Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
194/21.1T9NLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PRAZO DE PAGAMENTO DA DÍVIDA TRIBUTÁRIA
PAGAMENTO NO PRAZO CONCEDIDO PELA ADMINISTRAÇÃO
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
PRINCÍPIOS DA BOA FÉ LEALDADE E PROTECÇÃO DA CONFIANÇA DA ADMINISTRAÇÃO E SEUS AGENTES
PROCESSO EQUITATIVO
Data do Acordão: 12/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE NELAS
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 2.º, 32.º E 266.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 105.º, N.º 1, 4 E 7, DA LEI N.º 15/2001, DE 5 DE JUNHO/RGIT
ARTIGO 6.º, § 1.º, DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS.
Sumário: I - Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados aos princípios da boa fé, lealdade e protecção da confiança, que são emanação do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição e um dos limites da actividade discricionária da Administração.

II - Se o arguido pagou os valores em dívida à Segurança Social no prazo que constava das guias de pagamento, que esta emitiu e lhe enviou, esse pagamento deve ter-se como tempestivamente feito, mesmo se feito para além do prazo de 30 dias referido no artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT.

III - Esta atuação da Segurança Social gerou no arguido, como geraria a qualquer outro destinatário médio, a confiança de que o pagamento feito no prazo indicado nas guias o iria eximir de responsabilidade penal.

IV - Em tal caso a não aceitação do pagamento por parte da administração consubstanciaria um venire contra factum proprium, que não pode vingar.

V - Assim, a falta de uma condição objectiva de punibilidade retira relevância criminal à conduta.

Decisão Texto Integral: *

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Coimbra:

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I- Relatório:

… no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 194/21.1T9NLS.C1, após audiência de julgamento foi proferida sentença, datada de 23/6/2025, nos termos da qual se decidiu:

a) Condenar a arguida “… Lda.” pela prática, na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do disposto no art. 107.º, n.º 1 e 2, com referência ao art. 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, e art. 7.º, n.º 1 e artigo 22.º, n.º 2, todos da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e arts. 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal (CP), na pena especialmente atenuada de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €8,00 (oito euros), o que perfaz €960,00 (novecentos e sessenta euros).

b) Condenar o arguido … pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. nos termos do disposto no art. 107.º, n.º 1 e 2, com referência ao art. 105.º, n.ºs 1, 4 e 7, e art. 7.º, n.º 1, e artigo 22.º, n.º 2, todos da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, e arts. 30.º, n.º 2 e 79.º, ambos do Código Penal (CP), na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz €325,00 (trezentos e vinte e cinco euros).

c) Julgar improcedente o pedido de condenação dos arguidos …, no pagamento solidário ao Estado da quantia de €7.499,40 (sete mil e quatrocentos e noventa e nove euros e quarenta cêntimos), nos termos do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, al. b), 3 e 6 do Código Penal.

d) Condenar, cada um dos arguidos, no pagamento de 2 UCs de taxa de justiça, e ainda a pagarem solidariamente as demais custas processuais, nomeadamente os encargos a que deram azo (cfr. artigo 513.º e 514.º do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

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-» Inconformado, os arguidos interpuseram recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):

c) o tribunal a quo considerou sem mais que a falta de pagamento dos valores em dívida nos trinta dias após a notificação feita nos termos do artigo 105 do RGIT conduz a que os arguidos tenham de ser condenados;

d) pelo contrário, constam dos autos elementos documentais que demonstram de forma inequívoca – e que aliás resultaram em factos dados como provados pelo próprio tribunal – que os arguidos diligenciaram dentro desse prazo por duas vezes por email para que fossem emitidas e enviadas as guias para pagamento;

e) o prazo de 30 dias previsto no rgit terminou no dia 8 de maio de 2022 e nos dias 2 e 5 de maio os arguidos enviaram emails para o email que lhes foi facultado no dia 8 de abril de 2022 - … – a solicitar o envio das guias para pagamento até 8 de maio de 2022;

