Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
429/20.8JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLAÇÃO
ACTOS SEXUAIS COM ADOLESCENTES
DECLARAÇÕES DE MENOR
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VALORAÇÃO
REINQUIRIÇÃO DA VÍTIMA EM AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 171.º, 164.º E 173.º, DO CP; ART. 271.º DO CPP
Sumário: I - Em qualquer processo judicial, os julgadores dificilmente conseguem tomar uma decisão sem serem influenciados por pistas que os ajudam a organizar e a simplificar essa mesma informação (procurando tomar decisões com base numa quantidade menor de informação), sendo essa tendência tanto maior quanto maiores as pressões externas para que essas decisões sejam tomadas de uma forma rápida, ou quanto maior a incerteza.

II - Estas pistas são designadas por heurísticas e são habitualmente usadas de uma forma automática ou inconsciente - apesar de terem como função ajudar a organizar e a simplificar a informação, tornam os processos de tomada de decisão menos fidedignos e, nesse sentido, com uma maior probabilidade de incluir erros ou enviesamentos.

III - Como tal, terá de haver uma análise muito cuidada e profunda do caso concreto a fim de se evitarem tais enviesamentos que podem turbar a convicção criada.

IV - Em delitos sexuais em que são vítimas crianças, é normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.

V - Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham imprecisões, contradições, omissões e inconsistências, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.

VI - De tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu.

VII - É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso, tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central.

VII - Para efeitos do artigo 173º do CP, a inexperiência da vítima pode ser motivada por uma forçada e tenebrosa experiência movida pelo medo, pela intimidação e pelo receio de desagradar a alguém a quem se está ligada emocionalmente.

IX - Nesse sentido, há também imaturidade – além de impossibilidade física - nessa decisão de não se conseguir dizer não ao agressor, sendo determinante para a actuação dolosa do agente o abuso dessa inexperiência da sua vítima assim concebida e conseguida e que lhe vai garantir a desejada e desejável menor força de resistência por parte dela aos seus avanços sexuais.

X - Se nas declarações da vítima para memória futura foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa, é de recusar uma reinquirição da vítima se o tribunal se aperceber que o recorrente apenas discorda da convicção dos julgadores no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela ofendida, tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos.

XI - A possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças.

XII - A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.

XIII - A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos considerados essenciais pelo foro.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
1. AS DECISÕES RECORRIDAS

1.1. No processo comum colectivo n.º 429/20.8JACBR do Juízo Central Criminal da Comarca de Viseu (Juiz 3), por acórdão datado de 3 de Dezembro de 2021, foi decidido: 
a)- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso real efectivo, de:
· 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal (CP), na pena individual de 2 (dois) anos de prisão;
· 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, nº2, do CP, na pena individual de 5 (cinco) anos de prisão;
· 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, vigente à data dos factos, e 177.º, nº 6, ambos do CP, na pena individual de 4 (quatro) anos de prisão;
· 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 173º, n.º 1 do CP, na pena individual de 9 (nove) meses de prisão;
· Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão condena-se o arguido na pena única de 12 (doze) anos de prisão efectiva.
b)- Arbitrar a título de indemnização civil à menor BB a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros) e consequentemente condenar o arguido/demandado a pagar-lhe esse montante.

1.2. Entretanto, e durante o julgamento, o arguido veio requerer a inquirição da ofendida BB em audiência de julgamento, muito embora ela tivesse prestado declarações para memória futura em 4.6.2020, nos termos do disposto no artigo 271º do Código de Processo Penal - sobre esse requerimento, veio o Colectivo, após deliberação, e por despacho datado de 7 de Outubro de 2021, decidido indeferir a requerida prestação de declarações da ofendida em sede de julgamento.

            2. OS RECURSOS
2.1. Inconformado, o arguido AA recorreu da decisão interlocutória de 7/10/2021 para esta Relação, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição sem bold ou sublinhados):

· «Desde junho de 2020 que se encontra em curso processo-crime contra AA, arguido que vem indiciado da alegada prática de 13 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, (até ao Verão de 2017), 6 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, (após o Verão de 2017 e até a alegada vítima atingir os 14 anos de idade) e 5 crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal (desde os 14 anos até ao dia da detenção), contra a sua sobrinha, BB.
· Desde o início da fase Inquérito até à presente fase de Julgamento em que o processo se encontra que o arguido colaborou com a Investigação, apesar de se sentir francamente intimidado pela própria condução da Investigação, vendo dificultado o exercício pleno do seu direito de defesa.
· Foi proferido Despacho de Acusação, sustentando a prática pelo arguido dos crimes de que vem indiciado, socorrendo-se dos seguintes meios de prova: (i) declarações para memória futura prestadas pela vítima, no dia 4.6.2020; (ii) cópia das mensagens trocadas entre a BB e a sua Professora, constante de fls. 93 verso-96; (iii) depoimento da vítima, constante de fls. 125-139; e (iv) documento escrito entregue pela ofendida ao Tribunal no dia 4.6.2020, constante de fls. 46-47.
· Contudo, da análise desses meios de prova, sobretudo do depoimento da vítima prestado perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, das declarações para memória futura, prestadas pela vítima perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, da correspondência eletrónica trocada com a Professora da disciplina de ... e do escrito de fls. 46-47, entregue ao Tribunal no dia 4.6.2020, resulta precisamente o oposto, sendo, por demais, manifestas as contradições em que incorre a vítima e que injustamente servem de fundamento à privação da liberdade do arguido.
· Contradições estas tão evidentes e inequívocas que em nada corroboram a veracidade e a credibilidade do seu depoimento, justificando, por isso, que a mesma venha a esclarecer a versão dos factos por si trazida aos Autos em sede de audiência de julgamento. Só, assim, se podendo alcançar a descoberta da verdade material.
· A vítima consegue apresentar versões completamente diferentes, num curtíssimo espaço de tempo... o que em nada a parece constranger..., sendo visível que, a partir da linguagem empregue pela mesma, nos escritos da sua autoria, ao contrário do arguido, a vítima é uma pessoa inteligente, dotada de um grau de instrução e erudição elevado.
· Conforme demonstrado, a vítima incorreu em graves e manifestas contradições, designadamente quanto (i) à possibilidade de ser virgem e nunca ter tido relações sexuais; (ii) à possibilidade de nunca ter tido qualquer namorado; (iii) à possibilidade de ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido, designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina; e (iv) à possibilidade de ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do tio, ora arguido.
· O arguido decidiu não requerer a abertura da fase de Instrução, por forma ao processo avançar para a fase de Julgamento, uma vez se encontrar privado da sua liberdade.
· Apresentou a sua Contestação, (i) alegando, em suma, não ter praticado os factos constantes da Acusação nem os crimes que lhe são imputados; (ii) salientando as evidentes, inequívocas e manifestas contradições em que a ofendida incorre ao longo de todo processo, quanto aos factos denunciados e factos da sua vida pessoal com relevância para os presentes Autos; (iii) denunciando todo o circunstancialismo ocorrido desde a sua detenção pela Polícia Judiciária até à fase em que os Autos se encontravam, alertando para o evidente e ilegítimo coartar do seus direito e garantias de defesa; (iv) apresentando os seus meios de prova, requerendo prova pericial, nomeadamente perícia médico-legal psiquiátrica e à personalidade da ofendida, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, e apresentando o respetivo rol de testemunhas.
· Neste último âmbito, solicitou a inquirição da ofendida como testemunha ou, para a eventualidade de o Tribunal assim não o entender, a sua inquirição como ofendida sobre toda a matéria constante do Despacho de Acusação e da Contestação.
· No dia 10.11.2020, foi proferido Despacho, admitindo a contestação e o rol de testemunhas apresentado, tendo a digna Magistrada do Ministério Público, em 12.11.2020, se pronunciado no sentido de nada ter a opor quanto à realização das perícias requeridas, mas no sentido de ser de indeferir a audição da ofendida, por não se verificar o condicionalismo previsto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP.
· Segundo o preceito invocado, “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores (declarações para memória futura, acrescentado nosso) não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”.
  • Os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento não conseguiram esclarecer as discrepâncias e contradições presentes na versão dos factos trazida aos Autos pela ofendida.
  • Como tal, por ser absolutamente crucial ao apuramento da verdade material, em 4.6.2020, o arguido requereu na sessão da audiência de julgamento do dia 13.7.2021 a inquirição da ofendida BB em sede de audiência de julgamento, à luz do disposto nos artigos 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP, com fundamento na imprescindibilidade da sua realização, tendo em conta a descoberta da verdade material, a qual só dessa forma poderá ser esclarecida, reiterando-o no seu requerimento do dia 23.7.2021, com a referência ....
· No entanto, por Despacho de 7.10.2021, o Tribunal entendeu ser de indeferir tal pretensão, com fundamento, em suma, nos seguintes pressupostos de facto e de direito: (i) a BB ser uma vítima especialmente vulnerável; (ii) na natureza das declarações para memória futura, tendo em vista a proteção da vítima de crimes sexuais; e (iii) no carácter excecional da repetição da tomada de declarações em sede de audiência de julgamento, após prestação de declarações para memória futura.
  • Fazendo crer que o confronto entre o direito fundamental da vítima de alegados abusos sexuais à reserva da sua privacidade/não exposição, protegido pelo instituto das declarações para memória futura, e o direito fundamental do arguido à sua defesa se encontra facilmente dirimido pelas disposições legais invocadas, quando, na verdade, a Lei Fundamental Portuguesa resolve esse conflito a favor do arguido, segundo a máxima estruturante do processo penal do in dúbio pro réu e da presunção de inocência. Tal Despacho viola, por isso, o disposto nos artigos 32.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP. Razão pela qual o arguido, não se conformando com o teor de tal de Despacho, interpôs o presente Recurso.
  • No decurso dos presentes Autos, verificaram-se várias situações de violação do direito e garantias de defesa do arguido, designadamente (i) no momento da sua detenção, (ii) no momento subsequente à sua detenção, quanto (iii) à proibição de contactar a sua família e à irregular constituição de Advogado, (iv) ao exercício de coação sobre o arguido, (v) à condução do seu interrogatório em sede de audiência de julgamento e (vi) ao indeferimento da prestação de declarações por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento.
  • Quanto ao momento da sua detenção, AA foi procurado na sua residência e no seu local de trabalho, por agentes da Polícia Judiciária, supostamente com a finalidade de os ajudar a identificar uma viatura, no posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) de ... O arguido acompanhou-os voluntariamente. Contudo, nessa mesma tarde, prestou declarações perante os órgãos de polícia criminal, tendo sido constituído arguido e detido à ordem dos presentes Autos, bem como, inclusive, transferido para o Estabelecimento Prisional ....
  • A sua família inicialmente não foi sequer informada da sua detenção, muito menos da circunstância de ter sido interrogado e, posteriormente, levado para o Estabelecimento Prisional ..., apesar do arguido ter insistido, por diversas vezes, contactar a sua família, por forma a estabelecer ligação com o Advogado da sua confiança, que já o havia representado anteriormente noutros processos judiciais de natureza cível. Solicitação esta que lhe foi sempre negada.
  • Do Auto de interrogatório de 3.6.2020, lavrado pelos agentes da Polícia Judiciária, consta que o arguido, mesmo antes de ser interrogado pelos mesmos, foi informado do direito que lhe assiste em constituir advogado, constando que o mesmo prescindiu da nomeação de defensor. Segundo o mesmo Auto, ao arguido não lhe foi sequer permitido contactar os seus familiares, antes de constar que o mesmo prescindiu de advogado, nem sequer lhe haviam sido comunicados quais os factos que contra o mesmo eram denunciados.
  • Conforme certidão constante de fls. 17 dos Autos, consta que foi detida a pessoa indicada no mandato que antecede, o arguido aqui recorrente, constando a assinatura do arguido e do Sr. Inspetor da Polícia Judiciária. Sendo elaborada uma cota, referindo que “Nos termos do art.º 260º, com referência ao art.º 194º 10, do C. P. P., foi informada do direito de comunicar a sua detenção a pessoa da sua confiança, não o desejando fazer”. Cota essa que não foi sequer assinada pelo Sr. Inspetor…, tal como não poderia deixar de ser uma vez que ao arguido recorrente não lhe foi permitido contactar sequer os seus familiares.
  • Assim sendo, durante o período que mediou a sua detenção e a sua presença perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal para ser interrogado em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido insistiu, por diversas vezes, em contactar a sua família, por forma a estabelecer contacto com o Advogado da sua confiança, que já o tinha acompanhado noutros processos, solicitação que lhe foi sempre negada.
  • No âmbito desse interrogatório, a sua defesa foi assegurada por Defensora Oficiosa, nomeada pelo Tribunal... não obstante o arguido ter o direito de escolher livremente o seu defensor. Defensora Oficiosa essa... com quem nunca contactou previamente à realização de tal diligência. Como tal, não tendo conhecimento da gravidade dos factos que lhe eram imputados, o arguido não foi devidamente informado sobre a gravidade dos mesmos, para que pudesse recorrer a advogado à sua escolha, nem para o efeito lhe foi permitido contactar quaisquer familiares. A Defensora Oficiosa não teve qualquer intervenção útil relativamente à aplicação da medida de coação de prisão domiciliária, nem tão pouco esclareceu o arguido sobre os factos que lhe eram imputados, de modo a que este pudesse conhecer a gravidade dos mesmos e se pudesse defender adequadamente.
  • Obviamente que o arguido tem direito a ser informado dos factos que lhe são imputados, antes de prestar quaisquer declarações, sendo esta uma garantia do direito de defesa mínima e básica.
  • Por outro lado, durante o período que mediou a sua detenção até à realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi-lhe sempre aconselhado e referido pelos órgãos de polícia criminal que o melhor para si seria confessar parte dos factos, cuja prática vem indiciada nos presentes Autos, por forma a alcançar qualquer tipo de acordo mais favorável e ser mais rapidamente colocado em liberdade..., tendo, inclusive, à revelia de qualquer possibilidade de ser aconselhado plena, devida e esclarecidamente por Defensor, sido aconselhado a prestar declarações nesse mesmo sentido perante a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
  • Mais grave ainda, após lhe ter sido comunicado, por esses mesmos órgãos de polícia criminal, de que existiriam provas concretas contra si, designadamente amostras do seu ADN e provas concretas de que a alegada vítima dos crimes perpetrados pelo arguido tinha sofrido um aborto, decorrente de uma gravidez provocada pelos atos alegadamente infligidos pelo arguido contra a mesma..., o que era e é absolutamente falso!
·    Foi-lhe apresentada uma versão distorcida dos Autos, com o objetivo de amedrontar, intimidar e pressionar o arguido, bem sabendo os órgãos de polícia criminal que o arguido é agricultor de profissão e apenas completou o ensino primário, possuindo um nível de instrução francamente reduzido, muito básico, que o impede de compreender a informação que lhe é transmitida pela Investigação, bem como de exercer livre e conscientemente o seu direito ao contraditório. Bem sabendo a Investigação que o arguido tem o direito a ser assistido devida e plenamente, em tempo útil e adequado à preparação da sua defesa, por defensor livremente escolhido por si que o pudesse elucidar do teor do processo e garantir os seus direitos decorrentes do estatuto de arguido, os quais resultam expressamente do CPP e da Lei Fundamental. Para além de tal conduta dos órgãos de polícia criminal configurar eventual exercício de coação, constitui também violação do princípio da lealdade processual. O que deve chocar toda a consciência ético-jurídica.
  • Em sede de audiência de julgamento, aquando da condução do interrogatório do arguido, a instâncias do Ex.mo Magistrado que compõe o Tribunal Coletivo, não foi observado o direito à não autoincriminação conhecido como princípio nemo tenetur, que é igualmente uma das garantidas de defesa consagradas na CRP. Conforme referenciado no Código de Processo Penal, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito ..., p. 859, “se o arguido prestar declarações, o Tribunal tem o dever de o ouvir serenamente sem manifestar pré-juízos sobre a culpa do arguido”.
  • Quanto às declarações, deste modo, prestadas pelo arguido, e que o poderão incriminar relativamente a certos factos, cumpre dizer que deve ter-se em conta a explicação que o mesmo fez em Tribunal, acerca do modo, como e em que termos foi aliciado pela Polícia Judiciária para inicialmente as prestar e como tal influenciou o seu conteúdo, bem como de manter parte delas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, sem aconselhamento prévio de Advogado.
  • Conforme escreve Enrico Altavilla, Psicológica Judiciária, vol. II, p. 76, “Certos indivíduos tímidos, emocionáveis, sugestionáveis, confusos não podem resistir por muito tempo a um interrogatório inquisitório cheio de perguntas sugestivas de dilemas angustiosos, de exortações a uma confissão completa, lisonja e de intimidações. Depois de haver cedido uma primeira vez acerca de um pormenor, cujo alcance não desconfiava, por confusão, por fraqueza, em virtude da sua impulsividade emotiva, por erro de cálculo de defesa, estes indivíduos acabam por confessar o crime de que lhe é atribuído, com todos os pormenores que lhe são sugeridos, e até com outros inventados, que oportunamente são, com facilidade, desmentidos pela instrução.”.
  • O que sucedeu não só no âmbito das declarações prestadas perante os órgãos de polícia criminal, mas também perante o Tribunal Coletivo, em sede de audiência de julgamento, em que se sentiu bastante confuso, amedrontado e pressionada, ao prestá-las, sem o discernimento necessário para se aperceber das consequências do que estava a declarar.
  • Pelo que as declarações prestadas pelo arguido não poderão classificar-se como confissão sem reserva, à luz do disposto no artigo 344.º do CPP, devendo enquadrar-se, antes, no âmbito do disposto no artigo 343.º, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
  • Posteriormente, o indeferimento da prestação de declarações pela ofendida em sede de audiência de julgamento, com fundamento na anterior prestação de declarações para memória futura, constitui mais uma forma de coartar o direito de defesa do arguido, porquanto as declarações prestadas pela mesma nesse âmbito são, em si mesmas, manifestamente contraditórias, e constituem o único fundamento para a imputação dos crimes de que o arguido vem acusado e consequente privação da liberdade.
·    O arguido requereu a inquirição da ofendida BB, como testemunha, por forma a esclarecer factos necessários à defesa do arguido, dadas as contradições em que esta incorreu ao longo das suas declarações, tal como consta de várias peças do processo.
·    Do Relatório sobre a avaliação psicológica consta que a “avaliação psicológica não permite concluir com certeza pela prática dos factos imputados ao arguido”. Consta igualmente que “a jovem respondeu a todas as perguntas que lhe foram circunstanciadas, demonstrando alguma desejabilidade social, com perfeita perceção do que é correto ou incorreto, do que é socialmente aceite e do que não é, revelando desonestidade, ou seja, a jovem respondeu tendo em conta o que considera que os outros gostariam que ela respondesse”. E ainda que “À data da perícia não parecem existir queixas/sintomas compatíveis com perturbação emocional, mantendo a BB um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida, pelo que não apresenta consequências físicas e psicológicas para valorizar”(sublinhado nosso).
·    O fundamento do indeferimento da audição da BB cingiu-se essencialmente aos superiores interesses da criança. Contudo, o arguido não se pode conformar com tal decisão, desde logo, porque a ofendida tem 17 anos, sendo, inclusive, responsável criminalmente e, conforme consta dos presentes Autos, a ofendida revela ter uma personalidade firme e esclarecida, não se sentindo minimamente importunada com o teor destes Autos.
·   Assim sendo, como é possível com tais factos poder falar-se de uma criança, com estatuto de vítima especialmente vulnerável... e não permitir que a prova seja produzida em sede de audiência de julgamento, por forma a acautelar o cabal exercício do direito de defesa do arguido e a aplicar-se o princípio do in dúbio pro réu?
·   Em face das declarações, orais e escritas, prestadas pela ofendida, ao longo de todo o processo, o arguido entende existir uma dúvida objetivamente razoável sobre o conteúdo de tais declarações, atenta as manifestas contradições em que incorre.
·    Como tal, entende ser indispensável à descoberta da verdade material, que a ofendida seja presente ao Tribunal Coletivo para, em sede de audiência de julgamento, esclarecer todas as situações que a mesma, com manifestas contradições, relatou junto da Polícia Judiciária, nas declarações para memória futura perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no seu papel quadriculado, na correspondência eletrónica trocada com a sua Professora... por forma a que tal prova produzida, de cariz bastante dúbio, seja sujeito a um duplo grau de apreciação, agora pelos Juízes do Julgamento, de acordo com as regras da experiência e fazendo jus ao princípio da livre apreciação da prova... Sem esquecer, claro, que a admissão de tal diligência é a que melhor se coaduna com o princípio do in dúbio pro réu… e com o princípio da descoberta da verdade material!
· Existindo dúvidas objetivamente credíveis e razoáveis…. a Constituição da República Portuguesa impõe que se decida não só a título definitivo, mas também ao longo de todas as diligências de aquisição dinâmica de prova, a favor do arguido, a favor da sua inocência. É, assim, e assente nestes moldes, que o processo penal português se encontra estruturado!
·    Segundo o disposto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP, a repetição das declarações prestadas (em sede de declarações para memória futura, na fase de Inquérito) no contexto de audiência de julgamento poderá justificar-se, caso tal diligência se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade, e desde que a vítima possua condição de saúde física e psíquica que o permita, como é o caso dos presentes Autos.
  • Revelando-se a realização de tal diligência indispensável ao esclarecimento da verdade, verifica-se que o legislador processual penal português, em consonância com a Lei Fundamental, quis proteger o direito e garantias de defesa do arguido, acusado da prática de tais crimes, designadamente a presunção da sua inocência e a condução do processo judicial segundo a máxima do in dúbio pro réu. Pelo que, em caso de dúvida objetivamente fundada sobre o material probatório que serve de fundamento à privação da liberdade do arguido e, eventualmente, à sua futura condenação, a ordem jurídica portuguesa impõe que se decida, quer em sede de decisão final, quer em sede de tomada de decisões quanto à eventual realização de diligências dinâmicas de aquisição de prova, a favor do arguido.
  • Mais: conforme Auto de declarações para memória futura, da ofendida BB, do dia 4.6.2020, constante de fls. 48 e 49 dos Autos, tais declarações foram prestadas no dia anterior ao primeiro interrogatório do arguido, sendo que este não esteve presente no Tribunal Judicial de Viseu, local onde as mesmas foram prestadas, mas sim nas instalações da Polícia Judiciária de Coimbra, não tendo sido concedida ao arguido sequer a possibilidade de conferenciar com a Defensora Oficiosa que lhe havia sido nomeada (sem que dessa nomeação lhe tenha sido dado prévio conhecimento no momento...), nem antes nem depois dessa tomada de declarações para memória futura da ofendida BB. Ficando o arguido prejudicado seriamente no seu direito de defesa e no exercício do seu direito de contraditório, já que a Defensora nomeada não falou sequer com o arguido antes do depoimento da ofendida, nem foi possuidora de elementos para contraditar o mesmo.
  • No caso dos presentes Autos, a dúvida objetivamente fundada, que justifica a prestação de declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, cinge-se às graves e manifestas contradições em que esta incorreu, ao longo de todo o processo, na prestação de declarações, orais e escritas, designadamente quanto às possibilidades de (i) ser virgem e nunca ter tido relações sexuais; (ii) nunca ter tido qualquer namorado; (iii) ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido, designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina; e (iv) ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do tio, ora arguido.
  • Quanto à primeira contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos artigos 109 a 120 da motivação do presente Recurso.
  • Da correspondência eletrónica trocada entre a vítima e a sua Professora da disciplina de ... resulta que a vítima admitiu não ser virgem, admitiu ter tido relações sexuais com o seu namorado e, inclusive, admitiu e equacionou a possibilidade de poder estar grávida. No entanto, das declarações prestadas pela vítima perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, resulta que a vítima afirmou ter tido pela primeira vez relações sexuais com o seu tio AA, no verão de 2017.
  • Mais: no âmbito das declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a vítima afirmou ter um namorado, mas nunca ter tido qualquer tipo de relacionamento sexual nem com ele, nem com nenhum rapaz ou qualquer outra pessoa.
·    Quanto à segunda contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos artigos 121 a 134 da motivação do presente Recurso.
  • Da correspondência eletrónica trocada entre a vítima e sua Professora da disciplina de ... resulta que a vítima admitiu expressamente ter tido diferentes namorados, mais velhos, com quem se relacionou sexualmente.
  •  No âmbito das declarações prestadas pela vítima perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, resulta que a mesma assumiu ter uma relação de namoro que se iniciou em outubro de 2019, com um rapaz com quem se relacionou sexualmente.
  •  No entanto, no âmbito das declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a vítima apenas afirmou ter um namorado, negando, no entanto, ter tido qualquer tipo de relacionamento sexual com o mesmo ou com qualquer outra pessoa.
  •                Quanto à terceira contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos artigos 135 a 151 da motivação do presente Recurso.
  •                 No âmbito das declarações para memória futura, prestadas pela vítima perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a mesma relatou um alegado episódio de abuso sexual perpetrado pelo seu tio, ora arguido, contra a sua vontade.
  • A vítima admitiu ter sido essa a primeira vez que o arguido lhe fez sexo oral e lhe introduziu os dedos na vagina. No entanto, a vítima acaba por dizer não ter a certeza do que alegou, nem sequer que o arguido tenha introduzido o pénis na sua vagina, porquanto a vítima adormeceu aquando dos tais supostos e alegados acontecimentos... conforme, inclusive, a vítima relatou no escrito entregue ao Tribunal, constante de fls. 46-47.
  • O que é manifestamente contrário às regras da experiência comum para quem, sendo menor, se encontra a ser violentado por outrem através da prática de atos sexuais contra a sua vontade. Contradições igualmente evidenciadas pela Meritíssima Juíza de Instrução Criminal.
·                Quanto à quarta contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos artigos 152 a 161 da motivação do presente Recurso.
  • Resulta expressamente dos Autos que a vítima não teme o arguido, seu tio, nem sequer repudia a sua presença, ou manifesta qualquer trauma emocional ou qualquer necessidade de isolamento e distanciamento do mesmo, bem pelo contrário. Mesmo após relatar a prática dos supostos atos sexuais que falsamente pretende fazer crer que o arguido adotou contra a sua vontade. O que se afigura também contrário às regras da experiência comum, no âmbito deste tipo de processos-crime de natureza tão delicada e sensível.
  • À luz do disposto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP, justifica-se o deferimento da prestação de declarações, por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento, porquanto (i) a realização de tal diligência se revela manifestamente indispensável à descoberta da verdade material, sendo a que melhor se coaduna com o princípio do in dúbio pro réu, bem como com a observância do direito e garantias de defesa do arguido, como (ii) a condição de saúde física e mental da vítima assim o permite, em conformidade com os relatórios das perícias médico-legais a que foi sujeita.
  •  Tendo ficado, por demais, demonstradas as graves e manifestas contradições em que a ofendida incorre nas suas declarações, orais e escritas, e que continuam a servir de fundamento à privação da liberdade do arguido e à sua eventual futura condenação... existe uma dúvida objetivamente fundada sobre se a ofendida se encontra a dizer a verdade e, como tal, uma dúvida objetivamente fundada sobre a alegada prática pelo arguido dos crimes de que vem acusado.
  •                 Como tal, o esclarecimento cabal e a descoberta da verdade material impõem-se como condição indispensável à realização de um processo penal justo e equitativo, cuja Lei Fundamental prevê que se deva nortear pela máxima da presunção de inocência e do princípio do in dúbio pro réu.
  • Assim, em caso de dúvida objetivamente fundada, e, neste caso concreto, criada pela contradição das declarações prestadas pela ofendida, a ordem jurídica portuguesa resolve tal conflito a favor do arguido, exigindo a tomada de declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, com vista ao apuramento cabal da verdade material e à não condenação injusta e injustificada do arguido, na maior pena que em Portugal pode ser aplicada: a privação total da liberdade, por longo período de tempo.
  • Pelo que, por todo o exposto, a prestação de declarações por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento, revela-se indispensável à descoberta da verdade e, de modo nenhum, é suscetível de colocar em causa a saúda física ou psíquica da vítima, porquanto segundo as perícias médico-legais realizadas, a vítima BB, encontra-se em perfeito estado de saúde, físico e mental, não revelando qualquer trauma ou patologia.
  • Segundo o Relatório de Avaliação Psicológica, realizado à ofendida, por parte do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade de ...do Centro Hospitalar .../... E. P. E., no dia 26.3.2021, pode ler-se: (i) “(...) não foi aparente a existência de psicopatologia ou problemas de memória” (fl. 17); (ii) “A BB tem capacidade de conservar em memória e reproduzir acontecimentos que presenciou, tendo um bom nível cognitivo, pelo que é capaz de testemunhar acerca das suas vivências” (fls. 17-18); (iii)“(...) não foi aparente a existência de psicopatologia e a BB mantem um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida.” (fl. 18).
  • Ainda segundo a Avaliação Psicológica Forense, a fls. 1-2: “No Inventário de Personalidade de Eysenck-Forma Revista (EPQ-R), inventário que mede as dimensões do temperamento/personalidade, os resultados demonstram que a jovem respondeu de acordo com o que é socialmente correto/aceite, não sendo honesta na avaliação, pelo que não se pode interpretar o perfil obtido. Com este perfil de resposta, pode referir-se que a jovem consegue ter a perceção do que é correto/incorreto socialmente, demonstrando alguma desejabilidade social, ou seja, respondeu tendo em conta o que considera que os outros gostariam que respondesse.”.
  • Pelo que não existe qualquer obstáculo do ponto de vista psicológico e/ou físico que impeça a ofendida de prestar depoimento em audiência de julgamento, não sendo colocada em causa a sua saúde física ou psíquica, até porque a mesma já tem 17 anos, sendo, inclusive, criminalmente responsável... só assim se assegurando devidamente o direito e todas as garantias de defesa do arguido, bem como a descoberta da verdade material!
  • Pelo que o Tribunal ao indeferir a prestação do depoimento da ofendida BB, em sede audiência de julgamento, violou as garantias de defesa do arguido, aqui recorrente, previstas na CRP, nomeadamente no seu artigo 32.º e, ainda, o disposto nos artigos 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP.
  • Devendo, por isso, revogar-se o Despacho recorrido, ordenando-se a prestação do depoimento da ofendida BB, em sede audiência de julgamento, com todas as consequências legais».


