no Título XV (Dos Processos de Jurisdição Voluntária) do Livro V (Dos Processos Especiais) do Código do Processo Civil;

E) E a Lei nº. 62/2013, de 26 de agosto, definiu a competência dos Juízos de Família e Menores nos artigos 122º a 124º, de onde resulta que a competência dos Juízos de Família e Menores relativamente a situações de união de facto cinge-se a processos de jurisdição voluntária.

F) ressalta à evidência que a acção para reconhecimento da situação da união de facto com vista à aquisição da nacionalidade não é um processo de jurisdição voluntária, portanto, a LOFSJ não atribui competência aos Juízos de Família e Menores para julgar as acções para reconhecimento da situação da união de facto com vista à aquisição da nacionalidade.

G) Este tem sido o entendimento doutrinal e jurisprudencial maioritário e recente – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25.10.2018; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.12.2021; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.06.2022; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.09.2022; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2022; todos disponíveis em www.gdsi.pt; Orientação Superior da PGR, de 9-5-2022, etc.

H) Mas, ainda que o contrário se entendesse, impõe-se ter presente que o a Lei da Nacionalidade é lei especial e no seu art. 3º, nº 3, atribui expressamente a competência para esta ação ao tribunal cível, face ao pedido e à causa de pedir, não só não está em causa um processo de jurisdição voluntária como a acã̧o se enquadra, do ponto de vista da fundamentação de direito, na Lei da Nacionalidade (Lei nº. 37/81, de 3 de outubro), cujo artigo 3º, nº 3 dispõe o seguinte: “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”

I) Sendo esta uma norma especial, não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu com a entrada em vigor da LOSJ, prevalecendo sobre a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), desse diploma legal.

J) O art. 7º nº 3 do Código Civil estatui: «A lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador».

K) Por isso, também por esta razão, a competência em razão da matéria para julgar esta acção cabe ao juízo cível, como aliás se decidiu no recente Ac. do STJ de 17/06/2021 (P. 286/20.4T8VCD.P1.S1- in www.dgsi.pt), que face à clareza da sua exposição, caso dúvidas existissem as mesmas ficam dissipadas.

L) O Tribunal competente para julgar a presente ação é o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível de Coimbra - o tribunal ad quo, até porque o próprio Tribunal de Família e Menores de Coimbra, já se declarou incompetente para apreciar o pedido formulado pelos recorrentes, conforme sentença que ora se junta.


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            O Ministério Público contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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A questão a decidir é a de fixar a competência material para a ação.

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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

           O Tribunal de Família e Menores de Coimbra já se declarou incompetente para apreciar o pedido formulado pelos recorrentes.


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A divergência jurisprudencial assinalada teve eco no Supremo Tribunal de Justiça, ao proferir os acórdãos divergentes de 22.6.2023, no proc. 3193/22, e de 16.11.2023, no proc. 46/22, ambos em www.dgsi.pt.

A solução encontrada pelo acórdão de 22.6.2023 é a mais correta, o que levou o relator a mudar a sua posição firmada como adjunto, em acórdãos publicados e assinalados.

Os arestos de sentido contrário, do qual a decisão recorrida é expressão, não têm valorizado a menção de atribuição de competência específica aos tribunais cíveis, para decidir estas ações, que consta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade

Mantendo-se nesta Lei a atribuição de competência específica, sendo esta norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.

Seguindo de perto o acórdão do Supremo de 22.6.2023, para o qual remetemos, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas.

Dispondo o preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral.

“O reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, nestas ações, funciona apenas como a averiguação judicial de um pressuposto da atribuição da nacionalidade portuguesa e não como meio de resolução de qualquer litígio familiar, pelo que a opção do legislador ter mantido a atribuição da competência aos tribunais cíveis, enquanto tribunais de competência residual, apesar do alargamento das competências dos tribunais de família às ações que tenham por objeto a família, não é destituída de sentido. Existe, aliás, um largo número de ações em que a existência de um casamento ou de uma união de facto é apenas um pressuposto a verificar para o reconhecimento de um direito extrafamiliar (v.g. um direito de crédito de terceiro), competindo o seu julgamento aos tribunais cíveis.”

“Chama-se ainda a atenção para a importância de na interpretação da lei processual, o modelo constitucional do processo equitativo exigir que a definição do sentido das normas que indiquem às partes um determinado comportamento processual que devam seguir, incluindo a daquelas que estabelecem quais os tribunais onde devem ser propostas as ações que os cidadãos decidam instaurar para defesa dos seus direitos, não se traduza numa solução de difícil previsibilidade, afetando a confiança da parte no que a letra do preceito legal dispõe. Essa situação ocorreria, com manifesta ofensa dessa exigência constitucional caso se entendesse que o tribunal competente não é aquele que é indicado no preceito que especificamente determina qual o tribunal onde devem ser propostas um concreto tipo de ações.”

Os argumentos da literalidade e da confiança naquela consolidaram a nossa posição.

Por fim, não devemos descurar que no caso concreto o Tribunal de Família e Menores de Coimbra já se declarou incompetente para apreciar o pedido formulado pelos recorrentes.


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            Decisão.

           Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos pelo Juízo Local Cível de Coimbra - Juiz 2, por ser o tribunal materialmente competente.

            Sem custas, por delas estar isento o M.P., vencido (art.4, nº 1, a), R.C.P.).

2023-12-13


(Fernando Monteiro)

(Luís Cravo, com voto de vencido.)

(Moreira do Carmo)


Declaração de voto:

Voto vencido porque perfilho a tese que defende que estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122º, nº 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.

Assim o decidi nos acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra, em que fui Relator, proferidos nos processos nos 2998/19.6T8CBR.C1 (de 08-10-2019) e 136/20.1T8CBR.C1 (de 31-03-2020).

Não vejo motivos para alterar tal entendimento, sem desprimor para a argumentação constante do acórdão do STJ de 22.06.2023 que foi seguida de perto no presente aresto.

É que, salvo o devido respeito, para além do mais parece-me que tal entendimento nem sequer é pacífico, nem muito menos maioritário, a nível do próprio STJ, como flui do acórdão do mesmo STJ de 16.11.2023, proferido no processo nº 546/22.0T8VLG.P1.S1, em cujo sumário se destaca o entendimento de que «A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível».

Na verdade, quanto a mim, sobreleva a circunstância assinalada neste último aresto de que quando no nº3 do art. 3º da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81 de 3 de Outubro) se refere tribunal “cível”, a lei não se está com certeza a referir a um tribunal com “cível” na sua estrita designação legal (pela respectiva lei de organização judiciária) mas sim ao tribunal que, tramitando e decidindo questões de natureza cível, seja, dentro da orgânica judiciária, o competente.

Ora se assim é, ao referir-se aquela norma a “tribunal cível”, não pode deixar de se considerar que na atual orgânica judiciária o Juízo de Família e Menores integra um tribunal com competência especializada cível [abrangendo esta na alínea g) do nº1 do art. 122º da LOSJ as acções relativas à família], donde, interpretando aquela norma de acordo com a lógica que preside à delimitação da competência dentro dos tribunais judiciais, a saber, atendendo à especialização em função da natureza das questões, importa concluir que, estando a causa [por via da referida alínea g) do nº1 do artigo 122º] legalmente atribuída a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, configura-se este Juízo especializado em matéria cível como competente para a julgar.

Assim, para a ação de reconhecimento judicial da união de facto para aquisição da nacionalidade portuguesa será competente o Juízo de Família e Menores.

Luís Filipe Cravo