Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
308-B/2002.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: ARRESTO
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.619 CC, 234-A, 381,406, 407, 831 CPC
Sumário: 1. - O procedimento cautelar especificado do arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a probabilidade da existência do crédito e a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.

2. – O arresto pode incidir sobre (1) bens do devedor e em poder deste, (2) bens do devedor na posse de terceiros, (3) bens alegadamente pertencentes ao devedor, mas que este, para os subtrair à acção do credor, transfere para a titularidade de terceiro, ou inscreve-os em nome deste.

3. – No caso de haver transferência formal para terceiros da titularidade dos bens do devedor, deverá o requerente, por aplicação analógica do art.407 nº2 CPC, alegar factos concretos que permitam concluir que a transmissão para terceiros foi simulada, na modalidade de simulação absoluta.

4. - A omissão dessa alegação torna manifesta a improcedência do pedido do arresto pelo que deve a providência em causa ser liminarmente indeferida, nos termos do artigo 234º-A, nº1 do CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I.RELATÓRIO

A (…) instaurou providência cautelar especificada de arresto, nos termos do disposto no artigo 406º do Código de Processo Civil, contra B (…), pedindo que, sem audição prévia da requerida, se proceda ao arresto de depósitos bancários abertos em nome da sobrinha da mesma, (…) e de um imóvel registado em nome do irmão da mesma requerida, (…).

Para tanto alega o requerente que, tendo representado em juízo e em diversos processos a requerida, e, tendo esta revogado o mandato que lhe conferiu, o requerente apresentou àquela as respectivas notas de honorários.

Desde então, prossegue o requerente, a requerida tem vindo a furtar-se a quaisquer contactos consigo, ocultando bens de que é titular, dinheiro e uma vivenda sita no Algarve, transferindo esses bens, respectivamente, para uma sobrinha e para o irmão, renunciando, de forma inexplicável à sua qualidade de herdeira testamentária relativamente à quota disponível da herança do sogro, o que lhe gerou prejuízos e receio de perda da garantia patrimonial.

Ainda segundo o requerente, interpelou o mesmo a requerida para que esta liquidasse a dívida, que ascende a € 369.415,00, sem que ela o fizesse.

Foi proferido despacho de aperfeiçoamento do requerimento inicial, tendo o requerente sido convidado a factualizar, de forma concreta, o preenchimento dos critérios legais para a fixação dos honorários que integram o seu crédito, bem como para indicar qual o processo pretendido para apensação da providência cautelar.

O requerente respondeu ao convite formulado, indicando a importância dos serviços prestados, a dificuldade dos assuntos tratados, os resultados obtidos, o tempo despendido, as posses da cliente como critérios tidos em conta na fixação dos honorários, reiterando, no mais, o primitivo requerimento, indicando ainda a acção nº 308/2002 para a ela ser apensada a providência.

Foi proferida decisão liminar, que indeferiu o requerimento inicial, entendendo-se que o peticionado pelo requerente não tem fundamento legal, sendo manifestamente improcedente, condenando o mesmo nas respectivas custas.

Notificado de tal decisão, por dela discordar, veio o requerente interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“a) - A Senhora Juíza confundiu arresto requerido contra adquirente de bens do devedor e arresto de bens do devedor que se encontram na posse de terceiros.

b) - Foi este último o arresto requerido e não o primeiro, como resulta claro da leitura atenta do R.I. e até da invocação nele feita do art° 831° do C.P.C.

c) – No requerimento foram arroladas como testemunhas os 2 familiares da requerida em cuja posse estão os bens a arrestar, mas a esta pertencentes.

d) – A decisão recorrida violou as seguintes normas:

Do Código Civil: art°. 619° N° l, que não aplicou.

Do C.P.C.: art°s. 234°-A N° l e 407° N° 2, que aplicou indevidamente.

De novo do C.P.C.: art°s. 406°, 408° e 831°, que não aplicou.