2.2. Inconformado, o arguido AA recorreu do ACÓRDÃO CONDENATÓRIO de 3/12/2021 para esta Relação, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição sem bold e sublinhados e com algumas correcções básicas de ortografia):

I. «Nomomentodeinterposição do presente RECURSO, por DESPACHO de15.11.2021, com a referência ..., foi admitido e encontra-se pendente outro RECURSO, interposto pelo arguido em 10.11.2021, para o TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, relativo ao DESPACHO de 7.10.2021, com a referência ..., que procedeu ao indeferimento da prestação de declarações, pela ofendida, em sede de audiência de discussão e julgamento, em cuja decisão o arguido mantém interesse, com relevância para a decisão dos presentes Autos, dando-se, aqui, por reproduzida, toda a matéria de facto invocada, respetiva fundamentação e conclusões, à luz do princípio da economia processual, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 5, do CPP.
II. O presente RECURSO tem como objeto a impugnação dos fundamentos de facto e de direito constantes da sentença proferida a 3.12.2021, a qual procedeu à condenação do arguido na pena única de 12 (doze) anos de prisão efetiva, bem como no pagamento da quantia de 30.000,00 euros, a título de indemnização civil, à ofendida BB, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 399.º, 401.º, n.º 1, alíneas b) e c), 402.º, n.º 1, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, n.º 1, alínea a), 410.º, n.ºs 1 e 2, 411.º, n.º s 1, alínea b), e 3, e 412.º, n.ºs 1, 2 e 3, 425.º, 426.º, n.º 1, 428.º, 430.º e 431.º ambos do Código de Processo Penal (doravante CPP).
III. Assim, o presente RECURSO tem como objeto a impugnação dos fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida, quer relativamente à matéria penal, quer em relação à matéria de responsabilidade civil.
IV.A particularidade do circunstancialismo dos presentes Autos impõe que se faça uma sucessão cronológica dos principais momentos processuais respeitantes à situação processual do arguido, em face dos fundamentos de facto e de direito que serviram de base à sua condenação.
V. Desde junho de 2020 que se encontra em curso processo-crime contra AA, ora arguido, o qual vem indiciado e foi condenado pela sentença recorrida pela alegada prática de crimes de natureza sexual contra a sua sobrinha BB, ora ofendida.
VI. Em 3.6.2020, AA prestou declarações peranteórgãos depolícia criminal, tendo sido constituído arguido e detido à ordem dos presentes Autos.
VII. Em 5.6.2020, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos do artigo 141.º do CPP, findo o qual lhe foi aplicada amais gravosa medida de coação privativa da liberdade: a prisão preventiva.
VIII. Desde o início da fase Inquérito até à fase de Julgamento, o arguido procurou sempre colaborar com as Autoridades Judiciárias, apesar de se sentir francamente intimidado pela própria condução da investigação, vendo dificultado o exercício pleno do seu direito de defesa, conforme melhor se verá infra.
IX. Em 4.6.2020, a ofendida prestou declarações para memória futura, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 271.º do CPP,
X. Tendo a ofendida entregue o escrito de fls. 46-47 à Sra. Juíza de Instrução, cujo conteúdo relevantíssimo se dá aqui por reproduzido.
XI. Conforme Auto de declarações para memória futura, constante de fls. 48 a 49, tais declarações foram prestadas no dia anterior ao primeiro interrogatório do arguido, sendo que este não esteve presente no Tribunal Judicial ..., local onde as mesmas foram prestadas, mas sim nas instalações da Polícia Judiciária ...,
                XII. Não tendo sido concedida ao arguido sequer a possibilidade de conferenciar com a Defensora Oficiosa que lhe havia sido nomeada (sem que dessa nomeação lhe tenha sido dado prévio conhecimento no momento...), nem antes nem depois dessa tomada de declarações para memória futura da ofendida BB,
XIII. Ficando o arguido prejudicado seriamente no seu direito de defesa e no exercício do seu direito de contraditório, já que a Defensora nomeada não falou sequer com o arguido antes do depoimento da ofendida, nem foi possuidora de elementos para contraditar o mesmo.
XIV. No dia 1.9.2020, foi proferido Despacho de Acusação, imputando-se ao arguido a prática dos seguintes crimes: (i) 13 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP (“até ao Verão de 2017”); (ii) 6 crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP (“após o Verão de 2017 e até a BB atingir os 14 anos de idade”; (iii) 5 crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, e 177.º, n.º 6, do CP (“desde os 14 anos até ao dia da detenção 3.6.2020”).
                XV. Para tanto, a Investigação socorreu-se dos seguintes meios de prova para dar como provada a existência de fortes indícios da prática desses crimes: (i) declarações para memória futura prestadas pela vítima, ofendida BB, perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, conforme gravação digital disponível na aplicação Habilus das 14:57:12 às 15:28:21 horas, das 15:33:39 às 16:27:38 horas e das 16:35:16 às 16:44:57 horas; (ii) cópia da correspondência eletrónica trocada entre a BB e a sua professora da disciplina de ..., constante de fls. 10-19, 67-73, 78-81, 84-90, 99-119 e resumo das mesmas, constante de fls. 93 verso-96; (iii) depoimento da vítima, prestado perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, constante de fls. 125-139; (iv) depoimentos das testemunhas CC e DD, constante de fls. 132-136.
XVI. Contudo, da análise desses meios de prova, resulta precisamente o oposto, sendo possível constatar, manifestas as contradições em que incorre a vítima e que injustamente servem de fundamento à privação da liberdade do arguido.
XVII. Contradições estas tão evidentes einequívocas que em nada corroboram a veracidade e a credibilidade do seu depoimento.
XVIII. A vítima consegue apresentar versões completamente diferentes, num curtíssimo espaço de tempo... o que em nada a parece constranger..., sendo visível que, a partir da linguagem empregue pela mesma, nos escritos da sua autoria, ao contrário do arguido, a vítima é uma pessoa inteligente, dotada de um grau de instrução e erudição elevado.
XIX. Conforme demonstrado, a vítima incorreu em graves e manifestas contradições, designadamente quanto (i) à possibilidade de ser virgem e nunca ter tido relações sexuais; (ii) à possibilidade de nunca ter tido qualquer namorado; (iii) à possibilidade de ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido, designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina; e (iv) à possibilidade de ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do tio, ora arguido.
XX.        O arguido decidiu não requer a abertura da fase de Instrução, por forma ao processo avançar para a fase de Julgamento, uma vez se encontrar privado da sua liberdade.
                XXI. Apresentou a sua Contestação, (i) alegando, em suma, não ter praticado os factos constantes da Acusação nem os crimes que lhe são imputados; (ii) salientando as evidentes, inequívocas e manifestas contradições em que a ofendida incorre ao longo de todo processo, quanto aos factos denunciados e factos da sua vida pessoal com relevância para os presentes Autos; (iii) denunciando todo o circunstancialismo ocorrido desde a sua detenção pela Polícia Judiciária até à fase em que os Autos se encontravam, alertando para o evidente e ilegítimo coartar do seus direitos e garantias de defesa; (iv) apresentando os seus meios de prova, requerendo prova pericial, nomeadamente perícia médico-legal psiquiátrica e à personalidade da ofendida, a realizar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, e apresentando o respetivo rol de testemunhas.
XXII. Neste último âmbito, solicitou a inquirição da ofendida como testemunha ou, para a eventualidade de o Tribunal assim não o entender, a sua inquirição como ofendida sobre toda a matéria constante do Despacho de Acusação e da Contestação.
XXIII. Em 10.11.2020, foi proferido Despacho, admitindo a contestação e o rol de testemunhas apresentado, tendo a digna Magistrada do Ministério Público, em 12.11.2020, se pronunciado no sentido de nada ter a opor quanto à realização das perícias requeridas, mas no sentido de ser de indeferir a audição da ofendida, por não se verificar o condicionalismo previsto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP.
XXIV. Segundo o preceito invocado, “A tomada de declarações nos termos dos números anteriores (declarações para memória futura, acrescentado nosso) não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”.
XXV. Os depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento não conseguiram esclarecer as discrepâncias e contradições presentes na versão dos factos trazida aos Autos pela ofendida.
XXVI. Como tal, por ser absolutamente crucial ao apuramento da verdade material, em 4.6.2020, o arguido apresentou requerimento, solicitando a inquirição da ofendida BB em sede de audiência de julgamento, à luz do disposto nos artigos 271.º, n.º 8, e 340.º do CPP, com fundamento na imprescindibilidade da sua realização tendo em conta a descoberta da verdade material, a qual só dessa forma poderá ser esclarecida.
                XXVII.  Contudo, por Despacho de 7.10.2021, o Tribunal entendeu ser de indeferir tal pretensão apresentada pelo arguido, com fundamento, em suma, nos seguintes pressupostos de facto e de direito: (i) a BB ter à data 17 anos de idade; (ii) na natureza das declarações para memória futura, tendo em vista a proteção da vítima de crimes sexuais; e (iii) no carácter excecional da repetição da tomada de declarações em sede de audiência de julgamento, após prestação de declarações para memória futura.
                XXVIII. Fazendo crer que o confronto entre o direito fundamental da vítima de alegados abusos sexuais à reserva da sua privacidade/não exposição, protegido pelo instituto das declarações para memória futura, e o direito fundamental do arguido à sua defesa se encontra facilmente dirimido pelas disposições legais invocadas, quando, na verdade, a Lei Fundamental Portuguesa resolve esse conflito a favor do arguido, segundo a máxima estruturante do processo penal do in dúbio pro réu e da presunção de inocência.
XXIX. Razão pela qual o arguido, não se conformando com o teor de tal de Despacho, interpôs o Recurso do mesmo, junto do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA, alegando, em suma, o seguinte: (i) a existência de dúvida objetivamente razoável sobre as declarações prestadas pela ofendida, ao longo de todo o processo, justificativa da prestação de declarações, pela mesma, em sede de audiência de julgamento; (ii) revelando-se a realização de tal diligência manifestamente indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa; (iii) sendo o que melhor se coaduna com o princípio do in dúbio pro reo, bem como com a observância do direito e das garantias de defesa do arguido; (iv) já que a condição de saúde física e mental da vítima assim o permite, em conformidade com os relatórios das perícias médico-legais a que foi sujeita.
XXX. Esse RECURSO foi admitido por Despacho de 15.11.2021, tendo, contudo, a respetiva subida ficado por esta decisão condicionada à subida do “recurso que vier a ser interposto da decisão final, face ao disposto no n.º 1 do art. 407.º - a contrario do CPP e com efeito devolutivo (artigo 408.º, a contrario, do Código de Processo Penal)”.
XXXI. Em 26.11.2021, em sede de audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo comunicou ao arguido, no próprio ato, oralmente, que entendia proceder a uma alteração não substancial dos factos e a uma alteração da qualificação jurídica, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, procedendo, assim, à imputação de 26 crimes sexuais, ao invés de 24, nos seguintes termos: (i) “a 14 e não a 13 deles a abusos sexuais previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal”; (ii) “a 6 e não a 5 os crimes de violação sexual agravada previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, al. b), na versão da Lei n.º 83/2015, de 5.8., vigente à data dos factos, e177.º, n.º 6, ambos do Código Penal”; (iii) “a 4 enão a 6 o total dos crimes de abuso sexual previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, do Código Penal”; (iv) “a 2 crimes de atos sexuais com adolescente, previsto e punido pelo artigo 173.º, n.º 1, do Código Penal, reportados a dois dos episódios sexuais ocorridos entre Janeiro e o Verão de 2018, altura em que na dúvida resolvida a favor do arguido se deverá considerar que a BB não era menor de 14 anos, mas aproveitando-se o arguido da sua inexperiência, como descrito na acusação, terá nos termos descritos o libelo acusatório incorrido na prática daqueles dois crimes”.
                XXXII.  O arguido foi notificado para, querendo, se pronunciar e exercer o respetivo contraditório, no prazo de 6 dias, o que fez, por Requerimento de 2.12.2021, alegando, em suma: (i)nãoterpraticado nenhum dos crimes, cuja práticalhe vem imputada, dando por reproduzido integralmente o teor da contestação apresentada, bem como toda a matéria, pelo seu Mandatário, alegada, em sede de audiência de julgamento; (ii) sublinhando, uma vez mais, não aceitar que a Investigação ou o Tribunal entendam que a BB seja sexualmente inexperiente, porquanto resulta dos e-mails trocados com a sua Professora, bem como do escrito por si entregue ao Tribunal, constante de fls. 46-47, precisamente o contrário: isto é, a própria BB reconhece e admite ter tido e manter comportamentos sexuais com namorados; (iii) sublinhando não aceitar também que a BB, após os episódios por si relatados, alegadamente infligidos pelo arguido, tenha sofrido qualquer estado de “vergonha, tristeza, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança”, já que, conforme resulta dos Relatórios, constantes de fls. 726 a 754, sobre as perícias médico-legais a que foi sujeita, a mesma não sofreu, nem sofre de qualquer trauma físico, sexual e/ou psicológico.
                XXXIII.Condenando-se o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 12 anos de prisão efetiva, bem como no pagamento à ofendida da quantia de 30.000,00 euros, a título de indemnização civil.
                XXXIV.Contudo, o arguido não poderá deixar de recorrer de tal decisão, em virtude da matéria de facto dado como provada se encontrar completamente divorciada da realidade e, em consequência, a apreciação da prova se encontrar em absoluta contradição com as regras da experiência, colocando o arguido numa situação de privação ilegal da sua liberdade, coartando os seus mais elementares direitos e garantias de defesa, bem como invertendo ilegitimamente a estruturado processo penal alicerçada segundo o princípio do in dúbio pro reo e da presunção de inocência,
                XXXV. Impugnando-se, por isso, para todos os efeitos legais, a matéria de facto e de direito constante da decisão recorrida, no que respeita à matéria penal invocada, bem como à matéria de responsabilidade civil, porquanto os meios de prova produzidos impõem decisão diversa.
                XXXVI. Pelo presente Recurso, o arguido vem, em primeiro lugar, impugnar a matéria de facto constante dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CPP.
                XXXVII.Com todo o devido respeito pela douta sentença, o arguido discorda em absoluto da condenação por ela perpetrada, por entender que da prova produzida durante a fase de Inquérito e em sede de audiência de julgamento, não resultam provados os factos constantes da Acusação Pública formulada, nem os que se deram como provados na douta sentença, em consequência da comunicação da alteração não substancial dos factos efetuada ao arguido,
                XXXVIII.E, consequentemente, também entende não resultarem provados os factos que fundamentam a sua condenação em sede de responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, não se verificando os seus pressupostos, conforme melhor se verá infra,
                XXXIX. Devendo, por isso, este Venerando Tribunal alterar a matéria de facto  dada como provada e não provada e, em consequência, revogar a douta sentença proferida, já que a finalidade prática do recurso jurisdicional é corrigir os erros (de julgamento) e os de que essa sentença enferma e, assim, repor a justiça no caso concreto.
                XL. À luz do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea a), do CPP, o arguido vem impugnar expressamente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, constantes dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, a qual não deveria ter sido dada como provada à luz das regras da experiência comum e dos princípios da livre apreciação da prova, dos princípios da certeza e da segurança jurídica, bem como do in dúbio pro reo,
XLI. A sentença recorrida deu como provados os factos que se passarão a enunciar, elencando ao que parece vários episódios de abuso sexual e violação, perpetrados pelo arguido contra a ofendida, recorrendo a uma técnica bastante habilidosa de repetição de episódios e de não concretização dos factos devidamente no tempo e no espaço, que impede que o arguido exerça plenamente o seu direito de defesa, fazendo-se uso de expressões como: (i) “em dia não concretamente determinado, mas num Domingo de Verão de 2015 (...)”; (ii) “após este episódio e até ao verão de 2017, o arguido, em várias outras ocasiões, em datas não concretamente determinadas e em número de vezes não inferior a dez (...)”; (iii) “em todas a referidas ocasiões (...)”; (iv) “num dia não concretamente determinado do verão de 2017, mas anterior ao final de julho desse ano (...)”; (v) “num outro dia não concretamente determinado no final do mês de Julho de 2017 (...)”; (vi) “desde o final do Verão de 2017 até ao final desse ano de 2017, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em 5 ocasiões, após os almoços de família (...)”;(vii) “desde janeiro de 2018 e até ao verão de 2018, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em sete ocasiões (...)sendo que cinco dessas ocasiões ocorreram no Verão de2018 (...)”; (viii) “em dia não concretamente determinado do Verão de 2019 (...)”; (ix) “inicialmente, em várias daquelas sobreditas ocasiões anteriores ao Verão de 2018, sobretudo quando o arguido se encontrava
alcoolizado (...)”.
XLII. Havendo, claramente, uma sobreposição e repetição entre os factos dados como provados pela sentença entre os factos 14 e 16, 15 e 17.
XLIII. O arguido vem, por isso, impugnara matéria de facto constante dos pontos identificados supra, nos termos sobreditos, já que o Tribunal não pode, nem deve decidir em consciência, sem que todos factos e as provas carreadas para o processo sejam devidamente apreciadas de forma crítica, objetiva e racional, sem “saltos lógicos”, como se impunha no caso concreto, com o deferimento da prestação de depoimento, por parte da ofendida BB, em sede de audiência de julgamento, tanto mais que estamos perante jovem que irá fazer 18 anos em 6.3.2022.
XLIV. O que o Tribunal decidiu não fazer, esquecendo o princípio da descoberta da verdade material, conformando-se com as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, ainda que contraditórias entre si e contra as regras da experiência comum, esquecendo que o arguido é também um sujeito processual e contribui para a formação do acervo probatório através do exercício do seu contraditório.
XLV. Mais: esquecendo que o processo penal está estrutura segundo uma lógica de in dúbio pro reo e, portanto, quando haja dúvida objetivamente razoável, dever-se-á decidir a favor do arguido e, não, ao invés, contra o mesmo, que é o caso da sentença recorrida.
XLVI. À luz do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, o arguido vem impugnar especificadamente a matéria constante dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, especificando as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
XLVII. Quanto aos factos constantes dos pontos 5 a 11 da sentença, relativos à alegada prática pelo arguido de crimes de abuso sexual contra a ofendida, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 171.º, n.º 1, do CP, desde um domingo de verão de 2015, em data não concretamente determinada, até ao Verão de 2017, abusos esses que se traduziram genericamente em: (i) alegadamente, no tal domingo do Verão de 2015, em data não concretamente determinada aproximar-se da ofendida enquanto esta lavava a loiça, abraçando-a, apalpando-lhe as mamas e pressionando o corpo dele contra o dela (cfr. ponto 8 da sentença recorrida); (ii) após este alegado episódio até ao Verão de 2017, em datas não concretamente determinadas: supostamente “em número de vezes não inferior a 10”, quer na casa do arguido, quer nos terrenos agrícolas, este apalpou a ofendida nas mamas e na vagina, ora por cima, ora por baixo da roupa, ora beijando-a também (cfr. ibidem ponto 9).
                XLVIII. Quanto aos factos constantes dos pontos 12 a 17 da sentença, relativos à alegada prática pelo arguido de crimes de abuso sexual contra a ofendida, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP: (i) desde um dia não concretamente determinado do Verão de 2017, “mas anterior ao final de julho desse ano”: deitaram-se na cama do arguido e este despiu a roupa que a ofendida trazia vestida, “primeiro a parte de baixo da roupa e depois a parte de cima”, tendo o mesmo também “despido as calças e as cuecas que trazia vestidas”; o arguido “tocou-lhe com a mão na vagina”, após o que “lhe lambeu a vagina” e, de seguida, “deitou-se em cima dela, introduzindo-lhe os dedos da mão no interior da vagina” (cfr. ibidem pontos 14 e 15); (ii) “num outro dia não concretamente determinado, no final de julho de 2017”: deitaram-se na cama do arguido e este despiu a roupa que a ofendida trazia vestida, “primeiro a parte de baixo da roupa e depois a parte de cima”, tendo o mesmo também “despido as calças e as cuecas que trazia vestidas”; o arguido “tocou-lhe com a mão na vagina”, após o que “lhe lambeu a vagina” e, de seguida, “deitou-se em cima dela, introduzindo-lhe os dedos da mão no interior da vagina” (cfr. ibidem pontos 16 e 17).
XLIX. Quanto ao facto constante do ponto 18 da sentença, relativo à alegada prática pelo arguido de crimes de abuso sexual contra a ofendida, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, “desde o final do Verão de 2017 até ao final desse ano de 2017, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em 5 ocasiões diversas, após os almoços de família”: apalpou a vagina e as mamas da ofendida e, “pelo menos em 2 ocasiões, também lhe introduziu os dedos na vagina”.
L. Quanto aos factos constantes dos pontos 19 e 20 da sentença, relativos à alegada prática pelo arguido de 6 crimes de violação (5 no Verão de 2018 e 1 no Verão de 2019), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 164.º, n.º 2, alínea b), do CP, na versão vigente à data dos factos, e artigo177.º, n.º 6, do CP: (i) “desde Janeiro de 2018 e até ao Verão de 2018, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em sete ocasiões”: apalpou a vagina e as mamas da ofendida, sendo que “cinco dessas ocasiões ocorreram no Verão de 2018”, em que o arguido “ora lhe introduziu os dedos na sua mão na vagina, ora lhe lambeu a vagina” (cfr. ibidem ponto 19); (ii) “em dia não concretamente determinado do Verão de2019”: levou a ofendida  para o quarto e “começou a tocar-lhe com a mão da vagina”, após o que “lhe lambeu a vagina e, de seguida, deitou-se em cima dela e introduziu-lhe os dedos da mão no interior da vagina” (cfr. ibidem ponto 20).
                LI. Conforme se verifica, o tribunal recorre a uma técnica de “copy+paste”, inclusive, com os mesmos erros ortográficos, entre os factos constante dos pontos 14 e 16, 15 e 17,
LII. Parecendo existir, aqui, uma duplicação de condutas, imputando-se nos pontos 16 e 17 ao arguido mais dois crimes de abuso sexual, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, que já se encontra descritos nos pontos 14 e 15.
                LIII. Entende o arguido que todos esses factos não poderiam ser dados como provados, já que a sua prova se baseou, sobretudo, nas declarações para memória futura, prestadas pela ofendida, no dia 4.6.2020, gravadas através do sistema de gravação digital, disponíveis na aplicação informática, no sistema habilus, das 14:57:12 horas às 15:28:21, das 15:33:39 às 16:27:38 e das 16:35:16 às 16:44:57,
LIV. Que o Tribunal apenas valorou em parte, esquecendo outras declarações prestada pela mesma, constantes do escrito de fls. 46-47, entregue pela ofendida à Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no momento da prestação de declarações para memória futura, constantes dos e-mails que dirigiu à sua Professora de ..., constantes de fls. 10-19, 67-73, 78-81, 84-90, 99-119, e resumo das mesmas de fls. 93-96, e-mails esses que o Tribunal não escalpelizou na sua fundamentação para sustentar a decisão sobre a matéria de facto que adotou.
LV. Esquecendo, também, o depoimento da ofendida, prestado perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, constante de fls. 132-136, ao qual o Tribunal acaba por referir na respetiva sentença, concluindo ser diferente das declarações prestadas para memória futura.
LVI. É absolutamente incoerente e contra as regras da experiência comum a convicção do Tribunal, segundo a qual “É certo que a ofendida BB optou por relatar menos factos do que os que relatou perante a Polícia Judiciária.”, a qual não passa de uma mera assunção que não encontra qualquer respaldo no acervo probatório recolhido, embora se reconheça a diferença nos depoimentos prestados pela mesma.
LVII. Não podendo também o Tribunal se alicerçar numa suposta confissão parcial do arguido, constantes das declarações por si prestadas em sede de audiência de julgamento, uma vez que as mesmas o não foram de forma plena, livre, espontânea e sem reservas, atenta a forma manifestamente inquisitória e atemorizadora que, salvo o devido respeito, o Meritíssimo Juiz conduziu o seu interrogatório, pressionando e intimidando o arguido a prestá-las,
LVIII. Levando, inclusive, o Advogado do arguido a intervir, solicitando conferenciar com o arguido, por forma a que mesmo não se auto incriminasse, sem ser essa a sua livre e consciente vontade.
               LIX. Por isso, entende o arguido que a análise conjunta dos meios de prova em que se fundou a decisão do Tribunal impõe uma apreciação da prova e decisão sobre a mesma diversa da constante da sentença recorrida, dando-se tais factos como não provados, tal como impõem os seguintes meios de prova: declarações para memória futura, prestadas pela ofendida, no dia 4.6.2020, conjugadas com as declarações escritas da mesma, constante dos e-mails trocados com a Professora, do escrito entregue pela mesma ao Tribunal de fls. 46-47, declarações prestadas perante os órgãos de polícia criminal, declarações do arguido, relatórios periciais de 201 a 202, fls. 726 a 754, e depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, nomeadamente, EE, FF, GG, HH.
LX. Analisando as declarações, orais e escritas, prestadas pela ofendida, cumpre esclarecer o seguinte: a dúvida objetivamente fundada, que justifica não só a prestação de declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, e, em consequência, a revogação da sentença recorrida, cinge-se às manifestas e graves contradições em que a ofendida incorreu, ao longo de todo o processo, na prestação de declarações, orais e escritas, designadamente quanto à possibilidade de (i) ser virgem e nunca ter tido relações sexuais, (ii) nunca ter tido qualquer namorado, (iii) ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido,  designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina, e (iv) ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do arguido.
               LXI. Quanto à primeira contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos pontos 64 a 77 da motivação do presente Recurso.
LXII. Da correspondência eletrónica trocada entre a vítima e a sua Professora da disciplina de ... resulta que a vítima admitiu não ser virgem, admitiu ter tido relações sexuais com o seu namorado e, inclusive, admitiu e equacionou a possibilidade de poder estar grávida.
LXIII. No entanto, das declarações prestadas pela vítima perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, resulta que a vítima afirmou ter tido pela primeira vez relações sexuais com o seu tio J., no verão de 2017.
LXIV. Mais: no âmbito das declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a vítima afirmou ter um namorado, mas nunca ter tido qualquer tipo de relacionamento sexual nem com ele, nem com nenhum rapaz ou qualquer outra pessoa.
LXV. Assim, a ofendida, ao afirmar, nas declarações para memória futura, que nunca teve qualquer relacionamento sexual com nenhum namorado, mente,
LXVI. Conforme se comprova no Relatório de perícia de   natureza sexual, constante de fls. 201 a 203, onde se refere: A nível da região genital (Nota- a localização será referenciada em relação com os ponteiros de um mostrador de relógio): Hímen anular, com uma altura de 6 milímetros, de uma coloração rosácea uniforme, apresentando uma solução de continuidade completa, não recente, de bordos bem coaptáveis, localizadas às 5 horas e outra com idênticas características às 9 horas. Não são aparentes sinais de lesões traumáticas recentes. O hímen permite a entrada de dois dedos justapostos da perita que efetuou o exame”.
LXVII.E que o Tribunal nem sequer valorou, já que tal meio de prova coloca, mais uma vez, em causa a veracidade das declarações prestadas pela ofendida, a qual diz o que lhe apetece, criando-se necessariamente, no mínimo, uma dúvida razoável, a decidir a favor do arguido.
                LXVIII. Pelo que outra não poderá ser a conclusão extrair do que a manifesta falta de veracidade das declarações prestadas pela vítima e a ausência total de credibilidade da mesma... constituindo a imputação dos factos ao arguido um ataque injusto e infundamentado.... sem qualquer correspondência com a realidade.
LXIX. Quanto à segunda contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos pontos 78 a 91 da motivação do presente Recurso.
LXX. Da correspondência eletrónica trocada entre a vítima e sua Professora da disciplina de ... resulta que a vítima admitiu expressamente ter tido diferentes namorados, mais velhos, com quem se relacionou sexualmente.
LXXI. No âmbito das declarações prestadas pela vítima perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, resulta que a mesma assumiu ter uma relação de namoro que se iniciou em outubro de 2019, com um rapaz com quem se relacionou sexualmente.
LXXII. No entanto, no âmbito das declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a vítima apenas afirmou ter um namorado, negando, no entanto, ter tido qualquer tipo de relacionamento sexual com o mesmo ou com qualquer outra pessoa.
                LXXIII. Fazendo “tábua rasa” do conteúdo que ela própria escreveu na correspondência eletrónica trocada com a sua Professora, no âmbito da qual expressamente assumiu ter tido e ter diferentes namorados, mais velhos, com quem se relacionou e relaciona sexualmente.
                LXXIV. Sendo caso para perguntar quando é que, afinal, a vítima falou a verdade, se é que alguma vez o fez ao longo deste processo: (i) na correspondência eletrónica trocada com a Professora da disciplina de ..., constante de fls. 10-19, 67-73, 78-81, 84-90, 99-119, 93-96?; (ii) no escrito entregue ao Tribunal, constante de fls. 46-47?; (ii) no depoimento prestado perante os órgãos de polícia criminal, no dia 2.6.2020, constante de fls. 125-130?; (iv) ou nas declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, dois dias após ter prestado o seu depoimento perante os órgãos de polícia criminal?
                LXXV.  Até porque facilmente se pode constatar que a mesma é uma pessoa inteligente, dotada de um nível de instrução e erudição elevado, como a linguagem dos seus escritos assim bem o demonstra.
                LXXVI. Pelo que as contradições em que a vítima incorre são, por demais, manifestamente evidentes..., demonstrando a falta de credibilidade do seu depoimento e das suas declarações... que em nada correspondem à verdade e apenas ofendem a pessoa do arguido.
                LXXVII. Quanto à terceira contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos artigos 92 a 108 da motivação do presente Recurso.
                LXXVIII. No âmbito das declarações para memória futura, prestadas pela vítima perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, no dia 4.6.2020, a mesma relatou um alegado episódio de abuso sexual perpetrado pelo seu tio, ora arguido, contra a sua vontade.
                LXXIX. A vítima admitiu ter sido essa a primeira vez que o arguido lhe fez sexo oral e lhe introduziu os dedos na vagina.
                LXXX.  No entanto, a vítima acaba por dizer não ter a certeza do que alegou, nem sequer que o arguido tenha introduzido o pénis na sua vagina, porquanto a vítima adormeceu aquando dos tais supostos e alegados acontecimentos... conforme, inclusive, a vítima relatou no escrito entregue ao Tribunal, constante de fls. 46-47.
                LXXXI. O que é manifestamente contrário às regras da experiência comum para quem, sendo menor, se encontra a ser violentado por outrem através da prática de atos sexuais contra a sua vontade.
LXXXII. Ao minuto 00:06:29 a 00:06:50 ; 00:07:50 a 00:08:15 ;00:09:30 a 00:09:40;00:09:43 a 00:09:49 ; 00:10:12 a 00:10:20 ; 00:10:28 a 00:10:49;00:11:05 a 00:11:10 da faixa de CD de 00:00:00 a 00:53:57 da gravação das declarações para memória futura, a vítima afirmou: (i)“ele continuava a tocar-me”; (ii)“ele tocou-me na vagina e depois fez-me sexo oral e depois o resto eu não sei porque adormeci, estava exausta”; (iii) “ele primeiro tirou a parte de baixo e depois acabou por tirar tudo”; (iv) afirmou ainda que o arguido lhe tocou na vagina, no peito e lhe introduziu os dedos na vagina; (v) “lambeu-me a vagina e depois eu acabei por adormecer”; (vi) “eu estava muito cansada, queria era dormir”; (vii) afirmou que quando ela acordou, “ele estava em cima de mim”, “estava despido da cintura para baixo”, “quando eu estava a acordar ele tirou algo de dentro de mim, não sei se era um dedo ou se era o pénis, não tenho a certeza porque eu tenho sono pesado, eu acordei lentamente e depois quando dei conta”; (viii) “fui para casa, tomei um banho e fui para casa”.
                LXXXIII. Segundo a vítima, esta foi a primeira vez que o arguido lhe fez sexo oral e que lhe introduziu os dedos na vagina.... e curiosamente a vítima adormeceu..., o que, reitere-se, é manifestamente contrário às regras da experiência comum para quem, sendo menor, se encontra a ser violentada por outrem através da prática de atos sexuais contra a sua vontade.
                LXXXIV. Mais: a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal questionou a vítima sobre se esta tinha a certeza que a mesma e o arguido tinham tido relações sexuais, designadamente que este tivesse inserido o pénis na sua vagina, ao que a vítima respondeu: “não”, “eu não tenho a certeza absoluta que isso tenha acontecido, porque eu adormecia” (cfr. minuto 00:26:28 a 00:26:53 da faixa de CD de 00:00:00 a 00:53:57 da gravação).
LXXXV. Donde resulta expressamente que a vítima não tem a certeza se houve uma relação sexual de cópula vaginal com o arguido... ou qualquer outro ato similar.
                LXXXVI. Sem esquecer as supostas vezes em que a vítima alegou adormecer durante a introdução dos dedos do arguido na sua vagina e da prática de sexo oral, dando-se aqui por reproduzida toda a matéria alegada a este propósito e que demonstra, de forma evidente, as manifestas contradições em que incorre a vítima quanto à execução destas práticas, sendo absolutamente contrário às regras da experiência comum que tal tenha acontecido e dar-se como provados tais factos, conforme se infere da sentença nos pontos 15, 17, 18, 19 e 20.
                LXXXVII. Quanto à quarta contradição, dá-se por reproduzida toda a matéria alegada nos pontos 109 a 118 da motivação do presente Recurso.
                LXXXVIII. Resulta expressamente dos Autos que a vítima não teme o arguido, seu tio, nem sequer repudia a sua presença, ou manifesta qualquer trauma emocional ou qualquer necessidade de isolamento e distanciamento do mesmo, bem pelo contrário.
LXXXIX. Mesmo após relatar a prática dos supostos atos sexuais que falsamente pretende fazer crer que o arguido adotou, contra a sua vontade.
XC. Resulta expressamente dos Autos que a vítima não demonstra qualquer trauma, necessidade de isolamento ou afastamento, como seria expectável atenta a natureza dos factos que alega... bem pelo contrário, a vítima quer, a todo o custo, passar o máximo de tempo na companhia do arguido, tal como resulta demonstrado em audiência de julgamento através do depoimento prestado pelas testemunhas arroladas pelo arguido (EE, FF, GG, HH e cujas passagens concretas dos seus depoimentos se fará referência infra).
XCI. Resulta igualmente que a vítima não deseja procedimento criminal contra o arguido e nem sequer o afastamento do mesmo, bem pelo contrário.
XCII. O que se afigura totalmente contrário às regras da experiência no âmbito deste tipo de processos-crime de natureza tão delicada e sensível.
XCIII. Resulta dos relatórios periciais a que a ofendida foi sujeita, em concreto, que (i) “(...) não foi aparente a existência de psicopatologia ou problemas de memória” (fl. 17); (ii) “A BB tem capacidade de conservar em memória e reproduzir acontecimentos que presenciou, tendo um bom nível cognitivo, pelo que é capaz de testemunhar acerca das suas vivências” (fls. 17-18); (iii) “(...) não foi aparente a existência de psicopatologia e a BB mantem um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida.” (fl. 18) (cfr. Relatório de Avaliação Psicológica de fls. 726 a 750, realizado à ofendida, por parte do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade de ...do Centro Hospitalar .../... E. P. E., no dia 26.3.2021),
XCIV. Resultando de fls. 10, que a ofendida “mostrou irritação com a perícia, justificando ter sido informada anteriormente que não teria de falar novamente sobre os factos em tribunal”, o que também é bem demonstrativo da sua consciência da falta de veracidade das suas declarações.
XCV. Negando a ofendida, perante as peritas subscritora de tal Relatório (cfr. fls. 22), ter dito coisas diferentes e apresentado versões distintas ao longo do processo, referindo que “se eu não disse as mesmas palavras é completamente normal”
XCVI. Contudo, as contradições apontadas às suas declarações escritas e verbais, certamente não se tratam de uma mera troca de palavras, em face do supra explanado.
              XCVII.  Ainda segundo a Avaliação Psicológica Forense, constante de fls. 751 a 754, a fls. 1-2: “No Inventário de Personalidade de Eysenck-Forma Revista (EPQ-R), inventário que mede as dimensões do temperamento/personalidade, os resultados demonstram que a jovem respondeu de acordo com o que é socialmente correto/aceite, não sendo honesta na avaliação, pelo que não se pode interpretar o perfil obtido. Com este perfil de resposta, pode referir-se que a jovem consegue ter a perceção do que é correto/incorreto socialmente, demonstrando alguma desejabilidade social, ou seja, respondeu tendo em conta o que considera que os outros gostariam que respondesse.”.
                XCVIII. Concluindo a Sra. Perita que a “a BB reconhece as situações como abusivas, porém à data da perícia não parece existir queixas/sintomas compatíveis com perturbação emocional, mantendo a BB um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida, pelo que não apresenta consequências físicas e psicológicas para valorizar.”
XCIX. É manifestamente errónea, falsa e incoerente a convicção do Tribunal, segundo a qual “(...) o relato dos acontecimentos pela ofendida BB, sendo fortemente plausível no contexto e no local por si referido, num encadeamento lógico dos factos que descreveu, mostrou-se no essencial sincero, detalhado e despreocupado da busca de uma qualquer versão interessada dos factos, o que tudo lhe confere bastante persuasão bastante nos termos comprovados sobre a dinâmica e ocorrência dos factos.”.
C. Está, por demais, demonstrado queo depoimento da BB étudo menos um depoimento credível, honesto, lógico e coerente, pelas várias contradições já identificadas em que incorre, sobre factos essenciais que constituem os elementos objetivo e subjetivo dos tipos de crime de cuja prática o arguido vem indiciada.
CI. Sublinhando-se as seguintes declarações da ofendida constantes do e-mail enviado à Professora de ... no dia 13.4.2020, pelas 23:34 horas, constante de fls. 100: “Talvez tenha queda para homens mais velhos, nunca me apaixonei por ninguém da minha idade, curiosamente.”; “Os rapazes da minha idade não fazem o meu género, acho que são muito imaturos, e não começam uma relação pelos motivos certos.”; “Tenho algumas histórias com rapazes que algumas parecem saídas de filmes, mas isso fica para outro dia.”.
CII. E esta história inventada pela BB contra o seu ti, ora arguido, não parece saída de um filme? E a forma como este processo-crime foi conduzido não nos faz recordar o Livro “O Processo” de Kakfa?
CIII. Sublinhe-se também a única preocupação da BB ao relatar tais factos à Professora de ..., constante do e-mail de 27.4.2020, pelas 18:58 horas, fls. 12, 17 e 94: “A única coisa que me stressa realmente no meio disto tudo é ser chamada de mentirosa por namorados. Com o meu primeiro namorado, eu jurei-lhe que era a primeira vez, e ele viu logo que não, e chamou-me de tudo e mais alguma coisa (....)”.
CIV. Sendo caso para perguntar: por que é que os tais namorados da vítima não foram sequer identificados e inquiridos quer pelo Ministério Público, quer pelo Tribunal? Não seriam depoimentos cruciais à descoberta da verdade material, ao abrigo do princípio da oficiosidade?
CV. Não parece que a BB está aqui a tentar chamar à atenção e a esconder outras situações e a incriminar injustamente o seu tio?
CVI. Mais: no âmbito das declarações prestadas perante órgão de polícia criminal, no dia 2.6.2020, cujo auto de inquirição consta de fls. 128, sobre um alegado episódio ocorrido no verão de 2017, quando a vítima tinha 13 anos de idade e quando supostamente alega que teve pela primeira vez relações sexuais com o seio tio, ora arguido: (i) “No verão de 2017, quando a depoente tinha 13 anos de idade, teve pela primeira vez, relações sexuais de cópula vaginal com o seutio AA. Tudo aconteceu no quarto dele, num momento em que mais ninguém estava por perto. O tio convidou a depoente a acompanhá-lo até ao quarto dele que fica no andar superior da casa e ali deitou-a em cima da cama. Despiu a depoente completamente e ele despiu as calças e as cuecas.” (cópula vaginal); (ii) “Ele aproximou a boca da zona genital da depoente e fez sexo oral.” (sexo oral); (iii) “Depois deitou o corpo dele sobre o corpo da depoente, tendo-lhe afastado as pernas e introduziu o pénis dentro da sua vagina e esteva a fazer movimentos “normais de quem faz sexo” até que tirou o pénis para ejacular “mas não sei para onde”.” (cópula vaginal).
Então a ofendida não se recorda para onde é que o pénis do arguido ejaculou?
CVII. Mais: conforme declarações para memória futura, prestadas perante a Meritíssima Juíza da Instrução Criminal, no dia 4.6.2020: (i) “ele tocou-me na vagina e depois fez-me sexo oral e depois o resto eu já não sei porque adormeci, estava exausta”; (ii) “ele primeiro tirou a parte de baixo e depois acabou por tirar tudo”; (iii) afirmou ainda que o arguido lhe tocou na vagina, no peito e lhe introduziu os dedos na vagina; (iv) “lambeu-me a vagina e depois eu acabei por adormecer”; (v) “eu estava muito cansada, queria era dormir”.
CVIII. Tendo, posteriormente, a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal questionado a própria vítima sobre se esta tinha a certeza sobre a ocorrência de relações sexuais com o seu tio, porque as suas declarações foram imediatamente geradoras de uma dúvida objetiva,
CIX. Ao que a própria vítima respondeu muito simplesmente: “não”, “eu não tenho a certeza absoluta que isso tenha acontecido, porque eu adormecia”!
CX. Então a vítima adormecia enquanto supostamente o tio lhe infligia os atos sexuais contra a sua vontade?
CXI. Não é contrário às regras da experiência comum qualquer pessoa, sobretudo uma criança ou adolescente (ainda que com larga experiência sexual), alegada vítima de um crime sexual, adormecer durante os alegados atos sexuais infligidos contra a sua vontade e autodeterminação sexual?
CXII. Se a própria vítima refere que adormecia aquando dos alegados episódios, e é ela própria a criar a maior dúvida e incerteza sobre o que efetivamente aconteceu – se é que aconteceu alguma vez algum dos episódios por si relatados... -, como é que o Ministério Público e o Tribunal poderão ter mais certeza do que aconteceu do que a própria vítima?
CXIII. Tal não será contrário às regras da experiência e ao princípio da livre apreciação da prova?
CXIV. O único meio de prova que sustenta a condenação do arguido pelos alegados atos sexuais infligidos contra a vítima são precisamente as declarações prestadas pela ofendida... que, ainda por cima, são absolutamente duvidosas e incertas, conforme facilmente se evidencia pela sua simples leitura e audição...
CXV. Como é que o Tribunal pode ter formado esta convicção e condenar o arguido pela prática de crimes sexuais de cuja prática a própria vítima nem sequer tem a certeza?
CXVI. É possível, por um lado, alguém alegar ser vítima de crimes de natureza tão sensível e, por outro lado, alegar não ter a certeza se os mesmos ocorreram, e a única preocupação ser o que os seus namorados possam pensar sobre si e que a possam considerar mentirosa?
                CXVII.  É a própria vítima a falar sobre a possibilidade de os outros a considerarem mentirosa, inclusive, os outros que se relacionem consigo sexualmente...
                CXVIII. Então, e existindo uma dúvida tão grande sobre o que efetivamente sucedeu e sobre a credibilidade dos depoimentos da própria vítima, bem como acerca da sua pessoa e personalidade, o Tribunal resolve decidir contra o arguido e não a favor, conforme impõe o artigo 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental Portuguesa e as regras da experiência, normativo que o Tribunal violou.
CXIX. Inclusive, por e-mail de 28.4.2020 enviado à Professora de ..., pelas 16:13 horas, constante de fls. 71 e 79, a própria vítima admite que o arguido seria incapaz de praticar tais crimes de natureza sexual contra outras pessoas, quaisquer que estas fossem: “(...) tenho 200% a certeza que ele não o fará a outra pessoa, não pode nem consegue, disso eu tenho a certeza (...)”.
CXX. Não será esta declaração um facto abonatório sobre o perfil e a personalidade do arguido? Esta declaração também suscita imediatamente dúvidas sobre a credibilidade das suas declarações...
CXXI. Tendo em conta as manifestas contradições em que a vítima incorre, as dúvidas objetivas que ela própria suscita... como poderá o Tribunal formar uma convicção tão segura sobre o que efetivamente aconteceu? Como pode o Tribunal estar convencido de que o arguido perpetuou tais crimes de natureza sexual contra a sua sobrinha BB, se a própria vítima alega nem sequer tem a certeza disso?
              CXXII.  Não será absolutamente contrário às regras da lógica e da experiência, ao nível da apreciação da prova, e não será absolutamente contra os princípios estruturantes mais elementares do processo penal português? Não é a própria Constituição a impor que, em caso de dúvida objetivamente razoável, se decida, não contra, mas a favor do arguido?
                CXXIII. Pelo que facilmente se conclui que o Tribunal falhou na apreciação da prova, dando por provados factos cuja prática não se encontra alicerçada em qualquer elemento da realidade dos factos e meios de prova, minimamente seguros e credíveis.
CXXIV. Perante tais dúvidas objetivamente razoáveis, suscitadas pela própria alegada vítima dos crimes, jamais se poderá aceitar que o Tribunal esteja “plenamente convicto das práticas sexuais que o arguido manteve com a menor, nomeadamente introduzindo-lhe dedos na vagina e praticando com a mesma sexo oral, em diversas ocasiões, ao longo dos anos, mesmo quando esta tinha menos de 14.”,
              CXXV.  Porque, seguindo um raciocínio lógico, objetivo e encadeado dos factos, na hipótese do caso concreto, chegaremos a uma conclusão distinta, a uma conclusão de dúvida sobre o que efetivamente aconteceu, sendo totalmente impossível ter uma certeza minimamente segura e credível do que poderá ter acontecido.
CXXVI. Quanto ao facto constante do ponto 21 da sentença, relativo aos locais da alegada execução dos crimes sexuais pelo arguido contra a ofendida, segundo o qual o Tribunal formou a convicção de que “A maior parte das vezes em que o arguido praticou os atos sexuais da natureza supra descrita com a BB fê-lo na cama do seu quarto de dormir, os toques no corpo da mesma na forma supra descrita ocorriam, na maioria das vezes, na sala e na cozinha da casa do arguido, quando não se encontrava mais ninguém presente, sendo que pelo menos numa ocasião ocorreu nos terrenos agrícolas sitos nas traseirasdas respetivas residências do arguido eda BB.”, apenas com base nas declarações contraditórias da BB,
CXXVII. Mais uma vez se questiona sobre como é possível ter chegado a esta conclusão, se nem a própria BB consegue precisar tais factos, concretamente no tempo e no espaço?
                CXXVIII. E, conformeresultados depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH (cujas concretas passagens desses depoimentos se fará referência infra), tais terrenos agrícolas são perfeitamente visíveis da rua e estradas que os rodeiam, inclusive, por quem se encontre a vigiar o Estabelecimento Prisional ..., que fica em plano superior.
                CXXIX. Não sendo por isso plausível, segundo as regras da experiência, que tal tivesse acontecido e que o arguido pudesse praticar esses atos sexuais em tais terrenos sem alguém o visse.
              CXXX.  Sendo de colocaras seguintes questões: (i)a esposado  arguido nunca desconfiou ou deu conta de terem    sido perpetrados atos sexuais na cama onde dorme todos os dias?; (ii) se a esposa do arguido, tia da vítima, bem como as filhas do arguido, primas da vítima, admitem ser raríssimo a vítima encontrar-se a sós com o seu tio (conforme consta dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento nos dias 20-04-2021 e 26-05-202 cujos excertos se transcrevem infra), em sede de audiência de julgamento, quando é que tais episódios foram ocorrer? Ninguém assistiu aos mesmos?; (iii) ninguém se apercebeu de alterações do comportamento da vítima em relação ao arguido, após a alegada prática de tais crimes?; (iv) a vítima alguma vez deixou de frequentar a casa do arguido ou sequer de interagir com o mesmo?; (v) se a ofendida era vítima destes abusos, não é plausível que, segundo as regras da experiência comum, evitasse estar com o arguido e sequer frequentar a sua casa, mesmo na companhia dos outros membros da família?
CXXXI. São dúvidas que este caso nos suscita e que se mostram definitivamente por resolver, pelo que se impugna expressamente o facto constante do ponto 21 da sentença recorrida, transcrevendo-se infra os excertos dos depoimentos das testemunhas supra indicadas e que justificam a alteração de tal factualidade para não provado.
                CXXXII. Quanto ao facto constante do ponto 23 da sentença, o Tribunal dá como provada a circunstância da ofendida BB ter resistido à vontade e intentos sexuais do tio, uma vez ter medo de ter como represália nunca mais poder ir cuidar dos animais e tratar dos terrenos agrícolas.
CXXXIII. Ora, sendo a BB uma pessoa muito inteligente, com elevado grau de instrução e erudição, chegando a ter tido média de 19 no Ensino Secundário... não é contrário às regras da experiência que a vítima continue a procurar estar com o arguido e demonstre não ter qualquer constrangimento, ou receio em estar com o mesmo, e não tenha qualquer trauma físico, psicológico e/ou sexual?
                CXXXIV. São outras dúvidas que este caso nos suscita e que, mais uma vez, se mostram definitivamente por resolver.
                CXXXV. Razão pela qual se impugna expressamente o facto constante do ponto 23 da sentença recorrida, até porque resulta dos depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH (cujas concretas passagens se fará referência infra), que a ofendida não demonstrava qualquer constrangimento em estar com o arguido, bem, pelo contrário, o que, mais uma vez não, é consentâneo com as regras da experiência comum.
CXXXVI. Quanto ao facto constante do ponto 24 da sentença, o Tribunal dá como provado a circunstância do arguido ter constrangido a vítima a ceder aos seus alegados intentos e vontade sexuais,
CXXXVII. Facto este que se impugna expressamente, porquanto a vítima não revelou qualquer sinal de constrangimento quer na sua personalidade, quer físico e/ou sexual, admitindo, inclusive, não ter qualquer dificuldade em relacionar-se com outras pessoas sexualmente..., nem revelou qualquer sinal de constrangimento que fosse detetado por terceiros,
CXXXVIII. Como é o caso da sua mãe que, no depoimento prestado no dia 24-03-2021 em sede de audiência de julgamento, admite nunca ter desconfiado de nada, nunca ter notado qualquer alteração do comportamento da BB, desconhecendo, em absoluto, os factos que a própria relatou à Investigação, conforme extrato do seu depoimento que se transcreverá infra.
                CXXXIX. Até porque das próprias declarações para memória futura prestadas pela BB, cujos excertos já se transcreveram e se irão transcrever infra, resulta que a mesma chegou a dizer que sentiu “prazer involuntário”.
CXL. Ora, se a pessoa está constrangida, sente prazer? Adormece e esquece o que lhe acontece? É certamente contrário às regras da experiência comum.... Pelo que estas são outras dúvidas cruciais que este caso suscita e que permanecem definitivamente por resolver...
CXLI. Impugnam-se expressamente os factos dados como provados nos pontos 25 e 26 da sentença recorrida.
CXLII. Em primeiro lugar, encontra-se manifestamente por provar que a BB tenha sido vítima de um crime sexual aos 11 anos de idade, nem a própria BB consegue contextualizar e comprovar tal circunstância, utilizando, ao invés, expressões como “talvez” tenha acontecido, “não sei ao certo as vezes que foram”, “5 se tanto...”, entre outras expressões geradoras de dúvida e incerteza, cujos excertos do seu depoimento se transcrevem infra.
CXLIII. Em segundo lugar, também não se pode aceitar que a BB não tenha compreendido e não tenha tido discernimento para entender o alcance e o significado dos atos de natureza sexual, supostamente, na versão que alega, praticados pelo seu tio contra si, nem sequer que não se tenha conseguido autodeterminar sexualmente... porquanto as suas declarações demonstram precisamente o contrário: (i) a BB admite
ter uma “queda para homens mais velhos”, nunca se tendo apaixonado por homens da sua idade (cfr. e-mail enviado à Professora de ... no dia 13.4.2020, às 23:34 horas, constante de fls. 100); (ii) a BB admite que os rapazes da sua idade não fazem o seu género, por serem imaturos (cfr. ibidem); (iii) a BB admite ter “algumas histórias com rapazes que algumas parecem saídas de filmes” (cfr. ibidem); (iv) ao longo das suas declarações, a BB revela ter conhecimento sobre a prática de atos sexuais, usando expressões como “ejacular”, “sexo oral”, “lamber a vagina”, “introduzir o pénis”, “introduzir os dedos na vagina”, entre outras; (v) a BB admite à sua Professora de ... que a única coisa que a preocupa é que os seus namorados a apelidem e considerem mentirosa (cfr. ibidem).
              CXLIV. Revelando, por isso, tudo menos “ingenuidade, imaturidade, falta de experiência e incapacidade de avaliar as consequências dos aludidos factos em face da sua tenra idade” (cfr. facto 26 da sentença recorrida), bem pelo contrário... até porque, quando presta declarações para memória futura, a BB tem já 16 anos, sendo penalmente responsável!
CXLV.E, nem sequer se pode admitir que a ofendida BB tenha sofrido qualquer dano físico, psicológico e/ou sexual, causados alegadamente pelos atos que o arguido lhe infligiu, conforme o Tribunal afirma no ponto 47 da sentença: “em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a menor BB sofreu vergonha, tristeza, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional”,
                CXLVI. Porquanto a própria BB nega ter sofrido qualquer trauma de natureza física, psicológica e/ou sexual,
                CXLVII. Até porque a própria BB afirma nos emails que dirigiu à sua professora que a sua única preocupação é que os seus namorados pensem que a mesma é mentirosa!! E, se calhar, é mesmo...
CXLVIII. O que é igualmente evidenciado pelos relatórios sobre as perícias médico-legais a que foi sujeita, constante de fls. 726 a 754, onde expressamente se declara que a BB não sofreu qualquer trauma físico, psicológico e/ou sexual, e se refere expressamente que a mesma responde às perguntas que lhe são circunstanciadas “de acordo com o que é socialmente aceite”, apresentando traços fortes de “desejabilidade social”.
              CXLIX. E que “a BB reconhece as situações como abusivas, porém à data da perícia não parece existir queixas/sintomas compatíveis com perturbação emocional, mantendo a BB um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida, pelo que não apresenta consequências físicas e psicológicas para valorizar”.
CL. Pelo que se impugna expressamente o facto 47 constante da sentença recorrida, devendo considerar-se não provado, atento ainda o relatado pelas testemunhas EE e HH, este bombeiro de profissão, com formação neste tipo de situações (cujos extratos dos depoimentos se transcrevem infra e para os quais se remete), não tendo presenciado ou sentido nos comportamentos da BB, ao longo destes anos, qualquer sinal de alarme, desatenção, infelicidade, nervosismo, tristeza, ansiedade ou qualquer instabilidade emocional.
CLI. Assim sendo, existindo dúvidas objetivamente razoáveis sobre os factos efetivamente praticados pelo arguido contra a vítima – dúvidas estas criadas pela própria vítima – e, como tal, dúvidas relativas aos factos que concretizam o elemento objetivo deste tipo de crimes,
CLII. Como é que o Tribunal, de acordo com a regras da experiência, pode estar tão certo e convicto quanto aos elementos subjetivos do tipo, designadamente quanto ao dolo e intenção do arguido, conforme afirma nos pontos 27, 28 e 29 da sentença recorrida?
CLIII. Tal é manifestamente contrário às regras da experiência e, no caso concreto, as provas (supra mencionadas e excertos dos depoimentos que se transcrevem infra) assim demonstram que é impossível o Tribunal chegar e atingir esse grau de certeza sobre a intenção do arguido, devendo antes decidir a favor do mesmo, atenta a existência de dúvidas objetivamente razoáveis sobre os elementos objetivos do tipo, quanto mais, sobre os elementos subjetivos do tipo...
CLIV. Quanto ao facto constante do ponto 22 da sentença, segundo o qual o Tribunal veio ainda concluir que o arguido se encontrava alcoolizado durante os alegados episódios da prática de crimes sexuais: “Inicialmente, em várias daquelas sobreditas ocasiões anteriores ao Verão de 2018, sobretudo quando o arguido se encontrava alcoolizado (...)”,
