Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
315/11.2TBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: AUTORIZAÇÃO PARA ATO A PRATICAR POR REPRESENTANTE LEGAL DE INCAPAZ
TRIBUNAL COMPETENTE
PROCESSO DE INVENTÁRIO
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO L. CÍVEL DE CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 1889º DO C. CIVIL; 1014º NCPC; 2º, Nº 1, AL. B) DO DL Nº 272/2001, DE 13/10.
Sumário: É do tribunal judicial e não do Ministério Público a competência para decidir sobre a autorização a dar ao representante legal de incapaz para praticar acto que legalmente dependa dessa autorização, quando o pedido corra por apenso ao processo de inventário no âmbito do qual o menor adquiriu o bem que determina o pedido de autorização - art. 2.º, n.º 1, al. b) do DL n.º 272/2001, de 13 de outubro e artigo 1014.º do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:


Recorrente….………………I..., melhor identificada nos autos;

Recorrido……………………Ministério Público

I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto da decisão que a seguir se reproduz, a qual declarou a incompetência material do tribunal para conhecer da causa, com fundamento no facto da lei atribuir ao Ministério Público essa competência, ou seja, para decidir o pedido que a Requerente faz ao tribunal, o qual consiste em ser autorizada a vender uma quota parte de um imóvel pertencente ao filho menor da Requerente.

A decisão é esta:

«I..., por apenso ao processo de inventário nº ... veio instaurar o presente processo especial de autorização judicial para a prática de actos em representação do seu filho menor A..., requerendo autorização para vender o prédio rústico, sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... da mesma freguesia, e inscrito na respetiva matriz predial com o artigo ..., pertencente a ambos, em compropriedade, na proporção de uma quarta ao menor A... e de três quartas partes à sua mãe, pelo preço de 42.470,00 €.

Alega que metade do prédio foi objeto de partilha no processo de Inventário n.º ... que correu termos no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ..., vindo a ser adjudicada à Requerente e ao Filho, na proporção de metade para cada interessado, pelo que a Requerente e o filho menor A... são comproprietários do alegado prédio na proporção de três quartas partes (3/4) para a progenitora e de um quarto (1/4) para o filho; que pretende vender esse prédio à sociedade de que é sócia gerente para nele construir e rentabilizar comercialmente; para se concretizar a pretendida compra e venda do identificado imóvel e para a celebração do acto formal a Requerente, enquanto representante do comproprietário, seu filho menor, necessita da exigida autorização judicial.

Como representantes dos filhos, os pais necessitam de autorização judicial para alienar bens (art. 1889º, nº 1, al. a) do Código Civil).

Nos termos do art. 2º, nº 1, al. b) do DL nº 272/2001, de 13.10, são da competência exclusiva do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de autorização para a prática de actos pelo representante legal do menor, quando legalmente exigida.

Essa competência só cessa, cabendo ao Tribunal, “quando esteja em causa autorização para outorgarem partilha extrajudicial e o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, sendo necessário nomear curador especial, bem como nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de acompanhamento” – cfr. art. 2º, nº 2, al. b) do referido diploma.

Ora, não se verifica no caso concreto nenhuma das descritas situações excluídas do âmbito da competência do Ministério Público, não estando designadamente em causa pedido dependente de processo de inventário.

Assim sendo, carece este Tribunal de competência, em razão da matéria, para apreciar a pretensão apresentada, devendo tal pedido ser dirigido ao Ministério Público nos termos do DL. nº 272/2001 de 13.10.

Pelo exposto, indefiro liminarmente o requerimento inicial.

Custas pelo requerente, cuja taxa de justiça de fixa em 1 UC (art. 527º, nº 1 do CPC e art. 7º, nº 3 do RCJ)».

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte da mãe do menor, cujas conclusões são as seguintes:

«A) A Recorrente, como representação legal do filho menor, veio pedir autorização para vender a quota-parte deste (1/4) no prédio identificado no artigo 4º da petição inicial, que foi objeto de partilha (entre a Progenitora e o filho) no Inventário n.º ... do então 2º Juízo do Tribunal Judicial de ..., como se refere no artigo 6º da P. I.;

B) Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 outubro, são da competência exclusiva do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de autorização para a prática de atos pelo representante legal do menor, quando legalmente exigida.

C) Porém, na alínea b) do n.º 2 do referido artigo 2.º, o legislador determinou que cessa a competência do Ministério Público, cabendo ao Tribunal Judicial decidir, nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário.

D) E o art.1014º, nº 4, do Código de Processo Civil dispõe que «o pedido é dependência do processo de inventário, quando o haja…».

E) Assim, da interpretação destes identificados normativos, não restam dúvidas que, havendo processo de Inventário, o Tribunal a quo é o competente para apreciar o pedido de autorização para venda instaurado pela Recorrente, por forma a assegurar a unidade jurisdicional.

F) E esta deve ser a interpretação e competência mesmo que o processo de Inventário já esteja findo, porque se o legislador pretendesse que a exclusão do Ministério Público abrangesse apenas os pedidos dependentes de processos de inventário ainda pendentes teria previsto expressamente essa situação na letra da lei.