f) o email é o do funcionário da segurança social que elaborou o quadro com os valores em débito que foram notificados aos arguidos na data da notificação – …

h) por ser este o procedimento normal e usado nos serviços, a segurança social emitiu as guias do valor que considerou ser o devido e enviou as mesmas ao arguido AA, socio gerente da co-arguida, para que realizasse o pagamento;

i) os arguidos receberam as guias no dia 9 de maio de 2022, dia em que o prazo de 30 dias estava terminado, e dos duc constava como data limite de pagamento o dia 31 de maio de 2022;

j) os valores foram integralmente pagos no novo prazo indicado pela segurança social – 31 de maio de 2022;

k) toda esta factualidade foi dada como provada pelo tribunal de primeira instancia que apenas colocou nos factos não provado “da contestação ii) na sequência do ocorrido em 8 e 15 dos factos provados, os serviços da segurança social iriam emitir guias de pagamento que seriam remetidas aos arguidos”;

o) os arguidos não actuaram com dolo ao não pagar o montante apos a notificação do artigo 105 do rgit nos trinta dias e pois até dia 08 de maio de 2022 e foi dado como provado que tinham intenção de proceder ao pagamento;

p) ao contrário do que é vertido na sentença, os arguidos tudo fizeram para que dentro do prazo de trinta dias procedessem ao pagamento, e não confiaram na “sorte”;

r) os arguidos receberam as guias a 09 de maio de 2022, data em que os 30 dias estavam ultrapassados, e verificaram que o prazo limite de pagamento constante das mesmas era o dia 31 de maio de 2022;

s) ficaram os arguidos convictos de que por força do atraso que não lhes era imputável, a segurança social concedera até dia 31 de maio para cumprimento da sua obrigação e pagaram a totalidade do valor constante das guias no dia 31 de maio de 2022;

t) a condição objectiva para arquivar o processo apenas não se verificou por facto alheio à vontade dos arguidos que pretenderam pagar nos trinta dias e sem as guias com os cálculos realizados pela segurança social não o puderam fazer;

u) o montante que consta da notificação - € 7.449,40 – é diferente do que depois se fez inserir nos ducs - € 8.290,39 - e deste modo apenas com a emissão das guias pedidas em tempo pelos arguidos se tornava possível o cumprimento;

w) na data da elaboração do relatório final os arguidos tinham pago a totalidade do valor e a sra inspectora omitiu esse facto, conduzindo à acusação publica com menção de que o arguido nunca fez o pagamento (ponto 8 ) e ao pedido de perda de vantagens formulado pelo ministério publico;

x) em sede de direito penal impõe-se que se respeitem os princípios da tipicidade, da legalidade e que a certeza dos factos seja sempre a base de uma condenação, e in casu perante os factos dados como provados e os argumentos supra indicados, terá de se concluir que os arguidos não praticaram o crime de que vinham acusados, absolvendo-se os arguidos;

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-» O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (arts. 406.º, n.º 1, do Cód. de Proc. Penal e art.º 408.º, n.º 1, al. a) do Cód. de Proc. Penal).

                                                           *

o M.º P.º respondeu ao recurso, pugnando pelo não provimento.

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-» Uma vez remetido a este Tribunal, o M.º P.º proferiu parecer …

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Cumprido o disposto no art.º 412 do CPP, os arguidos ofereceram resposta, …

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Proferido despacho liminar, foram os autos aos “vistos” e teve lugar a conferência.

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                                                           *

II – Questões a decidir:

Atentas as conclusões apresentadas, a questão a examinar e decidir prende-se com o seguinte:
- saber se a responsabilidade criminal dos arguidos se deve considerar extinta, por estes terem procedido ao pagamento da dívida tributária no prazo que lhes foi concedido, nos termos do disposto no art.º 105 do RGIT.