CLV. É evidente que tal facto dado como provado pelo Tribunal é absolutamente falso, sendo, inclusive, o próprio Tribunal a dar como provados outros factos que o contrariam, designadamente a circunstância do arguido não apresentar quaisquer problemas de saúde, nem indícios relacionados com o consumo abusivo de substâncias alcoólicas, conforme consta do ponto 45 da sentença recorrida.
CLVI. Havendo, assim, manifesta contradição entre esses factos dados como provados, devendo considerar-se o ponto 22 como não provado, atentos os depoimentos das testemunhas EE, FF, GG, HH.
CLVII.A BB é que apresenta uma versão dos factos oscilante, muito pouco credível e contraditória, conforme está demonstrado à saciedade.
              CLVIII. Ao invés, o arguido, ainda que, por diversas vezes, intimidado pela própria Investigação e pelo próprio Tribunal, quando interrogado, não apresenta um perfil compatível com a alegada prática de tais crimes de natureza sexual, já que a própria sentença recorrida dá como provados os seguintes factos abonatórios da personalidade e da pessoa do arguido: (i) é uma pessoa humilde, trabalhadora, cumpridora da lei e detém um reduzido nível de instrução; (ii) desde os seus 16 anos que o arguido e a sua esposa mantem um relacionamento conjugal saudável e muito afetuoso; (iii) sempre beneficiou de uma imagem positiva, de pessoa bem formada e trabalhadora, perante a sua família, amigos e vizinhança; (iv) as pessoas que o conhecem ficam estupefactas com as acusações de que é alvo neste processo-crime, não acreditando na possibilidade deste ter perpetrado crimes de natureza sexual contra a sua sobrinha BB; (v) nunca apresentou qualquer sintomatologia e/ou indícios de consumo abusivo de bebidas alcoólicas; (vi) é uma pessoa perfeitamente integrada na sociedade, sendo um cidadão cumpridor da lei.
CLIX. Este é o perfil do arguido traçado pela própria sentença e que em nada condiz com o perfil de um agente perpetrador de crimes sexuais e, muito menos, se reflete na medida da pena concretamente aplicada ao arguido...
CLX. Tal perfil é igualmente corroborado pelos depoimentos das testemunhas GG, FF, II, JJ, KK, LL, MM, EE e HH, prestados em sede de audiência de julgamento nos dias 20.4.2021 e 26.5.2021
CLXI. Por fim, quanto ao facto constante da parte final do ponto 44 da sentença, segundo o qual “A ocorrência dos factos não serão do conhecimento generalizado, mas as poucas pessoas que ouviram comentar a situação mostram-se surpresas, não havendo por ora, qualquer reatividade hostil para com o arguido, à exceção do agregado da alegada vítima.”, resulta inequivocamente dos depoimentos prestados pelas pela esposa, filhas e genro do arguido, em sede de audiência de julgamento, precisamente o contrário, no que toca à vitima e ao seu agregado familiar, pois que, se não fossem aquelas a cortar o relacionamento, ainda hoje frequentariam a casa do arguido como se nada fosse…
CLXII.É absolutamente falso que o agregado familiar da vítima tenha desenvolvido qualquer sentimento de reatividade hostil para com o arguido, em relação à prática dos factos de que vem acusado, pois tanto a vítima, como a sua mãe e a sua irmã tentaram frequentar a casa do arguido, após terem prestado declarações perante os órgãos de polícia criminal, só o deixando de o fazer, após a esposa do arguido ter tomado essa decisão, na sequência da BB lhe ter referido para não se meter, continuar o seu trabalho.
                CLXIII. A família e o círculo de amigos do arguido acreditam antes que este esteja totalmente inocente e esteja a ser alvo de um processo condenatório absolutamente injusto e injustificado, num Estado de Direito democrático, como o português, que se pauta pela dignidade da pessoa humana, remetendo-se para a respetiva motivação as concretas passagens transcritas dos seus depoimentos.
              CLXIV. Outra não poderá ser a conclusão a extrair do que a existência de um erro de julgamento manifesto na apreciação da prova, violando-se o princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 127.º do CPP, bem como princípio do in dúbio pro reo e da presunção da inocência, constantes do artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
CLXV. No caso concreto, verifica-se que a análise da prova produzida impunha uma apreciação diferente por parte do Tribunal Coletivo, tendo em conta a situação de dúvida sobre a alegada prática dos crimes sexuais pelo arguido que é capaz de criar, impondo uma decisão, não de condenação, mas de absolvição.
                CLXVI. Ou, pelo menos, o deferimento da prestação de declarações por partedaofendida BB, em sede de audiência de julgamento, por forma a esclarecer, de uma vez por todas, as graves e manifestas contradições em que incorreu durante todo o processo, e que servem de fundamento à condenação do arguido numa pena efetiva de 12 anos de prisão...
                CLXVII. As quais seriam, na fase de julgamento, sujeitas a um segundo grau de apreciação, não pelo Tribunal de Instrução, mas pelo Tribunal do Julgamento, garantindo-se, assim, a descoberta da verdade material, bem como as garantias mais elementares do arguido em sede de processo penal: a sua presunção de inocência e a correta aplicação do princípio do in dúbio pro reu.
CLXVIII. Como tal, o arguido discorda do sentido de prova dado pelo Tribunal aos factos constantes dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, considerando que os mesmos, ao invés, se encontram não provados, devendo em conformidade revogar-se a sentença recorrida, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 425.º, 426.º, n.º 1, 428.º, 430.º e 431.º do CPP.
                CLXIX. Sustentam e impõem a alteração/revogação de tal matéria de facto, para além dos e-mails trocados pela ofendida com a sua Professora, do escrito entregue pela mesma ao Tribunal de fls. 46-47, declarações para memória futura e prestadas perante os órgãos de polícia criminal, declarações do arguido, relatórios periciais de 201 a 202, fls. 726 a 754, também os depoimentos referidos nos pontos 116, 118, 158, 160, 161, 165, 168, 169, 182, 189, 194, 195, 197 e 198 desta motivação, cujas concretas passagens, por referencia ao consignado nas atasdas sessões deaudiênciadejulgamento e gravação se transcrevem:
- Declarações para memória futura, da ofendida BB, no dia 4 de junho de 2020, gravadas na 1ª faixa de CD de 00:00:00 a 00:31:09 (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:05:09 a 00:06:55; 00:06:56 a 00:07:02; 00:10:00 a 00:10:16; 00:10:20 a 00:10:48; 00:14:01 a 00:14:11; 00:15:05 a 00:15:50; 00:16:24 a 00:17:04; 00:17:12 a 00:18:15; 00:20:15 a 00:21:36), 2ª faixa de 00:00:00a 00:53:57(extratos dodepoimentogravado emfaixa deCd de00:05:07a 00:06:04; 00:06:23 a 00:06:50; 00:08:12 a 00:08:28; 00:09:03 a 00:09:19; 00:09:30 a 00:09:40; 00:09:43 a 00:09:49; 00:09:55 a 00:10:02; 00:10:12 a 00:10:20; 00:10:28 a 00:10:49; 00:11:05 a 00:11:10; 00:11:57 a 00:12:30; 00:12:43 a 00:13:04; 00:13:10 a 00:14:12; 00:14:48 a 00:15:46; 00:16:05 a 00:16:35; 00:17:28 a 00:18:00; 00:19:15 a 00:19:55; 00:20:10 a 00:20:25; 00:22:10 a 00:23:18; 00:23:56 a 00:24:17; 00:25:25 a 00:25:51; 00:26:28 a 00:27:11; 00:40:24 a 00:41:03; 00:42:00 a 00:42:23; 00:43:07 a 00:43:25; 00:45:17 a 00:46:25; 00:52:06 a 00:52:39; 00:53:07 a 00:53:19) e 3ª faixa de 00:00:00 a 00:09:39 (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:00:00 a 00:01:00; 00:01:56 a 00:02:44; 00:02:49 a 00:03:02; 00:06:24 a 00:06:52; 00:08:20 a 00:08:29; 00:08:47 a 00:08:547; 00:09:11 a 00:09:14), tendo ocorrido o seu início pelas 14:57:12 horas a 15:28:21 horas e 15:33:39 horas a 16:27:38 horas e 16:35:16 horas e o seu termo pelas 16:44:57 horas)
- Depoimento do arguido AA, prestado na sessão de audiência de julgamento do dia 16 de março de 2021, gravado na 1ª faixa de CD de 00:00:00 a 00:56:35 (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:12:00 a 00:12:26; 00:16:05 a 00:16:19; 00:17:09 a 00:17:44; 00:19:22 a 00:19:53; 00:20:09 a 00:20:46; 00:21:09 a 00:21:37; 00:22:43 a 00:23:00; 00:23:04 a 00:23:08; 00:23:20 a 00:24:16; 00:24:46 a 00:25:50; 00:26:20 a 00:27:01; 00:27:11 a 00:27:31; 00:27:59 a 00:28:35; 00:28:52 A 00:28:57; 00:29:29 a 00:30:08; 00:30:14 a 00:30:58; 00:32:39 a 00:33:05; 00:35:20 a 00:36:08; 00:36:26 a 00:36:35; 00:36:40 a 00:37:21; 00:39:29 a 00:40:17; 00:40:43 a 00:41:06; 00:42:47 a 00:42:57; 00:43:49 a 00:44:21; 00:44:37 a 00:46:46; 00:47:06 a 00:47:24; 00:48:48 a 00:49:54; 00:50:15 a 00:50:24; 00:52:17 a 00:52:45), 2ª Faixa de CD 00:00:00 a 00:09:37 (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:00:00 a 00:00:57; 00:01:09 a 00:02:17; 00:03:00 a 00:03:38; 00:04:10 a 00:04:16; 00:04:28 a 00:05:24; 00:05:27 a 00:05:36; 00:05:43 a 00:06:07; 00:06:13 a 00:06:20; 00:06:33 a 00:07:11; 00:08:30 a 00:09:24), 3ª faixa de CD de 00:00:00a 00:35:45 (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:00:00 a 00:00:48; 00:01:12 a 00:01:40; 00:02:25 a 00:02:42; 00:03:55 a 00:04:12; 00:04:30 a 00:04:44; 00:06:22 a 00:06:49; 00:07:44 a 00:08:09; 00:08:54 a 00:10:12; 00:10:20 a 00:11:01; 00:11:09 a 00:11:09 a 00:11:22; 00:12:15 a 00:13:31: 00:1340 a 00:14:0000:15:24 a 00:17:41; 00:17:58 a 00:20:36; 00:21:05 a 00:22:28; 00:22:30 a 00:23:31; 00:26:10 a 00:27:55; 00:28:00 a 00:30:58; 00:31:09 a 00:31:39; 00:32:20 a 0:34:59) e 4ª faixa de CD de 00:00:00 a 00:00:58 (extrato do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:00:00 a 00:00:26), tendo ocorrido o seu início pelas 14h46m às 15h56m e das 16h40m com termo pelas 17h18m)
- Depoimento da testemunha CC, prestado na sessão de audiência de julgamento do dia 24 de março de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:51:03, tendo ocorrido o seu início pelas 14h57m e o seu termo pelas 15h48m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:01:13 a 00:01:21; 00:04:02 a 00:04:37; 00:05:19 a 00:05:27; 00:05:41 a 00:06:00; 00:06:40 a 00:06:55; 00:07:05 a 00:07:48; 00:08:45 a 00:09:25; 00:10:52 a 00:11:01; 00:12:16 a 00:12:43; 00:13:04 a 00:13:28; 00:14:30 a 00:14:33; 00:14:53 a 00:15:15; 00:18:42 a 00:19:18; 00:19:46 a 00:19:59; 00:29:31 a 00:32:26)
- Depoimento da testemunha DD, prestado na sessão de audiência de julgamento do dia 24 de março de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:36:07, tendo ocorrido o seu início pelas 15h50m e o seu termo pelas 16h26m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:01:52 a 00:02:05; 00:07:16 a 00:07:36; 00:12:16 a 00:13:04; 00:14:00 a 00:14:42; 00:14:58 a 00:15:07; 00:15:26 a 00:15:58; 00:16:18 a 00:17:26; 00:19:06 a 00:20:06; 00:20:45 a 00:21:37; 00:27:10 a 00:27:21; 00:28:50 a 00:29:14; 00:31:08 a 00:33:10; 00:34:08 a 00:35:13)
- Depoimento da testemunha GG, prestado na sessão de audiência de julgamento do dia 24 de março de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:26:59, tendo ocorrido o seu início pelas 16h30m e o seu termo pelas 16h57m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd 00:01:31 a 00:01:49; 00:02:07 a 00:02:16; 00:07:11 a 00:07:52; 00:09:44 a 00:10:27; 00:11:03 a 00:11:20; 00:22:27a 00:23:01; 00:23:21 a 00:23:46; 00:24:10 a 00:25:07 a 00:25:46; 00:26:12 a 00:26:22; 00:26:27 a 00:26:30)
- Depoimento da testemunha NN, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:07:19, tendo ocorrido o seu início pelas 14h51m e o seu termo pelas 14h58m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:00:20 a 00:00:22; 00:00:54 a 00:01:01; 00:02:45 a 00:03:33; 00:03:41 a 00:04:12; 00:04:17 a 00:04:24)
- Depoimento da testemunha GG, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:48:39, tendo ocorrido o seu início pelas 15h00m e o seu termo pelas 15h49m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:03:30 a 00:04:25; 00:04:39 a 00:08:18; 00:09:05 a 00:09:53; 00:10:12 a 00:10:36; 00:10:51 a 00:11:13; 00:11:22 a 010:11:42; 00:12:08 a 00:12:21; 00:12:30 a 00:13:45; 00:14:14 a 00:14:40; 00:14:45 a 00:14:58; 00:15:29 a 00:17:00; 00:18:30 a 00:20:20; 00:20:50 a 00:22:48; 00:23:30 a 00:25:54; 00:25:58 a 00:28:03; 00:31:30 a 00:32:59; 00:33:27 a 00:34:07; 00:34:25 a 00:35:02; 00:36:52 a 00:37:17; 00:37:38 a 00:39:05; 00:40:16 a 00:41:10; 00:41:28 a 00:42:46; 00:43:37 a 00:43:57; 00:44:08 a 00:45:30; 00:45:56 a 00:46:08; 00:46:22 a 00:46:34)
- Depoimento da testemunha FF, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:38:10, tendo ocorrido o seu início pelas 15h49m e o seu termo pelas 16h28m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:05:12 a 00:05:29; 00:05:21 a 00:06:07; 00:06:30 a 00:07:34; 00:_07:54 a 00:08:48; 00:08:57 a 00:10:25; 00:11:08 a 00:13:04; 00:13:15 a 00:14:42; 00:15:00 a 00:18:15; 00:18:27 a 00:19:31; 00:19:36 a 00:20:46; 00:21:00 a 00:21:37; 00:22:02 a 00:22:16; 00:24:00 a 00:24:37; 00:26:21 a 00:26:52; 00:27:17 a 00:27:22; 00:27:39 a 00:28:56; 00:30:55 a 00:31:12; 00:34:32 a 00:35:11; 00:36:15 a 00:37:32)
- Depoimento da testemunha II, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:13:52, tendo ocorrido o seu início pelas 16h35m e o seu termo pelas 16h49m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:02:06 a 00:04:16; 00:04:24 a 00:04:48; 00:05:14 a 00:05:43; 00:08:17 a 00:08:46; 00:11:22 a 00:12:32; 00:12:58 a 00:13:25)
- Depoimento da testemunha OO, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:05:01, tendo ocorrido o seu início pelas 16h35m e o seu termo pelas 16h49m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:02:33 a 00:03:25; 00:03:44 a 00:04:38)
- Depoimento da testemunha KK, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:09:44, tendo ocorrido o seu início pelas 16h56m e o seu termo pelas 17h05m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de00:02:07 a 00:02:56; 00:03:22 a 00:04:29; 00:04:47 a 00:05:23; 00:05:50 a 00:06:14; 00:06:28 a 00:07:41; 00:08:18 a 00:09:28)
- Depoimento da testemunha LL, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:08:44, tendo ocorrido o seu início pelas 17h10m e o seu termo pelas 17h19m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:02:20 a 00:03:55; 00:04:53 a 00:07:01; 00:07:41 a 00:08:35)
- Depoimento da testemunha PP, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 20 de abril de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:09:12, tendo ocorrido o seu início pelas 17h20m e o seu termo pelas 17h29m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd de 00:01:36 a 00:01:57; 00:02:20 a 00:04:06; 00:04:28 a 00:04:46; 00:05:07 a 00:05:27; 00:05:29 a 00:05:41; 00:06:07 a 00:07:12)
- Depoimento da testemunha MM, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 26 de maio de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 00:10:31, tendo ocorrido o seu início pelas 09h50m e o seu termo pelas 10h01m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd 00:01:29 a 00:02:43; 00:02:48 a 00:03:00; 00:03:42 a 00:04:52; 00:04:57 a 00:07:04; 00:07:59 a 00:08:45)
- Depoimento da testemunha EE, prestado na sessão da audiência de julgamento do dia 26 de maio de 2021, gravado em faixa de CD de 00:00:00 a 01:12:45, tendo ocorrido o seu início pelas 10h02m e o seu termo pelas 11h15m (extratos do depoimento gravado em faixa de Cd 00:00:47 a 00:00:55; 00:01:25 a 00:03:47; 00:03:55 a 00:04:49; 00:04:55 a 0:06:00; 00:06:10 a 00:07:45; 00:07:58 a 00:09:17; 00:09:35 a 00:10:05; 00:10:21 a 00:11:47; 00:12:10 a 00:14:14; 00:15:27 a 00:16:20; 00:16:37 a 00:18:51; 00:19:09 a 00:22:20; 00:23:15 a 00:23:28; 00:24:17 a 00:32:13; 00:33:00 a 00:35:40; 00:36:08 a 00:36:26; 00:37:32 a 00:40:28; 00:40:56 a 00:41:43; 00:46:00 a 00:46:20; 00:47:15 a 00:47:57; 00:48:04 a 00:48:20; 00:50:19 a 00:50:57; 00:51:36 a 00:52:10; 00:52:46 a 00:53:13; 00:53:56 a 00:54:21; 00:55:54 a 00:58:00; 00:58:55 a 00:59:08; 00:59:57 a 01:01:11; 01:02:01 a 01:02:33; 01:02:50 a 01:03:05; 01:05:39 a 01:06:24)
- Depoimento da testemunha HH de Cd 00:00:23 a 00:00:2700:00:54 a 00:04:53; 00:05:20 a 00:05:24; 00:05:28 a 00:05:57; 00:06:47 a 00:08:22; 00:08:58 a 00:11:41; 00:12:08 a 00:12:54; 00:14:00 a 00:15:15; 00:15:26 a 00:16:24; 00:16:38 a 00:16:44; 00:18:32 a 00:19:02)
CLXX. Em segundo lugar, o arguido  considera que a sentença recorrida encontra-se ainda ferida do vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, porquanto se assiste a uma total falta de pronúncia e/ou não consideração por parte do Tribunal, em relação aos factos invocados pelo arguido na sua contestação, sobre as contradições graves e manifestas em que incorre a vítima ao longo das suas declarações, os quais deveriam ter constituído os temas da prova (thema probandum) e, como tal, os factos a provar no presente processo.
              CLXXI. A matéria de facto apurada no seu conjunto, provada e não provada, é incapaz de suportar a decisão condenatória em abstrato.
                CLXXII. O arguido invocou factos na sua contestação, em concreto as contradições graves e manifestas em que a vítima incorre ao longo das suas declarações orais e escritas, factos estes suscetíveis de infirmar a prática pelo arguido dos factos de cuja prática vem acusado e, consequentemente, suscetíveis de infirmar o sentido da sentença condenatória de que se recorre.
                CLXXIII.O Tribunal Coletivo, ao não se pronunciar sobre estes factos essenciais para o apuramento e descoberta da verdade material, não se pronunciou sobre todos os factos integradores dos temas de prova e sobre os quais tinham o dever de se pronunciar, nos termos do artigo 124.º, n.º 1, do CCP, ao abrigo do princípio da oficiosidade, norma que violou.
CLXXIV. Desconsiderando que o arguido é também um sujeito processual e, como tal, contribui igualmente e ativamente para a boa decisão da causa, carreando factos para o processo que julgue adequados à sua defesa, sobre os quais o Tribunal tem o dever expresso de se pronunciar, enumerando os factos alegados pela defesa que considera provados ou não provados.
CLXXV. Incompreensivelmente a sentença recorrida nem tão-pouco enumera, nem tão-pouco se pronuncia sobre esses concretos factos invocados pelo arguido, sobre os quais impendia tal dever.
                CLXXVI. Como tal, a sentença recorrida não espelha a aplicação ao caso concreto do direito, após a apreciação e análise de todos os factos cuja  prova importava ser discutida, apreciada e valorada.
                CLXXVII. Encontrando-se ferida, por incompletude e inexistência de resposta aos temas da prova que os sujeitos processuais delimitaram, pelo que o vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” deve ser reconhecido pelo Tribunal de Recurso, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, com todas as consequências legais, como sejam a revogação da decisão recorrida.
                CLXXVIII. Por último, o arguido vem impugnar a matéria de direito constante da sentença recorrida, à luz do disposto no artigo 412.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
                CLXXIX. Em primeiro lugar, o arguido considera que, no decurso dos presentes Autos, verificaram-se várias situações de violação do direito e garantias de defesa do arguido, designadamente (i) no momento da sua detenção, (ii) no momento subsequente à sua detenção, quanto (iii) à proibição de contactar a sua família e à irregular constituição de Advogado, (iv) ao exercício de coação sobre o arguido, (v) à condução do seu interrogatório em sede de audiência de julgamento, (vi) ao indeferimento da prestação de declarações por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento e (vii) à condenação penal injusta do arguido, por via da sentença recorrida.
CLXXX. Apesar de o arguido ter procurado sempre colaborar com as Autoridades Judiciárias, não obstante sentir-se francamente intimidado pela própria condução da investigação e do julgamento.
                CLXXXI. Por estar em causa a alegada prática de crimes de cariz sexual e do arguido estar a ser alvo de um processo “kafkiano”, o arguido entende que, nos presentes Autos, a estrutura do processo penal português que se guia pelos valores mais elementares da dignidade humana e da presunção de inocência, bem como segundo o princípio do in dúbio pro reo, foi desvirtuada.
CLXXXII. Ao invés de na existência de uma dúvida objetivamente razoável se decidir a favor do arguido, no caso dos presentes Autos, assiste-se a uma inversão desse princípio: na dúvida, julga-se contra o arguido.
CLXXXIII. Assim, o arguido elenca, por ordem cronológica, os episódios de que foi vítima e que bem ilustram essa realidade.
                CLXXXIV. Quanto ao momento da sua detenção, o arguido foi procurado na sua residência e no seu local de trabalho, por agentes da Polícia Judiciária, supostamente com a finalidade de os ajudar a identificar uma viatura, no ponto da Guarda Nacional Republicana (GNR) de ... O arguido acompanhou-os voluntariamente. Contudo, nessa mesma tarde, prestou declarações perante os órgãos de polícia criminal, tendo sido constituído arguido e detido à ordem dos presentes Autos, bem como, inclusive, transferido para o Estabelecimento Prisional ..., tudo num curtíssimo espaço de tempo.
                CLXXXV. Pelas 16:00 horas, prestou declarações perante tais órgãos de polícia criminal, tendo sido constituído arguido, até às 18:30 horas, conforme Auto de interrogatório de fls. 144 a 148, e, pelas 18:45 horas, foi o mesmo detido à ordem dos presentes Autos, detenção essa ocorrida fora de qualquer flagrante delito, tendo sido elaborada certidão de fls. 178, cujo teor aqui se dá por reproduzida.
                CLXXXVI. Nessa certidão, consta que o Sr. Inspetor da Polícia Judiciária deteve a pessoa indicada no mandato (emitido às 18:45 horas pelo Coordenador de Investigação Criminal da Diretoria do Centro da Polícia Judiciária em ..., constante de fls. 177), o aqui arguido, tendo-lhe sido entregue cópia do mesmo, assinando ambos tal declaração.
CLXXXVII. Consta ainda de tal documento de fls. 177 dos Autos uma Cota onde o Sr. Inspetor refere “nos termos do artº260º,comreferência aoartº194 nº10, foi informada do direito de comunicar a sua detenção a pessoa da sua confiança, não o desejando fazer” e no lugar da assinatura do Sr. Inspetor, curiosamente, este não o fez, estando o espaço em branco.
CLXXXVIII. Também consta desse documento que o arguido foi entregue na Diretoria de Coimbra da Polícia Judiciária/zona prisional pelas 20:15 horas, conforme declarado pelo Sr. Guarda Prisional e carimbo nela aposto.
CLXXXIX. O que confirma o referido desde sempre pelo arguido que lhe foi vedada a possibilidade de estabelecer qualquer contacto com os seus familiares, pois que o Sr. Inspetor da Judiciária nem sequer assinou a sua cota e, dada a sequência de horas em que o arguido começou a ser ouvido, a hora em que foi detido e conduzido à Diretoria do Centro da Polícia Judiciária de Coimbra, onde entrou uma hora e meia depois…
CXC. A sua família inicialmente não foi sequer informada da sua detenção, muito menos da circunstância de ter sido interrogado e, posteriormente, levado para o Estabelecimento Prisional ..., apesar do arguido ter insistido, por diversas vezes, contactar a sua família, por forma a estabelecer ligação com o Advogado da sua confiança, que já o havia representado anteriormente noutros processos judiciais de natureza cível. Solicitação esta que lhe foi sempre negada.
CXCI. Conforme resulta das declarações prestadas pela sua esposa, no dia 20.4.2021, em sede de audiência de julgamento, a família não foi inicialmente informada da detenção do arguido, nem muito menos lhe foi comunicada a circunstância do arguido ter sido interrogado e, posteriormente, levado para o Estabelecimento Prisional ...,
CXCII. Apesar do arguido ter insistido, diversas vezes, para contactar a sua família, de forma a estabelecer ligação com o Advogado da sua confiança, que já o havia representado anteriormente no âmbito de outros processos judiciais de natureza cível.
              CXCIII. Só no dia seguinte à detenção, é que a família soube que o arguido seria apresentado à Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, sem que pudesse contactar com ele.
              CXCIV. Do Auto de interrogatório de 3.6.2020, efetuado pelos agentes da Polícia Judiciária, consta que o arguido, mesmo antes de ser interrogado pelos mesmos, foi informado do direito que lhe assiste em constituir advogado, constando que o mesmo prescindiu da nomeação de defensor.
              CXCV.  Segundo o mesmo Auto, ao arguido não lhe foi sequer permitido contactar os seus familiares, antes de constar que o mesmo prescindiu de advogado, nem sequer lhe haviam sido comunicados quais os factos que contra o mesmo eram denunciados.
                CXCVI. Assim sendo, e corroborando a versão do arguido, durante o período que mediou a sua detenção e a sua presença perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal para ser interrogado em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o arguido insistiu, por diversas vezes, em contactar a sua família, por forma a estabelecer contacto com o Advogado da sua confiança, que já o tinha acompanhado noutros processos, solicitação que lhe foi sempre negada.
                CXCVII. Como tal, no âmbito desse interrogatório, a sua defesa foi assegurada por Defensora Oficiosa, nomeada pelo Tribunal... não obstante o arguido ter o direito de escolher livremente o seu defensor e ter solicitado contactar o advogado que o acompanhou, há já vários anos, noutros processos de natureza cível....
                CXCVIII. Defensora Oficiosa essa... com quem nunca contactou previamente à realização de tal diligência e que esteve no Tribunal de Viseu, aquando da prestação de declarações para memória futura, por parte da ofendida BB, no dia anterior, a 4.6.2020, enquanto o arguido se encontrava nas instalações da Polícia Judiciária em ..., sem falar sequer com o mesmo...
                CXCIX. Como tal, não tendo conhecimento da gravidade dos factos que lhe eram imputados, o arguido não foi devidamente informado sobre a gravidade dos mesmos, para que pudesse recorrer a advogado à sua escolha, nem para o efeito lhe foi permitido contactar quaisquer familiares, violando-se o disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e3, da CRP.
CC. Aliás, conforme se verifica nos Autos, a Defensora Oficiosa não teve qualquer intervenção útil relativamente à aplicação da medida de coação de prisão domiciliária, nem tão pouco esclareceu o arguido sobre os factos que lhe eram imputados, de modo a que este pudesse conhecer a gravidade dos mesmos e se pudesse defender adequadamente, tal como explanado pelo próprio arguido.
CCI. Claro está, obviamente, que o arguido tem direito a ser informado dos factos que lhe são imputados, antes de prestar quaisquer declarações, sendo esta uma garantia do direito de defesa mínima e básica (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, p. 79),
CCII. Direito informação devidamente esclarecida, que assiste ao arguido em qualquer fase do processo, a começar, desde logo, pela fase de Inquérito.
CCIII. Constando tal facto do Auto, essa informação não lhe foi prestada, no início do interrogatório como do Auto consta, para que o arguido pudesse optar por constituir advogado de defesa.
CCIV. Só no dia 18.6.2020, por intermédio das filhas do arguido, foi possível constituir livremente advogados mandatados, no âmbito dos presentes Autos, os quais solicitaram, de imediato, a sua consulta urgente, bem como a entrega de cópia de todos os elementos documentais referenciados no auto do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, e de todos os documentos e CD’s contendo as declarações prestadas pela vítima e pelo arguido.
CCV. A pretensão de consulta dos presentes Autos foi indeferida por despacho de 23.6.2020, constante de fls. 257-258, com fundamento na circunstância do processo se encontrar em segredo de justiça,
CCVI. Tendo sido apenas deferida a entrega ao arguido de cópia dos outros elementos solicitados.
CCVII. Só após a entrega desses elementos, é queo arguido pôde efetivamente percecionar e apreender o teor, alcance, significado, bem como as consequências advenientes dos factos que lhe são concretamente imputados e que serviram de fundamento à privação da sua liberdade.
              CCVIII. Só após a entrega desses elementos, foi finalmente possível ao arguido preparar uma estratégia de defesa adequada e compatível com os seus direitos fundamentais, decorrente do seu estatuto processual, apesar de nessa data ainda não ter acesso integral e completo a todo o processo.
CCIX. Durante o período que mediou a sua detenção até à realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi-lhe sempre aconselhado e referido pelos órgãos de polícia criminal que o melhor para si seria confessar parte dos factos, cuja prática vem indiciada nos presentes Autos, por forma a alcançar qualquer tipo de acordo mais favorável e ser mais rapidamente colocado em liberdade...,
CCX. Tendo, inclusive, à revelia de qualquer possibilidade de ser aconselhado plena, devida e esclarecidamente por Defensor, sido aconselhado a prestar declarações nesses mesmo sentido perante a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal, que conduziu o primeiro interrogatório judicial de arguido detido...,
CCXI. E, mais grave ainda, após lhe ter sido comunicado, por esses mesmos órgãos de polícia criminal, de que existiriam provas concretas contra si, designadamente amostras do seu ADN e provas concretas de que a alegada vítima dos crimes perpetrados pelo arguido tinha sofrido um aborto, decorrente de uma gravidez provocada pelos atos alegadamente infligidos pelo arguido contra a mesma... o que era e é absolutamente falso!
CCXII. Foi-lhe, assim, apresentada uma versão diminuta, mas negra e distorcida dos Autos, com o objetivo de amedrontar, intimidar, aterrorizar e pressionar o arguido,
                CCXIII. Bem sabendo os órgãos de polícia criminal que o arguido é agricultor de profissão e apenas completou o ensino primário, possuindo um nível de instrução francamente reduzido, muito básico, que o impede de compreender a informação que lhe é transmitida pela Investigação, bem como de exercer livre e conscientemente o seu direito ao contraditório...
CCXIV. Bem sabendo a Investigação que o arguido temo direito a ser assistido devida e plenamente, em tempo útil e adequado à preparação da sua defesa, por defensor livremente escolhido por si que o pudesse elucidar do teor do processo e garantir os seus direitos decorrentes do estatuto de arguido, os quais resultam expressamente do CPP e da Lei Fundamental Portuguesa...
                CCXV.  Circunstâncias, por demais, evidentes que não podiam ter sido ignoradas, aproveitando-se a Investigação, ao invés, abusivamente, desta sua vulnerabilidade. Situação mais do que “kafkiana” que o aterrorizou, amedrontou, pressionou e condicionou o conteúdo das declarações prestadas pelo arguido... e que jamais poderá ser também ignorada!
                CCXVI. Para além de tal conduta dos órgãos de polícia criminal configurar o exercício de eventual coação, constitui também violação do princípio da lealdade processual.
                CCXVII. A deslealdade como meio de investigação é “sempre reprovável moralmente, embora nem sempre sancionada juridicamente” ... o que deve chocar toda a consciência ético-jurídica.
CCXVIII. Salvo o devido respeito, aquando do interrogatório do arguido em sede de audiência de julgamento, a instâncias do Ex.mo Magistrado que compõe o Tribunal Coletivo, não foi observado o direito à não autoincriminação conhecido como princípio nemo tenetur, que é igualmente uma das garantidas de defesa consagradas no artigo 32.º da CRP.
              CCXIX. Segundo o Código de Processo Penal, dos Magistrados do Ministério Público do Distrito ..., p. 859, “se o arguido prestar declarações, o Tribunal tem o dever de o ouvir serenamente sem manifestar pré-juízos sobre a culpa do arguido”.
                CCXX.  Assim sendo, quanto às declarações, deste modo, prestadas pelo arguido, e que o poderão incriminar relativamente a certos factos, cumpre dizer que deve ter-se em conta a explicação que o mesmo fez em Tribunal, acerca do modo, como e em que termos foi “aliciado“ pela Polícia Judiciária para inicialmente as prestar e como tal influenciou o seu conteúdo, bem como de manter parte delas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, sem aconselhamento prévio de Advogado.
                CCXXI. Conforme escreve Enrico Altavilla, in Psicológica Judiciária, vol. II, p. 76, “Certos indivíduos tímidos, emocionáveis, sugestionáveis, confusos não podem resistir por muito tempo a um interrogatório inquisitório cheio de perguntas sugestivas de dilemas angustiosos, de exortações a uma confissão completa, lisonja e de intimidações. Depois de haver cedido uma primeira vez acerca de um pormenor, cujo alcance não desconfiava, por confusão, por fraqueza, em virtude da sua impulsividade emotiva, por erro de cálculo de defesa, estes indivíduos acabam por confessar o crime de que lhe  é atribuído, com todos os pormenores que lhe são sugeridos, e até com outros inventados, que oportunamente são, com facilidade, desmentidos pela instrução.”,
CCXXII. O que sucedeu não só no âmbito das declarações prestadas perante os inspetores da Polícia Judiciária, mas também perante o Tribunal Coletivo, em sede de audiência de julgamento, em que se sentiu bastante confuso, amedrontado e pressionado, ao prestá-las, sem o discernimento necessário para se aperceber das consequências do que estava a declarar,
                CCXXIII. Pelo que as declarações prestadas pelo arguido não poderão classificar-se como confissão sem reservas, à luz do disposto no artigo 344.º do CPP, devendo enquadrar-se, antes, no âmbito do disposto no artigo 343.º, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
                CCXXIV. Basta a simples audição do interrogatório feito pelo Meritíssimo Juiz, com todo o devido respeito, que é muito, a forma e o modo como foi feito, para se concluir que o arguido respondeu não de uma forma livre e consciente, mas sim condicionado, assustado e sem discernimento do que estava a dizer.
                CCXXV. Por outro lado, o indeferimento da prestação de declarações pela ofendida em sede de audiência de julgamento, com fundamento na anterior prestação de declarações para memória futura, constitui mais uma forma de coartar o direito de defesa do arguido, porquanto as declarações prestadas pela mesma nesse âmbito são, em si mesmas, manifestamente contraditórias, e constituem o único fundamento para a imputação dos crimes de que o arguido vem acusado e pelos quais foi condenado, com a consequente privação da liberdade.
CCXXVI. O arguido requereu a audição da ofendida a esse título, em sede de audiência de julgamento, por forma a esclarecer factos necessários à defesa do arguido, dadas as contradições em que esta incorreu ao longo das suas declarações, tal como consta de várias peças do processo, nomeadamente, dos e-mails trocados com a professora, das declarações prestadas perante a Polícia Judiciária, das declarações prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, e da personalidade pela mesma revelada, aquando da sua sujeição a perícia médico-forense (exame psicológico e psiquiátrico, realizado por médica psiquiatra e psicóloga de ...).
                CCXXVII. Do Relatório sobre esta avaliação psicológica consta que a “avaliação psicológica não permite concluir com certeza pela prática dos factos imputados ao arguido”.
                CCXXVIII. Mais: consta igualmente que a jovem respondeu a todas as perguntas que lhe foram circunstanciadas, demonstrando alguma desejabilidade social, com perfeita perceção do que é correto ou incorreto, do que é socialmente aceite e do que não é, revelando desonestidade, ou seja, a jovem respondeu tendo em conta o que considera que os outros gostariam que ela respondesse.
CCXXIX. Consta ainda do Relatório sobre a avaliação psicológica que “À data da perícia não parecem existir queixas/sintomas compatíveis com perturbação emocional, mantendo a BB um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida, pelo que não apresenta consequências físicas e psicológicas para valorizar”.
CCXXX. O fundamento do indeferimento da audição da BB cingiu-se essencialmente aos superiores interesses da criança.
CCXXXI. Ora bem, o arguido não se pode conformar com tal decisão, desde logo, porque a ofendida BB tem 17 anos, perfazendo 18 anos no dia 6.3.2022, sendo, inclusive, responsável e imputável criminalmente.
                CCXXXII.É o próprio legislador que procede a essa distinção, em função da idade dos jovens e correspondente nível de maturidade e consciência ético-social esperado.
CCXXXIII. Mais: resulta dos próprios Autos de inquirição da ofendida, pela Polícia Judiciária, que a ofendida presta declarações, revelando ter uma personalidade firme, esclarecida, afirmando ela própria nas diversas mensagens não se sentir minimamente importunada com o teor destes Autos, nem a Sra. Psicóloga/Perita valorizou qualquer trauma psicológico.
CCXXXIV. Nesse mesmo Auto, a BB refere expressamente ter uma relação de namoro que teve início em outubro de 2019, admitindo já se ter relacionado com o mesmo sexualmente, não tendo tal alegado namorado conhecimento dos factos objeto da presente investigação.
                CCXXXV. Como é possível com tais factos poder falar-se de uma criança, com estatuto de vítima especialmente vulnerável… e não permitir que a prova seja produzida em sede de audiência de julgamento, por forma a acautelar o cabal exercício do direito de defesa do arguido e a aplicar-se o princípio do in dúbio pro réu?
                CCXXXVI. O arguido entende existir uma dúvida objetivamente razoável sobre as declarações prestadas pela ofendida, atenta as suas manifestas contradições, escritas e orais, ao longo de todo o processo.
CCXXXVII. Como tal, entende ser indispensável à descoberta da verdade material, que a ofendida seja presente ao Tribunal Coletivo para, em sede de audiência de julgamento, esclarecer todas as situações que a mesma, com manifestas contradições, relatou junto da Polícia Judiciária, nas declarações para memória futura perante a Meritíssima Juíza deInstrução Criminal, no seu papel quadriculado, na correspondência eletrónica trocada com a sua Professora...
CCXXXVIII. Por forma a que tal prova produzida, de cariz bastante dúbio, seja sujeito a um duplo grau de apreciação, agora pelos Juízes do Julgamento, de acordo com as regras da experiência e fazendo jus ao princípio da livre apreciação da prova….
CCXXXIX. Sem esquecer, claro, que a admissão de tal diligência é a que melhor se coaduna com o princípio do in dúbio pro reo… e com o princípio da descoberta da verdade material!
                CCXL.  Existindo dúvidas objetivamente credíveis e razoáveis…. a Constituição impõe que se decida não só a título definitivo, mas também ao longo de todas as diligências de aquisição dinâmica de prova, a favor do arguido, a favor da sua inocência... é, assim, e assente nestes moldes, que o processo penal português se encontra estruturado!
                CCXLI. Tal como resulta do próprio teor do artigo 271.º, n.º 8, do CPP, a repetição das declarações prestadas (em sede de declarações para memória futura, na fase de Inquérito) no contexto de audiência de julgamento poderá justificar-se, caso tal diligência se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade, como é o caso dos presentes Autos.
CCXLII. Conforme bem elucida José Mouraz Lopes, in Crimes Sexuais, 1.ª edição, p. 352, “(…) As declarações da vítima estão sujeitas à livre apreciação da prova. Art.º 127.º do CPP, imergindo a sua força probatória da consistência, coerência, modo como depõe e/ou corroboração com outros elementos de prova. Os demais elementos probatórios que constam do processo, podem confirmar ou infirmar o depoimento, devendo todos serem analisados de forma conjugada.”.
                CCXLIII. Como tal, revelando-se a realização de tal diligência indispensável ao esclarecimento da verdade, verifica-se que o legislador processual penal português, em consonância com a Lei Fundamental, quis proteger o direito e garantias de defesa do arguido, acusado da prática de tais crimes, designadamente a presunção da sua inocência e a condução do processo judicial segundo a máxima do in dúbio pro reo.
                CCXLIV. Ou seja, em caso de dúvida objetivamente fundada sobre o material probatório que serve de fundamento à privação da liberdade do arguido e, eventualmente, à sua futura condenação, a ordem jurídica portuguesa impõe que se decida, quer em sede de decisão final, quer em sede de tomada de decisões quanto à eventual realização de diligências dinâmicas de aquisição de prova, a favor do arguido.
CCXLV. Conforme demonstrado à saciedade, a dúvida objetivamente fundada, que justifica a prestação de declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, cinge-se às graves e manifestas contradições em que esta incorreu, ao longo de todo o processo, na prestação de declarações, orais e escritas, designadamente quanto à possibilidade de (i) de ser virgem e nunca ter tido relações sexuais; (ii) nunca ter tido qualquer namorado; (iii) ter tido relações sexuais com o tio, ora arguido, designadamente cópula vaginal, sexo oral e introdução dos dedos na vagina; (iv) ter resistido aos supostos e alegados “intentos” do tio, ora arguido, as quais se encontram expressamente detalhadas nos 64 a 118 da presente motivação.
CCXLVI. Sendo de concluir que o Tribunal, ao não ter considerado essas contradições como matéria de facto que integra os temas da prova, expressamente alegados pelo arguido na sua contestação, não pode em consciência decidir, de forma justa, imparcial, segura e isenta de dúvidas, sem antes ouvir a ofendida sobre a matéria de facto constante de tais temas probatórios.
CCXLVII. Pelo que, neste caso em concreto, o indeferimento da prestação de tais declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, com vista ao esclarecimento de tais factos, se afigura totalmente contrário às regras da experiência, sobretudo, neste tipo de processos-crime de natureza tão delicada e sensível, em que os supostos atos sexuais perpetrados contra a vontade da ofendida não são presenciados por quaisquer testemunhas, nem a própria ofendida, enquanto vítima, tem a certeza ao certo se os mesmos ocorreram, quando e onde.
CCXLVIII. Sem esquecer que neste tipo de processos-crime de natureza tão sensível e delicada, de um lado, temos a alegada vítima, e do outro, o alegado agressor, que também é uma pessoa com igual dignidade à da vítima, pelo que as alegações da vítima têm de ser minimamente sustentadas, não podendo suscitar qualquer dúvida no julgador sobre a alegada prática dos atos sexuais, perpetrados contra a sua autodeterminação.
                CCXLIX. Como tal, e conforme se advogou no Recurso apresentado 10-11-2021, do Despacho de7-10-2021 que indeferiu aprestação de declarações, por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento, outra conclusão não se poderá extrair a não ser a de se justificar o deferimento de tais declarações, à luz do disposto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP.
CCL. Segundo este preceito, justifica-se o deferimento da prestação de declarações, por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento, porquanto (i) a realização de tal diligência se revela manifestamente indispensável à descoberta da verdade material, sendo a que melhor se coaduna com o princípio do in dúbio pro reo, bem como com a observância do direito e garantias de defesa do arguido, uma vez que (ii) a condição de saúde física e mental da vítima assim o permite, em conformidade com os relatórios das perícias médico-legais a que foi sujeita.
CCLI. Tendo ficado, por demais, demonstradas as graves e manifestas contradições em que a ofendida incorre nas suas declarações, orais e escritas, e que continuam a servir de fundamento à privação da liberdade do arguido e à sua eventual futura condenação... existe uma dúvida objetivamente fundada sobre se a ofendida se encontra a dizer a verdade e, como tal, uma dúvida objetivamente fundada sobre a alegada prática pelo arguido dos crimes de que vem acusado.
CCLII. Como tal, o esclarecimento cabal e a descoberta da verdade material impõem-se como condição indispensável à realização de um processo penal justo e equitativo, cuja Lei Fundamental prevê que se deva nortear pela máxima da presunção de inocência e do princípio do in dúbio pro réu.
                CCLIII. Assim, em caso de dúvida objetivamente fundada, e, neste caso concreto, criada pela contradição das declarações prestadas pela ofendida, a ordem jurídica portuguesa resolve tal conflito a favor do arguido, exigindo a tomada de declarações pela ofendida, em sede de audiência de julgamento, com vista ao apuramento cabal da verdade material e à não condenação injusta e injustificada do arguido, na maior pena que em Portugal pode ser aplicada: a privação total da liberdade, por longo período de tempo.
                CCLIV. Segundo o Relatório de Avaliação Psicológica, realizado à ofendida, por parte do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da Unidade de ...do Centro Hospitalar .../... E. P. E., no dia 26.3.2021, pode ler-se: (i) “(...) não foi aparente a existência de psicopatologia ou problemas de memória” (fl. 17); (ii) “A BB tem capacidade de conservar em memória e reproduzir acontecimentos que presenciou, tendo um bom nível cognitivo, pelo que é capaz de testemunhar acerca das suas vivências” (fls. 17-18); (iii)“(...) não foi aparente a existência de psicopatologia e a BB mantem um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida.” (fl. 18).
CCLV. Ainda segundo a Avaliação Psicológica Forense, a fls. 1-2: “No Inventário de Personalidade de Eysenck-Forma Revista (EPQ-R), inventário que mede as dimensões do temperamento/personalidade, os resultados demonstram que a jovem respondeu de acordo com o que é socialmente correto/aceite, não sendo honesta na avaliação, pelo que não se pode interpretar o perfil obtido. Com este perfil de resposta, pode referir-se que a jovem consegue ter a perceção do que é correto/incorreto socialmente, demonstrando alguma desejabilidade social, ou seja, respondeu tendo em conta o que considera que os outros gostariam que respondesse.”.
                CCLVI. Por todo o exposto, a prestação de declarações por parte da ofendida, em sede de audiência de julgamento, revela-se indispensável à descoberta da verdade e, de modo nenhum, é suscetível de colocar em causa a saúda física ou psíquica da vítima, porquanto segundo as perícias médico-legais realizadas a vítima encontra-se em perfeito estado de saúde, físico e mental, não revelando qualquer trauma ou patologia.
                CCLVII. Nesta sequência, existindo dúvidas objetivamente razoáveis sobre as declarações prestadas pela ofendida, atentas as manifestas e graves contradições em que incorre, e, consequentemente, existindo dúvidas objetivamente razoáveis sobre os elementos do tipo objetivo e subjetivo dos crimes cuja prática é imputada ao arguido, não só deve chocar à mais elementar consciência ético-jurídico que a prestação de declarações pela ofendida em sede de audiência de julgamento não seja deferida...
CCLVIII. Mas, sobretudo, deve chocar à mais elementar consciência ético-jurídica a prolação de uma sentença condenatória do arguido, ao cumprimento de uma pena efetiva de 12 anos de prisão, pela alegada prática desses mesmos factos, de cuja prova subsistem dúvidas objetivamente razoáveis, mas insanáveis.
              CCLIX. Sendo absolutamente atroz optar-se por condenar o arguido, decidindo-se, na dúvida, contra o mesmo, e não a favor do mesmo, ao invés, de se atuar oficiosamente, com base nos princípios da proporcionalidade e da descoberta da verdade material, e, pelo menos e em conformidade, deferir a prestação de declarações por partedaofendida, em sede de audiência de julgamento, sobre os temas da prova (as contradições em que incorre, invocadas pelo arguido) sobre os quais não existe pronúncia por parte do Tribunal,
CCLX.E, assim, decidir-se, dando-se mais uma oportunidade ao arguido de, por via do depoimento da ofendida, demonstrar que é inocente.
              CCLXI. Foi violado o princípio da presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Lei Fundamental Portuguesa, segundo o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.”.
                CCLXII. Não pode deixar de considerar-se existir uma dúvida insanável de que o arguido tenha cometido qualquer de crime de violação ou sequer de abuso sexual, dúvida essa que pode e deve ser resolvida segundo o princípio do in dúbio pro reo.
CCLXIII. Conforme sublinha o Sr. Juiz Desembargador Dr. José Mouraz Lopes, in Crimes Sexuais Análise Substantiva e Processual, cit. p. 353, citando uma decisão judicial proferida pelo Supremo Tribunal Espanhol: “O direito da vítima em obter uma condenação e uma decisão absolutória, não supõe a desproteção da vítima e o fracasso do sistema penal. A justiça faz-se tanto com uma sentença absolutória como com uma sentença condenatória, desde que proferida em respeito pelas exigências processuais.”.
                CCLXIV. Citando Paulo de Sousa Mendes, in Prova Penal NNórica e Prática, p. 40: “O juízo de probabilidade do juiz de facto não pode ser holístico, mas tem de versar sobre cada alegação de facto. Os factos relativos aos elementos constitutivos do tipo de crime têm de ficar provados para além de qualquer dúvida razoável. A formulada prova para além da dúvida razoável, pode ser interpretada no sentido de o juízo de convicção do juiz de facto, sobre a veracidade de uma determinada alegação de facto, corresponder com um grau de probabilidade de 95 a 100%,”.
CCLXV. E ainda, segundo RenéFloriot, in Erros Judiciários, cit. p. 349: “Seum elemento do processo vos perturba, inquiete e impede de chegar a uma total certeza, numa palavra se conservais alguma dúvida, por mais ligeira, não hesiteis em absolver. É preferível deixar sair em liberdade um culpado do que castigar um inocente.”.
CCLXVI. Pelo que o Tribunal, ao não valorar devidamente as provas produzidas e ao não deferir que a ofendida BB esclarecesse, em audiência de julgamento, todas as contradições e dúvidas das suas declarações escritas e verbais, perante este Tribunal Coletivo, decidiu proferir sentença violando os princípios da certeza e segurança jurídicas e, sobretudo, o princípio in dubio pro reo, violando-se o artigo 32º da CRP.
                CCLXVII. Por outro lado, verifica-se um erro na qualificação jurídica, constante da sentença recorrida, porquanto o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido, pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP, tendo por referência a factualidade dada como provada nos pontos 5, 6, 7 e 8, supostamente, ocorrida num domingo de verão de 2015, em data não concretamente determinada, aproximando-se o arguido da ofendida enquanto esta lavava a loiça, abraçando-a, apalpando-lhe as mamas e pressionando o corpo dele contra o dela.
CCLXVIII. O arguido em face do já alegado entende não ter cometido tal crime.
CCLXIX. Contudo, sempre se dirá, - o que em nenhum caso se concede, mas de concebe por mero dever de patrocínio - que os factos referidos nesses ponto, não integrariam o crime do atual artigo 171.º do CP, já que esse artigo só entrou em vigor em 24.9.2015, ou seja, já o Verão tinha terminado, pelo que os factos praticados no Verão de 2015, ainda se regulavam pela redação anterior desse artigo, onde se prevê a prática com menor de 14 anos de ato sexual de relevo, que consistiria, nos termos do n.º 2, em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de parte do corpo ou objeto.
CCLXX. Ora, os factos descritos nesses pontos, que se impugnaram expressamente, não se enquadram em nenhum desses factos, podendo apenas integrar-se no crime de importunação sexual, previsto no artigo 170.º do CP, com uma moldura penal muito diferente.
                CCLXXI. E se, porventura, se provasse, que se não provam, factos idênticos, praticados depois da entrada em vigor da nova redação do artigo 170.º do mesmo Código, não deixariam de dever enquadrar-se em atos de importunação sexual.
CCLXXII. Acresce ainda que, no que toca aos restantes crimes de abuso sexual de crianças pelos quais o arguido foi condenado,13 crimes, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do CP (desde verão de 2015 até final do ano de 2017) e 4 crimes, previstos e punidos, pelos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, verifica-se que existe uma duplicação dos factos, conforme se alegou.
                CCLXXIII. Isto é, imputando-se, nos pontos 16 e 17 da matéria de facto dada como provada, ao arguido mais dois crimes de abuso sexual, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, que já se encontra descritos nos pontos 14 e 15.
CCLXXIV. O que sempre consubstanciará violação do princípio ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Lei Fundamental.
                CCLXXV. No que respeita aos 5crimes de violação agravado, foram indicados na Acusação como preenchendo o tipo geral do artigo 164.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 3, e 177.º, n.º 6, do CP.
                CCLXXVI. O Tribunal decidiu, por reporte à factualidade descrita nos pontos 19 e 20 da factualidade dada como provada, que o arguido cometeu 6 crimes de violação sexual agravada, previstos e punidos pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea b), na versão da Lei n.º 83/2015 de 5.8, vigente à data dos factos, e 177.º, n.º 6, ambos do CP.
CCLXXVII. Ora, o crime de violação do artigo 164.º do CP, foi alterado pela Lei n.º 101/2019 de 6.9 que só entrou em vigor em 1.10.2019, e o artigo 177.º, n.º 6 do mesmo Código, foi alterado em sentido mais favorável ao arguido, porque alargou a idade da vítima para 16 anos quando antes era de 14 anos.
CCLXXVIII. A menor fez 14 anos no dia 6.3.2018, sendo que o artigo 18.º da Acusação não distingue a idade da menor, para imputar ao arguido tais crimes, pelo que os factos referidos nos artigos 12.º, 17.º e 18.º da Acusação, nunca poderiam ser considerados como crime de violação agravado.
                CCLXXIX. Pelo que também não podia o Tribunal considerar a agravação do crime de violação pela aplicação do artigo 177.º, n.º 6, quanto a factualidade dada como provada nos pontos 19 e 20.
CCLXXX. E, relativamente à sua prática pelo arguido, a resposta a tais factos não pode deixar de ser negativa, já que é contra todas as regras da experiência que alguém possa ter relações sexuais consentidas, adormecendo.
                CCLXXXI. Sendo que é a própria ofendida, BB, que declarou que, após o arguido lhe ter feito sexo oral, não tem a certeza de tal ter acontecido.
CCLXXXII. Não se podendo esquecer também o que a mesma declarou quanto a ter tido relações sexuais anteriores com namorados e até alegar que se estivesse grávida não sabia quem era o pai…
CCLXXXIII. Assim, não pode deixar de considerar-se existir uma dúvida insanável de que o arguido tenha cometido qualquer crime de violação, dúvida essa que só pode ser resolvida a favor do arguido, segundo o princípio do in dúbio pro reo.
CCLXXXIV. Por fim, o arguido entende que a pena que lhe foi concretamente aplicada, isto é, a pena única de 12 (doze) anos de prisão efetiva, é manifestamente desproporcional e injusta.
CCLXXXV. Concorreram para a determinação da medida da pena as seguintes circunstâncias: (i) o grau de ilicitude dos factos; (ii) a interferência de fatores de agravação da medida da pena; (iii) a idade da BB; (iv) o modo de execução das infrações; (v) a gravidade das consequências decorrentes da prática de tais infrações; (vi) o dolo/intenção do arguido; (vii) a existência de fatores de risco de reincidência dos atos sexuais; (viii) o grau de violação dos deveres impostos; (ix) as exigências de prevenção geral; (x) as exigências de prevenção especial.
CCLXXXVI. Quanto ao grau de ilicitude dos factos, o Tribunal considera na sentença recorrida que: “(...) em qualquer dos casos, sem perder de vista a gravidade própria valorada na moldura abstrata correspondente, afigura-se forte, atenta a intensidade e natureza dos atos praticados, sobressaindo a pluralidade e diversidade daqueles repetidamente cometidos em relação à menor, consistente em atos sexuais de elevado relevo, envolvendo, além da introdução dos dedos na vagina, a manipulação com os dedos e língua das zonas intimas da menor (...)”.
CCLXXXVII. Quanto à interferência de fatores de agravação da medida da pena, o Tribunal considera que: “(...) a interferência de diversos os fatores de agravação da pena, nos termos o art.177º, nº8, do C. Penal, menor de 16 anos, a relação familiar -sobrinha, integrando a mais grave a estrutura valorativa do tipo, agrava também a ilicitude do facto;”.
              CCLXXXVIII.     Considera que: “(...) do ponto de vista da liberdade de determinação sexual da vítima, a agressão cometida foi acentuada;”.
CCLXXXIX. E que “(...) a idade da menor, com 14 e 15 anos à data das violações sexuais, afastada do limiar da agravação prevista pelo artigo 177.º, n.º 6, do Código Penal, agrava a censurabilidade da conduta;”.
CCXC. O Tribunal considera ainda, de forma abstrata, sem especificar, “o modo de execução dos abusos e violação sexual da BB”.
              CCXCI. Quanto à gravidade das consequências decorrentes da prática de tais infrações, alegadamente, pelo arguido, o Tribunal considera que “é intensa a gravidade das comprovadas consequências ao nível psicológico e emocional da vítima, embora não sejam conhecidas lesões físicas dessa atuação”.
CCXCII. Quanto ao dolo do arguido, o Tribunal considera que “em todos os casos, o dolo do arguido, sendo direto, revela acentuada intensidade, traduzida no empenho e energia revelada na execução repetida dos atos que praticou e os obstáculos e as contra motivações sociais que teve de vencer para concretizar o seu propósito”.
                CCXCIII. E que: “contra o arguido apresentam-se os fins ou motivos que determinaram, quantas vezes, a satisfação dos seus desejos sexuais que sobrepôs aos interesses da dignidade e desenvolvimento harmonioso da criança, sua sobrinha, valendo-se da particular vulnerabilidade da mesma e da proximidade que as relações familiares e de dependência emocional da menor proporcionavam”.
CCXCIV. Quanto à existência de fatores de risco de reincidência dos atos sexuais, o Tribunal considera que “consubstanciam fatores de risco de reincidência a repetição dos atos sexuais, ao longo de um período de tempo bastante longo, a falta de arrependimento e sentida consciência critica dos factos cometidos, refletida na posição inicial assumida pelo arguido em julgamento em que começou por negar os factos”.
                CCXCV. Sendo de “ressaltar o facto de a conduta do arguido se ter prolongado reiteradamente por vários anos, tendo-se iniciado desde que a BB tinha apenas 11 anos de idade”.
                CCXCVI. Quanto ao grau de violação dos deveres impostos, o Tribunal considera que: “o grau de violação dos deveres impostos ao arguido é elevadíssimo, em razão do laço familiar que o ligava à vítima”.
CCXCVII. Quanto às exigências de prevenção geral, o Tribunal considera que “em qualquer dos casos o comportamento do arguido é socialmente tido como grave e desonroso, aclamando fortes exigências de prevenção geral”,
                CCXCVIII. Que “a reiteração destas condutas criminosas por parte do arguido evidencia relevante perigosidade social do mesmo, mostrando-se totalmente insensível aos valores jurídicos penalmente tutelados”,
CCXCIX. E que “as exigências de prevenção geral neste tipo de crimes, é sabido, têm vindo a ganhar crescente relevância na sociedade contemporânea, a significar uma preocupação comunitária da maior grandeza pelas suas dimensões e gravíssimas consequências, tanto individual como coletivamente, constituindo a sua ofensa motivo de generalizado e crescente repúdio social”.



