Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3264/08.8TBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 01/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COM./COIMBRA - FIGUEIRA FOZ/INST. LOCAL/SEC. CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1569º Nº2 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A mera circunstância de uma servidão de passagem não ser utilizada não releva para efeitos de declarar a sua extinção por desnecessidade, podendo apenas relevar para efeitos de extinção pelo não uso e apenas se o não uso perdurar durante vinte anos.

II – A desnecessidade da servidão para efeitos de declarar a sua extinção não pode ser apurada em face dos interesses subjectivos do respectivo proprietário, em dado momento ou em determinado período; tal desnecessidade tem que ser avaliada em termos objectivos e reportada ao prédio dominante.

III – Ainda que, em dado momento e em determinado período, o proprietário do prédio dominante não tenha necessidade de utilizar a servidão por não estar a dar ao prédio qualquer uso que exija a sua utilização, isso não basta para declarar a sua extinção por desnecessidade, porquanto o que releva para este efeito é que, em termos objectivos, a servidão tenha perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente.

IV – Assim, estando em causa um prédio rústico destinado a cultura e árvores de fruta sem qualquer outro acesso à via pública que não seja através do interior de uma casa/estabelecimento de café, não é desnecessária a servidão de passagem que a favor dele se constituiu sobre um prédio vizinho, porquanto tal servidão ainda lhe proporciona uma utilidade que, sendo relevante para a sua normal e regular fruição/exploração, não pode ser obtida por outra via.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... e mulher, B... , residentes no (...), Brenha, intentaram a presente acção contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de C... e contra D... e mulher, E... , residentes na Rua (...), Brenha, alegando, em suma, que: são proprietários de dois prédios urbanos, onde existe um portão seguido de um pátio, quintal e logradouro de cada uma das casas; do lado sul desses prédios existe um prédio propriedade da herança Ré, composto por casa de habitação e logradouro, sendo que, em tempos remotos, a autora da aludida herança pediu à mãe da Autora – e, posteriormente, à Autora – para passar pelo prédio desta e pelo aludido portão a fim de entrar com mato para o seu prédio e para não ter que passar com o mato pela casa principal, onde hoje existe um café; não obstante tal ter sido autorizado, há mais de trinta anos que ninguém passa com mato naquele local; mais tarde – há cerca de 14 anos – o Réu passou pelo prédio dos Autores, com autorização destes, para transportar materiais de construção com vista à realização de obras que andava a efectuar; não obstante esse facto, nunca existiu no local qualquer serventia a favor do prédio dos Réus e ainda que tivesse existido sempre estaria extinta pelo não uso, já que, há mais de vinte anos, ninguém passa naquele local; não obstante esse facto, o Réu, em Novembro de 2008, pretendeu entrar e passar com um tractor pelo portão dos Autores e em direcção ao seu prédio, tendo partido as dobradiças do aludido portão e obrigando à colocação de um novo portão, além de ter danificado o cimento, importando a reparação desse estrago em 150,00€.

Com estes fundamentos, pedem que os Réus sejam condenados:

a) A reconhecer a inexistência de servidão de passagem pelos identificados prédios dos Autores a favor do seu prédio;

b) A não passarem ou tentarem fazê-lo através dos prédios dos Autores para o seu prédio e a fecharem o portão que construíram no lado que confronta com aqueles prédios;

c) A pagarem aos autores a quantia de € 150,00 por força dos danos que lhes causaram.

Subsidiariamente, e caso se entenda que se chegou a constituir uma servidão, pedem que os Réus sejam condenados a reconhecer que a mesma se extinguiu pelo não uso durante mais de vinte anos e a fechar definitivamente o portão que construíram no local e que confronta directamente com o prédio dos Autores.

Os Réus contestaram, alegando, em suma, que, além do prédio urbano a que aludem os Autores, são igualmente proprietários de um prédio rústico que confina com aquele, sendo que, quer o prédio rústico, quer o logradouro do prédio urbano, estão encravados, já que o acesso aos mesmos apenas seria possível pelo interior de um café propriedade dos Réus; o acesso ao aludido prédio e logradouro sempre foi feito através de uma serventia que, com início a Norte, atravessava o prédio dos Autores e terminava junto a um portão que dá acesso ao prédio dos Réus, serventia essa por onde passavam com tractores e carros de bois e que continuou a ser utilizada para diversos fins até que, em Novembro de 2007, o Autor marido colocou um portão novo no início da serventia, impedido os Réus de por lá passarem.

Com estes fundamentos e impugnando alguns dos factos alegados pelos Autores, concluem pela improcedência da acção e pedem, em reconvenção, que:

1 - Sejam declarados donos e legítimos possuidores dos prédios (rústico e urbano) a que aludem na sua contestação;

 2 - Seja declarado que tais prédios são encravados, não tendo acesso à via pública nem possibilidade de a obter por outro meio;

3 – Seja declarado que o acesso a esses prédios de pessoas, carros de bois e tractores, é o que sempre foi feito, através de uma passagem, vulgo serventia, sempre existente no prédio dos Autores e constituída por usucapião, nos moldes e com as características referidas na contestação;

4 – Os Autores sejam condenados a reconhecerem esse direito de passagem nos moldes invocados e, consequentemente, que os seus prédios se encontram com passagem em benefício dos prédios dos Réus nos moldes acima referidos;

5 – Os Autores sejam condenados e a não impedirem o acesso pela serventia constituída ou, em alternativa, a entregarem aos Réus uma chave do portão que colocaram no início da serventia e que os impede de por lá devidamente passarem;

6 – Os Autores sejam condenados a absterem-se, em absoluto de qualquer forma, de impedir a passagem dos Réus nos moldes já invocados.

Os Autores replicaram, mantendo a posição assumida na petição inicial, reafirmando a inexistência de qualquer servidão e concluindo pela improcedência da reconvenção.