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III –  Transcrição da factualidade dada como provada na sentença recorrida e da motivação:

“II– Fundamentação:

 II.1 Factos provados:

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:

Da acusação

1.            A sociedade … Lda., é contribuinte da Segurança Social com n.º ...79, … empregando trabalhadores obrigatoriamente inscritos na Segurança Social.

2.            Desde a sua constituição, em 1997, o arguido … é o gerente da sociedade arguida.

3.            Desde aí, pelo menos desde data anterior a junho de 2017, no exercício das respetivas funções, foi este arguido quem dirigiu as atividades da sociedade arguida, procedendo ao pagamento das remunerações aos empregados e aos gerentes da mesma, cabendo-lhe também a tarefa de efetuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social, e de entregar o respetivo montante. 

4.            No período compreendido entre junho de 2017 e março de 2021, o arguido deduziu às remunerações mensais dos trabalhadores e órgãos estatutários da sociedade arguida as quantias correspondentes às contribuições para a Segurança Social por estes devidas.

5.            Essas contribuições deveriam ser entregues nos cofres da Segurança Social entre o 10.º e o 20.º dia do mês subsequente àquele a que respeitavam.

6.            Todavia, o arguido não entregou as quantias relativas a essas contribuições na Segurança Social entre o 10.º e o 20.º dia do mês seguinte àquele a que respeitavam.

7.            De igual modo, não o fez nos 90 dias subsequentes.

8.            E, apesar de notificado para proceder em 30 dias ao pagamento das contribuições em dívida, acrescidas dos respetivos juros, o arguido não o fez dentro daqueles 30 dias.

9.            Assim, foram deduzidas e retidas, mas não entregues, as contribuições devidas à Segurança Social pelos trabalhadores e membros de órgãos estatutários da sociedade arguida, no montante total de €7.499,40 (sete mil e quatrocentos e noventa e nove euros e quarenta cêntimos), respeitante às contribuições legalmente  imputadas aos trabalhadores do regime geral (código 000) e aos membros de órgãos estatutários da sociedade arguida (código 142), …

Da contestação

15.          Foram os arguidos notificados em 08.04.2022 para, no prazo de 30 dias, pagarem e apresentarem prova de ter pago o valor dessas cotizações à Segurança Social, obstando ao prosseguimento do procedimento criminal.

16.          Os arguidos pretendiam pagar o valor em débito e por essa razão solicitaram de forma expressa a 2 de maio de 2022, e de novo a 5 de maio de 2022, o envio das guias para pagamento relativo ao “inquérito nº 194/21.1TNLS”.

17.          O arguido … procedeu ao envio de duas comunicações via e-mail a 2 e a 5 de Maio de 2022, informando neste último que, até à data, não lhe tinham sido enviadas as guias para efetuar o pagamento dentro do prazo que só tinha “até ao dia de à manhã”.

18.          Em 9 de maio de 2022, os Serviços da Segurança vieram acusar o recebimento dos contactos efectuados pelos arguidos, ao mesmo tempo que remeteram os documentos únicos de cobrança – guias - relativos ao processo indicado.

19.          Foram então enviadas guias para pagamento, sendo que:

a)           A primeira com data de emissão a 04.05.2022, no valor de € 6.150, 53;

b)           A segunda com data de emissão a 09.05.2022, no montante de €2,140,06.

20.          As duas guias de pagamento enviadas a pedido dos arguidos a 09 de Maio de 2022, apresentavam como data limite de pagamento o dia 31.05.2022.

21.          Os valores constantes de tais guias de pagamento foram integralmente pagos no dia 31.05.2022.

II.2. Factos não provados

II.3 Convicção do Tribunal:

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IV – Do mérito do recurso:

Centremo-nos, assim, no cerne da questão, que se prende com o preenchimento da condição objetiva de punibilidade que a lei prevê no art.º 105 n.º 4 al. b) do RGIT.