CCC. Quanto às exigências de prevenção especial, “as consequências pessoais dos factos para a vítima são elevadas, que as condutas de natureza sexual prejudicam gravemente o desenvolvimento da personalidade em fase de crescimento e maturação”.
CCCI. Em sentido abonatório da pessoa e da personalidade do arguido, o Tribunal considerou que: (i) “o arguido beneficia de integração familiar, ocupacional e social”; (ii) “o arguido não tem antecedentes criminais”.
CCCII. Contudo, esqueceu-se que deu igualmente como provados outros factos também abonatórios da pessoa e da personalidade do arguido que, inclusive, indiciam que o arguido não tem um perfil de quem pratique crimes de natureza sexual, tais como: (i) é uma pessoa humilde, trabalhadora, cumpridora da lei e detém um nível de instrução reduzido; (ii) desde os seus 16 anos que o arguido e a sua esposa mantem um relacionamento conjugal saudável e muito afetuoso; (iii) sempre beneficiou de uma imagem positiva, de pessoa bem formada e trabalhadora, perante a sua família, amigos e vizinhança; (iv) as pessoas que o conhecem ficaram estupefactas com as acusações de que é alvo neste processo-crime, não acreditando na possibilidade deste ter perpetrado crimes de natureza sexual contra a sua sobrinha BB; (v) nunca apresentou qualquer sintomatologia e/ou indícios de consumo abusivo de bebidas alcoólicas; (vi) é uma pessoa perfeitamente integrada na sociedade, sendo um cidadão cumpridor da lei.
              CCCIII.  Sendo este o perfil do arguido traçado pela própria sentença e que em nada condiz com o perfil de um agente perpetrador de crimes sexuais e, muito menos, se reflete na medida da pena concretamente aplicada ao arguido...
              CCCIV. O arguido entende que o Tribunal, na sua apreciação crítica, não valorou devidamente estes factos, nem os critérios de fixação da medida da pena, já que o artigo 71.º, n.º 1, do CP, dispõe que a medida concreta da pena deve ser fixada em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial que se verificam e impõem no caso concreto.