Foi proferido despacho saneador e foi efectuada a selecção da matéria de facto assente e base instrutória.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte teor:

Em face do exposto, o tribunal decide:

a) Declarar que os réus são donos dos prédios inscritos na matriz sob os artigos

 434.º e 844.º;

b) Declarar que se constituiu por usucapião uma servidão de passagem sobre os prédios dos autores correspondentes aos artigos matriciais 119.º e 277.º a favor dos prédios dos réus acima referidos;

c) Declarar que a servidão de passagem mencionada em b) se extinguiu por desnecessidade e condenar os réus a reconhecê-lo;

d) Condenar os réus a não passarem ou tentarem fazê-lo através dos prédios dos autores para os seus prédios e a fecharem o portão referido no ponto 15 dos factos provados e visível na fotografia de fls. 71;

e) No mais, julgar improcedentes os pedidos formulados, absolvendo-se nessa medida as partes.

Inconformados com essa decisão, os Réus vieram interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

 1. A sentença recorrida reconhece a existência de duas unidades prediais distintas que beneficiavam da servidão de passagem -art. urbano 434 e art. rústico 844.

Deu como provado que pela faixa de terreno passavam a pé, carros de bois e tractores transportando mato, estrumes e produtos hortícolas, bem como ramos, troncos de árvores e o entulho provenientes do prédio referido em 6.

No ponto 24 dos factos provados refere apenas que “Desde pelo menos 1997/1998 que ninguém passa pela faixa de terreno com mato, estrumes e produtos hortícolas”.

Conclui no ponto d) da decisão que a servidão de passagem constituída por usucapião a favor dos prédios dos RR se extinguiu por desnecessidade.

2. Entendem os RR que a decisão tomada não valorou as provas por si carreadas, não valorou o depoimento das testemunhas de defesa bem como os docs. de fls. 71 e 106 e o auto de inspecção ao local.

Igualmente entendem que se impunha outra interpretação dos factos 10, 14, 17, 21 e 25 dados como assentes, tudo conduzindo a uma decisão diversa da proferida, com a manutenção da servidão de passagem constituída por usucapião.

3. Considerando o teor dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR, nomeadamente o de Daniel Oliveira teria a sentença de dar como assente que mesmo depois de 1997/1998, pela faixa de terreno continuaram a passar os RR para ter acesso ao prédio rústico.

A testemunha acima referida trabalhou para a mãe do R e para os RR; conheceu no telheiro dos RR dois portões, um de madeira e outro de zinco.

Para cuidar do prédio rústico passou pela faixa de terreno e entrou no telheiro quando lá existia o portão de madeira e o de zinco (colocado em 1997/1998, aquando das obras efectuadas no local pelo R).

E a tratar das árvores e fazer a limpeza do prédio.

4. A sentença recorrida ao dar como provado que o acesso do prédio rústico à via pública sem ser pela faixa de terreno só pode fazer-se actualmente pelo interior de um café, quando anteriormente só se poderia fazer pelo interior de uma habitação, deveria fundamentar a falta de uma justificação objectiva para a manutenção do encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representaria para o prédio dominante.

Não o fez!

5. Ao valorar o facto de não haver sinais de cultivo no prédio rústico, a sentença recorrida omitiu ou não valorou o facto de os AA em 2007 terem retirado do local do início da passagem um portão velho e aberto e lá terem colocado um novo, recusando-se a entregar as chaves aos RR.

Não valorou, igualmente, o facto de entre a data de colocação do novo portão – 2007- e a data de inspecção ao local terem decorrido 5 anos.

Seria assim normal que o prédio não apresentasse sinais de cultivo e tivesse vegetação bravia.

6. Entre 1987 e 2007 os AA mantiveram no local um portão de madeira, velho e aberto na referida servidão de passagem.

Só quem lá teria interesse em passar eram os RR.

7. A sentença não valorou o facto de quando os RR levaram a cabo as obras no telheiro terem substituído um portão de madeira por um de zinco colocado no mesmo local, sem qualquer oposição dos AA.

O portão deita directamente para os prédios dos RR e por onde a sentença recorrida refere que foi constituída uma servidão de passagem por usucapião.

8.E também não valorou o doc. junto a fls. 106.

No mesmo a A em 1993 em requerimento dirigido ao Chefe da 2ª Repartição de Finanças da Figueira da Foz requer a rectificação a Poente do seu prédio – art. 119 – para que do mesmo passasse a constar serventia de inquilinos.

A única utilidade da serventia de inquilinos seria o acesso dos RR aos seus prédios.

9. Os AA não requereram expressamente a extinção da servidão por desnecessidade.

Nem alegaram e provaram a factualidade concreta da qual resultasse que a servidão perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da sua constituição.

10. Não fez a sentença recorrida um juízo de proporcionalidade entre o desagravamento do prédio serviente e a dimensão dos custos, incómodos e inconvenientes da alternativa apontada que teria de ser o aceso do prédio rústico à via pública pelo interior de um café.

11. Não tendo sido alegados todos esses elementos imprescindíveis para uma boa decisão da causa, a Meritíssima Juiz acabou por conhecer de uma questão que não podia tomar conhecimento por não constarem dos autos todos os elementos para o fazer.

12. E ao declarar a extinção da servidão constituída por usucapião no que toca ao prédio rústico, condenou em quantidade superior ao pedido.

Com efeito, no pedido formulado na sua douta p.i. os AA pedem que devem os RR ser condenados a reconhecer e inexistência da servidão de passagem nos seus prédios em favor do prédio dos RR – art. 434.

Subsidiariamente e caso se entendesse que se havia constituído me tempos uma servidão a reconhecer a extinção da mesma pelo seu não uso.

Apresentada a contestação-reconvenção apenas referiram que o prédio rústico não confrontava com os seus prédios.

Não ampliaram o pedido formulado na p.i., nem requereram que o mesmo fosse extensivo ao prédio rústico.

13. Com a decisão proferida pelo Tribunal a quo entendem os RR que foram violados os arts. 1569º nº2 e 342º nº 2 do Código Civil e as alíneas d) e e) do art.615º do Código Processo Civil.

Requer a audição dos suportes digitais de gravação da audiência de discussão e julgamento relativamente aos depoimentos referidos no presente.