Do C.R.P.: art°. 119º, que ignorou”.

pugnando, assim, o recorrente pela revogação da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que ordene o cumprimento do disposto no artigo 408º do Código de Processo Civil e ulteriores termos do processo.

Não houve contra - alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO

1.  Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras[1], importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito[2].

2.  Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar fundamentalmente as seguintes questões: indeferimento liminar da providência cautelar do arresto.

 

III. FUNDAMENTO DE FACTO

São os factos descritos no relatório supra os pertinentes para o conhecimento do objecto do recurso.

           

            IV. FUNDAMENTO DE DIREITO

            Da verificação dos requisitos da providência cautelar requerida

            O direito fundamental de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado, incorporando o direito de acção, e o princípio da sua efectiva tutela judicial, é garantido quer em relação à violação efectiva de direitos subjectivos, quer quando esteja iminente ou haja perigo de lesão desses mesmos direitos[3].

            De tal forma que se pode concluir que a cada direito corresponde uma acção ou uma providência destinada ao seu reconhecimento, mas igualmente à prevenção da sua violação ou a conferir efeito útil a tal reconhecimento.

            Neste contexto, o princípio da efectiva tutela judicial pressupõe a composição provisória da situação controvertida antes da decisão definitiva, de molde a prevenir a violação de direitos e/ou a assegurar a utilidade da decisão que os haja reconhecido, tarefa prosseguida através de procedimentos cautelares, de natureza urgente, cuja especificidade visa a garantia desses objectivos.

            Pode-se, assim, afirmar que a “tutela processual provisória decorrente das decisões provisórias e cautelares é instrumental perante as situações jurídicas decorrentes do direito substantivo, porque o direito processual é meio de tutela dessas situações. A composição provisória realizada através da providência cautelar não deixa de se incluir nessa instrumentalidade, porque também ela serve os fins gerais de garantia que são prosseguidos pela tutela jurisdicional (…).

            A composição provisória que a providência cautelar torna disponível pode visar uma de três finalidades: aquela composição pode justificar-se pela necessidade de garantir um direito, de definir uma regulação provisória ou de antecipar a tutela requerida. Sempre que a tutela provisória se legitime pela exigência de garantir um direito, deve tomar-se uma providência que garanta a utilidade da composição definitiva, quer dizer, uma providência de garantia”[4].

            São características comuns das providências cautelares: a provisoriedade, a instrumentalidade e a sumario cognitio.

            A primeira daquelas características emana da circunstância da providência cautelar prosseguir uma tutela distinta da facultada pela acção principal, de que é dependente, e pela necessidade de a substituir pela tutela que vier a ser definida por essa acção. O objecto da providência não é o direito acautelado, mas a garantia desse direito, a regulação provisória da situação ou a antecipação da tutela requerida.

            É objectivo primário do procedimento cautelar evitar a lesão grave ou dificilmente reparável de um direito em resultado da demora na composição definitiva do litígio. Visa obviar ao periculum in mora. A sua verificação constitui pressuposto de qualquer procedimento cautelar: inexistindo, este será indeferido ou não decretado.

            Como, a propósito deste requisito, escreveu Lucinda Dias da Silva[5], «…o ”periculum in mora” corresponde ao pressuposto característico dos processos cautelares, dado nele se sintetizar a fonte primária de probabilidade de dano que preside à concepção da tutela cautelar, por sua vez justificativa das especificidades próprias deste tipo de processos (…).

            O perigo em causa assume, porém, uma tripla particularidade, na medida em que a sua caracterização impõe que, cumulativamente, se considerem a sua fonte, o seu grau e o seu objecto.

            Tratar-se-á, respectivamente, de perigo decorrente do decurso do tempo processual da acção principal (fonte), que se reflicta negativamente, de forma grave e dificilmente reparável (grau) no efeito útil de tal acção (objecto)».

            A providência cautelar exige apenas a prova sumária – sumario cognitio – do direito ameaçado, isto é, a probabilidade da existência do direito para o qual se demanda a tutela provisória, e o receio da sua lesão.