CCCV.O arguido expressamente impugnou a matéria de facto constante dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, a qual não deveria ter sido dada como provada, à luz das regras da experiência comum e dos princípios da livre apreciação da prova, dos princípios da certeza e da segurança jurídica, bem como do in dúbio pro reo.
              CCCVI. Tudo conforme se alegou nos pontos 36 a 230 desta motivação, devendo, por isso, a sentença recorrida ser revogada e, em consequência, decidir-se tais factos como não provados, absolvendo-se o arguido dos crimes por que foi condenado, ou, no mínimo, que se revogue o Despacho do dia 7.10.2021, o qual indeferiu o depoimento da ofendida BB em audiência de julgamento, com a consequente baixados Autos para produção de prova.
CCCVII. Sendo tal depoimento imprescindível à descoberta da verdade material, por forma a esclarecer factos necessários à defesa do arguido, dadas as contradições em que a ofendida incorreu ao longo das suas declarações, tal como consta de várias peças do processo, nomeadamente, dos e-mails trocados com a Professora, das declarações prestadas perante a Polícia Judiciária, das declarações prestadas perante a Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, e da personalidade pela mesma revelada, aquando da sua sujeição a perícia médico-forense.
                CCCVIII. Pois, só dessa forma, verdadeiramente, o direito e garantias de defesa do arguido ficam acautelados, atenta as dúvidas objetivamente razoáveis criadas pela própria ofendida ao longo do processo e que, necessariamente, deveriam ter sido decididas a favor do arguido, atentos os princípios da certeza e segurança jurídica, mas, sobretudo, do princípio in dúbio pro reo e do valor da presunção de inocência.
                CCCIX.  E, não prescindindo do atrás alegado, quanto à matéria de facto e ausência de prova, e violação de tais princípios, caso este Venerando Tribunal entenda manter tal factualidade e condenação do arguido pelos crimes imputados na douta sentença recorrida, o que não se concede,



CCCX. Sem prescindir e por cautela de patrocínio, entende também que a pena concretamente aplicada ao mesmo não é consentânea com o carácter e perfil do arguido traçado pelas testemunhas por si arroladas e ouvidas em audiência de julgamento, e até segundo os factos abonatórios da sua personalidade dados como provados na própria sentença recorrida, nem mesmo com os factos dados como provados.
                CCCXI. Não obstante, as doutas considerações tecidas pelo Tribunal, na sua fundamentação de direito, entende-se que este podia e devia ter optado por penas parcelares mais baixas e, consequentemente, por uma pena única também substancialmente mais baixa, consentânea com a culpa do arguido, por se afigurar ser o que preenche as exigências tanto de prevenção geral, como de prevenção especial.
                CCCXII. Sendo que, atendendo ao que se alegou nos pontos 338 a 373, não podia este Tribunal decidir pela agravação dos crimes de violação, nos termos do artigo 177.º, n.º 6, do CP, mas sim pela violação simples.
                CCCXIII. Entende o arguido que o Tribunal, ao tecer as considerações transcritas nos pontos 358 a 373 desta motivação, não teve em conta a culpa do arguido, a sua personalidade e perfil, a sua idade e o facto de se encontrar socialmente bem integrado na sociedade.
                CCCXIV. Movendo -se por meros sentimentos de proteção da vitima, atenta a natureza dos crimes em apreço eo eventual impacte na opinião pública, enão por certezas, vítima essa que, ao longo do processo “atira para o ar” que os abusos e violações foram “talvez”, “5 se tanto”, “pelo menos uma vez”… sendo caso para perguntar: foram, afinal, 10, 20, 24 vezes? E porque não 50, 100 vezes?
                CCCXV. Com base nesse depoimento da vítima, absolutamente contraditório, incoerente, contra as regras da lógica e da experiência, condena-se o arguido a 12 anos de prisão?
CCCXVI. Entende-se, pois, que o Tribunal ultrapassou largamente a culpa do arguido e não teve em conta os princípios da adequação e proporcionalidade das penas parcelares e da pena única que lhe foram aplicadas, violando-se expressamente o disposto nos artigos 29.º, 30º e 32.º da CRP, 70.º, 71.º e 40.º 1 e 2 do CP, tanto mais que as exigências de prevenção geral e especial as não justificam.
                CCCXVII. No que concerne às exigências de prevenção geral, entende o arguido que o interesse púbico não pode justificar que se inflija a um indivíduo, qualquer pena.
CCCXVIII. Não podendo a prevenção geral ser utilizado como instrumento para repor a confiança nas Instituições e Organismos que combatem o crime, sobrepondo-se à culpa do arguido.
CCCXIX. Nem tão pouco pode “andar a reboque” dos receios pontuais que alarmam a opinião pública em geral.
CCCXX. O artigo 71.º do CP delimita as razões legais da aplicação da pena – a culpa, o ponto de referência que o julgador não pode ultrapassar – e a prevenção geral e especial.
                CCCXXI. A culpa como limite que é serve para determinar um máximo de pena que não poderá ser ultrapassado, mas não para fornecer, em última instância, a medida da pena, já que esta depende, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção.
CCCXXII. Tal norma deve ser interpretada, em articulação com o artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a fim de se concluir que só as finalidades de prevenção podem legitimar a medida da pena, afastando, deste modo, as finalidades absolutas de retribuição e expiação.
CCCXXIII. Tal interpretação decorre do chamado princípio da referência constitucional ou princípio da congruência ou da analogia substancial entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos (vide Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pp. 72 e 73).



CCCXXIV.     A prevenção geral é, hoje, concebida pela doutrina, não como prevenção negativa, mas como prevenção positiva, de integração, socialização e de reforço da consciência jurídica comunitária.
                CCCXXV. Para as teorias da prevenção geral positiva, “a missão do direito penal projeta-se fundamentalmente na educação coletiva e no foro íntimo das pessoas, procurando educá-las para a finalidade do direito” (Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português parte geral I, Introdução e Teoria da Lei Penal, Editorial Verbo, Lisboa, 1997, cit. p. 39).
                CCCXXVI. Entende, assim, o arguido que as exigências de prevenção geral nos presentes Autos não justificam as penas parcelares e única aplicadas.
CCCXXVII. No que concerne à prevenção especial, vocacionada para o indivíduo em si, deverá o Tribunal a quo valorar todos os fatores de medida de pena relevantes para qualquer uma das funções queo pensamento da prevenção especial realize; seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização.
CCCXXVIII. Dispõe o artigo 71.º do CP que a determinação concreta da pena é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa e das exigências de prevenção acrescentando o n.º 2 do preceito que, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele... o que o Tribunal não fez!
CCCXXIX. E é assim que as finalidades da pena se reconduzem, desde logo, à tutela de bens jurídicos e também na reinserção do delinquente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa.
                CCCXXX. A pena não pode, pois, compensar ou retribuir a culpa, devendo antes ter presente a reintegração do agente na sociedade.



CCCXXXI.        Conforme se encontra expresso no Acórdão da Relação de Coimbra de 10.5.2017, proferido no processo nº 73/12.3GAMGL.C1: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração) é a finalidade primeira que se prossegue, no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime e em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal. - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 55 e seguintes e Ac. STJ 29.4.98.
CCCXXXII. Na concretização da regra estabelecida no n.º 1 in fine, do artigo 77.º do CP, de acordo com o qual na medida da pena - no que à punição do concurso concerne - são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, tem sido pacífico, designadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que essencial “na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse bocado de vida criminosa com a personalidade, de tal forma que a pena conjunta deve formar-se  mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares” - [cf. Acórdão do STJ de 05.07.2012 (proc. n.º 145/06.SPBBRG.S1)], o que, contudo, não dispensa o recurso às exigências de prevenção geral e especial, encontrando, também, a pena conjunta o seu limite na medida da culpa.
CCCXXXIII. No entanto, o Tribunal a quo violou tais critérios e disposições legais, tendo apenas em consideração a perspetiva da vítima e da opinião pública e não a do arguido, que é primário, não tem um perfil de abusador sexual, é pessoa de caráter, está integrado na sociedade, com quase 60 anos de idade, estimado por todos e, sobretudo, pela sua família.