Termos em que e nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. deve proceder o presente recurso e revogada a decisão por outra que não dê como provada a extinção por desnecessidade da servidão de passagem que se constituiu por usucapião sobre os prédios dos AA correspondentes aos arts. matriciais – 119 e 277 – a favor dos prédios dos RR – arts. matriciais 434 e 844.

E, assim sendo, devem os AA reconvindos ser condenados a reconhecer esse direito de passagem e a não impedirem de qualquer forma o acesso pela referida faixa de terreno ou, em alternativa, a entregarem aos RR reconvintes uma chave do portão que colocaram no início do mesmo junto à via pública e que impede os RR de passarem no local, com o que se fará sã e serena Justiça!

 

Os Autores apresentaram contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A sentença declarou a existência de uma servidão de passagem constituída por usucapião, sendo que essa servidão se extinguiu por desnecessidade, condenando os RR. a não mais passarem através dos prédios dos AA. e a fecharem o portão existente.

2.ª - Da alteração da matéria de facto: de acordo com o Auto de Inspecção ao Local (art.º 493.º do C.P.C.), feito no dia 19 de Setembro de 2013, pelas 09h50m, no local, sito na Rua 18 de Julho de 1634, freguesia de Brenha, concelho de Figueira da Foz, impunha-se que fosse dado como provado sob o ponto 9 a):

"O portão visível a fls. 71 dos autos dá acesso a uma área coberta de telhas de lusalite que serve de arrecadação ao estabelecimento "Café" e onde existe também uma zona com fogão e lava louça. Esta divisão possui duas janelas e uma porta com um metro de largura que dá acesso ao prédio identificado na alínea C) dos factos assentes, onde funciona o referido estabelecimento. A Poente desta área existe uma porta com dois degraus e um metro e cinco centímetros de largura que dá acesso ao prédio rústico identificado na alínea E) dos factos assentes, o qual não apresenta sinais de ser cultivado, está coberto de vegetação bravia, tendo também plantadas algumas árvores de fruto, e onde está depositado material velho.

Sendo dado por assente esta matéria fica provado que os RR. têm por prédio seu acesso à via pública e a porta que dá acesso ao café tem só menos 5 cms da porta que dá acesso ao terreno prédio de cultivo.

3.ª - Da manutenção da matéria de facto, No mais a matéria de facto tem de ser mantida, sendo certo que com as pequenas alterações: no ponto 11 e 24 tem de ser alterada a data, devendo ser fixada a data de 1987, data do nascimento da neta dos AA., tendo a essa matéria e justificando essa alteração, F..., tendo o seu depoimento ficado registado no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática disponível no Tribunal, Citius, a este respeito disse o que consta das passagens supra indicadas e G..., tendo o seu depoimento ficado registado no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática disponível no Tribunal, Citius, a este respeito disse o que consta das passagens supra indicadas.

4.ª - Os RR., inconformados, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde requerem a alteração à matéria de facto, sem que o façam nas conclusões do recurso, o que, como delimita o âmbito do recurso e como tal impõe que o mesmo recurso seja julgado improcedente pelo menos no que a esse ponto tange, de alteração da matéria de facto.

5.ª - Nos termos do estabelecido no artigo 640.º do Cód. Proc. Civil deve ser rejeitado o recurso dos RR. e por não respeitar as regras para pedir a alteração da matéria de facto deve o mesmo ser rejeitado por não poder beneficiar da ampliação do prazo da alteração da matéria de facto.

6.ª - Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio onerado com a servidão e dominante o que dele beneficia.

7.ª - Não há servidões pessoais mas prediais, o que parece ser um conceito não sabido pelos RR., na medida em que eles pensam e afirmam que passar por um prédio lhes dá por isso o direito de constituir uma servidão predial. "Não há servidões pessoais. As servidões têm sempre de incidir sobre um prédio em benefício de outro", MOTA PINTO, Ob. e loc. cits..

8.ª - Servidões podem classificar-se em voluntárias e legais, sendo que as servidões legais são aquelas a que a lei atribui a um indivíduo o direito potestativo de impôr a constituição de uma servidao, sendo que as servidões voluntárias são aquelas que não correspondem às hipóteses onde a lei atribui o poder de produzir unilateralmente a sua constituição.

9.ª - "Note-se, porém que a servidão legal só recai sobre os prédios rústicos, conforme se prescreve na parte final do n.º 1. A servidão legal de passagem não onera, por conseguinte os prédios urbanos (vd. a propósito, o acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 1972, no BMJ, n.º 222, pág.s 402 e seguintes) por se entender que a solução oposta colidiria com a intimidade de que deve rodear-se com a habitação ou domicílio ou com as exigências próprias do exercício da actividade instalada no prédio", PIRES DE LIMA, ANTUNES VARELA, HENRIQUE MESQUITA, ob. e loc. cits.

10.ª - Sendo os prédios dos AA. urbanos sobre eles nunca se poderia constituir uma servidão e muito menos uma servidão de passagem a pé, carro de bois e tractores, transportando mato, estrumes e produtos agrícolas, como ramos, troncos de árvores e entulhos.

11.ª - Não se pode, pois, constituir uma servidão de passagem sobre um prédio urbano conforme preceitua o artigo 1.550.º do Cód. Civil.

12.ª - Quando a sentença se refere à inexistência de sinais de cultivo não quer dizer agora ou há 5 anos, o que se viu e o que está escrito é que naquele local só está tralha velha de muitos anos.

13.ª - Os RR. confundem o conceito de serventia de inquilinos com o de uma servidão. Uma coisa nada tem com a outra.

14.ª - É evidente que a servidão se extinguiu conforme os AA. pedem na sua P.I.. Os AA. alegam que se houve servidão ela se extinguiu, vd. al. a do pedido: reconhecer a inexistência de servidão de passagem nos prédios dos AA., o prédio urbano sito na Rua x(...) e na Travessa y(...), em Brenha, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 119...

15.ª - Ao se pedir a declaração ou reconhecimento de inexistência de servidão de passagem, seja pelo não uso ou seja por desnecessidade o que a sentença decidiu foi que apesar de ter existido em tempos deixou de existir pelo que declarou a inexistência de servidão. Não há aqui condenação diferente do pedido.