            Nesta característica enraíza o designado fumus boni iuris, requisito indispensável ao decretamento da providência cautelar, que se traduz na possibilidade de antever a aparência do direito invocado pelo requerente.

            Com efeito, “incumbe ao requerente demonstrar a probabilidade de procedência da acção principal, invocando factos que permitam inferir tal conclusão, pelo que tais factos constituirão, no seu conjunto, uma aproximação sumária da causa de pedir da acção principal (…).

            Trata-se, nesta medida, de um requisito prévio, relativamente aos demais, permitindo distinguir, adentro da causa de pedir da acção cautelar (…), além dos factos consubstanciadores da existência de perigo para a tutela jurisdicional efectiva no processo principal (factualidade relevante exclusivamente no processo cautelar), um segmento correspondente ao conjunto de factos que proporcionam um vislumbre do que será a causa de pedir da acção principal e permitem aferir da probabilidade de futura procedência dessa lide (…).

            (…) a perfunctoriedade da análise e do grau de convencimento respeita aos factos correspondentes à titularidade do direito, considerando-se suficiente que se gere no tribunal a convicção, não de que o requerente é titular do direito que invoca, mas de que é verosímil ou altamente provável que assim venha a ser declarado, pelo que importará que, quanto a este requisito, assim atenuado (por respeitar à aparência de titularidade do direito e não à efectiva titularidade do direito), se forme no espírito do julgador o grau de certeza especial, que permite a pronúncia no sentido de que os factos que lhe estão associados se consideram provados”[6].

            Requerida determinada providência cautelar, importa aferir, antes de mais, da necessidade do seu decretamento, através da indagação do preenchimento dos princípios do “fumus boni iuris” e “periculum in mora”.

Caso resulte dessa indagação conclusão de natureza afirmativa, importará então avaliar se a medida requerida é a adequada à prossecução do fim que se visa atingir, e, concluindo-se em sentido positivo, se é a mais adequada.

Mas ainda que essa circunstância não se verifique, sempre o julgador poderá conceder outra providência que não a requerida[7], de forma a assegurar a tutela provisória dos interesses do requerente, considerando a natureza hipotética do direito invocado, mediante a mínima ingerência possível na esfera jurídica do requerido.

Finalmente, “na hipótese de se concluir estarem verificados todos os mencionados pressupostos, cumprirá indagar se a medida a decretar (…) se revela proporcional, o que se aferirá sopesando os prejuízos que resultariam, para o requerente, da não concessão da providência cautelar e as desvantagens que decorreriam, para o requerido, da concessão de providência cautelar, sendo que a medida não será decretada se este último prejuízo for consideravelmente superior ao primeiro”[8].

Os princípios enunciados encontram acolhimento na letra da lei, designadamente quando o nº1 do artigo 381º do Código de Processo Civil, norma prevista para o procedimento cautelar comum, estabelece que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”, sendo que, nos termos do nº 2 do mesmo dispositivo, “ o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor”, prevendo o nº1 do artigo 387º do mesmo diploma legal que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”. Por seu turno, o nº2 do mesmo normativo prescreve que “a providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido, exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”.

As providências cautelares comuns só poderão ser requeridas quando nenhuma das legalmente tipificadas se possa aplicar à situação a acautelar[9], dada a natureza subsidiária daquelas.

A providência cautelar requerida foi, no caso, o arresto.

O arresto é um meio de garantia patrimonial do credor, cuja regulamentação substantiva encontra acolhimento nos artigos 619º e seguintes do Código Civil, sendo o seu tratamento adjectivo feito pelos artigos 406º a 411º do Código de Processo Civil.

Prescreve o nº1 do artigo 619º do Código Civil: “o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo”.

Segundo o nº1 do artigo 406º do Código de Processo Civil, “o credor que tenha fundado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”, prescrevendo o seu nº2: “o arresto consiste numa apreensão de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado nesta subsecção”.

