Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
655/16.4T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PESSOAS SINGULARES
Data do Acordão: 07/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – 1ªSEC. DE COMÉRCIO – J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 17º-A DO CIRE.
Sumário: I – O Processo Especial de Revitalização (PER) não é aplicável às pessoas singulares (não comerciantes).

II - As normas do processo especial de revitalização (PER), designadamente as dos seus artºs 17-A e 17-D, nº 11, interpretadas com o auxílio de todos os elementos que para tal devem concorrer, não admitem que se socorram desse processo especial os devedores que não sejam comerciantes, empresários, ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria, não se aplicando, assim, o PER a pessoas singulares que trabalhem por conta de outrem.

Decisão Texto Integral:





Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1)J... e mulher, M..., residentes em ..., vieram instaurar, em 25 de Fevereiro de 2016, na Instância Central - 1ª Secção de Comércio - J1 (Leiria), da Comarca de Leiria, processo especial de revitalização (PER), no âmbito dos artigos 17.º-A e ss. do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março[1].

Para o efeito e além do mais, referiram que eles e o seu credor H..., residente em ..., expressamente manifestaram a vontade de encetar negociações conducentes à revitalização deles, ora Requerentes, através da aprovação de um plano de recuperação, conforme se alcança da declaração que juntaram.

2) - Notificados para “…explicitarem se são comerciantes, empresários ou se desenvolvem uma actividade económica por conta própria, e sendo caso disso, juntar documento comprovativo, tendo em conta as decisões do mais Alto Tribunal, designadamente o Ac. do STJ de 10-12-2015 no sentido de que “as normas que regem o PER devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo especial não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria”, vieram os Requerente esclarecer que:

- O requerente marido tem 59 anos e desde o último mês (Fev 2016) que exerce funções de pedreiro na empresa ..., auferindo o vencimento de 1200.00 euros mensais.

Anteriormente (durante 1 ano) trabalhou na empresa ..., exercendo as mesmas funções, auferia, no entanto, 1000 euros mensais;

Anteriormente o requerente foi empresário em nome individual, durante 21 anos, auferindo o vencimento de 500 euros mensais;

- A requerente mulher tem 59 anos e desde os últimos 16 anos que exerce funções de operária fabril na empresa ..., auferindo o vencimento de 530 euros mensais;

- Os Requerentes não são titulares de nenhum estabelecimento e, sendo trabalhadores por conta de outrem, nunca foram sócios, nem detiveram qualquer participação social em qualquer empresa;

3) - Juntaram documento de onde resulta que a actividade do requerente marido, enquanto empresário em nome individual, cessou em 2011-08-11;

4) - Por despacho de 31-03-2016, invocando-se o disposto no art. 17-A do CIRE, foi indeferido liminarmente o requerido Processo Especial de Revitalização “…em virtude de não se mostrarem preenchidos os requisitos exigidos para desencadear o processo especial de revitalização uma vez que, não sendo os requerentes comerciantes ou empresários, nem exercendo por si mesmos qualquer actividade autónoma e por conta própria que resultasse as dividas em causa, mas apenas tendo actividade cessado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira desde 2011, sendo que o activo mensal liquido disponível dos requerentes corresponde aos rendimentos provenientes do respectivo trabalho, não se mostra justificado o recurso a este processo de revitalização.”.

B) - Discordando dessa decisão, dela recorreram de Apelação os Requerentes, oferecendo, a findar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:

...

Terminaram requerendo que a decisão da 1ª Instância fosse alterada por outra que admitisse o PER apresentado.
II - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC, o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso (Cfr., entre outros, no domínio da legislação pretérita correspondente, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586[2]).

Assim, a questão a solucionar consiste em saber se o Processo Especial de Revitalização se aplica, ou não, a pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários, ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria.

III - A) - O circunstancialismo fáctico-processual a atender é o que consta de “I” supra.

B) - Sob a epígrafe “Finalidade e natureza do processo especial de revitalização”, dispõe o artº 17-A do CIRE: “1 - O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.

2 - O processo referido no número anterior pode ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação.

3 - (…)”.

Por sua vez, o nº 11 do artº 17º-D, do CIRE, preceitua: “O devedor, bem como os seus administradores de direito ou de facto, no caso de aquele ser uma pessoa coletiva, são solidária e civilmente responsáveis pelos prejuízos causados aos seus credores em virtude de falta ou incorreção das comunicações ou informações a estes prestadas, correndo autonomamente ao presente processo a ação intentada para apurar as aludidas responsabilidades.”.

Relativamente à questão que é objecto do presente recurso, esta 3ª Secção da Relação de Coimbra, em Acórdão de 07 de Abril de 2016 (Apelação nº 3876/15.3T8ACB.C1), relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Arcanjo, decidiu já: «O Processo Especial de Revitalização (PER) é aplicável às pessoas singulares (não comerciantes).».