16.ª - Invocam os réus a existência de uma servidão de passagem de pé e carro que teria sido adquirida a favor dos seus prédios com base em usucapião, encargo que oneraria os prédios dos autores, mais concretamente os seus logradouros. Afirmaram que há mais de 50 anos passam a pé, com carros de bois e tractores pelo caminho mencionado em 15 de forma contínua, pública, pacífica e sem oposição de terceiros.

17.ª - Quando se trate de extinguir uma servidão por desnecessidade, nos termos do artigo 1569.º, n.º 2 do Código Civil, deve atender-se, apenas, à desnecessidade objectiva, referente ao prédio dominante, em si mesmo considerado, o que significa que a extinção com o fundamento na desnecessidade da servidão tem de resultar de alterações objectivas, típicas e exclusivas, verificadas no prédio dominante. Por outro lado, tem-se entendido que a apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objecto de um juízo de actualidade, no sentido que há-de ser apreciada pelo tribunal, atendendo à situação presente. Refira-se, ainda, que, constituindo a servidão um direito real que limita seriamente o direito de propriedade do dono do prédio serviente e sendo tal limitação apenas justificada pela necessidade de obter para o prédio dominante determinadas utilidades que não estariam disponíveis sem a servidão, resulta manifesto que o encargo deve desaparecer logo que se torne desnecessário (desde que a extinção seja requerida), ou seja, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que, por meio dela, conseguia. Por fim, compete a quem pretende ver extinta a servidão o ónus de alegar e provar factualidade concreta da qual resulta que a servidão perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da constituição da servidão (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, proc. 3303/07.0TBBCL.G1.S1, em www.dgsi.pt). Como se disse, a utilidade da servidão de passagem em questão era o acesso dos réus à via pública e desta para os seus prédios (logradouro/telheiro e terreno) a pé, com carros de bois e tractores transportando mato, estrumes e produtos hortícolas, bem como os ramos troncos das árvores e o entulho provenientes da limpeza do prédio descrito em 6.

18.ª - Provou-se que no telheiro foram criados animais apenas até 1997/1998, altura em que o réu D... transformou o rés-do-chão da casa de habitação referida em 4 no estabelecimento de café hoje existente, substituiu os barrotes do telheiro de madeira onde eram criados os animais e colocou paredes em tijolo e cimento e um tecto de lusalite.

Mais se provou que ninguém passa pela faixa de terreno com mato e estrumes ou produtos hortícolas desde 1997/1998 e, bem assim, que o prédio descrito em 6, não obstante ter implantadas algumas árvores de fruto, não apresenta sinais de ser cultivado, está coberto de vegetação bravia e nele está depositado material velho.

19.ª - Foi dado como não provado o transporte pela faixa de terreno dos produtos utilizados pelos réus no estabelecimento de café e armazenados no telheiro, bem como a passagem por esse caminho de convidados, louças, aparelhagem de som e demais objectos necessários a uma festa de Fim de Ano organizada pelos mesmos no dito telheiro.

20.ª - Do exposto retira-se que os réus não utilizam a servidão que onera os prédios dos autores com a finalidade que lhe é conhecida, já supra descrita, desde, pelo menos, 1997/1998, data em que, com a execução das obras que transformaram a casa de habitação em estabelecimento de café, o logradouro/telheiro deixou de ser utilizado para armazenar mato, estrume e produtos hortícolas e guardar animais, não havendo igualmente sinais de cultivo do prédio rústico.

21.ª - Pode, assim, concluir-se que a servidão de passagem se tornou desnecessária a partir da referida data e portanto inexiste, tendo sido declarada e muito bem inexistente.

Termos em que o recurso deve improceder como é de inteira JUSTIÇA, devendo manter-se a decisão recorrida.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – as questões fundamentais colocadas no recurso consistem em saber se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto na parte em que foi objecto de impugnação e em saber se a servidão de passagem cuja constituição se reconheceu na sentença recorrida se extinguiu por desnecessidade.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Os autores são donos do prédio composto de casa de habitação com rés-do-chão com logradouro, sito na Rua x(...) e na Travessa y(...), em Brenha, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º 476 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 119.º da freguesia de Brenha, concelho da Figueira da Foz.

2. A autora adquiriu metade do prédio descrito em 1 por inventário orfanológico em que foram inventariados o seu pai e a sua avó H... e marido I...e a outra metade por doação.

3. Os autores são donos do prédio composto de habitação com rés-do-chão, 1.º andar e sótão, casa de arrumações com pátio e quintal, sito na Rua x(...), em Brenha, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º 169 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 277.º da freguesia de Brenha, concelho da Figueira da Foz, comprado pelo autor em 1987 a J....

4. Do lado sul do prédio descrito em 3 existe um prédio pertencente à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de C..., composto de casa de habitação com rés-do-chão amplo para arrumos, 1.º andar, dependências e logradouro, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Figueira da Foz sob o n.º 537 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 434.º da freguesia de Brenha, concelho da Figueira da Foz.

5. Correram termos pela 1.ª Secção do Tribunal Judicial da Figueira da Foz uns autos de inventário facultativo sob o n.º 42/86.

6. Os réus são donos do prédio composto de terra de cultura com uma pereira, uma laranjeira e outras árvores de fruto, a confrontar a norte com JD..., herdeiros, a sul com MV..., a nascente com casa de habitação e a poente com MM..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 844 da freguesia de Brenha, concelho da Figueira da Foz.

7. O prédio descrito em 1 confronta a norte com a Travessa y(...), a nascente com o Largo da Igreja e a poente com B....

8. O prédio descrito em 3 confronta a norte com B..., a nascente com o Largo da Igreja e a sul com herdeiros de C....

9. O ponto mais a poente do prédio descrito em 1 é um portão a que se segue o logradouro de cada uma das casas.

10. Quando o autor adquiriu o prédio descrito em 3, retirou o portão do local onde se encontrava e colocou-o na estrema do prédio descrito em 1 com a via pública.