G) Por isso, andou mal a douta decisão recorrida ao indeferir liminarmente o requerimento inicial da Recorrente, fazendo uma errada interpretação e aplicação das disposições contidas nos artigos 2º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 272/2001, de 13 de outubro, e 1014º, nº 4, do Código de Processo Civil, que violou.

Nestes termos e nos demais de direito, cujo douto suprimento se invoca, deve dar-se provimento ao presente recurso, e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e proferir-se outra que julgue o Juízo Local Cível de ... competente em razão da matéria para decidir a pretensão da Recorrente (pedido de autorização para a venda de imóvel), por ser da Lei e de Justiça»

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

A questão colocada pelo recurso consiste em saber se compete ao tribunal ou ao Ministério Público autorizar a venda da quota parte de que o menor é titular relativamente à propriedade do imóvel que adquiriu no processo de inventário.

III. Fundamentação

a) Matéria processual a considerar

A matéria a apreciar é a que resulta do relatório que antecede.

Acrescenta-se aqui o teor dos artigos 5.º e 6.º da petição inicial, ou seja:

«5.º Este prédio fora doado pelos pais da Requerente, ..., à própria e ao seu futuro marido J..., ambos ainda no estado de solteiros, por escritura celebrada no dia 10/04/2007 (doc.7).

6.º Por óbito do comproprietário e donatário J... a sua metade do prédio (pois a outra metade era bem próprio da Requerente) foi objeto de partilha no processo de Inventário n.º ... que correu termos no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ... (Autos Principais), vindo a ser adjudicada à Requerente e ao Filho, na proporção de metade para cada interessado, conforme inscrição pela AP. 664 de 2020/10/13 à dita descrição predial ..., por dissolução da comunhão conjugal e partilha da herança (doc.5)».

b) Apreciação da questão objeto do recurso

Vejamos então se compete ao tribunal ou ao Ministério Público autorizar a venda da quota parte do direito de propriedade sobre o imóvel da qual o menor é titular e que adquiriu no processo de inventário n.º ..., o qual correu termos no então 2.º Juízo do Tribunal Judicial de ...

A resposta é no sentido dessa competência residir no tribunal de comarca, pelas seguintes razões:

(I) - No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro (Processos da competência do Ministério Público e das Conservatórias de Registo Civil), justificou-se a transferência de competência dos tribunais para o Ministério Público, nos seguintes termos:

«Colocar a justiça ao serviço da cidadania é um dos objectivos estratégicos fundamentais assumidos pelo Governo nesta área, concretizado nomeadamente na tutela do direito a uma decisão em tempo útil. Neste sentido, importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciem verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efectivamente a uma reserva de intervenção judicial.

Assim, aproxima-se a regulação de determinados interesses do seu titular, privilegiando-se o acordo como forma de solução e salvaguardando-se simultaneamente o acesso à via judicial nos casos em que não seja possível obter uma composição pelas próprias partes.

Nestes termos, procede o presente diploma à transferência da competência decisória em processos cujo principal rácio é a tutela dos interesses dos incapazes ou ausentes, do tribunal para o Ministério Público, estatutariamente vocacionado para a tutela deste tipo de interesses, sendo este o caso das acções de suprimento do consentimento dos representantes, de autorização para a prática de actos, bem como a confirmação de actos em caso de inexistência de autorização».

Nesta conformidade, o artigo 2.º do diploma assumiu esta redação:

«São da competência exclusiva do Ministério Público as decisões relativas a pedidos de:

a) Suprimento do consentimento, sendo a causa de pedir a menoridade, o acompanhamento ou a ausência da pessoa;

b) Autorização para a prática de atos pelo representante legal do menor ou do acompanhado, quando legalmente exigida;

c) Autorização para a alienação ou oneração de bens do ausente, quando tenha sido deferida a curadoria provisória ou definitiva;

d) Confirmação de atos praticados pelo representante do menor ou do acompanhado sem a necessária autorização.

2 - O disposto no número anterior não se aplica:

a) Às situações previstas na alínea a), quando o conservador de registo civil detenha a competência prevista na alínea a) do artigo 1604.º do Código Civil;

b) Às situações previstas na alínea b), quando esteja em causa autorização para outorgarem partilha extrajudicial e o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, sendo necessário nomear curador especial, bem como nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de acompanhamento».

(II) - Verifica-se, porém, que o legislador manteve nos tribunais a competência quanto a essa autorização nos casos em que o pedido de autorização em causa «é dependência do processo» de inventário ou de acompanhamento.

Esta redação, considerada na sua literalidade, pode suscitar alguma dificuldade de interpretação, mas o sentido da expressão «é dependência do processo» quer dizer que tal pedido é formulado por apenso ao processo de inventário ou de acompanhamento, consoante os casos.

No caso do inventário isso implica que o bem a respeito do qual se pede a autorização foi atribuído nesse processo ao incapaz.

À data da publicação do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro, a autorização em questão era pedida como dependência (apenso) do processo de inventário ou de interdição, por força do disposto no artigo 1439.º do Código de Processo Civil, cuja redação era a seguinte:

1 - Quando for necessário praticar actos cuja validade dependa de autorização judicial, esta será pedida pelo representante legal do incapaz.