Temos como adquirido que o aditamento da alínea b) ao artigo 105.º, n.º4, do RGIT, operado pela Lei n.º 53-A/2006, de 29/12 (que aprovou o Orçamento do Estado para 2007) correspondeu à previsão de uma nova condição objetiva de punibilidade, assim considerada pelo S.T.J. no seu AFJ n.º 6/2008.

Provou-se, com relevo para a decisão da questão, a seguinte factualidade:

- as prestações em dívida não foram pagas e decorrerem mais de 30 dias após a notificação para o efeito.

- A notificação nos termos e para os efeitos do art.º 105 n.º 4 al. b) do RGIT foi pessoal e realizada a 8/4/2022

- No dia 2/5/2022, o arguido solicitou à Segurança Social, por email, a emissão de guias de pagamento da quantia em dívida, insistindo nessa remessa no dia 5/5/2022.

- No dia 9 de maio de 2022, os Serviços da Segurança vieram acusar o recebimento dos contactos efetuados pelo arguido, ao mesmo tempo que remeteram os documentos únicos de cobrança – guias - relativos às quantias em dívida neste processo.

- A primeira guia tinha data de emissão a 04.05.2022 e no valor de € 6.150, 53;

- A segunda tinha data de emissão a 09.05.2022, no montante de €2,140,06.

- As duas guias de pagamento apresentavam como data limite de pagamento o dia 31.05.2022.

- Os valores constantes de tais guias de pagamento foram integralmente pagos no dia 31.05.2022.

Resulta da factualidade demonstrada que a notificação feita pela segurança social nos termos do disposto no art.º 105 n.º 4 al. b) do RGIT não foi  acompanhada, nem da indicação do montante que tal instituição entende ser devido, englobando a prestação deduzida e não entregue oportunamente e  respetivos juros de mora, nem das guias de pagamento.

Não ignoramos a divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a questão de saber se a notificação nos termos e para os efeitos do art.º 105º n.º 2 al. b) do RGIT deve indicar o concreto montante em que as prestações, os juros e a coima a pagar se traduzem, sendo que a jurisprudência (largamente) maioritária defende que a notificação em apreço não tem de concretizar expressamente os valores a liquidar – cfr Ac RP de 2025-04-09, Processo: 196/22.0T9AVR.P1, da RG de 11/11/2019, no Proc. nº 103/17.2T9CBT.G1, in www.dgsi.pt. (em sentido contrário, cfr. a título exemplificativo o Ac. da RP de 11/3/2009, Proc. n.º 0847944, em www.dgsi.pt; no sentido de que a omissão dessas indicações constituir uma irregularidade, escreve Tiago Milheiro, JULGAR - N.º 11 – 2010, pág. 77, que adverte para as dificuldades que na prática resultam do facto de na notificação para pagamento não ser logo indicada a quantia em dívida e ser remetida a guia de liquidação).

No caso dos autos, tal discussão mostra-se ociosa, já que as quantias em causa foram já pagas pelo arguido no prazo que consta das guias que lhe foram remetidas, embora indubitavelmente para além do prazo de 30 dias que lhe fora concedido, nos termos previstos no art.º 105 nº 4 al. b) do RGIT

A questão é outra e reside em saber se, ainda assim, se deve aceitar tal pagamento como tempestivo nos termos e para os efeitos de considerar que  não está verificada a condição objetiva de punibilidade da al. b) do n.º 4 do art.º 105º.

Sobre a questão em apreço, o Tribunal a quo não omitiu pronúncia, dizendo o seguinte:

“Ademais, provado ficou que o arguido não entregou o montante das retenções efectuadas nos 90 dias posteriores ao referido prazo legal e que fora notificado posteriormente a esse prazo para proceder ao pagamento das cotizações devidas, acrescidas dos juros e coimas aplicáveis, no prazo de 30 dias, não tendo, contudo, efectuado tal pagamento nesse prazo, embora o tenha feito menos de um mês após o termo desses 30 dias.