O ora Relator, que, enquanto 2º Adjunto, subscreveu esse Acórdão de 07/04/2016, ponderando novamente a questão, designadamente, à luz dos motivos expendidos no Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/04/2016 (Apelação nº 2238/16.0T8SNT.L1-2), relatado pela Exma. Desembargadora Ondina Carmo Alves, e sobretudo nos Acórdãos do STJ de 10 de Dezembro de 2015 (Revista nº 1430/15.9T8STR.E1.S1), de 05 de Abril de 2016 (Revista nº 979/15.8T8STR.E1.S1) e de 12 de Abril de 2016 (Revista nº 531/15.8T8STR.E1.S1), relatados, respectivamente, pelos Exmos. Conselheiros Pinto de Almeida, José Raínho e Salreta Pereira, modificou o entendimento que tinha sobre tal questão.

Perfilhamos, pois, o entendimento que foi seguido nos referidos arestos do STJ e da Relação de Lisboa e que se sintetiza assim, tal como foi sumariado neste aresto citado por último: «As normas que regem o Processo Especial de Revitalização devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade económica autónoma e por conta própria.».

E foi neste mesmo sentido, aliás, que esta Relação de Coimbra seguiu no Acórdão de 31/05/2016 (Apelação nº 439/16.0T8LRA.C1)[3] relatado pelo Exmo. Desembargador Barateiro Martins.

Vejamos, aproveitando, com a devida vénia, o que quanto à questão aqui em causa foi escrito no aludido Acórdão da Relação de Lisboa, de 21/04/2016: «[…]A questão concernente ao âmbito de aplicação do Processo Especial de Revitalização não tem sido convergente, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

De acordo com um primeiro entendimento, maioritário na doutrina, com expresso apoio num argumentário literal, com base no preceituado nos artigos 1º, nº 2 e 17º-A e segts do CIRE, poderá recorrer ao PER, o devedor, assim designado sem um significado preciso, defendendo-se, por isso - dado o silêncio da lei e o princípio de que “onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção” - que o regime do PER é aplicável a qualquer devedor, logo, a pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou pessoas singulares, mesmo que não sejam agentes económicos - v. neste sentido, na doutrina, CATARINA SERRA, O regime português da insolvência, 5.ª edição, 2012, Almedina, 176; LUÍS M. MARTINS, Recuperação de pessoas singulares”, vol. I, 2.ª ed., 2013, Almedina, 14 e 15; MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 6.ª ed. 2015, Almedina, 295 e 296; ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um curso de direito da insolvência, 2.ª ed., 2016, Almedina, 511, nota 5; ROSÁRIO EPIFÂNIO, O processo especial de revitalização, Almedina, 2016, 15; ISABEL ALEXANDRE, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 235 e 236; FILIPA GONÇALVES, O processo especial de insolvência, “Estudos de Direito de Insolvência”, coordenação de Maria do Rosário Epifânio, 2015, Almedina, 55. E, na jurisprudência, cfr. a título meramente exemplificativo, Ac. R.P. de 16.12.2015 (Pº 2112/15.7T8STS.P1); Acs. R.E. de 09.07.2015 (Pº 1518/14.3T8STR.E1), de 10.09.2015 (Pº 1234/15.9T8STR.E1), de 05.11.2015 (Pº 371/15.4T8STR.E1) e de 21.01.2016 (Pº 1279/15.9T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Para um segundo entendimento, o regime do PER apenas se dirige a empresas ou devedores empresários, e só a estes faz sentido, visto que a ideia de recuperabilidade do devedor tem sido sempre ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e neste sentido, à sua qualidade de empresário, sendo que a principal motivação da criação do processo de revitalização assenta no tecido empresarial, confessada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30.12.2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04, o que justifica uma restrição ao significado literal do texto da lei - cfr. em defesa desta tese, LUÍS CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 143, PAULO OLAVO CUNHA, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização das sociedades”, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 220 e 221; NUNO SALAZAR CASANOVA E DAVID SEQUEIRA DINIS, PER - O processo especial de revitalização, Coimbra Editora, 2014, 13 e 14, E, na jurisprudência das Relações, cfr. mais recentemente e a título exemplificativo Ac. R.L. de 24.11.2015 (Pº22219/15.0T8SNT-1); Acs. R.P. de 23.02.2015 (Pº 3700/13.1TBGDM.P1), de 23.06.2015 (Pº 1243/15.8T8STS.P1) e de 12.10.2015 (Pº 1304/15.3T8STS.P1); Ac. R.E. de 24.07.2015 (Pº 718/15.3TBSTR.E1) e de 10.9.2015 (Pº 979/15.8TBSTR.E1 e Pº 531/15.8T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

 Sufraga-se este segundo entendimento defendido, aliás, pela jurisprudência da 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça (secção agora especializada para decidir sobre matérias de natureza comercial - artigo 42º, nº 2 da LOFTJ) - cfr. Ac. de 10.12.2015 (Pº 1430/15.9T8STR. E1.S1), acessível em www.dgsi.pt, bem como os Acórdãos desta mesma secção do STJ de 05.04.2016 (Pº 979/15.8T8STR.E1.S1) e de 12.04.2016 (Pº 53/15.8T8T8STR.E1.S1), estes últimos em vias de publicação no citado sítio da Internet.