11. O prédio descrito em 6 confronta a nascente com o logradouro do prédio descrito em 4, onde existe um telheiro no qual até 1997/1998 foram criados animais.

12. Em 1997/1998 o réu D... transformou o rés-do-chão da casa de habitação referida em 4 no estabelecimento de café hoje existente, substituiu os barrotes do telheiro de madeira onde eram criados os animais e colocou paredes em tijolo e cimento e um tecto de lusalite.

13. O prédio descrito em 4 confronta a norte com o prédio descrito em 3.

14. O acesso desde a via pública até ao logradouro do prédio descrito em 4 onde se situa o telheiro e ao prédio descrito em 6 só podia fazer-se pela casa de habitação referida em 4 e, depois de 1998, pelo estabelecimento de café em que o rés-do-chão desta foi transformado.

15. O acesso ao telheiro e ao prédio descrito em 6 durante pelo menos 20 anos e até 1987 foi feito pelos réus e seus antecessores, ininterruptamente, à vista de todos e sem oposição de terceiros por uma faixa de terreno com início a norte, junto à Travessa y(...), mais propriamente junto à esquina do prédio descrito em 1, atravessando-o e prolongando-se pelo sul, atravessando igualmente o logradouro do prédio descrito em 3 e terminando junto a um portão que dá acesso ao telheiro dos réus.

16. A faixa de terreno tem 2,42 m de largura e 20,55 m de comprimento e o seu piso é cimentado e apresenta fendas.

17. O portão referido em 15, de madeira até 1998 e actualmente de zinco, deita para o prédio descrito em 3 há mais de 30 anos.

18. Tal portão é ladeado a nascente por uma parede de prédio e cimento e a poente por um muro de blocos com 0,25 m de altura e 4,40 m de comprimento.

19. O telheiro dos réus serve de arrecadação ao estabelecimento de café e possui a nascente uma porta com 1 m de largura que dá acesso ao prédio descrito em 4.

20. No telheiro existe a poente uma porta com dois degraus e 1,05 m de largura que dá acesso ao prédio descrito em 6.

21. O prédio descrito em 6, não obstante ter implantadas algumas árvores de fruto, não apresenta sinais de ser cultivado, está coberto de vegetação bravia e nele está depositado material velho.

22. Os réus e seus antecessores ao longo do período referido em 15, passaram à vista de todos e sem oposição de terceiros, na faixa de terreno aí referida, a pé, com carros de bois e tractores transportando mato, estrumes e produtos hortícolas, bem como os ramos, troncos das árvores e o entulho provenientes da limpeza do prédio descrito em 6.

23. Por essa faixa de terreno foram também transportados, à vista de todos e sem oposição de terceiros, os materiais para realização das obras referidas em 12 e o entulho gerado por estas.

24. Desde pelo menos 1997/1998 que ninguém passa pela faixa de terreno com mato, estrumes ou produtos hortícolas.

25. Em data não concretamente apurada, mas situada entre Novembro de 2007 e Novembro de 2008, o autor colocou um portão em ferro no início da faixa de terreno, junto à via pública, cujas chaves se recusou a entregar aos réus.


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IV.

Impugnação da matéria de facto

Sustentam os Apelantes – na 3ª conclusão das suas alegações – que “considerando o teor dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos RR, nomeadamente o de Daniel Oliveira teria a sentença de dar como assente que mesmo depois de 1997/1998, pela faixa de terreno continuaram a passar os RR para ter acesso ao prédio rústico”.

Parece-nos, portanto, indiscutível que os Apelantes impugnam a decisão proferida sobre a matéria de facto no que respeita ao citado facto, não sendo exacta a alegação dos Apelados quando referem, nas suas alegações, que os Apelantes não incluíram essa impugnação nas conclusões das alegações e que, por essa razão, o recurso deve ser rejeitado.

Os Apelantes pretendem, portanto, que se considere provado que, mesmo depois de 1997/1998, continuaram a passar pela faixa de terreno para aceder ao seu prédio rústico e pretenderão, naturalmente (embora não o digam expressamente), que se elimine da matéria de facto provada o ponto 24. onde está incluído o facto contrário àquele que pretendem ver considerado provado.

Invocam, para o efeito, os depoimentos das testemunhas que arrolaram e, nomeadamente, o depoimento da testemunha, N....

Mas, salvo o devido respeito, não lhes assiste razão, porquanto não é possível extrair de nenhum desses depoimentos o facto que os Apelantes pretendem ver considerado provado: o de terem continuado a passar naquela faixa de terreno a partir de 1997/1998.

Senão vejamos.

A testemunha, L..., declara ter trabalhado para a mãe do Réu no prédio rústico aqui em causa, carregando e transportando mato e estrume, mais declarando que o fazia com um tractor e utilizando a faixa de terreno aqui em questão e entrando pelo portão aí existente. Declara, porém, que executou esses trabalhos entre a década de 70 e até 1989/1990. Não confirmou, portanto, que essa utilização e passagem continuasse a ser efectuada a partir de 1997.

A testemunha, N..., declara ter trabalhado também para a mãe do Réu no aludido prédio, procedendo à sua limpeza e tratando das árvores aí existentes, mais declarando que utilizava a faixa de terreno aqui em causa e o portão nela existente, mas também não resulta do seu depoimento que tivesse praticado esses actos depois de 1997.

O mesmo acontece com o depoimento prestado por O..., que declara ter trabalhado no aludido prédio desde 1982 até data que não conseguiu precisar mas que situa em 1997. Também a testemunha M... declara ter trabalhado no prédio dos Réus, aquando das obras que estes efectuaram, em 1997/1998. E a testemunha, P..., declara ter trabalhado naquele quintal ou terreno, utilizando a faixa de terreno aqui em questão, durante mais de trinta anos e até 1990/1995.

É certo, portanto, que nenhuma das aludidas testemunhas relatou ao tribunal qualquer utilização daquela faixa de terreno para aceder ao prédio rústico a partir de 1997/1998 e, como tal, nada justificaria que se considerasse provada tal utilização.