Importa salientar que, este prazo de 90 dias de decurso do prazo para pagamento das obrigações contributivas e o de 30 dias para pagamento dos valores em dívida se traduzem, em condições objectivas de punibilidade, isto é, se elas não se verificarem, os arguidos não podem ser punidos pelo crime em referência, por um lado, mas, por outro, se tal for observado, e os devedores realizarem o competente pagamento naqueles precisos termos, o crime, embora praticado, deixa de poder ser punido.

E é esta a pedra angular da defesa dos arguidos, ou seja, defendem que respeitaram o determinado no  artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, e que por isso devem ser absolvidos.

E assim o entendem por considerarem que, apesar de terem procedido ao pagamento já depois do prazo de 30 dias que lhes foi concedido aquando da notificação para o efeito, fizeram-no dentro do prazo de pagamento que estava aposto nas guias que lhe foram emitidas para regularizarem a sua situação junto do ISS, IP.

No entanto, com o devido respeito, entendemos não lhes assistir razão.

Vejamos.

Os arguidos admitem que foram notificados para proceder à regularização do pagamento no prazo de 30 dias, e tanto sabiam e ficaram disso cientes que, porque se estava a aproximar o termo desse prazo de 30 dias, conforme deixaram exarado nos emails que enviaram à Segurança Social, pediram a urgência da emissão das guias para pagamento.

Os arguidos sabiam que tinham de proceder ao pagamento naqueles 30 dias, e que só assim deixariam de ter responsabilidade criminal, pelo que lhes cabia tudo fazer para que, dentro desse prazo, procedessem ao pagamento.

Não o tendo feito, confiando na “sorte”, apenas a eles próprios podem imputar o seu comportamento, nada alterando ou “postergando” o cumprimento desta obrigação para a data que viram estar aposta nas guias de pagamento e que lhes foram emitidas.

Pelo exposto, encontram-se, portanto, verificadas as duas condições objectivas de punibilidade previstas no art. 105º, n.º 4 do RGIT. “

Contudo, esta argumentação do Tribunal esquece, entendemos, o princípio da boa fé a que estão subordinados os órgão e agentes administrativos e os princípios da lealdade e proteção da confiança,  que são emanação do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição e que no caso dos autos encontram plena aplicação.

Vejamos que o Artigo 266.º (Princípios fundamentais) da CRP estabelece, no seu n.º 2, que:

“2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”

Tal princípio foi transposto para o Artigo 10.º do CPA, onde se lê que:

1 - No exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé.

2 - No cumprimento do disposto no número anterior, devem ponderar-se os valores fundamentais do Direito relevantes em face das situações consideradas, e, em especial, a confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa e o objetivo a alcançar com a atuação empreendida”

O principio da boa fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico e é um dos limites da atividade discricionária da Administração.

Escreve Cabral Moncada, in Código de Procedimento Administrativo Anotado, Quarta Edição, Quid iuris, em anotação a este artigo: 

“O princípio da boa fé valoriza uma conduta leal, correta e sem reservas na relação com outrem. A boa-fé tem dupla natureza, subjetiva e objetiva. A primeira corresponde ao Estado de espírito de quem atua e a segunda, a uma conduta marcada por critérios axiológico  normativo visados. Ambas relevam no direito administrativo.” (...)  A boa-fé obriga a administração também num plano substancial, erradicando  decisões manifestamente incompreensíveis e inaceitáveis pelos seus destinatários, para além de imprevisíveis e inesperadas, designadamente se de alcance expropriatório e sancionatório.(…)  Analisa-se, entre outros aspetos a referir, na vedação do abuso de direito e do desvio de poder, do estoppel ou adoção de condutas contraditórias (Também conhecido pela proibição do venire contra factum próprio), na proteção da confiança legítima do destinatário dos atos e condutas administrativas.