 É que, nos termos do nº 1 do artigo 9º do Código Civil a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo.

É igualmente consabido que a interpretação normativa assente na letra da lei, terá sempre de ser conjugada com os demais elementos lógicos de interpretação:

a.elemento sistemático que tem em conta a unidade do sistema jurídico;

b.elemento histórico, constituído designadamente por precedentes normativos e trabalhos preparatórios;

c. elemento racional ou teleológico, i.e., a justificação social da lei.

Ora, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04 (www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/codigo-da-insolvencia-/downloadFile/file/PPL_39_XII_6Alteracao_CIRE.pdf.), decorre que a principal motivação da criação do processo de revitalização, inserida na revisão do CIRE, foi a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial», referindo-se mais adiante que «a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Por outro lado, contempla a lei um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos artigos 249º e segs do CIRE, permitindo que estes sejam poupados a toda a tramitação do processo de insolvência, já que neste caso a insolvência que venha a ser decretada, após a homologação do Plano, tem um alcance limitado, não estando sequer sujeita a registo e publicidade, evitando-se prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa (v. Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3), sendo perfeitamente injustificável a duplicação de recursos que tal implicaria.

Assim, atento o fim visado pelo legislador e as circunstâncias políticas e económicas que motivaram a criação do processo especial de revitalização considera-se, tal como bem consta da decisão recorrida, que haverá que proceder a uma interpretação restritiva do artigo 17º-A do CIRE, por forma a considerar que o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria, sufragando-se, por conseguinte, o entendimento jurisprudencial expendido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos supra mencionados acórdãos.[…]».

Chegando à mesma conclusão, Fernando Tainhas, ao analisar a questão com o cotejo da doutrina e jurisprudência pertinentes, escreve entre o mais[4]:

«[…] se é inegável que a letra do artigo 17.º-A do CIRE supra citado, efectivamente, não distingue a natureza dos sujeitos susceptíveis de ser objecto de processo especial de revitalização - utilizando o vocábulo (inclusivo) devedor - parece-nos também claro que a letra do preceito não corresponde inteiramente ao seu espírito.

Citando Oliveira Ascensão (…) a apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação embora incompleta pois será sempre necessária uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal, intervindo elementos lógicos, entre os quais de natureza racional ou teleológica, relativos à razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao criá-la, particularmente nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.

(…) o espírito da lei impõe uma interpretação correctiva, de natureza restritiva, do artigo 17.º-A do CIRE, uma vez que a letra da lei ao inscrever na sua previsão o conceito de “devedor” - sem distinguir a sua natureza económica e jurídica - diz mais do que o legislador pretendia dizer, considerando a exposição de motivos do diploma que procedeu à criação do instituto jurídico em apreço, maxime o circunstancialismo histórico que o rodeou.

6. Sendo consensual que um consumidor é, de facto, um agente económico, não nos parece menos verdade que o processo especial de revitalização não foi equacionado para o mesmo, mas sim para a empresa, cujo desaparecimento acarreta sim desemprego e extingue oportunidades de negócio, que não são supríveis pelo surgimento de novas empresas (sic), o que não sucede com o “desaparecimento” dos agentes económicos-consumidores.[…]».

E é na linha desta última afirmação que se escreveu na citada Revista nº 531/15.8T8STR.E1.S1, do STJ: «[…]A Exposição de Motivos da Proposta da Lei 39/XII, de 30.12.2011, que esteve na origem da Lei 16/2012, de 20 de Abril, que alterou o CIRE e criou o Processo Especial de Revitalização, afirma que o principal objectivo prosseguido pela revisão passa por reorientar o CIRE para a promoção da recuperação, privilegiando-se, sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património, sempre que se mostre viável a sua recuperação.

Mais estabelece como objectivo o combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, gerando desemprego e extinguindo oportunidades comerciais.

É claro que todos estes elementos evidenciam que a recuperação dos agentes económicos (empresas), em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, constituiu o propósito da criação do Processo Especial de Revitalização.

Há, pois, que fazer uma interpretação restritiva da lei, excluindo do acesso ao PER os devedores que trabalham por conta de outrem.

A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta as circunstâncias em que a lei foi elaborada (artº. 9º do CC).