A providência em causa depende da verificação cumulativa de dois requisitos[10]:

- A probabilidade da existência do crédito;

- Existência de justo receio da perda da garantia patrimonial.

Invoca o requerente a existência de um crédito sobre a requerida, proveniente de serviços forenses que alegadamente prestou à mesma e que ela se recusa a liquidar e o receio de perda da garantia patrimonial. Esse receio fundamenta-o o requerente no facto de a requerente se furtar a quaisquer contactos consigo e de proceder à ocultação dos bens, transferindo-os para familiares.

O primeiro daqueles requisitos mostra-se indiciariamente preenchido.

Quanto ao “justo receio de perda da garantia patrimonial” esclarece Abrantes Geraldes[11] que tal requisito pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”, acrescentando que “este receio é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares. Se a probabilidade quanto à existência do direito é comum a todas as providências, o justo receio referente à perda de garantia patrimonial é o factor distintivo do arresto relativamente a outras formas de tutela cautelar de direitos de natureza creditícia”, precisando ainda que “o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva".

Conforme entendimento unânime da jurisprudência[12], para a configuração do “justo receio” não basta o mero receio subjectivo do credor, sustentado em simples conjecturas, antes devendo fundar-se em factos concretos que sumariamente o indiciem.

Também a simples recusa do cumprimento, despojada de outros factos que revelem perda da garantia patrimonial, não basta para o preenchimento do requisito em análise[13].

Ou seja: sendo o arresto deduzido pelo credor contra o devedor, incumbe ao primeiro alegar e provar factos demonstrativos não só da existência do seu crédito, como também do justificado receio de perda da garantia patrimonial, consubstanciado, designadamente, na diminuição sensível do património do segundo, que constitui o garante do cumprimento das suas obrigações, como decorre do artigo 601º do Código Civil. Essa diminuição pode resultar quer da delapidação desse património, quer mesmo da sua ocultação.

No caso em apreço, o requerente invocou factualidade passível de integração de qualquer dos apontados requisitos.

Com base no circunstancialismo invocado, pretende que se proceda ao arresto dos depósitos bancários (à ordem ou a prazo) ou aplicações financeiras existentes no Banco X... (agência de ...) em nome da sobrinha (…) e o prédio urbano sito na freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº ..., inscrito a favor de (…).

Por regra, só os bens do devedor podem ser executados. Porém, do mesmo modo que podem ser executados bens de terceiros[14], também, embora do mesmo modo excepcional, podem bens de terceiros ser arrestados.

Ou seja: para além da linear possibilidade configurada pelo artigo 406º, nº1 do Código de Processo Civil, isto é do arresto incidir sobre bens do devedor e em poder deste, outras hipóteses se podem desenhar, como a do arresto poder ter por alvo bens de terceiro, bens do devedor que se encontrem na posse de terceiro, ou ainda de bens alegadamente pertencentes ao devedor, mas que este, para os furtar à acção do credor, transfere para a titularidade de terceiro, ou inscreve-os em nome deste.

Como bem salienta Abrantes Geraldes[15], de resto citado quer na decisão recorrida, quer nas alegações de recurso: “o arresto pode incidir sobre bens de terceiro quando seja requerido na dependência funcional da acção de impugnação pauliana, como meio de defesa da garantia patrimonial. O disposto no art. 407º, n.° 2, do CPC, mais não é do que a adjectivação do direito conferido ao credor de perseguir os bens do devedor para efectivo exercício de um direito de crédito, quando se verifique a prática de actos de que resulte a diminuição da garantia patrimonial (art. 619º, nº2 do CC).

Na verdade, a concessão ao credor da possibilidade de obter a declaração de ineficácia de tais actos poderia revelar-se insuficiente se fosse desacompanhada do direito de obter a sua prévia apreensão, designadamente quando se esteja perante bens móveis relativamente aos quais nem o registo consiga tornar eficaz a sentença constitutiva.