Assim sendo, mantém-se a decisão proferida no que toca ao aludido ponto de facto.

Nestes termos e porque os Apelantes não impugnaram qualquer outro ponto de facto[1], mantém-se integralmente a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Direito

A sentença recorrida decidiu declarar que os Réus são donos dos prédios inscritos na matriz sob os arts. 434º e 844º , mais declarando que se constituiu, por usucapião, uma servidão de passagem sobre os prédios dos Autores correspondentes aos artigos matriciais 119º e 277º a favor dos prédios dos Réus acima referidos.

Reconheceu, portanto, a sentença recorrida – como decorre da decisão e respectiva fundamentação – que, sobre os aludidos prédios dos Autores, se constituiu, por usucapião, uma servidão de passagem a favor dos prédios dos Réus acima aludidos, cuja utilidade era o acesso dos respectivos proprietários à via pública e desta para os prédios (logradouro/telheiro e terreno) a pé, com carros de bois e tractores transportando mato, estrumes e produtos hortícolas, bem como os ramos, troncos das árvores e o entulho provenientes da limpeza do prédio descrito em 6., servidão essa que era exercida através de uma faixa de terreno com início a norte, junto à Travessa y(...), mais propriamente junto à esquina do prédio descrito em 1, atravessando-o e prolongando-se pelo sul, atravessando igualmente o logradouro do prédio descrito em 3 e terminando junto a um portão que dá acesso ao telheiro dos Réus.

Mais considerou a sentença recorrida que não estavam reunidos os pressupostos para que tal servidão se considerasse extinta pelo não uso durante vinte anos (por não estar provado o não uso pelo aludido período), declarando, porém, que tal servidão se extinguiu por desnecessidade.

No presente recurso não está em causa a constituição da aludida servidão nem a sua extinção pelo não uso, discutindo-se apenas – é a única questão suscitada no recurso – se ela se extinguiu por desnecessidade, considerando os Réus/Apelantes – em desacordo com a sentença recorrida – que tal extinção não ocorreu, uma vez que tal servidão continua a ser necessária, e que, ao decidir como decidiu, a sentença violou o disposto no art. 1569º, nº 2, do C.C.

Dizem os Apelantes, designadamente, que, tendo sido dado como provado que o acesso do prédio rústico à via pública sem ser pela faixa de terreno só pode fazer-se actualmente pelo interior de um café, quando anteriormente só se poderia fazer pelo interior de uma habitação, a sentença recorrida não justificou a falta de uma justificação objectiva para a manutenção do encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representaria para o prédio dominante. Dizem que os Autores não alegaram e não provaram a factualidade concreta da qual resultasse que a servidão perdeu, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da sua constituição e que a sentença recorrida não fez um juízo de proporcionalidade entre o desagravamento do prédio serviente e a dimensão dos custos, incómodos e inconvenientes da alternativa apontada que teria de ser o aceso do prédio rústico à via pública pelo interior de um café.

Analisemos, então, essa questão.

Dispõe o citado art. 1569º, nº 2, que as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.

Não fixando a lei qualquer definição específica do conceito de desnecessidade para os aludidos efeitos, importará atender, antes de mais, ao sentido ou significado geral da palavra: falta ou ausência de necessidade, inutilidade.

Abstraindo, para já, da questão de saber se essa desnecessidade tem que ser superveniente relativamente ao momento de constituição da servidão – questão que não parece ser consensual na doutrina e jurisprudência – é indiscutível que tal desnecessidade tem que ser avaliada em termos objectivos e reportada ao prédio dominante. Em suma, a servidão será desnecessária quando, em termos objectivos – abstraindo, portanto, dos interesses subjectivos do respectivo proprietário – ela não é necessária ao prédio dominante.

Refira-se, porém, que essa necessidade/desnecessidade não equivale a indispensabilidade/dispensabilidade, sendo que a mera circunstância de a servidão não ser absolutamente necessária ou indispensável não equivale à sua desnecessidade.

Como se refere no Ac. do STJ de 16/01/2014[2], “…uma interpretação mais restritiva do requisito, fazendo-o equivaler a indispensabilidade, não se harmoniza com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais (no sentido de poderem ser impostas coactivamente)”. Com efeito, continua o mesmo Acórdão, “…pensando na servidão de passagem, por ser a que está em causa, pode constituir-se por usucapião uma servidão em situações que não preenchem os requisitos para a imposição de um direito legal de passagem. Dito por outra forma: a circunstância de não ser indispensável a servidão de passagem (por não ocorrer o encrave, absoluto ou relativo, exigido pelo artigo 1550º do Código Civil) não obsta à constituição do direito correspondente por usucapião. Seria contraditório que fosse permitido ao titular do prédio serviente provocar a extinção da servidão que onera o seu prédio, invocando uma desnecessidade que não impediu a respectiva constituição”.

Aliás, a considerar-se um conceito de desnecessidade que correspondesse à ideia de que a servidão é desnecessária sempre que ela não seja indispensável ou absolutamente necessária, tal significaria, em bom rigor, que uma servidão constituída por usucapião poder-se-ia extinguir a qualquer momento a pedido do proprietário do prédio serviente sempre que não estivesse em causa uma situação que pudesse dar origem à constituição de uma servidão legal. Ora, a ser assim, mal se compreenderia que o legislador tivesse permitido a constituição de servidões por usucapião, quando é certo que elas apenas se poderiam manter contra a vontade do proprietário do prédio serviente se estivesse em causa uma situação com base na qual o proprietário do prédio dominante poderia exigir a constituição de uma servidão legal.

Não seria difícil admitir que as servidões legais – designadamente quando constituídas por sentença judicial ou acto administrativo – se extinguissem a partir do momento em que cessasse o encrave absoluto ou relativo que havia determinado a sua constituição. De facto, desaparecendo os pressupostos de facto em que assentou a sua constituição, não custaria admitir que o acto constitutivo deixaria de produzir efeitos e que, como tal, a servidão assim constituída se deveria considerar extinta por desnecessidade, adoptando um conceito de desnecessidade reportado à concreta necessidade que havia determinado a sua constituição: o encrave absoluto ou relativo.