Este elemento interpretativo foi decisivo na interpretação restritiva adoptada.

Aliás, trabalhando estes devedores por conta de outrem e tendo certo o respectivo rendimento do trabalho, que não vão perder em consequência da eventual declaração de insolvência, não se entende em que poderia consistir a sua revitalização económica, a não ser num perdão parcial das respectivas dívidas.

Para permitir o quê?

Que os devedores voltem a endividar-se?

Efectivamente, mantendo-se a sua actividade por conta de outrem não se evita o desaparecimento de qualquer agente económico e não se evita o empobrecimento do tecido respectivo.

Para estes devedores, que venham a ser declarados insolventes, o CIRE prevê uma outra solução, a apresentação de um plano de pagamentos aos credores, que, caso venha a ser aprovado, impede a publicitação e o registo das sentenças e da decisão de encerramento do processo (artºs. 249º e seg. do CIRE).[…]».

Resta dizer que, salvo o devido respeito, não fere qualquer norma ou princípio constitucional (v.g., o Princípio da igualdade - artº 13º da CRP) o artº 17-A do CIRE, quando interpretado de acordo com o entendimento que aqui perfilhamos.

Sobre a matéria escreveu-se, já, aliás, no citado Acórdão do STJ, de 05 de Abril de 2016, dizendo: «[…]Como tem sido apontado na doutrina (v. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., tomo IV, pp. 238 e seguintes; Jorge Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 120 e seguintes) e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, o tratamento legal igual é exigido para situações iguais, enquanto para situações substancial e objetivamente desiguais (impostas pela diversidade das circunstâncias ou pela natureza das coisas) é admitido tratamento diferenciado. E a prevalência da igualdade tem de ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica.

Ora, a diferenciação de que se queixam os Recorrentes está plenamente fundada em circunstâncias objetivas também diferenciadas. No caso de pessoas singulares titulares de empresas está em causa a tentativa de recuperação para a economia geral do país de meios produtivos geradores de riqueza e emprego, enquanto no caso de pessoas titulares trabalhadoras por conta de outrem essa vantagem não se coloca. Isto não significa, bem entendido, que a força do trabalho, a empregabilidade e o circuito geral de consumo não relevem para a economia. Apenas acontece que para o legislador (conforme aliás as vinculações assumidas no acima referido “Programa de Assistência Financeira”), na sua liberdade de ponderação, de conformação e de regulação, a implementação da revitalização do devedor tal como feita constar do CIRE justifica-se apenas quando esteja em equação a salvaguarda do tecido económico empresarial, e não já quando esteja em causa um qualquer devedor pessoa singular, ademais quando é certo que a legislação (art. 249º e seguintes do CIRE) já prevê medidas de salvaguarda direcionadas para devedores pessoas singulares não titulares de empresa.

Improcedem pois as conclusões do recurso dos Devedores na parte em que invocam a inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade das normas legais que os abduzem da admissão ao PER. […]».

Do que acima ficou exposto resulta, pois, que, sendo os aqui Requerentes/Apelantes, trabalhadores por conta de outrem, o Tribunal “a quo”, em nosso entender, decidiu acertadamente ao indeferir o PER que aqueles haviam requerido, pelo que improcede a Apelação.


*

Do exposto poder-se-á, assim, extrair a seguinte síntese: «As normas do processo especial de revitalização (PER), designadamente as dos seus artºs 17-A e 17-D, nº 11, interpretadas com o auxílio de todos os elementos que para tal devem concorrer, não admitem que se socorram desse processo especial os devedores que não sejam comerciantes, empresários, ou que não desenvolvam uma actividade económica por conta própria, não se aplicando, assim, o PER, a pessoas singulares que trabalhem por conta de outrem».

IV - Em face de tudo o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra, em, julgando a Apelação improcedente, confirmar o despacho recorrido.

Custas pelos Apelantes.

Coimbra, 13/07/2016


 Luiz José Falcão de Magalhães

     Sílvia Maria Pereira Pires

Maria Domingas Simões



[1] Na versão decorrente das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6/2, que entrou em vigor em 02/03 (artºs 4º e 12º).
[2] Consultáveis na Internet, em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, endereço este através do qual poderão ser acedidos todos os Acórdãos do STJ que abaixo se assinalarem sem referência de publicação.
[3] Ao que se apurou, ainda não publicado.
[4] No artigo “Pode uma pessoa singular que não seja empresário ou comerciante submeter-se a processo especial de revitalização? – Sobrevoando uma controvérsia jurisprudencial”, in Revista “Julgar” online, Dezembro de 2015 - http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/12/20151206-ARTIGO-JULGAR-Processo-Especial-de-Revitaliza%C3%A7%C3%A3o-de-pessoa-singular-que-n%C3%A3o-seja-comerciante-Fernando-Ta%C3%ADnhas-v5.pdf.