Diz-nos também Gomes Canotilho, em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 3.ª edição, a págs. 252:

“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.

Estes dois princípios - segurança jurídica e protecção da confiança - andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esse actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.

E tem o TC afirmado reiteradamente que o princípio do Estado de direito democrático postula “uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”, concluindo que “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica” (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 303/90, e 898/12. acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt).

Por outro lado,  o nosso processo penal é conformado (também) pelo princípio do processo equitativo, consagrado nos artigo 6º, § 1º, da CEDH e no artigo 32º da CRP.

Tal princípio é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual.

Explica o STJ no Ac. de 03-03-2004, Processo: 03P4421, in www.dgsi.pt:

os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual.”«

O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa. Mas determina também, por correlação ou contraponto, que as autoridades que dirigem o processo, seja o Ministério Público, seja o juiz, não pratiquem actos no exercício dos poderes processuais de ordenação que possam criar a aparência confiante de condições legais do exercício de direitos, com a posterior e não esperada projecção de efeitos processualmente desfavoráveis para os interessados que depositaram confiança no rigor e na regularidade legal de tais actos.

A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.”

Ora, o arguido cumpriu o facere que lhe foi imposto no âmbito do processo de inquérito que contra ele corria e diligenciou junto da Segurança Social, solicitando a emissão de guias para pagamento dentro do prazo de 30 dias que lhe fora concedido.

As guias de pagamento foram efetivamente enviadas pela Segurança Social ao arguido, mas um dia depois do decurso do prazo, sendo que, no entanto, delas constava  um novo prazo de pagamento, que o arguido respeitou, pagando a quantia peticionada pela Administração.

Esta atuação da Segurança Social gerou certamente a confiança do arguido -  como sucederia com qualquer outro destinatário médio – em como o pagamento que lhe era pedido e que o iria eximir de responsabilidade penal podia ainda ser feito no prazo fixado nas guias.

Mas diz-lhe agora Justiça que o pagamento que ele fez não foi tempestivo e que a responsabilidade é dele, arguido, que não diligenciou mais cedo pelo pagamento.

Parece-nos evidente que, no âmbito do mesmo processo temos duas atuações discordantes e que esta resposta da Justiça consubstancia um venire contra factum proprium, uma “esquizofrenia” que não pode vingar.

Sabemos que a responsabilidade tributária (pelo imposto devido) não se confunde com a responsabilidade penal tributária.

Contudo, a verdade é que o arguido solicitou o pagamento dentro do prazo no processo que lhe foi concedido para o fazer, cumprindo o ónus que lhe era imposto.

Não estranhou, pois, quando o Estado, que só respondeu depois de decorrido esse prazo de 30 dias, lhe enviou guias com novo prazo.

Não podemos falar, aqui, de excesso de confiança ou de uma expectativa subjetiva e irrealista do arguido, tratando-se ao invés de uma confiança razoável e ancorada na atuação da administração pública.

Entendemos, por conseguinte, que no caso dos autos, por força dos princípio da boa fé, da lealdade, da confiança, tendo existido pagamento por parte do arguido após a intimação da administração para que regularizasse a sua situação tributária e tendo este pagamento ocorrido no prazo que para tal lhe foi concedido, não está preenchida a  condição objetiva de punibilidade. O processo justo e leal e a confiança como elementos do princípio do processo equitativo não permitem admitir outra solução.

A falta de uma condição objetiva de punibilidade retira relevância criminal à conduta.

E, nessa medida, os arguidos terão de ser absolvidos dos factos e crime de que vêm acusados

V. Decisão:

Pelo exposto, os juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra, após conferência, acordam em conceder provimento ao recurso do arguido e, em consequência revogar a sentença recorrida e absolver os arguidos dos factos e crime de que vêm acusados.

                                                                       *

Sem custas.

Notifique


*

Coimbra,

[Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]



Sara Reis Marques

Maria Alexandra Guiné

José Paulo Registo.