                  CCCXXXIV. Condenando o arguido numa pena única pesadíssima, de 12 anos de prisão efetiva que coincide com o mínimo legal da pena aplicável pelo crime de homicídio qualificado, previsto e punido, pelo artigo 132.º do CP!
                  CCCXXXV. Tendo por base apenas o depoimento absolutamente contraditório e duvidoso da ofendida BB, que não consegue precisar sequer, com o mínimo de certeza, temporalmente os factos.
                  CCCXXXVI. Entendendo-se por isso e em face do exposto, que as penas parcelares e única aplicadas ao arguido são desadequadas, desproporcionais e injustas.
                  CCCXXXVII. Não se coadunando até com o que tem sido decidido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
                  CCCXXXVIII. Veja se o Acórdão da Relação de Coimbra citado, que condenou o agente pela prática de 72 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), 12 crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), 48 crimes de abusos sexuais de menores dependentes, previstos e punidos pelo artigos 172.º, n.º 1, agravado nos termos do disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea b), 12 crimes de violação [praticados entre agosto de 2014 e agosto 2015, estando em vigor o regime legal introduzido pela Lei n.º 59/2007], previstos e punidos pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b), do CP, 26 (vinte e seis) crimes de violação [praticados entre setembro de 2015 e novembro de 2017, estando em vigor o regime legal introduzido pela Lei n.º 83/2015], previstos e punidos pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea b), todos do CP, na pena única de 10 anos de prisão efetiva, revogando a decisão de primeira instância que havia condenado o arguido na pena de 12 anos de prisão.
                  CCCXXXIX. Pelo que, caso o Tribunal entenda ser de aplicar ao arguido pena de prisão, o que não se concede em face do já referido, sempre as penas parcelares aplicadas terão que ser reduzidas, bem como a pena única, revogando-se a douta sentença, fixando-se estas nos seus limiares mínimos.


                  CCCXL. Por fim, quanto à matéria de responsabilidade civil por facto ilícito, entendeu o Tribunal condenar o arguido no pagamento de uma indemnização à vítima no valor de 30.000,00€ (trinta mil euros).
                                  CCCXLI. Contudo, salvo o devido respeito, o arguido não só considera não se encontrarem preenchidos, no caso concreto, os pressupostos legais geradores de responsabilidade civil por facto ilícito, por não ter cometido qualquer dos crimes por que foi condenado, como entende, por cautela de patrocínio, e para o caso de ser mantida a sua condenação pelos mesmos, que o valor da indemnização arbitrada é manifestamente desproporcional, à luz dos princípios que devem guiar a determinação do seu quantum.
                  CCCXLII. O direito indemnizatório da ofendida que o Tribunal pretende fazer valer inscreve-se no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, cujos pressupostos – facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano – se encontram expressamente consagrados no artigo 483.º do Código Civil (doravante CC), conforme remissão operada por via da aplicação do artigo 129.º do CP,
                                  CCCXLIII. Com a consequente obrigação de indemnização do lesado pelos danos resultantes, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 562.º e seguintes do CC.
                                  CCCXLIV. O arguido expressamente impugnou a matéria de facto constante dos pontos 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do ponto 44 da sentença recorrida, a qual não deveria ter sido dada como provada, à luz das regras da experiência comum e dos princípios da livre apreciação da prova, dos princípios da certeza e da segurança jurídica, bem como do in dúbio pro reo.
                                  CCCXLV. Tudo conforme se alegou nos pontos 36 a 230 desta motivação, concluindo-se dever ser a sentença recorrida revogada e, em consequência, decidir-se tais factos como não provados, absolvendo-se o arguido dos crimes por que foi condenado, ou, no mínimo, que se revogue o Despacho do dia 7.10.2021, o qual indeferiu o depoimento da ofendida BB em audiência de julgamento, com a consequente baixados Autos para produção de prova.
                  CCCXLVI. Como tal, tendo ficado demonstrada a inexistência da prática dos crimes de abuso sexual e de violação, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.ºs 1 e 2, 164.º, n.º 2, alínea b), na versão vigente à data dos factos, artigos 177.º, n.º 6, e 173.º, n.º 1, ambos do CP, pela qual o arguido foi condenado nos presentes Autos,
                  CCCXLVII. Desde logo, inexiste a prática de quaisquer factos ilícitos pelo arguido, apto a causar os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela ofendida BB, suscetível de fundamental tal pedido indemnizatório, nos termos do artigo 483.º e seguintes do CC.
                  CCCXLVIII. Danos esses que não ocorreram e que, por isso, aqui se impugnam expressamente, não existindo qualquer nexo de causalidade entre a conduta do arguido e os mesmos, nem tal conduta é suscetível de os produzir.
                                  CCCXLIX. Aliás, a própria ofendida BB reconhece expressamente não ter sofrido qualquer tipo de dano não patrimonial, isto é, qualquer dano físico, psicológico e/ou sexual, conforme consta das suas declarações escritas.
                  CCCL.O que é igualmente corroborado pelos Relatórios que incidiram sobre as perícias médico-legais a que a mesma foi sujeita, constantes de fls. 726 a 754, onde expressamente se declara que a BB não sofreu qualquer trauma físico, psicológico e/ou sexual, e se refere expressamente que a mesma responde às perguntas que lhe são circunstanciadas “de acordo com o que é socialmente aceite”, apresentando traços fortes de “desejabilidade social”.
                                 CCCLI. E que “a BB reconhece as situações como abusivas, porém à data da perícia não parece existir queixas/sintomas compatíveis com perturbação emocional, mantendo a BB um funcionamento adequado nas várias áreas da sua vida, pelo que não apresenta consequências físicas e psicológicas para valorizar”.
                  CCCLII. Sendo que é a ofendida que, inclusive, declara aos peritos, não ter versões diferentes sobre os factos, tendo apenas utilizado linguagem diferente… o que muito bem sabe não ser verdade, quando é ela própria que cria dúvidas objetivamente razoáveis sobre os factos efetivamente praticados pelo arguido contra a vítima…
                  CCCLIII. O único facto dado como provado respeitante aos danos morais eventualmente sofridos pela ofendida consta do ponto 47 da sentença: “em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a menor BB sofreu vergonha, tristeza, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional”,
                                  CCCLIV. O qual se impugnou expressamente, por a prova produzida ser em sentido contrário, nomeadamente as declarações da própria ofendida, escritas e verbais, os relatórios periciais supra referidos e, atento o ainda relatado pelas testemunhas EE e HH, este bombeiro de profissão, com formação neste tipo de situações (cujos extratos dos depoimentos se transcrevem supra e para os quais se remete), não tendo presenciado ou sentido nos comportamentos da BB qualquer sinal de alarme, desatenção, infelicidade, nervosismo, tristeza, ansiedade ou qualquer instabilidade emocional.
                  CCCLV. Não vislumbrando o arguido como é que o Tribunal, apenas do ponto 47 da matéria de facto dada como provada, extrai as conclusões que tece na douta sentença recorrida, como sejam: (i) “(…) em consequência da conduta do arguido, foi vítima desde os 11 anos de idade das maiores atrocidades sexuais por parte do tio, a criar-lhe um conflito valores interior e insegurança perante as relações futuras com os seus pares”; (ii) “Não são conhecidas lesões físicas da vítima, mas sofreu danos psicológicos. Em consequência direta e necessário dos factos praticados pelo arguido, o seu confronto com as instâncias judiciais e no seio escolar, a menor BB sofreu necessariamente    vergonha, tristeza, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional” (sublinhado nosso).
                  CCCLVI.  Não é a própria ofendida que diz precisamente o contrário? Pelo que, não existindo crime, não existe facto ilícito, nem se verificam os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito e, em consequência, nenhuma obrigação existe em indemnizar a ofendida por parte do arguido.
                  CCCLVII. Caso assim se não se entenda, mantendo este Venerando Tribunal a decisão de condenação do arguido pelos crimes plasmados na douta sentença recorrida – o que não se concede, mas apenas se concebe por mero dever de patrocínio -, sempre se dirá que o valor da indemnização arbitrada pelo Tribunal é manifestamente desproporcional, à luz dos princípios que devem guiar a determinação do seu quantum, não se percebendo a partir do texto da decisão recorrida como chegou o Tribunal a tal montante.
                                  CCCLVIII. Não bastando, para tal, a mera invocação do disposto nos artigos 494.º e 496.º do CC, normas que se entende terem sido violadas.
                  CCCLIX. Como pode o Tribunal “fazer” a justiça no caso concreto se, ao proceder ao juízo de equidade, refere na sentença que o arguido beneficia de condição social e económica favorável, quando na factualidade dada como provada nos pontos 40 a 43, se refere expressamente que a situação económica do agregado familiar é equilibrada, tendo como rendimento o vencimento da esposa do arguido equivalente ao salário mínimo nacional e o vencimento do arguido decorrente dos trabalhos que realizava na agricultura, estes de montante variável dependendo das ofertas de trabalho (cfr. ponto 40 da sentença recorrida)?
                                CCCLX. Referindo-se, ainda, no ponto 41 dos factos provados que “Paralelamente, realizavam agricultura e criavam animais para autoconsumo. Com a reclusão do arguido esta atividade ficou comprometida, tendo a esposa que vender os animais e reduzir as culturas, o que se repercutiu na perda de rendimento”.
                                  CCCLXI. Como pode o Tribunal, em face de tal factualidade, concluir que o arguido beneficia de uma situação social e económica favorável? Arguido esse que agora não trabalha, porque está em prisão preventiva há 19 meses, ficando os rendimentos do agregado familiar circunscritos apenas ao ordenado mínimo da sua esposa,
                                  CCCLXII. Pelo que como pode pagar o valor fixado a título de indemnização de 30 000,00 euros? Será esta a solução de equidade mais justa?
                                  CCCLXIII. E, cumprindo pena de prisão efetiva de 12 anos, o seu agrado familiar sobrevirá apenas com o ordenado mínimo da sua esposa, a qual nada tem a ver com a indemnização arbitrada, sendo a mesma que irá suportar as consequências de tal condenação…sendo esta que sofrerá essa “pena” … pois que o casal não tem liquidez nem rendimentos que lhe permitam pagar tal indemnização.
                  CCCLXIV. Seguindo-se o Tribunal, ao fixar tal montante indemnizatório, por meros sentimentos de proteção da vítima, atenta a natureza dos crimes em apreço e o eventual impacte na opinião pública, e não por certezas…
                                  CCCLXV. O que o arguido não pode aceitar, sendo também a sua condenação no pagamento de 30 000,00 euros, à ofendida BB, manifestamente injusta e penalizadora para o arguido atenta a sua idade, a sua personalidade e a sua situação económica, que não lhe permite pagar tal montante.
                  CCCLXVI. Pelo que o montante de indemnização pelo dano não patrimonial fixado pelo Tribunal excede em muito o que é usual na jurisprudência em situações idênticas às dos Autos.
                  CCCLXVII. Devendo, por isso, e, em face do exposto, tal montante ser reduzido substancialmente, em obediência a critérios de equidade e de justiça, se este Venerando Tribunal mantiver a condenação do arguido pelos crimes por que foi condenado na sentença recorrida, o que só por mera hipótese e por dever de patrocínio se concebe, mas, em nenhum caso, se concede
                  CCCLXVIII. Por último, dir-se-á que a douta sentença recorrida violou os artigos 124.º, 127.º, 271.º, n.º 8, 344.º, e 340.º, do CPP, os artigos 164.º, n.º 1, alíneas a) e b), n.ºs 2 e 3, 171.º, n.ºs 1 e 2, 170.º, 177.º, n.º 6, 40.º, n.ºs 1 e 2, 70.º, 71.º e 77.º, do CP, os artigos 483.º e seguintes, 562.º e seguintes, 494.º e 496.º do CC, bem como os artigos 28.º, 29.º e 32.º da CRP.

                  CCCLXIX.     Assim, por todo o exposto, deverá o presente RECURSO ser julgado procedente, com todas as consequências legais, nomeadamente a revogação e alteração da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida e, em consequência, a revogação da sentença recorrida, nos termos sobreditos».



                              3. AS RESPOSTAS AOS RECURSOS

                  3.1. O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos dois recursos, em conjunto, opinando que eles não merecem provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

                  3.2. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento aos recursos.

                  4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alíneas b) e c) do mesmo diploma.

                              II – FUNDAMENTAÇÃO
                             
                  1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

                  Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
                               Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal, face aos dois recursos intentados:
                  A. RECURSO da decisão interlocutória (RECURSO A) – é de validar o despacho do Colectivo em indeferir a reinquirição da jovem BB, já outrora ouvida em declarações para memória futura?
                  B. RECURSO do acórdão (RECURSO B)
                  a. Há algum vício do artigo 410º/2, nomeadamente o previsto na alínea a), do CPP?
                  b. Há erro de julgamento?
                  c. Os tipos legais encontrados pelo Colectivo são os correctos?
                  d. As penas parcelares e global foram excessivas?
                  e. A indemnização arbitrada foi excessiva?

                              2. DAS DECISÕES RECORRIDAS

                              2.1. O RECURSO A incide sobre esta deliberação do Colectivo de Viseu:

                  «Após deliberação:
                  Requerimento do arguido de fls. 594 e seguintes (apresentado na contestação e reiterado no requerimento de 23.07.2021, Refª4803995):
                  O arguido requereu a inquirição da ofendida BB em audiência de julgamento. Esta prestou declarações para memória futura em 4.6.2020, nos termos do disposto no artigo 271º do Código de Processo Penal, encontrando-se as mesmas disponíveis nos autos.
                  A tomada de declarações para memória futura constitui uma excepção ao princípio da imediação e obedece a exigências de tutela da personalidade da testemunha e da sua protecção, assim se evitando, no caso de crimes de natureza sexual, como é o caso, os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua experiência e a sua exposição em julgamento público.
                  É, pois, inegável, que o legislador ao impor a obrigatoriedade da inquirição para memória futura de vítimas de crimes sexuais reflecte o propósito dessa protecção.
                  Acresce que, essa tomada de declarações é uma diligência de prova realizada pelo Juiz de Instrução, na fase de inquérito, sujeita ao princípio do contraditório, princípio que no caso foi assegurado, com a presença da defensora do arguido.
                  A repetição das declarações prestadas no contexto de julgamento apenas deve ser efectivada, caso se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade. Está em causa o interesse da protecção da menor que, no caso em concreto, prevalece, sobre qualquer outro interesse.
                  Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-01-2012, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:
                  “Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.
                  O artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito.”
                  Ora, como supra se referiu, a menor BB prestou declarações para memória futura em 4.6.2020, encontrando-se as mesmas disponíveis nos autos. Por outro lado, foi a mesma submetida a diversos exames médico-legais, cujos relatórios e devidos esclarecimentos, muitos requeridos pelo arguido, estão juntos aos autos.
                  Acresce que, no que diz respeito às alegadas contradições/incongruências nas declarações prestadas pela ofendida, a existirem, serão as mesmas apreciadas, em sede de acórdão, em conjugação com a demais prova que foi produzida.
                  Em face do exposto, indefere-se a requerida prestação de declarações da ofendida em sede de julgamento.
                  Notifique».


                              2.2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO (sobre que incide o RECURSO B)

                  2.2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):
                  «Da audiência de discussão e julgamento da causa - a que se procedeu com observância do atinente formalismo legal - resultou provada a seguinte matéria de facto:
                  1 - BB nasceu a .../.../2004, é filha de UU e de DD e reside na Rua ..., (…), juntamente com a mãe e a irmã gémea: CC.
                  2 - O arguido é casado com QQ, irmã da mãe da BB, sendo, por isso, tio por afinidade dela.
                  3 - Em 2013, a BB, a mãe e a irmã foram residir para uma casa sita junto da casa onde reside do arguido, a acima indicada, encontrando-se as respectivas casas separadas apenas por um muro.
                  4 - Inicialmente, quando a família da BB foi morar para a referida casa, a relação entre as famílias não era muito cordial, mas com o passar do tempo as irmãs (mãe da BB e esposa do arguido) estreitaram relações e as famílias passaram a relacionar-se bem e a estar muito presentes na vida uma da outra, tendo passado a visitar-se com frequência e a ajudarem-se mutuamente, concretamente no cultivo dos terrenos agrícolas propriedade de ambas.
                  5 - Em dia não concretamente determinado, mas num Domingo do Verão de 2015, a BB, a irmã e a mãe almoçaram em casa do arguido e da esposa deste.
                  6 - Depois do almoço, a esposa do arguido foi descansar para o quarto de dormir que se situa no piso superior da residência e a mãe e a irmã da BB foram para casa delas.
                  7 - A BB permaneceu em casa do arguido, na cozinha, na companhia deste.
                  8 - O arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com a BB, quando esta estava a lavar a loiça, aproximou-se dela, abraçou-a, apalpou-lhe as mamas e pressionou o corpo dele contra o dela.
                  9 - Após este episódio e até ao Verão de 2017, o arguido, em várias outras ocasiões, em datas não concretamente determinadas e em número de vezes não inferior a dez, aproveitando-se da circunstância de se encontrar a sós com a BB, ora na sua casa, ora em terrenos agrícolas que o arguido cuidava, apalpou a BB nas mamas e na vagina, ora por cima, ora por baixo da roupa que ela trazia vestida, beijando-a também.
                  10 - Das primeiras vezes em que o arguido levou a cabo os actos sexuais descritos, disse à BB que não contasse nada a ninguém, o que esta acatou.
                  11 - Em todas as referidas ocasiões o arguido aproveitou-se da circunstância de a sua esposa não estar em casa por períodos de tempo longos - por trabalhar num lar de idosos – da circunstância de ele próprio ter muito tempo disponível por trabalhar por conta própria a fazer trabalhos de lavoura com o tractor e com outras alfaias agrícolas, bem como da circunstância de a BB o ajudar no trabalho do campo e de gostar de cuidar e de brincar com os animais que o arguido criava na quinta, para levar a cabo, ao longo do tempo, os actos sexuais e de cariz sexual supra descritos na pessoa da BB.
                  12 - Num dia não concretamente determinado do Verão de 2017, mas anterior ao final de julho desse ano, o arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar na sua residência com a BB, após esta ter adormecido o RR, neto do arguido, decidiu manter relações sexuais com esta.
                  13 - Com vista a concretizar tal propósito, pediu à BB que o acompanhasse até ao quarto de dormir, ao que a BB acedeu.
                  14 - Ali chegados, deitaram-se em cima da cama e o arguido despiu-lhe a roupa que ela trazia vestida, primeiro a parte de baixo da roupa e depois a parte de cima, tendo ele também despido as calças e as cuecas que trazia vestidas.
                  15 - Com a BB assim despida e deitada na cama, o arguido começou a tocar-lhe com a mão na vagina, após lambeu-lhe a vagina e, de seguida, deitou-se em cima dela e introduziu-lhe os dedos da mão no interior da vagina.
                  16 Num outro dia não concretamente determinado no final do mês de Julho de 2017 o arguido voltou a pedir à BB que o acompanhasse ao seu quarto e uma vez aí voltou a despi-la, primeiro a roupa da parte de baixo do corpo e depois da parte de cima, tendo ele também despido as calças e as cuecas que trazia vestidas.
                  17 - Com a BB assim despida e deitada na cama, o arguido começou a tocar-lhe com a mão na vagina, após lambeu-lhe a vagina e, de seguida, introduziu-lhe os dedos da mão no interior da vagina.
                  18 Desde o final do Verão de 2017 até ao final desse ano de 2017, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em 5 ocasiões, após os almoços de família, o arguido, aproveitando-se do facto de se encontrar a sós com a BB, apalpou-lhe a vagina e as mamas e pelo menos em duas dessas ocasiões também lhe introduziu os dedos da mão na vagina.
                  19 - Desde janeiro de 2018 e até ao Verão de 2018, em datas não concretamente determinadas, mas pelo menos em sete ocasiões, o arguido, aproveitando-se do facto de se encontrar a sós com a BB, apalpou-lhe a vagina e as mamas, sendo que cinco dessas ocasiões ocorreram já no Verão de 2018 e nessas situações o arguido, ora lhe introduziu os dedos da sua mão na vagina da BB, ora lhe lambeu a vagina.
                  20 Em dia não concretamente determinado do Verão de 2019 o arguido voltou a levar a BB para o seu quarto e aí chegados mais uma vez o arguido começou a tocar-lhe com a mão na vagina, após lambeu-lhe a vagina e, de seguida, deitou-se em cima dela e introduziu-lhe os dedos da mão no interior da vagina.
                  21 - A maior parte das vezes em que o arguido praticou os actos sexuais da natureza supra descrita com a BB fê-lo na cama do seu quarto de dormir, os toques no corpo da mesma na forma supra descrita ocorriam, na maioria das vezes, na sala e na cozinha da casa do arguido, quando não se encontrava mais ninguém presente, sendo que pelo menos numa ocasião ocorreu nos terrenos agrícolas sitos nas traseiras das respectivas residências do arguido e da BB.
                  22 - Inicialmente, em várias daquelas sobreditas ocasiões anteriores ao Verão de 2018, sobretudo quando o arguido se encontrava alcoolizado, a menor BB oferecia-lhe resistência, concretamente dizendo-lhe que não queria que ele lhe tocasse e/ou mantivesse relações sexuais consigo, ao que este se exaltava e de forma agressiva dizia-lhe para ela se manter quieta, afastando-se ela dele quando se apercebia que ele a estava a procurar para manter consigo atos de cariz sexual.
                  23 - Não obstante, o arguido sempre foi indiferente a essas reações da menor, pelo que aquando dos atos sexuais praticados no verão de 2018 e 2019, a BB acabou, pese embora contra sua vontade, por aceder à vontade do arguido e deixá-lo manter consigo os atos de cariz sexual descritos, uma vez que não era capaz de se lhe opor e sabia que este não desistia dos seus propósitos e se exaltava quando contrariado, usando para o efeito voz alta e linguagem agressiva, e por saber também que se contrariasse o arguido este a impedia de continuar a trabalhar a terra, a conduzir o trator e a manusear outras alfaias agrícolas e de contactar com os animais, tudo atividades que o arguido sabia que a BB gostava de fazer.
                  24 - Ao praticar os descritos atos sexuais no verão de 2018 e 2019 o arguido, ciente de que a menor não pretendia ter quaisquer atos sexuais consigo e desse modo agir contra a vontade daquela, bem sabia e quis no modo sobredito causar-lhe aquele constrangimento e, por essa via, obrigá-la a suportar os referidos atos sexuais.
                  25 - Tendo em conta a idade que a BB tinha à data em que o arguido iniciou com ela a prática dos acima referidos atos sexuais, quando tinha 11 anos de idade, naturalmente a menor não compreendia totalmente nem tinha discernimento para entender o alcance e o significado dos atos de natureza sexual que o arguido praticou consigo nem conseguia autodeterminar-se sexualmente, mas ainda assim não apreciava nem pretendia que o arguido mexesse no seu corpo da forma descrita.
                  26 - A BB permitiu que o arguido levasse a cabo os actos sexuais e de cariz sexual acima referidos devido à sua ingenuidade, imaturidade, falta de experiência e incapacidade de avaliar as consequências dos aludidos actos em face da sua tenra idade, bem assim como à sua inferioridade física e indiferença do arguido à sua rejeição sexual.
                  27 - O arguido tinha perfeito conhecimento de que a BB tinha menos de 14 anos de idade quando com ela começou a praticar os actos sexuais e as relações sexuais supra descritos, porquanto sabia que ela tinha 8/9 anos quando foi residir com a mãe e com a irmã para a casa próxima da sua, e sabia também que não era vontade desta que ele lhe tocasse/mexesse no corpo da forma descrita.
                  28 - O arguido actuou em todas as circunstâncias atrás descritas de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de, por meio do corpo da BB, satisfazer os seus desejos libidinosos, bem sabendo que os actos sexuais e de cariz sexual supra descritos que com ela praticou, desde os 11 anos de idade, eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade daquela na sua esfera sexual, tendo-se aproveitando da idade desta que a tornava incapaz de opor resistência aos actos que levou a cabo, bem como da sua ingenuidade e inexperiência e da sua qualidade de tio e indivíduo que lhe proporcionava o acesso a animais e à terra, actividades que a BB apreciava e às quais não teria acesso se não fosse autorizada pelo arguido.
                  29 - O arguido agiu em todas as circunstâncias acima descritas de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que os factos que praticou eram proibidos e punidos por lei penal como crimes.
                  -

                  I Condições sociais e pessoais

                  30 - O arguido, natural de (…), é o quarto elemento de uma fratria de cinco, tendo integrado o agregado dos progenitores e irmãos até constituir agregado próprio. O pai era (…) e a mãe, para além das tarefas domésticas, dedicava-se também a trabalhos agrícolas para autoconsumo.
                  31 As dificuldades económicas do agregado familiar ao longo da sua infância e adolescência, terão contribuído, a par com a necessidade de se deslocar para a localidade vizinha para frequentar a telescola, para o abandono da frequência escolar após a conclusão do 4.º ano de escolaridade.
                  32 - Iniciou atividade profissional aos 14/15 anos na recolha de resina, onde se manteve cerca de 3 a 4 anos, passando depois a trabalhar na construção civil e num aviário, voltando à recolha da resina até casar, com 23 anos.
                  33 - Namorou com a esposa desde os 16 anos, sendo ela cerca de dois anos mais velha. Tanto o arguido como a esposa referem um relacionamento, tanto de namoro, como de casamento, isento de problemas significativos, considerando existir uma dinâmica afetiva e de apoio recíproco. Também ao nível da sexualidade, a mesma foi descrita por ambos os elementos do casal, como normal.
                  34 - Depois de casar passou a residir na atual residência, cedida pelo sogro, passando esta a ser a morada de família.
                  35 - Mudou, entretanto, de área profissional, passando a trabalhar em telecomunicações em diversas empresas, durante cerca de 27 anos consecutivos, ficando depois desempregado na sequência da falência da última empresa onde trabalhou. Durante três anos ainda beneficiou de subsídio de desemprego e dado não ter conseguido obter nova colocação profissional, passou a desenvolver trabalhos agrícolas para vizinho e conhecidos.
                  36 - O arguido encontra-se em prisão preventiva desde 03/06/2020, estando atualmente no Estabelecimento Prisional Regional de ...
                  37 - Anteriormente residia com a esposa, de 59 anos, funcionária num Lar de idosos, em casa própria.
                  38 - O casal tem duas filhas, de 32 e 30 anos, já autónomas, havendo, contudo, contactos frequentes e colaboração recíproca, havendo nomeadamente apoio do casal na prestação de alguns cuidados ao neto, de 4 anos.
                  39 - A esposa e filhas têm efetuado visitas regulares ao arguido ao estabelecimento prisional, disponibilizando todo o apoio necessário, quer nesta fase do processo, quer no futuro.
                  40 - A situação económica é descrita como equilibrada, tendo o agregado como rendimento o vencimento da esposa do arguido equivalente ao ordenado mínimo nacional e vencimento do arguido decorrente dos trabalhos que realizava na agricultura, estes de montante variável, dependendo das ofertas de trabalho.
                  41 - Paralelamente, realizavam agricultura e criavam animais para autoconsumo. Com a reclusão do arguido esta atividade ficou comprometida, tendo a esposa tido que vender os animais e reduzir as culturas, o que se repercutiu na perda de rendimento.
                  42 - O arguido passava os dias a trabalhar e em casa, apenas centrado no trabalho e família, não se vendo a conviver com amigos, nem a frequentar cafés.
                  43 - Na vizinhança, beneficia de uma imagem positiva, dados os hábitos de trabalho, o estilo de vida recatado e a sua disponibilidade para ajudar quando necessário.
                  44 - A ocorrência dos factos não serão do conhecimento generalizado, mas as poucas pessoas que ouviram comentar a situação mostram-se surpresas, não havendo por ora, qualquer reatividade hostil para com o arguido (à exceção do agregado da alegada vítima).
                  45 - Antes da reclusão, o arguido não apresentava problemas de saúde, nem indícios de consumo abusivo de bebidas alcoólicas. Já durante a reclusão foi-lhe diagnosticado diabetes e colesterol elevado, tendo-lhe sido prescrita medicação.
                  46 - O arguido não tem antecedentes criminais.
                  -

                  47 - Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, a menor BB sofreu vergonha, tristeza, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional».

                  2.2.2. Quanto a FACTOS NÃO PROVADOS, temos (transcrição):

                  «De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente aqueles em contradição com os provados e que:
                  - Em algumas das ocasiões referidas supra, sobretudo quando o arguido se encontrava alcoolizado e pretendia manter relações sexuais com a BB, agarrou-lhe os braços com força, com o que lhe provocou dores e hematomas».

                  2.2.3. Motivou-se a matéria dada como provada da seguinte forma (transcrição):

                  (…).

                              3. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

                              3.1. Torna-se claro para este Tribunal que só depois de apreciada a impugnação de facto – mediante a audição da prova gravada - feita no RECURSO B, estaremos habilitados a ajuizar da necessidade ou não de ouvir de novo esta jovem em sede de julgamento.
                  Ou seja, avaliemos primeiro o juízo probatório atribuído ao dito depoimento pelo tribunal recorrido (aferindo da sua convicção com base na prova produzida) para depois concluir se haveria ou não utilidade ou necessidade de reouvir esta jovem em sede de audiência de julgamento, antes ouvida em sede de declarações para memória futura.
                              Por tal motivo, começaremos pelas questões aludidas no RECURSO B, deixando para o fim a questão levantada no RECURSO A, curiosamente, também muito reiterada no RECURSO B.

                              3.2. SOBRE O RECURSO B

                  3.2.1. SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

                  3.2.1.1. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
                  - a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada (O QUE É O NOSSO CASO – cfr. artigo 431º do CPP;
                  - e, se for o caso, a dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP.
                  Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
                  Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
                  Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
                  Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
                  Já na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, n.º 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
                  1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
                  2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
                  3. Erro notório na apreciação da prova.
                              Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º do CPP.
                  Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
                  De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
                  Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.

                  3.2.1.2. Quais os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP?
                  A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito[1].
                  A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão[2].
                  Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
                  Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
                  O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
                  Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
                  Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
                  Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
                  Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
                  Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
                  O vício de erro notório ocorre, não só quando um erro é evidente, crasso, escancarado à luz dos olhos do cidadão comum, mas também à luz da análise feita por um tribunal de recurso ou de um jurista minimamente preparado, de molde a considerar-se, sem margem para dúvidas, que a prova foi erroneamente apreciada.
                  Segundo os Juízes Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques, tal erro ocorrerá "quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
                  Consideram os mesmos autores que “existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos. Mas, quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro"[3].