Perante tais circunstâncias, os requisitos a preencher no arresto dependem do facto de se encontrar ou não pendente a acção de impugnação pauliana:

a) Se a acção já tiver sido instaurada, bastará a alegação e prova dos factos relativos à probabilidade da existência do crédito e ao justo receio de perda da garantia, destinando-se o arresto dos bens a dar eficácia à decisão que eventualmente venha a ser proferida;

b) Se a acção ainda não tiver sido instaurada, exige-se complementarmente a alegação e prova sumária dos pressupostos da impugnação, como factor de credibilidade e de seriedade da pretensão, tanto mais que vai interferir na esfera jurídica de terceiros porventura alheios à relação creditícia de onde emerge o direito.

Com isto não se confunde o arresto de bens do devedor que se encontrem na posse de terceiros.

A aplicação remissiva do disposto no art. 831.°do CPC mostra-se suficiente para superar qualquer objecção quanto à legitimidade da apreensão nos casos em que, apesar dos poderes de facto efectivamente exercidos pelos terceiros os bens continuem a integrar o acervo patrimonial do devedor.

Como resulta dessa norma, não fica afastada a possibilidade de o terceiro deduzir os meios de defesa que forem oportunos, maxime os embargos de terceiro, quando se verifiquem os requisitos correspondentes.

Também não se confunde com a situação figurada aquela em que se pretende o arresto de bens alegadamente pertencentes ao devedor mas que, entretanto, já passaram para a titularidade de terceiros ou foram inscritos em seu nome no registo predial, comercial ou automóvel.

Em tais circunstâncias, sem embargo do exercício do direito potestativo correspondente à acção pauliana ou do accionamento do regime constante do art. 119.° do Código de Registo Predial, para efeitos de obtenção do registo definitivo do arresto, está aberto ao terceiro directamente atingido pelo arresto o uso dos meios de defesa, designadamente os embargos de terceiro, sujeitando-se, neste caso, à prova da verificação dos requisitos respectivos, nos termos do art. 354º.

Tenha-se, porém, em atenção que, na eventualidade de a transmissão ter ocorrido já na pendência do arresto, nada obsta a aplicabilidade do regime constante do art. 271.°: a decisão do arresto produz efeitos na esfera jurídica do adquirente, salvo se este tiver efectuado o registo da aquisição antes do registo (provisório ou definitivo) do arresto”.

Permite a lei, com efeito, que o arresto seja instaurado não contra o devedor, mas antes contra o adquirente dos bens daquele[16]. Nesse caso, deve o requerente demonstrar “ter sido judicialmente impugnada a aquisição” ou, se não for o caso, alegar “os factos que tornem provável a procedência da impugnação”[17].

Contrariamente ao sustentado na decisão recorrida, a providência cautelar não foi requerida contra nenhum terceiro adquirente dos bens da devedora, mas antes contra esta mesma. E não o tendo sido requerida naquele contexto, não tinha o requerente que demonstrar ter sido judicialmente impugnada a aquisição, isto é, pendência de acção de impugnação pauliana, ou, não tendo esta ainda sido proposta, a alegação (e consequente prova, ainda que sumária) dos pressupostos dessa impugnação.

E por não se enquadrar nessa hipótese a providência requerida, não poderia, como o foi, ser liminarmente rejeitada com fundamento no facto de que “…o Requerente nada alegou quanto à impugnação judicial da alegada transmissão efectuada pela Requerida aos familiares identificados no requerimento inicial, e, para o caso de não ter sido a mesma intentada, não alegou os factos que tornam provável a procedência dessa mesma impugnação, conforme estabelecem expressamente os arts. 619.º, nº2 do Código Civil e 407.º n.º 2 do Código de Processo Civil, razão porque o Requerente nunca poderá ver arrestados os aludidos bens, alegadamente propriedade de terceiros”:

Mas também não se poderá comungar do entendimento do recorrente quando sustenta que os bens a arrestar são da propriedade da requerida, achando-se, todavia, na posse de terceiros. Tal hipótese seria de aceitar caso existisse um negócio ou relação jurídica que transferisse para os terceiros, com detenção sobre os bens, essa posse, sem que isso colidisse com o direito de propriedade do devedor[18].