Mas já não será fácil admitir o mesmo conceito de desnecessidade relativamente às servidões de passagem constituídas por usucapião, porquanto, não dependendo essa constituição de qualquer encrave – absoluto ou relativo – do prédio dominante, a necessidade que preside à sua constituição não equivale à sua indispensabilidade para a normal e regular fruição do prédio, correspondendo – ou podendo corresponder – a uma mera utilidade ou comodidade que facilita a normal fruição do prédio dominante e que, por essa razão, lhe acrescenta um benefício ou mais-valia relativamente a outros acessos de que disponha para a via pública. E, portanto, se é – ou pode ser – essa a utilidade ou comodidade que está na origem da constituição da servidão, o normal será que seja a cessação dessa utilidade a ditar a sua extinção.

Assim, tal como se conclui no Acórdão supra citado, será necessário adoptar um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justifica a sua constituição e que é o da utilidade para o prédio dominante e, portanto, só se justificará a extinção da servidão por desnecessidade quando ela deixa de ter qualquer utilidade para o prédio dominante, em virtude de este ter a possibilidade de alcançar por outra via as mesmas utilidades que aquela servidão lhe proporcionava.

Conforme considerámos no nosso Acórdão de 27/05/2014[3], “a servidão extingue-se, por desnecessidade, se ela tiver perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; não ocorre, porém, tal desnecessidade e consequente extinção se a servidão puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e por proporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante”.

Vejamos o que se passa no caso dos autos.

A servidão em causa – cuja constituição, por usucapião, foi reconhecida na sentença recorrida (sem que tal seja questionado no presente recurso) – destinava-se a aceder da via pública ao logradouro/telheiro dos Réus e ao prédio rústico que confronta com esse telheiro, também pertencente aos Réus, a pé, com carros de bois e tractores, para transportar mato, estrumes e produtos hortícolas, enfim, para cuidar, limpar, tratar e colher os produtos aí produzidos.

Importa notar que, como resulta da matéria de facto provada, o aludido logradouro e o prédio rústico não têm qualquer acesso directo à via pública; o único acesso que existe através dos prédios dos Réus é feito pelo interior de um café existente no prédio, sendo que, antes da existência do café, era feito pelo interior da habitação aí existente.

Em face dessa situação, poder-se-á concluir pela desnecessidade da servidão exercida através do prédio dos Autores?

Parece-nos claro que não.

A sentença recorrida considerou que tal servidão se havia tornado desnecessária a partir de, pelo menos, desde 1997/1998, já que, a partir desse momento, o logradouro/telheiro deixou de ser utilizado para armazenar mato, estrume e produtos hortícolas e para guardar animais, não havendo também sinais de cultivo do prédio rústico.

Mas, salvo o devido respeito, a sentença recorrida confundiu o não uso da servidão com a sua desnecessidade, ou confundiu, no mínimo, a desnecessidade objectiva da servidão para o prédio dominante com uma desnecessidade subjectiva (e, eventualmente, temporária) do respectivo proprietário.

É certo que a servidão não tem sido utilizada, mas tal circunstância apenas poderia relevar para efeitos de extinção pelo não uso e, conforme se reconheceu na sentença recorrida, não decorreu ainda o prazo que a lei estabelece para esse efeito. E, como é evidente, o não uso da servidão por tempo inferior ao estabelecido na lei não poderá relevar para, sob a capa da desnecessidade, fazer operar a extinção da servidão. A ser assim, estar-se-ia a declarar extinta a servidão com base num facto que o legislador entendeu não ser suficiente para esse efeito: o não uso por tempo inferior a vinte anos.

Ter-se-á entendido na sentença recorrida que os Réus não têm necessidade da servidão, na medida em que não cultivam o prédio rústico e não usam o logradouro/telheiro para guardar animais e para armazenar mato, estrume e produtos hortícolas; ou seja, não teriam necessidade da servidão porque o concreto uso que têm feito dos prédios a partir de 1997/1998 não reclama e não exige a passagem – designadamente com carros ou tractores – através da servidão.

Mas, tal como referimos supra, a necessidade/desnecessidade da servidão não pode ser apurada em face dos interesses subjectivos do respectivo proprietário em dado momento ou em determinado período; tal necessidade/desnecessidade tem que ser avaliada em termos objectivos e reportada ao próprio prédio, tendo em conta as suas características e aptidões.

Esquecendo por ora o logradouro/telheiro (cuja normal fruição poderá até nem exigir a passagem pela servidão, tendo em conta o acesso, a pé, de que dispõe pelo interior do café), centremo-nos no prédio rústico, que, conforme descrição, é uma terra de cultura com árvores de fruto, importando notar que, ainda que não apresente sinais de ser cultivado, aí se encontram implantadas algumas árvores de fruto.

Os Réus, enquanto proprietários do aludido prédio, poderão fazer dele o uso que entenderem; podem cultivá-lo ou não; podem colher ou não os seus frutos; podem usá-lo para qualquer fim ou podem votá-lo ao abandono sem lhe dar qualquer utilização e, não pretendendo fazer qualquer uso do prédio, poderão não sentir qualquer necessidade de usar a servidão que está constituída a favor dele. Mas, ainda que, em dado momento e em determinado período, os Réus não tenham necessidade de utilizar a servidão porque não estão a dar ao prédio qualquer uso, isso não equivale a dizer que a servidão se tornou desnecessária, sendo que essa não utilização apenas poderá relevar para efeitos de extinção pelo não uso.

Para efeitos de extinção da servidão por desnecessidade não releva a desnecessidade subjectiva do proprietário do prédio dominante, exigindo-se uma desnecessidade objectiva, ou seja, uma desnecessidade para o próprio prédio dominante[4]. Como se refere no Acórdão do STJ de 01/03/2007[5], tal desnecessidade “…é apreciada em termos objectivos, ou seja, no cotejo da acessibilidade regular – não excessivamente incómoda ou onerosa – do prédio dominante e o encargo do prédio serviente, buscando-se que, na medida do possível e do razoável, o direito de propriedade possa ser exercido na plenitude da sua função socio-económica”. 