2 - Será citado para contestar, além do Ministério Público, o parente sucessível mais próximo do incapaz ou, havendo vários parentes no mesmo grau, o que for considerado mais idóneo.

3 - Haja ou não contestação, o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e de concluídas outras diligências necessárias, ouvindo o conselho de família, quando o seu parecer for obrigatório.

4 - O pedido é dependência do processo de inventário, quando o haja, ou do processo de interdição.

5 - É sempre admissível a cumulação dos pedidos de autorização para aceitar a herança deferida a incapaz, quando necessária, e de autorização para outorgar na respectiva partilha extrajudicial, em representação daquele; neste caso, o pedido de nomeação de curador especial, quando o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, é dependência do processo de autorização».

Com a publicação do novo Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), esta matéria passou a constar do artigo 1014.º com idêntico teor:

«1 - Quando for necessário praticar atos cuja eficácia ou validade dependa de autorização judicial, esta é pedida pelo representante legal do menor, pelo acompanhante do beneficiário ou, na falta deles, pelo Ministério Público.

2 - São citados para contestar, além do Ministério Público, o parente sucessível mais próximo do visado ou, havendo vários parentes do mesmo grau, o que for considerado mais idóneo.

3 - Haja ou não contestação, o juiz só decide depois de produzidas as provas que admitir e de concluídas outras diligências necessárias, ouvindo o conselho de família, quando o seu parecer for obrigatório.

4 - O pedido é dependência do processo de inventário, quando o haja, ou do processo de acompanhamento de maior.

5 - É sempre admissível a cumulação dos pedidos de autorização para aceitar a herança deferida a incapaz, quando necessária, e de autorização para outorgar na respetiva partilha extrajudicial, em representação daquele; neste caso, o pedido de nomeação de curador especial, quando o representante legal concorra à sucessão com o seu representado, é dependência do processo de autorização».

Na situação que aqui interessa, verifica-se que o pedido de autorização foi formulado como dependência do processo de inventário, porquanto se alega que o bem a que respeita essa autorização foi atribuído ao menor no aludido processo de inventário.

Foi formulado de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 1014.º do Código de Processo Civil que acabou de ser reproduzido.

Nestes casos, como se disse acima, a competência não transitou para o Ministério Público, manteve-se nos tribunais.

Sobre esta problemática já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 18 de novembro de 2004 (Araújo Barros), proferido no processo identificado pelo n.º 04B3008, nestes termos:

«1. O artigo 1439º do Código de Processo Civil não foi revogado pelo Dec. Lei n.º 272/2001, mantendo-se, assim, em plena vigência.

2. O pedido de autorização para a prática de actos pelo representante legal do incapaz, quando legalmente exigida, é dependência de processo de interdição anterior, pelo que a sua apreciação se integra na jurisdição dos tribunais judiciais» (sumário, in www.dgsi.pt).

Justificou-se este entendimento no acórdão, nos seguintes termos:

«Porém, naturalmente para salvaguardar a unidade jurisdicional - assegurar a intervenção de magistrado judicial nas situações em que anteriormente já tomara posição, nomeadamente no respeitante à definição da incapacidade ou à partilha de herança a que concorrera algum incapaz ou ausente - não deixou o legislador de, no mesmo art. 2.º, n.º 2, esclarecer que "o disposto no número anterior não se aplica (...) às situações previstas na alínea b), quando esteja em causa autorização para outorgarem partilha extrajudicial e o representante concorra à sucessão com o seu representado, sendo necessário nomear um curador especial, bem como nos casos em que o pedido de autorização seja dependente de processo de inventário ou de interdição".

E foi nesta lógica de continuidade de intervenção do juiz da causa (aquele que interviera no processo de inventário ou de interdição), consequentemente de sujeição daqueles casos excepcionais à jurisdição dos tribunais, que o art. 21.º, al. b), do citado Dec. Lei n.º 272/2001, ao contrário do que fez relativamente aos artigos 1423.º e 1446.º do C.Proc.Civil, não revogou o disposto no art. 1439.º, que assim se mantém em plena vigência.

Desta forma, mantendo-se ainda em vigor o art. 1439.º do C.Proc.Civil, sobretudo na medida em que determina que o pedido é dependente do processo de interdição, não pode hesitar-se acerca da detenção pelos tribunais da jurisdição para apreciar tais processos, neles administrando, como constitucionalmente previsto, a desejada justiça».

Mais tarde, o mesmo Tribunal reafirmou este entendimento no acórdão de 9 de julho de 2014, no processo n.º 1129/07.0TBAGH-A.L1.S1 (Gregório Silva Jesus):

«…II - Compete ao tribunal judicial e não ao MP a competência para decidir da autorização a dar ao representante legal de incapaz para praticar acto que legalmente dependa dessa autorização, desde que corra por apenso ao processo que decreta a incapacidade, mesmo estando este findo».

Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso procedente e revogar a decisão recorrida para que o pedido prossiga.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida com vista ao prosseguimento do processo.

Custas por quem as suportar no final.


Coimbra, 11 de maio de 2021