                  3.2.1.3. A partir da Conclusão CLXX, invoca o recorrente a existência do vício do n.º 2, alínea a) deste normativo – ou seja, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
                  Olhando e lendo a sentença, é claro que ela é escorreita e sem quaisquer vícios formais.
                  Dão como provados os factos – se bem, se mal, veremos a seguir -, explica-se a razão de ser dessa prova e retiram-se as consequências jurídicas dessa matéria de facto.
                  Justifica o arguido que existe esse vício pelo facto de não NN ter dado como provados ou não provados os factos alegados na sua contestação.
                  A existir aqui algum vício é o de nulidade de sentença previsto no artigo 379º, n.º 1, alínea a) do CPP e nunca este vício do 410º, n.º 2.
                  De facto, usando as palavras de aresto desta Relação, datado de 19/3/2014, diremos:
                  «Tem sido decidido pelo STJ – cfr. entre outros: Ac. STJ de 15.01.1997, na CJ/STJ, tomo I/97, p. 181; Ac. STJ de 05.02.1998, publicado na CJ/STJ, tomo I/98, p. 189; Ac. STJ de 11.02.1998, BMJ 474º, p. 151; Ac. STJ de 02.12.1998, publicado na CJ/STJ, tomo III/98, p. 229 - que a elencação dos factos provados e não provados refere-se apenas aos factos essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena e não aos factos inócuos, mesmo que descritos na contestação.
                  Daí que, como expressivamente, refere o Ac. STJ de 12.03.1998, BMJ 475º, p. 233, “o art. 374º, n.º2 do CPP não exige, relativamente aos factos não provados a mesma minúcia que preside à indicação dos factos provados, tendo o tribunal que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, maxime na contestação com interesse para a decisão”.
                  O que importa é que da conjugação da matéria da acusação e da defesa, resulte claro que o tribunal apreciou os factos relevantes aduzidos por uma e por outra relevantes para a decisão a proferir. Ou ainda que sejam a afirmação e a negação do mesmo “recorte de vida”, enquadrar a perspectiva da defesa, por referência à acusação que contesta, dentro do escopo do processo, o apuramento ou descaracterização dos pressupostos do crime imputado ao arguido».
                  Como tal, este aresto apenas legitima a não articulação, no rol de factos provados, dos factos tidos por inócuos e não essenciais à discussão da causa, nas suas duplas ou triplas visões.
                  Ora, lida a contestação dos autos não se vislumbra lá qualquer facto novo que se tivesse de dar, de forma autónoma do texto do libelo acusatório, como provado ou não provado, limitando-se o arguido a contrariar a tese da acusação.
                  Note-se que o Colectivo, na sua motivação, deixa escrito:
                  «De resto não se provaram outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente aqueles em contradição com os provados e que:
                  - Em algumas das ocasiões referidas supra, sobretudo quando o arguido se encontrava alcoolizado e pretendia manter relações sexuais com a BB, agarrou-lhe os braços com força, com o que lhe provocou dores e hematomas».
                  Portanto, na parte sublinhada por nós o tribunal reitera o que tinha já determinado – os factos provados são os que constam do rol de factos provados, com algumas mudanças relativamente ao texto do libelo acusatório, dando-se tudo o que os contrariar como não provado.
                  Parece-me ajustada esta técnica neste caso em que a Contestação é inócua em nova factualidade, limitando-se a contrariar o que o MP aduz.
                  Como bem sentencia o Digno Procurador da República em 1ª instância:
                  «Ademais, não pode dizer-se que deixou o Tribunal a quo de investigar toda a matéria com interesse para a decisão final. O Tribunal a quo investigou tudo o que podia e conseguiu investigar dentro do objecto do processo, tal como foi o mesmo delimitado pela acusação e pela defesa, sendo que se não vislumbra que a prova produzida em audiência de julgamento justificasse qualquer outra investigação suplementar.
                  Na verdade, na contestação apresentada, o arguido limita-se a negar a prática dos factos imputados, escudando-se nas contradições dos depoimentos prestados pela ofendida, quer no escrito apresentado, quer nos exames periciais realizados.
                  Todavia, em nosso entender, o recorrente na sua contestação, para além de negar a prática dos factos imputados, tece considerações sobre os diversos depoimentos prestados pela ofendida no decurso do processo, imputando-lhe contradições graves e manifestas, sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, apenas para tentar descredibilizar a versão dos factos apresentada pela menor.
                  Assim, como se referiu supra, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto, há-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, pelo que se conclui não padecer a decisão do vício invocado».
                  Como tal, e sem necessidade de mais considerações, só há que fazer improceder este segmento do recurso eivado num inexistente vício do n.º 2 do artigo 410º do CPP.

                  3.2.1.4. Mergulhemos então na matéria de facto dada como provada, com base na prova gravada.
                  Impugna o recorrente os factos provados 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 47 e parte final do 44.
                  No fundo, contesta que alguma vez molestou sexualmente a sua sobrinha.
                  O arguido falou numa primeira fase do julgamento.
                  Depois calou-se. (cfr. acta de 16/3/2021).
                  E o Colectivo ouviu-o.
                  Em audiência de julgamento, o arguido começou por negar a prática dos factos que lhe são imputados, dizendo que não os praticou de todo e dizendo que foi “pressionado” pelos elementos da Polícia Judiciária a prestar as declarações que prestou, procurando, desta forma, “afastar-se” da prática dos factos no que não mereceu qualquer credibilidade, tanto mais que veio depois a prestar exactamente as mesmas declarações, que já havia prestado perante a Polícia Judiciária, em sede de 1º Interrogatório Judicial, no dia 05.06.2020, declarações validamente reproduzidas em julgamento (cfr. acta de audiência de julgamento de 16.03.2021), nas quais confessou parcialmente os factos declarando que a partir do Verão de 2015 começou a apalpar a menor BB no peito e na vagina, quer por dentro, quer por fora da roupa e que em 2016 começou a introduzir-lhe os dedos na vagina, o que fez cerca de três vezes, tendo a última ocorrido no Verão de 2019.
                  Após reprodução em audiência de julgamento dessas declarações e confrontado com as mesmas, o arguido, que tinha começado por negar os factos, como referido supra, veio a confessar parte dos mesmos.
                  Assim, em julgamento local onde não podia estar constrangido, pois então - o arguido confessou que, a partir do Verão de 2015, por várias vezes apalpou a BB no peito e na vagina, umas vezes por fora da roupa outras por dentro da roupa e que pelo menos por três vezes lhe introduziu os dedos na vagina. Admitiu também ter dado beijos nas mamas mas negou que alguma vez tivesse lambido a vagina e que tivesse introduzido o pénis na vagina.
                  Admitiu também que tais actos de apalpar a BB nos peitos e na vagina ocorriam com uma frequência de uma vez de 3 em 3 meses mais ou menos.
                  Confirma que a última vez que praticou tais actos foi no Verão de 2019.
                  O arguido confessou também ter conhecimento da idade da BB e referiu saber que quando foram residir para a casa ao lado da sua a BB e a irmã gémea CC tinham 8 ou 9 anos.
                  No mais, na estrita medida em que se mostram desfavoráveis à defesa do arguido e/ou corroborados por outros meios de prova que servem para contextualizar e circunstanciar, tanto quanto possível, os factos imputados, o tribunal serviu-se dessa confissão do arguido, a qual reforça a credibilidade do depoimento da jovem BB quanto às ocorrências por esta relatadas.
                  Portanto, quem confessa o menos, agora em ambiente securizante e garantístico, depois de primeiro tudo negar, pode também fazer o «mais», ajudando a que o tribunal crie a legítima convicção de que os factos se terão desenrolado tal como a jovem, hoje já quase maior de idade, alega.
                  Somos peremptórios, assim, em afirmar que o depoimento do arguido não nos mereceu qualquer crédito na parte em que nega alguma da factualidade descrita na acusação e relatada pela BB.
                  Foi sempre defensivo, grosseiro, cheio de desculpas inverosímeis (essa da perturbação e alteração por ter passado um dia inteiro sem comer não convence ninguém!) e titubeante perante o eloquente interrogatório levado a cabo, sobretudo, pela serena voz da Exmª Magistrada do MP de 1ª instância. 
                  Quanto ao depoimento das testemunhas ouvidas em julgamento, têm diferente relevo, conforme o caso.
                  Todos as ouvimos de viva voz.
                  Foi ouvida a irmã gémea da BB, CC, que sempre achou haver uma cumplicidade estranha entre tio e sobrinha, vendo, por vezes, algumas intimidades entre ambos (ele tentava que ela se sentasse no seu colo, punha a mão na perna da BB).
                  Foi ouvida a mãe da BB, DD, que sempre achou que a relação entre tio e sobrinha era paternal, assente até o gosto que a BB tinha relativamente aos assuntos agrícolas.
                  Foi ouvida a Professora de ... da BB, SS, que se correspondeu em e-mails com a aluna e que esteve na base desta denúncia, depondo em declarações sérias, encadeadas e muito firmes no sentido de não ter qualquer dúvida relativamente à veracidade das acusações da jovem para com o tio.
                  Foi ouvida TT, cujo filho é casado com uma das filhas do arguido, e que referiu nunca nada ter visto de impróprio entre tio e sobrinha.
                  A filha do arguido, UU, também nunca nada viu de impróprio, o mesmo acontecendo com o genro do arguido, VV, que alegou que tio e sobrinha nunca ficavam sozinhos em casa (o que é até contrariado pelo próprio arguido).
                  A mulher do arguido, QQ, referiu nunca ter visto o marido colocar as mãos na sobrinha, dizendo que o marido, só por estar baralhado, teria confessado os factos.
                  Igualmente, a filha do arguido, T, disse o mesmo.
                  O companheiro da T, UU, nada nunca presenciou entre tio e sobrinha.
                  As testemunhas OO, AMG referem o arguido como pessoa séria e íntegra.
                  A testemunha WW, psicóloga no EP ..., tem o arguido como educado e correcto.
                  Nada mais natural que a família mais próxima não se apercebesse destes factos pois tudo se passaria na calada do silêncio, muitas vezes, fora de casa, sendo natural que estas vivências proibidas sejam vividas às escondidas e perante a ignorância dos próprios familiares.
                  Na conclusão CXXIX, estranha-se e diz-se que não é plausível que o arguido praticasse estes actos sexuais em terrenos agrícolas sem que alguém o visse.
                  Nada mais erróneo.
                  A nossa experiência como julgadores dita-nos que estes actos são subtis, rápidos, dissimulados, escondidos do mundo, escolhendo-se as horas do dia em que não ande povo na rua ou nos terrenos escolhidos[4].
                  Seria natural que a BB falasse com a sua irmã gémea. Mas ouvimos que elas não são assim tão próximas, falando pouco da vida uma da outra e uma com a outra.
                  Portanto, as únicas testemunhas que poderão lançar luz sobre a factualidade são a BB e a sua professora SS, aliado à confissão que acabou por fazer o arguido em audiência.
                  Todos os restantes testemunhos são inócuos para esta factualidade, normalmente acontecida na paz dos casarios e no silêncio dos quartos e lugares ermos, longe da vista do mundo, tendo o Colectivo explicado muito bem a razão pela qual nenhuma desses testemunhos infirmou a prova acusatória.
                  E dizer-se que o arguido é homem habitualmente pacato, trabalhador, cumpridor da lei e com uma imagem positiva junto dos seus familiares e amigos não significa que, por isso, tenha de ser ilibado de culpas pois as maiores atrocidades da história foram levadas a cabo por gente insuspeita, aparentes bons cidadãos que apesar de viverem, normalmente, sem erros na vida, foram capazes de cometer alguns contra todas as expectativas e as probabilidades.
                  O lado negro de cada ser humano desponta a horas incertas e demora, tantas vezes, longo tempo a ser descoberto.
                  Não fosse a coragem de uma professora atenta, ficaria mais um criminoso impune!
                  Resta a palavra da BB.
                  O cerne da prova são, como se torna óbvio, as suas declarações, ouvida que foi por um juiz, para memória futura, em 4 de Junho de 2020.
                  Ouvimo-la também, e conjugamos o seu depoimento firme com as declarações da sua confidente SS - foi com ela que a BB trocou os e-mails que se encontram juntos aos autos e nos quais a jovem narrou pela primeira vez o sucedido com o arguido.
                  Segundo a testemunha, a BB era uma miúda extremamente fechada, sempre com os olhos no chão e tinha um ar permanentemente triste e isolava-se dos colegas.
                  Em contexto de sala de aula era muito esforçada e muito aplicada.
                  Referiu que foi em Fevereiro que começaram a conversar sobre assuntos extra aulas sobre assuntos banais e foi em Abril que recebeu o e-mail em que a BB fala sobre o assunto em causa.
                  Depois disso tentou sempre convencê-la a apresentar a denúncia e ela recusou sempre, até que a testemunha achou que tinha de fazer ela a denúncia.
                  O que despoletou a que decidisse apresentar a denúncia foi o facto de a BB lhe ter dito (num dos e-mails) que “ele hoje foi mais bruto comigo. Tenho medo que ele esteja a ficar farto de mim!”
                  Acrescentou que nunca “teve razão para duvidar de que ela me contava a verdade”.
                  Quando teve a certeza de que não era uma fantasia foi quando agiu e decidiu apresentar a denúncia.
                  E o que nos contou a BB?
                  A descrição feita no acórdão é fiel e muito fidedigna, após a nossa audição das suas palavras.
                  Alega a defesa que existem algumas discrepâncias e contradições entre o que a BB disse em declarações para memória futura e o que disse na PJ e até em cartas e e-mails, aduzindo que deu várias versões dos acontecimentos, a saber:
                  1ª incongruência – ser virgem e nunca ter tido relações sexuais
                  2ª- incongruência – nunca ter tido nenhum namorado
                  3ª incongruência – ter tido com o tio relações de cópula vaginal, sexo oral e introdução de dedos na vagina
                  4ª incongruência – residência aos alegados intentos do tio
                  O Colectivo de Viseu tudo isto viu e mesmo assim entendeu validar o depoimento desta jovem no essencial – ou seja, que abusou sexualmente de sua sobrinha, independentemente de aspectos laterais e pouco consistentes que em nada infirmam a credibilidade dada ao depoimento da BB, conjugado com a confissão do arguido e o depoimento da professora SS.
                  Raciocinou assim:
                  «No essencial, a menor BB tudo descreveu em sede de memória futura, o que fez de forma espontânea, circunstanciada e escorreita, assumindo não recordar alguns pormenores, o que na conjugação com a confissão parcial do arguido e restante prova testemunhal da acusação, inclusivamente os e-mails que a BB trocou com a sua Professora e que se encontram juntos aos autos a fls. 10 a 19, 67 a 73, 78 a 81, 84 a 90, 99 a 119 e resumo a fls. 93 a 96, permitiu formar uma dada convicção segura no sentido dado como provado, por merecerem inteira credibilidade as suas declarações.
                  Dados os múltiplos fatores que interferem na aquisição, retenção e recuperação de dados no processo de memorização do testemunho, as discrepâncias sobre factos ocorridos são perfeitamente explicáveis em resultado do tempo decorrido, sobretudo quando, como aqui ocorre, se trata de relatar alguns detalhes de uma dada ação repetida cuja memória fica marcada pelo essencial da violência psicológica sexual sucedida.
                  Seja como for, o relato dos acontecimentos pela ofendida BB, sendo fortemente plausível no contexto e local por si referido, num encadeamento lógico dos factos que descreveu, mostrou-se no essencial sincero, detalhado e despreocupado da busca de uma qualquer versão interessada dos factos, o que tudo lhe confere persuasão bastante nos termos comprovados sobre a dinâmica e ocorrência dos factos. É certo que a ofendida BB optou por relatar menos factos do que os que relatou perante a Polícia Judiciária.
                  A este respeito cumpre mencionar que o Tribunal está plenamente convicto das práticas sexuais que o arguido manteve com a menor, nomeadamente introduzindo-lhe dedos na vagina e praticando com a mesma sexo oral, em diversas ocasiões, ao longo dos anos, mesmo quando esta tinha menos de 14.
                  Contudo, resulta claro que a menor, como tantas vezes, infelizmente, acontece em situação idênticas, acabou por desenvolver uma relação afetiva com o arguido, seu tio, da qual, aliás, o mesmo se aproveitou, com quem gostava de partilhar certas atividades agrícolas, que levou a que nunca tivesse relatado os factos em causa e que, como acabou por dizer no dia em que prestou o depoimento para memória futura, já estivesse arrependida de ter relatado a situação.
                  (…)
                  Em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dão o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante, pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.
                  A experiência científica nesta área ensina que as vítimas de crimes sexuais tendem a não verbalizar o sucedido remetendo-se a um penoso silêncio, recatando a traumática experiência e quando a revelam fazem-no de forma sentida e muitas das vezes com retalhos de memória selectivos.”
                  No entanto, o depoimento para memória futura prestado pela menor no essencial encontra respaldo nos emails que esta trocou com a sua professora a quem pela primeira vez contou tudo o que lhe sucedeu por a professora lhe ter inspirado confiança e por de certo ter tido necessidade de contar o que a vinha sufocando ao longo do tempo em que se remeteu ao silêncio porque, como referido pela própria, não queria magoar ninguém nem, principalmente, queria causar preocupações à sua mãe que, segundo ela, já tinha preocupações que chegassem, emails esses cujas cópias se encontram juntas aos autos e nenhuma dúvida deixa sobre a credibilidade e espontaneidade do respetivo teor.
                  Por outro lado, os vários exames de perícia médico-legal realizados à menor conferem credibilidade aos relatos feitos pela mesma. Com efeito, do Relatório de Avaliação Psicológica Forense e respectivos esclarecimentos, de fls. 751 a 754 e 800/801 resulta, em síntese que “Tendo em conta a avaliação efectuada, nos relatos da jovem estão presentes um número significativo de indicadores, descritos pela literatura, que estão relacionados com um aumento da credibilidade, mesmo não cumprindo um indicador (baixa coerência inter-relato[5])”.
                  Igualmente do Relatório da Perícia Pedopsiquiátrica de fls. 821-829 consta, para além do mais, o seguinte: “Não foi evidente coação ou instrumentalização por terceiros. Não apresenta traços de futura perturbação de personalidade.” “Em relação às consequências emocionais dos eventos, a examinada pouco descreveu, disse ser muito controlada emocionalmente[6], mas descreveu sentimentos iniciais de perplexidade e confusão com dificuldades relacionais posteriores que dificultam o estabelecimento de relações afetivas.” “Perante as questões com valor simbólico mais intenso, em termos emocionais, a examinada reagiu com humor congruente (adequado) ao conteúdo do discurso, foi segura e coerente ao longo da narrativa.” Mais se refere “É frequente em situações crónicas com a duração de vários anos os relatos variarem ao longo do tempo por questões mnésicas e relacionadas com as práticas e contextos das entrevistas. A atenção deve estar focada no núcleo dos problemas e não em aspetos acessórios”».
                  Fez esta jovem um depoimento assertivo e muito fluente, vendo-se que estamos perante uma rapariga com alguma cultura e desembaraço verbal.
                  Contudo, várias vezes interrompeu o seu discurso com hesitações emotivas, pausas de comoção a emprestarem maior credibilidade a um depoimento que se vê não ter sido ensinado ou ensaiado.
                  É clara em dizer que o tio Zé a toca de forma imprópria desde os seus 11 anos.
                  A ligação que tinha a este tio era normal pois ambos amavam a terra e os «seus» animais. Ele pode ser também percepcionado como uma figura paterna. Não se sabe nada da relação dela com o pai (os seus progenitores há muitos anos se separaram). Isso fá-la-ia querer manter a proximidade, mesmo que não gostasse dos toques. Ele dava-lhe atenção. Tinham interesses em comum. Fazia coisas como se fossem pai e filha – cultivar terras, tratar dos animais.
                  Por isso, esta vítima não temia o tio[7], o que, por vezes, é natural em situações destas em que a vítima acaba por ter sentimentos ambivalentes relativamente ao agressor a quem está ligada por laços de amizade e cumplicidade, quase a lembrar a «síndrome de Estocolmo»[8].
                  Por isso, terá demorado tanto tempo a verbalizar o que lhe estava a acontecer.
                  Muitas vezes aconteceram esses toques. Até lhe podiam dar prazer (mais um mito de que a vítima pode não ter prazer[9]).
                  Resistia enquanto pôde mas depois foi cedendo.
                  «Eu dizia-lhe para parar mas ele não parava».
                  Depois pedia-lhe segredo.
                  E aquilo passou a ser uma rotina, frase do e-mail enviado à sua professora que nos sensibilizou imenso.
                  A 3ª discrepância referida pela defesa será a mais significativa pois as outras são laterais e pouco relevantes (saber se já tinha tido namorados ou relações sexuais antes destes encontros com o tio é inócuo e até constrangedor para uma jovem menina, falando perante estranhos, e saber se resistia ou não a um adulto mais forte do que ela é até um atentado à condição de criança).
                  Como a explicar?
                  O tribunal defendeu-se assim:
                  «Tal circunstância pode explicar o motivo pelo qual, após ter relatado as relações de cópula que o arguido manteve consigo, pelo menos em três situações veio a referir no depoimento para memória futura não ter a certeza do tio lhe ter introduzido o pénis na vagina, optando por afirmar que dessas vezes acabava por adormecer, apesar de confirmar as outras práticas, eventualmente por pensar que tal situação agravaria a situação do tio, optando por afirmar que adormecia quando o tio estava a fazer sexo oral, acordando mais tarde, sendo que, quando acordava, sentia que o arguido retirava algo de dentro da sua vagina mas não soube dizer se era o pénis ou os dedos.
                  Assim, apesar da existência de indícios do arguido ter introduzido o seu pénis da vagina da menor, em declarações para memória futura tal circunstância não resultou confirmada pela menor.
                  O mesmo não sucede com a restante factualidade, confirmada pela menor e pelo próprio arguido como já referimos».
                  Claro como água.
                  Concentremo-nos no essencial – este homem abusou da sobrinha, disso não tem este tribunal de recurso qualquer dúvida.
                  Se houve discrepâncias pontuais – naturais – no depoimento da BB, muitas mais encontramos no depoimento inconsistente do próprio arguido.
                  E  a dúvida não é comum nas falsas declarações mas sim nas verdadeiras.
                  E não nos convenceu a ideia que a defesa quis dar de um homem iletrado, pouco sociável (factor de risco para o abuso – facto 42) – e desempregado, com o stress associado ao desemprego a poder ser um trigger para os abusos (os abusos são perpetrados em grande parte das vezes como forma de ter poder e controlo, o que ele havia perdido), à mercê da «sabida» da sua sobrinha, aluna com 18 e 19 valores, e que se aproveitou de si, acusando-o falsamente.
                  A questão de ser fria pode ter a ver com o facto de ser um crime continuado e haver um embotamento afectivo, uma forma de se distanciar de uma vivência dolorosa e perturbadora.
                  É frequente.
                  O facto de não haver traumas, não significa nada, podendo ter a ver com isto: “Em relação às consequências emocionais dos eventos, a examinada pouco descreveu, disse ser muito controlada emocionalmente, mas descreveu sentimentos iniciais de perplexidade e confusão com dificuldades relacionais posteriores que dificultam o estabelecimento de relações afectivas.”
                  De facto, a professora refere que ela estava triste, não convivia com colegas.
                  Também a irmã referiu que não costumavam partilhar coisas entre elas, ou seja, estamos perante uma família em que a expressão emocional deve ser pouco incutida e sobretudo reprimida.
                  Por isso a tal forma mais fria de que a defesa fala e a aparente ausência de trauma (aparente!).
                  É importante resistirmos aos estereótipos e às perigosas heurísticas que condicionam as nossas convicções.
                  No Guia da Audição da Criança, gizado por Rute Agulhas e Joana Alexandre, prefaciado pelo relator deste acórdão, e publicado em 2017 sob a égide do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, deixa-se escrito que:
                  «O ser humano é inegavelmente portador de um conjunto de competências que fazem dele um ser pensante e reflexivo, características importantes num processo de tomada de decisão.
                  Neste processo, e porque a informação que nos chega diariamente é sempre em excesso e, muitas vezes, complexa, dificilmente conseguimos tomar uma decisão sem sermos influenciados por pistas que nos ajudam a organizar e a simplificar essa mesma informação (procurando tomar decisões com base numa quantidade menor de informação). Esta tendência é tanto maior quanto maiores as pressões externas para que essas decisões sejam tomadas de uma forma rápida, ou quanto maior a incerteza.
                  Estas pistas são designadas por heurísticas e são habitualmente usadas de uma forma automática ou inconsciente. Apesar de terem como função ajudar a organizar e a simplificar a informação, tornam os processos de tomada de decisão menos fidedignos e, nesse sentido, com uma maior probabilidade de incluir erros ou enviesamentos.
                  Em processos judiciais, os intervenientes não fogem a estas questões.
                  Apesar da procura da imparcialidade e isenção, inerente ao exercício da prática profissional, o ser humano age muito frequentemente guiado pelas suas intuições e emoções, mais do que por uma razão objetiva e analítica. Assim, o entrevistador deve conhecer as heurísticas mais frequentes e os erros ou enviesamentos mais habituais associados ao modo como processa a informação que recebe, para que possa tornar mais consciente o modo como conduz o processo de audição, procurando diminuir a inevitabilidade do erro que subjaz a este processo de recolha de informação.
                  Ao mesmo tempo, qualquer indivíduo é portador de referenciais culturais e de crenças sobre as crianças e as suas famílias. Grande parte da pesquisa aponta para a inevitável existência de estereótipos e preconceitos nas nossas cabeças, que moldam, igualmente, o modo como pensamos o Outro e, consequentemente, o modo como interagimos, o que pode refletir-se no próprio processo de audição.
                   No decorrer de uma audição, outros erros podem ser cometidos de uma forma automática e que se relacionam, muitas vezes, com o que se designa de correlações ilusórias.
                  Estas consistem na associação de dois aspetos que podem não ter necessariamente uma relação (p. ex., chorar e sofrimento)».
                  Certezas apressadas que se tiram tantas vezes:
                  «Uma criança que chora está a dizer a verdade e a sofrer».
                  «Uma criança que não chora e se mostra mais fria não deve estar a sofrer tanto».
                  Como tal, terá de haver uma análise muito cuidada e profunda do caso concreto a fim de se evitarem tais enviesamentos que podem turbar a convicção criada.

                  Por isso, é precipitado e erróneo, sob o nosso ponto de vista (depois de ouvir a jovem), concluir que ela «não sofreu nem sofre de qualquer trauma físico, sexual e/ou psicológico», como se infere da Conclusão n.º XXXII.
                  Tanto sofreu que se deu como provado o facto n.º 47, fundamentando-se o mesmo no teor das declarações da BB, conjugado com o teor dos e-mails que a mesma enviou à sua professora e também nas declarações prestadas por esta – daqui se retirou que, de acordo com as regras da experiência, aquela efectivamente sofreu (e não precisamos necessariamente de perícias psiquiátricas para tal concluir), em consequência directa e necessária da conduta do arguido, tristeza, vergonha, ansiedade, nervos, intranquilidade, constrangimento e insegurança sobre a sua liberdade sexual e integridade pessoal, bem assim instabilidade emocional.
                  Se mesmo assim não mostra o grau de sofrimento que a sociedade quase exige dela, é porque estamos perante uma jovem resiliente[10] (e conheci tantos e tantos meninos e meninas resilientes durante os anos em que exerci funções em Tribunais da Família e Crianças).
                  Do que lemos e ouvimos da voz da BB, há, de facto, pormenores muito específicos, até com vivências sensoriais (cheiro do hálito do tio a aguardente, a remeter para memórias sensoriais de valorizar), contextualizações, dizer que não tem a certeza, etc., que conferem credibilidade ao testemunho, aliado aos exames periciais e à admissão do arguido.
                  Diz ela a certa altura do seu depoimento:
                  «Nesse dia não pôs a mão em mais nenhum lado».
                  Ora, numa falsa declaração não é costume verbalizar-se isto!
                  O crescendo nos toques corresponde ao chamado processo de grooming, constituído por uma sexualização progressiva da relação, que tem início no contexto de um contacto regular e que progride para uma relação mais sexualizada e intrusiva.
                  É neste contexto que é conseguida uma cooperação.
                  O agressor recorre a toques cada vez mais intrusivos com vista à dessensibilização, que está associada a outra estratégia comumente utilizada pelos agressores, que é o uso de confiança e familiaridade com a vítima.
                  Não esquecer que as vítimas não compreendem verdadeiramente a situação e as consequências da mesma, tendo em conta, entre outras variáveis, a provável existência de imaturidade afectivo-emocional e cognitiva.
                  Diz ela mais à frente:
                  «Nunca contei a ninguém porque ele dizia que era o nosso segredo e eu aprendi a guardar as coisas para mim e também queria magoar ninguém a contar isto. Também não queria preocupar a mãe pois ela tem problemas que cheguem. Contei à professora porque logo no início do ano ela inspirou-nos muita confiança e pareceu-me ser a pessoa certa».
                  Esta é a ambivalência comum nas vítimas - o pensar que a revelação vai trazer consequências para a família e magoar as pessoas…
                  Falar à professora é ventilar, é livrar-se do segredo sem pensar que isso pode trazer consequências.
                  Finalmente, dizemos que estão dados como provados, além do facto n.º 47, o n.º 44, parte final, ouvindo, nomeadamente, o depoimento da mãe da jovem (disse, em alto e bom som, por nós ouvido em gravação, que a presença do cunhado o incomoda e que tem vontade de o matar). Se isto não é hostilidade, é o quê?
                  Aqui chegados também diremos que a factualidade 14 e 16 e 15 e 17 não se repetem, sendo dois factos naturalísticos, ao contrário do que se sustenta no recurso (não há duplicação de factos, há é duplicação de condutas em dias diversos), aproveitando-se para deixar escrito que é perfeitamente normal que a vítima – qualquer vítima - não ande com uma agenda consigo para anotar os dias dos abusos, razão pela qual é natural a impossibilidade de concretização dos factos devidamente no tempo e no espaço, usando o Colectivo de Viseu fórmulas razoáveis de identificação temporal por estação do ano, o que manifestamente não impediu o arguido de exercer plenamente o seu direito de defesa.
                  Em lado algum deste acórdão se usou a técnica do copy-paste, como se insinua na motivação de recurso, como que insinuando que não foi feita prova efectiva dos crimes naquelas específicas ocasiões de tempo e espaço.
                  Repetimos – quem foi repetitivo, em termos criminais, foi o arguido para com uma criança que lhe deveria ter merecido maior respeito. E essa repetição factual teve de ser fatalmente vertida no acervo factual do aresto, como é bem de ver.
                  Como é que se expressa uma criança quando é tocada ou violentada em termos sexuais?
                  Nestas situações de abuso sexual de crianças, a prova é difícil.
                  Por sistema, quer-se sempre atacar o depoimento da própria vítima.
                  E, por isso, anda-se em busca de incongruências, de pouco rigor, de inverdades…
                  Sabemos que quanto mais vezes uma testemunha fala sobre o mesmo facto, mais dele se afasta (na sua realidade objectiva), pela reelaboração mental do mesmo que, consciente ou inconscientemente, vai fazendo.
                  É normal que uma criança que fala em tribunal quando tem 14 anos pode deixar de ser exacta quando recorda factos passados quando tinha 9, 10 ou 11 anos de idade.
                  Os estudos científicos lançam luz sobre este assunto.
                  É normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
                  Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham as imprecisões, contradições, omissões e inconsistências apontadas pelo arguido, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
                  Como tal, concluímos que de tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu.
                  É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso,  tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central.