Ora, nesta perspectiva, parece-nos evidente que a servidão em causa não se tornou desnecessária para o prédio dos Réus, já que, estando em causa um prédio rústico destinado a cultura e árvores de fruta, é evidente que a sua normal fruição e exploração não se compadece com um acesso que é efeito apenas a pé e pelo interior de um café. É indiscutível, portanto, que a servidão em causa ainda proporciona ao prédio dominante uma utilidade que não pode ser obtida por outra via e que é relevante e necessária para a normal fruição e exploração do prédio.

A servidão em causa poderá até ser desnecessária para os Réus, se e enquanto não usarem e não explorarem o prédio rústico; mas tal servidão não é desnecessária para o próprio prédio, na medida que lhe proporciona uma utilidade que é relevante e necessária para a sua normal fruição e exploração (que, aliás, pode ser retomada a qualquer momento pelos Réus ou por qualquer outra pessoa a quem o prédio venha a ser transmitido) e que, não sendo viabilizada pelo acesso feito a pé pelo interior do café, lhe acrescenta uma mais valia significativa que é digna de protecção e que justifica, em termos de razoabilidade, a manutenção do encargo sobre o prédio serviente.

E não se argumente – como parecem fazer os Apelados – com a circunstância de os prédios dos Autores serem urbanos, o que, nos termos do art. 1550º do CC, impediria que sobre eles se pudesse constituir uma servidão de passagem. Em primeiro lugar, porque a norma citada apenas se reporta às servidões legais, nada obstando a que possa ser constituída, por usucapião, uma servidão de passagem sobre o quintal/logradouro de um prédio urbano, como aconteceu no caso sub judice. E, em segundo lugar, porque, ainda que assim não fosse, a constituição da servidão já foi declarada pela sentença recorrida, que, nessa parte, transitou em julgado, porquanto os Autores/Apelados não interpuseram recurso, sendo que o que está em causa no presente recurso é tão só a questão de saber se tal servidão se extinguiu ou não (por desnecessidade).

Consequentemente, não estão reunidos os pressupostos para que possa ser declarada a extinção da aludida servidão por desnecessidade, sendo que era aos Autores que cabia o ónus de alegar e provar tal desnecessidade.

Refira-se, aliás, que os Autores nem sequer pediram/requereram a extinção da servidão por desnecessidade – pediram apenas a sua extinção pelo não uso durante mais de vinte anos – circunstância que sempre constituiria um entrave/obstáculo à declaração judicial dessa extinção por desnecessidade que, conforme dispõe o citado art. 1569º, nº 2, não opera automaticamente e só pode declarada a requerimento do proprietário do prédio serviente.

  

Procede, portanto, o recurso, revogando-se a sentença recorrida, no segmento abrangido pelo presente recurso e ficando prejudicadas as demais questões aqui suscitadas.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A mera circunstância de uma servidão de passagem não ser utilizada não releva para efeitos de declarar a sua extinção por desnecessidade, podendo apenas relevar para efeitos de extinção pelo não uso e apenas se o não uso perdurar durante vinte anos.

II – A desnecessidade da servidão para efeitos de declarar a sua extinção não pode ser apurada em face dos interesses subjectivos do respectivo proprietário, em dado momento ou em determinado período; tal desnecessidade tem que ser avaliada em termos objectivos e reportada ao prédio dominante.

 III – Ainda que, em dado momento e em determinado período, o proprietário do prédio dominante não tenha necessidade de utilizar a servidão por não estar a dar ao prédio qualquer uso que exija a sua utilização, isso não basta para declarar a sua extinção por desnecessidade, porquanto o que releva para este efeito é que, em termos objectivos, a servidão tenha perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente.

IV – Assim, estando em causa um prédio rústico destinado a cultura e árvores de fruta sem qualquer outro acesso à via pública que não seja através do interior de uma casa/estabelecimento de café, não é desnecessária a servidão de passagem que a favor dele se constituiu sobre um prédio vizinho, porquanto tal servidão ainda lhe proporciona uma utilidade que, sendo relevante para a sua normal e regular fruição/exploração, não pode ser obtida por outra via.


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V.

Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a sentença recorrida, na parte em que declarou a extinção da servidão por desnecessidade e na parte em que condenou os Réus a não passarem naquele local e a fecharam o portão referido no ponto 15 dos factos provados (alíneas c) e d) da parte decisória da sentença), absolvendo-se os Réus desses pedidos e condenando-os os Autores, conforme pedido em sede de reconvenção a:

• Reconhecerem a servidão de passagem cuja constituição foi declarada – exercida sobre os seus prédios supra identificados a favor dos prédios dos Réus, também identificados, nos moldes supra referidos (ou seja, uma servidão, a pé e de carro de bois/tractor, através da faixa de terreno, com 2,42 m de largura e 20,55m de comprimento, que tem início a norte, junto à Travessa y(...), mais propriamente junto à esquina do prédio descrito em 1, atravessando-o e prolongando-se pelo sul, atravessando igualmente o logradouro do prédio descrito em 3 e terminando junto a um portão que dá acesso ao telheiro dos Réus);

• Não impedirem o acesso pela aludida servidão (mantendo aberto o portão que ali colocaram ou entregando aos Réus a respectiva chave);

• Absterem-se da prática de qualquer acto que impeça a passagem dos Réus nesse local.

Em tudo o mais, confirma-se a sentença recorrida.

Custas a cargo dos Autores/Apelados.
Notifique.

Maria Catarina Ramalho Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Refira-se que, não obstante aludirem a outros pontos de facto, os Apelantes apenas questionam a interpretação que lhes foi dada ou as conclusões que deles se extraíram, sem que tenham impugnado a decisão que considerou esses factos como provados.
[2] Proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.  
[3] Proc. nº 377/12.5T2ALB.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr. o Acórdão de 16/01/2014, proc. nº 695/09.0TBBRG.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Proc. nº 07A091, disponível em http://www.dgsi.pt.