Não é esse o caso dos autos, onde, de acordo com o quadro fáctico alegado, pelo menos formalmente, se operou transferência do direito de propriedade para terceiros, familiares da requerida, sendo os depósitos bancários e/ou produtos financeiros da titularidade de uma sobrinha e encontrando-se o imóvel inscrito em nome de um irmão.

A factualidade tal como é delineada pelo recorrente (bens a arrestar alegadamente da devedora, mas que passaram para a titularidade de terceiros) poderia enquadrar-se na terceira das situações descritas e tratadas por Abrantes Geraldes.

Cabe nesta hipótese a situação em que o devedor, para furtar os seus bens à garantia das obrigações de cujo cumprimento se pretende demitir, cria uma aparência de transmissão de propriedade para terceiro, com o único objectivo de ocultar esses bens, com vista a impedir que o credor possa, por meio dos mesmos, garantir ou satisfazer o seu crédito.

Obstar que, neste caso, o credor perseguisse esses bens, ainda que inscritos ou registados em nome de terceiro, seria negar os objectivos prosseguidos pelo arresto enquanto meio de garantia patrimonial do credor, entravando os fins que os artigos 619º do Código Civil e o artigo 406º do Código de Processo Civil visam alcançar.

Neste cenário, desde que reunidos os demais pressupostos exigidos para o decretamento do arresto, não constituirá obstáculo ao deferimento da providência a circunstância de se ter operado a transmissão formal da titularidade dos bens do devedor para terceiro.

A este reconhece a lei meios de defesa para salvaguarda de eventuais direitos, incluindo os de propriedade, que tenha sobre a coisa transmitida para seu nome, designadamente, através dos embargos de terceiro.

Porém, o recurso ao mecanismo do artigo 119º do Código de Registo Predial só aparentemente constituirá solução para a conversão definitiva do registo do arresto. Tendo a transmissão da titularidade dos bens sido meramente formal, efectuada com o exclusivo objectivo de ocultar/furtar os bens do devedor à acção do credor e à garantia patrimonial do seu crédito, e estando o titular inscrito conluiado com aquele nesse propósito, não será minimamente expectável que esse titular não venha afirmar que lhe pertence o bem arrestado, situação que demandaria que o credor tivesse de instaurar acção comum com vista a demonstrar que os bens pertencem ao devedor.

De todo o modo, e aqui reside o aspecto nuclear do objecto da presente discussão, achando-se os bens a arrestar em nome de terceiro, tendo a transmissão dos mesmos sido meramente aparente ou formal, com o objectivo de os retirar da esfera do devedor e obstar que o credor possa, por meio deles, obter a garantia da satisfação do seu crédito, deve o requerente do arresto alegar esta mesma factualidade.

Ou seja: pretendendo o credor que o arresto incida sobre aqueles bens, transmitidos a terceiros e na titularidade destes, no caso de se configurar o cenário assinalado, deverá alegar, para posteriormente comprovar, que essa transmissão foi meramente formal, operada com o único objectivo de impedir que os referidos bens possam servir de garantia patrimonial ao requerente da providência.

O mesmo é dizer, e fazendo actuar analogicamente o regime do artigo 407º, nº2 do Código de Processo Civil, que deverá o requerente, através da invocação de factos concretos, alegar que a transmissão dos bens para os terceiros foi simulada, na modalidade de simulação absoluta, incumbindo-lhe a prova dessa realidade, nos termos do artigo 342º, nº1 do Código Civil.

Não o fez o requerente/apelante, como lhe competia, antes argumentando, sem qualquer suporte, que os bens a arrestar são da requerida, tendo os terceiros familiares apenas a posse dos mesmos, não facultando quaisquer razões para afastamento da presunção que emerge do registo do imóvel, nem para a circunstância de os depósitos bancários e/ou aplicações financeiras se acharem em nome da sobrinha da requerida.

A omissão de alegação da apontada factualidade compromete irremediavelmente o sucesso da providência, e sendo manifesta a improcedência do pedido, justifica-se o seu indeferimento liminar, nos termos do artigo 234º-A, nº1 do Código de Processo Civil.

Confirma-se, como tal, a decisão recorrida, ainda que por diferente fundamento.


*

Conclusão:

- O arresto é um meio de garantia patrimonial do credor, cuja regulamentação substantiva encontra acolhimento nos artigos 619º e seguintes do Código Civil, sendo o seu tratamento adjectivo feito pelos artigos 406º a 411º do Código de Processo Civil.

- A providência em causa depende da verificação cumulativa de dois requisitos: a probabilidade da existência do crédito e a existência de justo receio de perda da garantia patrimonial.

- Verificando-se estes requisitos, não constituirá obstáculo ao deferimento da providência em causa a circunstância de se ter operado a transmissão formal da titularidade dos bens do devedor para terceiro.

- Mas nessa hipótese, aplicando analogicamente o regime previsto no artigo 407º, nº2 do Código de Processo Civil, deverá o requerente alegar e provar que essa transmissão foi meramente formal, apenas efectuada com o propósito de afastar da esfera da titularidade do devedor tais bens, de forma a impedir que, através deles, o credor consiga a garantia patrimonial do seu crédito; ou seja, deverá o requerente do arresto alegar factos concretos que permitam concluir que a transmissão para terceiros foi simulada, na modalidade de simulação absoluta, suportando ainda o correspondente encargo probatório.

- A omissão dessa alegação torna manifesta a improcedência do pedido do arresto pelo que deve a providência em causa ser liminarmente indeferida, nos termos do artigo 234º-A, nº1 do Código de Processo Civil.


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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando, ainda que por diferentes fundamentos, a decisão recorrida.

 

Custas pelo apelante.

 


Judite Pires ( Relatora )
Carlos Gil
 Fonte Ramos


[1] Artigos 684º, nº 3 e 685-A, nº 1 do C.P.C., na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
[2] Artigo 664º do mesmo diploma.
[3] Cf. artigo 20º da CRP e 2º, nº2 do Código de Processo Civil.
[4] Acórdão da Relação de Coimbra, 08.04.2000, processo nº 285/07.1TBMIR.C1, www.dgsi.pt.
[5] “Processo Cautelar Comum”, pág. 144 e segs.
[6]Lucinda Dias da Silva, ob. cit., págs. 143, 144.
[7] Cf. artigo 392º, nº3, 1ª parte do Código de Processo Civil.
[8] Lucinda Dias da Silva, ob. cit., pág. 146.
[9] Artigo 381º, nº3 do Código de Processo Civil.
[10] Cuja concretização fáctica deve ser efectuada no requerimento inicial, recaindo sobre o requerente o respectivo ónus probatório, nos termos do artigo 342º, nº1 do Código Civil.
[11] “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, IV vol., pág.191 e seguintes.
[12] Entre outros, Acórdãos da Relação do Porto 07.10.2008, processo nº 0823457, de 17.05.2004, processo nº 0452207, desta Relação de 10.02.2009, processo nº 390/08.7TBSRT.C1, da Relação de Lisboa de 15.03.2007, processo nº 8563/2006-6 e de 28.10.2008, processo nº 8156/2008-1, todos em www.dgsi.pt.
[13] Cf. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 463 a 465.
[14] Artigo 818º do Código Civil.
[15] “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, IV vol., págs. 212 a 215.
[16] Artigos 619º, nº2 do Código Civil e 407º, nº2 do Código de Processo Civil.
[17] Acórdão da Relação do Porto, 31.03.2009, processo nº 17/08.7TBARC-B.P1, acórdãos da Relação de Coimbra, 20.03.2007, processo nº 2042/06.3TBACB.C1, e de 29.11.2005, processo nº 3214/05.
[18] Como poderia suceder em situações de comodato, de direito de retenção, de penhor, de aluguer, por exemplo.