                  3.2.1.5. E nem foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da sua inocência na medida em que o tribunal não acreditou na sua versão, no legítimo exercício da sua livre apreciação do depoimento do arguido e dos demais meios de prova.
                  No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
                  O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações por si prestadas e da credibilidade que deveria ter merecido, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
                  Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
                  Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
                  «Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
                  Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
                  «Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
                  Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
                  Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
                  O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
                  Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
                  As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
                  Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
                  «Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
                  Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
                  Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
                  Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
                  E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
                  Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
                  É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
                  Atente-se que o art.º 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
                  Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
                  Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
                  Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
                  Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
                  O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
                  Não ficou o Tribunal de Viseu em estado de dúvida.
                  E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
                  Por tal razão, não faz sentido fazer aqui valer e funcionar o princípio constitucional in dubio pro reo, não violado in casu.
                  Diga-se ainda, de passagem, que, no que tange às demais situações invocadas pelo arguido como violadoras do seu direito e garantias de defesa, designadamente, no momento da sua detenção, no momento subsequente à sua detenção, quanto à proibição de contactar a sua família e à irregular constituição de Advogado, ao exercício de coacção sobre ele e à condução do seu interrogatório em sede de audiência de julgamento, cumpre referir que dos autos resulta terem sido devidamente acautelados o direito e garantias de defesa do arguido.
                  E aqui acompanhamos as oportunas considerações da resposta do MP em 1ª instância:
                  «Contrariamente ao alegado, o arguido, a solicitação do órgão de polícia criminal que procedia à investigação, acedeu acompanhar, de livre vontade, os inspectores da Polícia Judiciária às instalações do Posto da GNR ..., afirmando “vou sim senhora, quem não deve não teme …” – cfr. fls.140.
                  Ora, perante tal afirmação, sabia o arguido dos motivos pelos quais era conduzido ao Posto da GNR ..., não fazendo, por isso, sentido o alegado, dizendo ter decido acompanhar os inspectores da Polícia Judiciária para os ajudar a identificar uma viatura, caso assim fosse não teria afirmado o que afirmou.
                  Também, aquando da sua constituição e interrogatório como arguido, foram cumpridas todas formalidades legais, incluindo a possibilidade de ser assistido por advogado, o que prescindiu, e ao ser informado dos factos que lhe eram imputado decidiu prestar declarações, afirmando, de novo, “quem não deve não teme”- cfr.fls.142 a 148.
                  Não corresponde ainda à verdade que ao ora recorrente não lhe foi permitido contactar com a sua família, pois, após a sua detenção, informado do direito de comunicar a sua detenção a pessoa da sua confiança, declarou não desejar fazê-lo – cfr. fls.178.
                  Quanto à coacção exercida pelo órgão de polícia criminal, aquando do seu interrogatório, nada se retira dos autos nesse sentido, mas se a mesma se verificou como alegao recorrente, como explica o arguido que em sedede 1º Interrogatório Judicial tenha prestado declarações idênticas àquelas que prestou perante os inspectores da Polícia Judiciária, se estas haviam sido obtidas mediante coacção.
                  O mesmo se diga das declarações prestadas em sede de julgamento perante o Colectivo de Juízes. Isto é, o arguido sempre que confessa parcialmente os factos que lhe vinham imputados, afirma fazê-lo por ter sido coagido para o efeito, o que não corresponde à verdade, conforme resulta dos autos.
                  Na verdade, o arguido ao alegar ter sido coagido das diversas vezes que prestou declarações no processo, assumindo parcialmente os factos, pretende obstar que sejam as mesmas valoradas e tidas por confessórias».
                  Ninguém acredita que a PJ obrigue as pessoas a confessarem crimes e que tinham obrigado este homem a dizer que tinha colocado a mão na vagina da sobrinha.
                  Estamos num Estado de Direito e recusamo-nos a acreditar nisso.
                  E estamos muito longe de pensar que este processo, o do arguido em causa, possa ser etiquetado de kafkiano.
                  Nem tão pouco, depois de ouvirmos os sucessivos interrogatórios do julgamento, levados a cabo por juízes e magistrados do Ministério Público, nos apercebemos de que o arguido foi pressionado a intimado a fazer as confissões intermitentes que acabou por fazer.
                  Fê-las apenas depois de terem sido reproduzidas as suas declarações em inquérito, mostrando-se absolutamente aflito e apanhado, passando de «nada de mal lhe fiz» para «afinal, alguma coisa de mal lhe fiz mas não tanto como ela diz»!
                  Conhecemos bem o direito do arguido à não autoincriminação.
                  Mas quem se incriminou de forma livre e voluntária foi o arguido e mais ninguém, ninguém o levando a isso.
                  Em lado algum dos interrogatórios por nós ouvidos, o tribunal deixou de «ouvir serenamente o arguido» e não vislumbrámos qualquer manifestação verbal que indiciasse pré-juízo sobre a sua culpa - apenas estranheza por depoimentos tão diversos em fases diversas do seu processo! E, para isso, pergunta-se e indaga-se! O que se fez, e bem.
                  Nestes termos, por terem sido devidamente acautelados o direito e garantias de defesa do arguido, não vemos em que a sua posição foi enfraquecida sob o ponto de vista processual de forma a fragilizar a convicção probatória criada no Colectivo de ...
                  Se assim é, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto PROVADA e NÃO PROVADA, improcedendo a impugnação de facto levada a cabo.

                  3.2.2. DO DIREITO

                  3.2.2.1. No plano do DIREITO, insurge-se o recorrente contra a decisão recorrida pelo errado enquadramento jurídico-penal da factualidade dada como provada nos pontos 5 a 8, a qual apenas é passível de integrar o crime de importunação sexual previsto no artigo 170º, do Código Penal, face à alteração legislativa sofrida pelo crime de abuso sexual de criança, previsto no artigo 171º, do Código Penal, introduzida pela Lei nº103/2015, de 24/8, cuja redação apenas entrou em vigor em momento posterior à alegada prática pelo arguido dos factos supra referidos.
                  O mesmo se diga dos crimes de violação agravado imputados ao arguido, cuja agravação,previstano artigo177º,nº 6,doCP,foi alteradapela Leinº 101/2019, de 6/9, em sentido mais favorável ao recorrente por ter alargado a idade da vitima de 14 anos de idade para 16 anos de idade, pelo que não podia o Tribunal a quo ter procedido à agravação do crime de violação, pela aplicação do previsto no nº 6, do artigo 177º, do Código Penal, quanto à factualidade dada como provada nos pontos 19 e 20 da decisão recorrida.
                  Recordemos a forma como o Colectivo arrumou os 26 crimes, tendo a nossa plena concordância neste aspecto:
                  · TIPIFICAÇÃO 1 - 14 crimes de abuso sexual do artigo 171º/1 – factos 5, 6, 7, 8, 9 e 18, 1ª parte
                  · TIPIFICAÇÃO 2 - 4 crimes de abuso sexual do artigo 171º/2 – factos 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, parte final
                  · TIPIFICAÇÃO 3 - 6 crimes de violação agravada dos artigos 164º/2 b) e 177º/6 – factos 19 e 20
                  · TIPIFICAÇÃO 4 - 2 crimes de actos sexuais com adolescentes[11] do artigo 173º/1 – facto 19 (referente às duas situações corridas entre janeiro de 2018 e o Verão de 2018, considerando-se, em benefício do arguido, que, em ambas as vezes, a BB já teria 14 anos feitos em 6 de Março de 2018).
                  Vejamos as alegações de recurso que mexem apenas com as tipificações 1 e 3.
                  Quanto à primeira:
                  Preceitua o artigo 171º, nº 1, do Código Penal: “1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.
                  Esta redacção já vigorava aquando da data da prática dos factos pelo arguido no Verão de 2015, sendo que a alteração legislativa introduzida ao citado normativo legal pela Lei nº103/2015, de 24/8 (entrada em vigor 30 dias após a sua publicação, logo, já fora do Verão), traduziu-se no acrescento da alínea c) ao nº 3, do artigo 171º, para além de se ter consagrado no n.º 5 a punibilidade da tentativa, o que relevou para os actos do n.º 3 pois já era punível a tentativa para os actos dos n.ºs 1 e 2 por força do artigo 23º do CP, em nada relevando estas alterações para os factos sob apreciação.
                  No crime de abuso sexual de criança, o bem jurídico protegido através da norma transcrita é a autodeterminação sexual, sendo que, face à idade da vítima, a prática destes crimes pode ter consequências graves no desenvolvimento da sua personalidade.
                  Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (...). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei" -cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.09.2007, in www.dgsi.pt, processo n.º 07P2273.
                  Perante tal normativo, importa, em primeiro lugar, procurar definir o conceito de acto sexual de relevo contido neste preceito legal.
                  Entende-se por acto sexual de relevo “todo aquele (comportamento activo) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica”- (Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, I, pág. 447) – cfr. vários exemplos desses actos em Crimes Sexuais, de Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, Almedina, 2021, pp. 181-182.
                  Para Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal em anotação ao artigo 163º, concretizando o que seja acto sexual de relevo, nele integra o toque com partes do corpo nos seios, nádegas, coxas e boca.
                  Na jurisprudência pode colher-se uma certa uniformidade (cfr. nomeadamente os
                  acórdãos do TRC de 5.3.2000, 27.6.2007, 9.7.2008, 2.2.2011 e do TRP de 26.11.2003, 7.10.2009, 27.1.2012 e 28.11.2012) de acordo com os ensinamentos da doutrina, que será acto sexual de relevo todo aquele que tenha uma natureza objectiva estritamente relacionada com a actividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas, como é manifestamente o caso de acariciar os seios/mamas ou actos preliminares do acto sexual final que conduz ao orgasmo.
                  Assim, constando da factualidade dada como provada nos pontos 5 a 8 da decisão recorrida que:
                  «5 - Em dia não concretamente determinado, mas num Domingo do Verão de 2015, a BB, a irmã e a mãe almoçaram em casa do arguido e da esposa deste.
                  6 – Depois do almoço, a esposa do arguido foi descansar para o quarto de dormir que se situa no piso superior da residência e a mãe e a irmã da BB foram para casa delas.
                  7 - A BB permaneceu em casa do arguido, na cozinha, na companhia deste.
                   8 - O arguido, aproveitando-se da circunstância de se encontrar sozinho com a BB, quando   esta estava a lavar a loiça, aproximou-se dela, abraçou-a, apalpou-lhe as mamas e pressionou o corpo dele contra o dela»,
                  dúvidas não se suscitam que a factualidade supra descrita integra o crime de abuso sexual de criança [longe do campo benigno da importunação sexual[12] do artigo 171º/3 a) do CP], previsto e punido pelo artigo 171º, nº 1[13], do Código Penal, pois, o arguido, ao abraçar a sobrinha, apalpando-lhe as mamas e pressionando o seu corpo contra o dela (não num mero roçar próprio de acontecer num transporte público lotado), praticou um acto sexual de relevo, incorrendo por isso, no cometimento do aludido ilícito, conforme decidido pelo Tribunal a quo.
                  *
                  Quanto à segunda:
                  No que tange aos crimes de violação agravada[14] imputados ao arguido, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº 2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 5/8, vigente à data da prática dos factos, o que reiteramos, e 177º, nº 6, ambos do Código Penal, entende o recorrente que a agravação prevista no artigo 177º, nº 6, do Código Penal, foi alterada pela Lei nº 101/2019, de 6/9, em sentido mais favorável ao recorrente por ter alargado a idade da vítima de 14 anos de idade para 16 anos de idade, pelo que não podia o Tribunal a quo ter procedido à agravação do crime de violação por aplicaçãodo previsto no nº 6, do artigo 177º, do CP, quanto à factualidade dada como provada nos pontos 19 e 20 da decisão recorrida.
                  Sem razão.
                  O artigo 177º, nº 6, do CP, na redacção dada pela Lei nº 103/2015, de 24/8[15] (lei vigente à data dos eventos), dispunha:
                  “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 16 anos”.
                  Por sua vez, com alteração legislativa introduzida pela Lei nº 101/2019, de 6/9 (já depois dos eventos dos autos – verão de 2019 - pois a lei foi publicada para entrar em vigor em 1/10/2019), o nº 6, do citado normativo legal, passou a ter a seguinte redacção: “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, quando os crimes forem praticados na presença ou contra vítima menor de 16 anos”.
                  Ora, a alteração sofrida pelo artigo 177º, nº 6, do CP, na redacção dada pela Lei nº 101/2019, de 6/9, não alterou a idade da vítima conforme referido pelo recorrente, alargando antes o seu âmbito de aplicação e agravando a actuação do agente se os crimes ali referenciados forem praticados na presença de criança de 16 anos de idade, o que não sucedia na redacção anterior.
                  Esta nova redacção dada ao artigo 177º, nº 6, pela Lei nº 101/2019, de 6/9, abarca, assim, as situações em que o crime, apesar de não ser praticado contra aquela criança, o mesmo está presente no momento em que o crime sexual é perpetrado.
                  “Não só se tutela o menor que presenciou a agressão sexual, pela potencial aptidão de afectar a sua sexualidade ou liberdade sexual na vertente negativa (no sentido de que não lhe deve ser imposto visualizar agressões sexuais), mas é também reflexo de um maior desvalor de ação do agente, que se mantém indiferente à presença do menor, bem sabendo que, pela sua vulnerabilidade, fruto da idade, poderá causar-lhe sequelas.” – cfr. Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, pág.249 (a tal consideração da criança espectadora do crime como vítima directa do mesmo[16]).
                  Pelo exposto, face à factualidade dada como provada nos pontos 19 e 20, e numa altura em que a BB tinha inequivocamente menos de 16 anos (14 e 15 anos), é claro que cometeu o arguido os crimes de violação agravada, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº 2, al. b), na versão da Lei n.º 83/2015, de 5/8, vigente à data da prática dos factos, e 177º, nº 6, na versão da Lei n.º 103/2015, de 24/8, ambos do Código Penal, conforme decidido pelo tribunal recorrido.
                  Se assim é, estão perfectibilizados os tipos de crime praticados pelo arguido, em número de 26, passando por 4 tipos de crime, tal como certeiramente gizado pelo Colectivo de Viseu, assente que foi cumprido devidamente o disposto no artigo 358º do CPP, quanto à suscitada alteração não substancial de factos e à alteração da qualificação jurídica (cfr. acta de 26/11/2021 e resposta do arguido[17]).

                  3.2.2.2. Por último, insurge-se o arguido contra a medida concreta da pena única aplicada, a qual se mostra excessiva e desadequada face às razões de prevenção (geral e especial) que no caso se fazem sentir e às circunstâncias que a seu favor militam.
                  Entende também exageradas as penas parcelares.
                  Não está colocada em causa a subsunção jurídico-penal dos factos ao Direito – ou seja, cometeu, assim, o arguido:
                  · 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1[18], do Código Penal (CP), tendo sido condenado na pena individual de 2 (dois) anos de prisão;
                  · 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, nº 2[19], do CP, tendo sido condenado na pena individual de 5 (cinco) anos de prisão;
                  · 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, vigente à data dos factos, e 177.º, nº6, ambos do CP, tendo sido condenado na pena individual de 4 (quatro) anos de prisão;
                  · 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 173º, n.º1 do CP, tendo sido condenado na pena individual de 9 (nove) meses de prisão;
                  · Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares de prisão foi ele condenado na pena única de 12 (doze) anos de prisão efectiva.
                  Foram bem encontradas as penas parcelares?
                  E a de cúmulo?
                  Vejamos.

                  a)- Perante a perfectibilização dos tipos legais em causa, nos seus elementos objectivos e subjectivos (cfr., a este propósito, o artigo 14º, do Código Penal e a dimensão necessariamente dolosa do comportamento do agente, assente que, in casu, a negligência não é punível), há que passar à operação da determinação da MEDIDA da pena a aplicar ao agente do crime (assente que a fase da escolha do artigo 70º inexiste pois não temos aqui alternativa à pena de prisão).
                  No nosso caso, as molduras abstractas das penas dos 4 crimes em causa são:
                  · crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, nº 1, do CP – 1 a 8 anos de prisão;
                  · crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo artigo 171.º, nº 2, do CP – 3 a 10 anos de prisão;
                  · crime de violação sexual agravada, previsto e punido pelos artigos 164°, nº 2, al. b), na versão da Lei nº 83/2015, de 05.08, vigente à data dos factos, e 177.º, nº 6, ambos do CP – 1 ano e 4 meses até 8 anos de prisão;
                  · crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelo artigo 173º, n.º 1 do CP – prisão até 2 anos.

                  b)- Recordemos o básico sobre esta matéria.
                  A determinação da pena envolve diversos tipos de operações.
                  O julgador, perante um tipo legal que prevê, em alternativa, como penas principais, as penas de prisão ou multa, deve ter em conta o disposto no artigo 70.º do Código Penal que consagra o princípio da preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
                  Tais finalidades, nos termos do artigo 40.º do mesmo diploma, reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente da sociedade (prevenção especial).
                  Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina, em seguida, a medida concreta da pena que vai aplicar, para depois escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida.
                  Assim, o tribunal, perante a previsão abstracta de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa.
                  Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
                  O artigo 70.º opera, precisamente, como regra de escolha da pena principal, nos casos em que se prevê pena de prisão ou multa.
                  Porém, a escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa não significa que desde logo se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois entretanto haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição que apenas são aplicáveis depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71.º, o seu quantum.
                  Já o assinalámos: da escolha da pena principal de prisão, no caso de moldura abstracta que contempla prisão ou multa, não decorre, necessariamente, que a pena privativa da liberdade tenha de ser cumprida.
                  O que pode acontecer é que o tribunal, atento o preceituado no artigo 70.º, opte pela prisão como pena principal, por entender que a multa não satisfaz de forma adequada e suficiente todas as finalidades da punição, mas que, num segundo momento, uma vez fixada a prisão em certa medida, entenda dever proceder à sua substituição, por tal lhe ser legalmente imposto se a execução da prisão não for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes (anterior artigo 44.º, agora artigo 43.º), ou porque, face às penas de substituição legalmente previstas, acaba por concluir que uma dessas penas satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 364).
                  Depois de escolhida a pena a aplicar, há que determinar a sua medida.
                  O artigo 71º, nº 1, do Código Penal estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve encontrar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
                  O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
                  A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
                  Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
                  Quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, em que alguém é subjugado a uma vida de humilhações, forçado a aceitar as opiniões e as ofensas de outrem que se mostra fisicamente mais forte, num ciclo cada vez mais frequente, em termos estatísticos, e numa prática que deverá ser decisivamente afastada dos hábitos da nossa comunidade, num reforço da consciência jurídica comunitária, na qual o valor da igualdade entre cônjuges já se impõe há décadas, em termos de direito escrito.
                  Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma.
                  A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um ato de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, sendo antes uma discricionariedade juridicamente vinculada.
                  O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do Direito e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, e na feliz fórmula de Simas Santos, «mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações».
                  Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exata) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
                  De facto, a determinação da pena envolve diversos tipos de operações:
                  · a)- determinação da medida abstrata da pena (olhando para o tipo legal de crime em causa);
                  · b)- escolha, no caso de molduras compósitas alternativas de prisão ou multa, da pena principal, nos termos do artigo 70º, do Código Penal;
                  · c)- fixação do quantum da pena principal dentro da moldura respetiva, com base nos critérios do artigo 71º, do Código Penal;
                  · d)- ponderação da aplicação de uma pena de substituição;
                  · e)- fixação, finalmente, desta pena (sua medida concreta).
                  Já vimos que a fase da escolha da pena é aqui inexistente pois o tipo só prevê prisão a título principal.
                  Determinada a concreta medida da pena principal e, tendo esta de ser sempre uma pena de prisão, impõe-se verificar se ela pode ser objecto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida.
                  Tais penas de substituição “podendo substituir qualquer uma das penas principais concretamente determinadas (…) se não são, em sentido estrito, penas principais (porque o legislador não as previu expressamente nos tipos de crime) …[são] penas que são aplicadas e executadas em vez de uma pena principal (penas de substituição)” - Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 91.
                  Assim:
                  - se a pena principal aplicada for a de um ano de prisão ou menos, a prisão pode vir a ser substituída por:
                  · multa (artigo 45º, nº 1, do Código Penal), não susceptível de ser, por sua vez, substituída por dias de trabalho (embora se saiba que há tribunais que o fazem, apoiados em alguma doutrina ou apenas na prática jurisprudencial);
                  · regime de permanência na habitação (artigo 43º, nº 1, do Código Penal);
                  · proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46º do Código de Processo Penal - novidade da Lei nº 95/2017, de 23/8);
                  · suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal)
                  · prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, do Código Penal).
                  - se a pena principal aplicada for superior a um ano até dois anos – inclusive - de prisão, esta prisão pode vir a ser substituída por:
                  · regime de permanência na habitação (artigo 43º, nº 1, do Código Penal);
                  · proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46º do Código de Processo Penal - novidade da Lei nº 95/2017, de 23/8);
                  · suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal)
                  · prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º, do Código Penal).
                  - se a pena principal aplicada for superior a dois anos e até três anos – inclusive - de prisão, esta prisão pode vir a ser substituída por:
                  · proibição do exercício de profissão, função ou atividade (artigo 46º do Código de Processo Penal - novidade da Lei nº 95/2017, de 23/8);
                  · suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal).
                  - se a pena principal aplicada for de três a cinco anos – inclusive - de prisão, esta prisão pode vir a ser substituída por:
                  · suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50º, do Código Penal).
                  - se a pena principal aplicada for superior a 5 anos, não há qualquer forma de a substituir.

                  c)- O raciocínio do tribunal recorrido para encontrar as penas parcelares e a pena de cúmulo foi esta:
                  «Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa, agora, determinar a medida da sanção a aplicar.
                  Considerando que a medida da pena concreta deve ser fixada em função da culpa e das exigências de prevenção, nos termos do art.71º, nº1, do C. Penal, tendo como referência os fatores enumerados de forma não taxativa no n°2 desse preceito, haverá que levar em consideração:
                  • o grau da ilicitude dos factos que em qualquer dos casos, sem perder de vista a gravidade própria valorada na moldura abstrata correspondente, afigura-se forte, atenta a intensidade e natureza dos atos praticados, sobressaindo a pluralidade e diversidade daqueles repetidamente cometidos em relação à menor, consistente em atos sexuais de elevado relevo, envolvendo, além da introdução dos dedos na vagina, a manipulação com os dedos e língua das zonas íntimas da menor;
                  • o grau da ilicitude dos factos, sem perder de vista a gravidade própria valorada na moldura abstrata correspondente, atenta a intensidade e natureza dos atos sexuais praticados, há-de determinar uma gradação da pena correspondente;
                  • a interferência de diversos fatores de agravação da pena, nos termos o art.177º, nº8, do C. Penal, menor de 16 anos, a relação familiar - sobrinha, integrando a mais grave a estrutura valorativa do tipo, agrava também a ilicitude do facto;
                  • do ponto de vista da liberdade de determinação sexual da vítima, a agressão cometida foi acentuada;
                  o a idade da menor, com 14 e 15 anos à data das violações sexuais, afastada do limiar da agravação prevista pelo artigo 177.º, n.º 6, do Código Penal, agrava a censurabilidade da conduta;
                  o o modo de execução dos abusos e violação sexual da BB;
                  o é intensa a gravidade das comprovadas consequências ao nível psicológico e emocional da vítima, embora não sejam conhecidas lesões físicas dessa atuação;
                  o em todos os casos, o dolo do arguido, sendo direto, revela acentuada intensidade, traduzida no empenho e energia revelada na execução repetida dos atos que praticou e os obstáculos e as contra motivações sociais que teve de vencer para concretizar o seu propósito.
                  • Contra o arguido apresentam-se os fins ou motivos que determinaram, quantas vezes, a satisfação dos seus desejos sexuais que sobrepôs aos interesses da dignidade e desenvolvimento harmonioso da criança, sobrinha sua, valendo-se da particular vulnerabilidade da mesma e da proximidade que as relações familiares e de dependência emocional da menor proporcionavam;
                  • consubstanciam fatores de risco de reincidência a repetição dos atos sexuais, ao longo de um período de tempo bastante longo, a falta de arrependimento e sentida consciência critica dos factos cometidos, refletida na posição inicial assumida pelo arguido em julgamento em que começou por negar os factos;
                  • é de ressaltar o facto de a conduta do arguido se ter prolongado reiteradamente por vários anos, tendo-se iniciado desde que a BB tinha apenas 11 anos de idade;
                  • em qualquer dos casos o comportamento do arguido é socialmente tido como grave e desonroso, aclamando fortes exigências de prevenção geral;
                  • as consequências pessoais dos factos para a vítima são elevadas, já que as condutas de natureza sexual prejudicam gravemente o desenvolvimento da personalidade em fase de crescimento e maturação;
                  • o grau de violação dos deveres impostos ao arguido é elevadíssimo, em razão do laço familiar que o ligava à vítima;
                  • a reiteração destas condutas criminosas por parte do arguido evidencia relevante perigosidade social do mesmo, mostrando-se totalmente insensível aos valores jurídicos-penalmente tutelados;
                  o o arguido beneficia de integração familiar, ocupacional e social;
                  o O arguido não tem antecedentes criminais.
                  As exigências de prevenção geral neste tipo de crimes, é sabido, têm vindo a ganhar crescente relevância na sociedade contemporânea, a significar uma preocupação comunitária da maior grandeza pelas suas dimensões e gravíssimas consequências, tanto individual como coletivamente, constituindo a sua ofensa motivo de generalizado e crescente repúdio social.
                  Os crimes sexuais contra crianças e menores, “do tipo dos crimes comprovadamente praticados pelo arguido, constituem um dos fatores que provoca maior perturbação e comoção social, designadamente em face dos riscos (e danos) para bens e valores fundamentais que causam e da insegurança que geram e ampliam na comunidade. A necessidade de protecção do bem jurídico protegido pelo disposto nos arts. 171.º e 176.º, do CP, releva com particular intensidade relativamente a menores de 14 anos de idade, face, não apenas à fragilidade das vítimas, também do impacto da conduta delitiva na sua orientação de vida, seja na vertente da sexualidade, seja ainda no são desenvolvimento físico e psíquico desses (irrepetíveis) seres humanos” – cfr. Ac STJ 05-11-2020 (Clemente Lima) www.dgsi.pt.
                  O arguido regista um percurso de vida pessoal, familiar e profissional que pode ser enquadrado dentro dos parâmetros considerados normais. Não obstante o presente processo continua com apoio de familiares e amigos e continua a beneficiar de uma situação económica estabilizada do seu agregado familiar, fatores favorecedores na sua reinserção social.
                  A atitude de negação do arguido perante os factos constitui um forte condicionalismo na identificação das necessidades individuais de reinserção social.
                  A prevenção especial faz-se sentir de modo particularmente intenso, posto que, embora não tenha antecedentes criminais, e esteve sempre social e profissionalmente integrado, protagonizou sucessiva e reiteradamente a violação do mesmo bem jurídico em relação à sua sobrinha, com quem mantinha uma relação familiar próxima, quer com ela quer com a sua irmã e a sua mãe, valendo-se dessa proximidade e da vulnerabilidade da vitima para melhor concretizar os seus intentos.
                  A elevada taxa deste tipo de criminalidade levanta bem alta a fasquia da prevenção geral e consequente necessidade da pena, embora a sua medida não possa ultrapassar a medida da culpa do agente».
                  Ora, as penas parcelares aplicadas foram:
                  - a pena de 3 (três) anos de prisão para cada um dos 14 (catorze) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, cuja moldura é de 1 (um) a 8 (oito) anos de prisão;
                  - a pena de 5 (cinco) anos de prisão para cada um dos 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, nº2, do Código Penal, cuja moldura é de 3 (três) a 10 (dez) anos de prisão;
                  - a pena de 4 (quatro) anos de prisão para cada um dos 6 (seis) crimes de violação sexual agravada, previstos e punidos pelos artigos 164°, nº2, al. b), na versão da Lei nº83/2015, de 05.08, vigente à data dos factos, e 177.º, nº6, ambos do Código Penal, cuja moldura é de 1 ano e 4 meses até 8 anos de prisão.
                  - a pena de 9 (nove) meses de prisão para cada um dos 2 (dois) crimes de actos sexuais com adolescentes, previstos e punidos pelo artigo 173º, n.º1 do Código Penal, cuja moldura é de pena de prisão até 2 anos”.

                  d)- Que dizer destas penas, à luz das molduras da culpa e das necessidades de prevenção geral e especial?
                  A distinção das penas parcelares parece-nos correcta, à luz dos critérios ínsitos no artigo 71º do CP, e o seu quantum adequado.
                  Já a pena de cúmulo foi fixada em doze anos, a partir de uma moldura penal abstracta entre 5     e 25 anos de prisão, atenta a pena máxima aplicável no nosso ordenamento jurídico (artigo 41º, nº 2 do CP) – cfr. ainda artigo 77º, n.º 2 do CP.
                  Iremos validar tal pena de doze anos de prisão, insusceptível de se ver suspensa na sua execução porque superior a 5 anos?
                  O recorrente diz-se injustiçado e severamente punido, tendo sido esquecidos muitos dos seus circunstancialismos de vida.

                  e)- A pena aplicada reflecte o elevado desvalor da acção, não ultrapassa a medida da culpa (que é intensa, assumindo a forma de dolo directo e reiterando-se em comportamentos múltiplos e sucessivos que revelam uma personalidade com um elevado grau de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico penal, maxime atendendo ao tipo de actos que o arguido praticou com uma criança, sua familiar, desde os seus 11 até aos 15 anos) e são adequadas a responder às necessidades de prevenção geral (prementes) e especial (muito prementes) que no caso se verificam.
                  E foram devidamente atendidos e ponderados os demais factores da determinação da medida da pena enunciados no artigo 71.º do Código Penal (não sendo relevante o facto de alegar que a sua família depende de si).
                  Devem aqui sublinhar-se os factores relativos à personalidade do arguido manifestada na matéria de facto, de onde ressalta o facto de ter levado a efeito estes actos inenarráveis, aproveitando-se da sua própria sobrinha para satisfazer com ela os seus instintos libidinosos e roubando-lhe (sem possibilidade de restituição) a possibilidade de viver a inocência da sua infância a partir dos 11/12 anos, bem como colocando-a na angústia de não poder contar à própria mãe um facto tão relevante de que estava a ser vítima…
                  O que nos reconduz a salientar, também, o enorme peso das consequências da conduta do arguido na pessoa desta criança – sabemos, de conhecimento adquirido de muita leitura científica, que a imagem destes 26 abusos vai perdurar para sempre na sua mente e na geometria da memória do seu corpo, por muito que não se note!
                  Deve ainda salientar-se, relativamente à muito elevada censurabilidade do comportamento do arguido, que este não foi sensível, sequer, ao natural escrúpulo que deveria para si decorrer da tenra infância desta criança e da relação de natureza familiar que tinha com ela, agindo num ambiente de segredo.
                  E, relativamente ao acentuado grau de ilicitude dos factos, o longo tempo por que perdurou a conduta do arguido no que diz respeito ao abuso sexual e a gravidade relativa daquela conduta entre os diversos comportamentos descritos no tipo do artigo 171.º, n.º 1 do Código Penal.
                  Não foi uma vez que a BB, criança com nome e identidade, foi acariciada em partes íntimas do seu corpo.
                  Nem duas,
                  Nem três.
                  Nem quatro.
                  Nem cinco.
                  Nem seis.
                  Nem sete.
                  Nem oito.
                  Nem nove.
                  Nem dez.
                  Nem onze.
                  Nem doze.
                  Nem treze.
                  Nem catorze.
                  Nem quinze,
                  Nem dezasseis.
                  Nem dezassete,
                  Nem dezoito.
                  Nem dezanove.
                  Nem vinte.
                  Nem vinte e uma.
                  Nem vinte e duas.
                  Nem vinte e três.
                  Nem vinte e quatro.
                  Nem vinte e cinco.
                  Foram vinte e seis que o seu corpo foi tocado por quem nunca o poderia fazer.
                  As necessidades de prevenção especial são prementes no caso “sub-judice”, por força de uma personalidade que precisa de apoio psicológico nesta sede.
                  Também são grandes as exigências de prevenção geral, em face do aumento e visibilidade pública dos crimes relacionados com a liberdade e autodeterminação sexual e à coacção sobre crianças, que geram sentimentos de repulsa na comunidade, sobretudo quando são praticados em meio familiar, demandando uma intervenção punitiva com peso suficiente para repor no espírito comunitário a confiança na validade e vigência da norma violada.
                  As preocupações de ressocialização, em face do conjunto dos factos em análise, demandam, pois, uma pena com dimensão suficiente para dissuadir o arguido da prática de futuros crimes.
                  Como se aduziu em aresto do STJ de 13/7/2005:
                  A finalidade de reintegração do agente na sociedade há-de ser, em cada caso, prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades”. 
                  A globalidade dos factos provados nestes autos, que integram os crimes em concurso, indicia uma “pluriocasionalidade” (26 vezes prevaricou, sem dó nem piedade no corpo de uma sobrinha menor de idade) que está a um passo muito curto de uma verdadeira “carreira criminosa”, o que adensa a necessidade de uma reacção penal adequada a fazer o arguido inflectir o seu percurso, percebendo em definitivo que não pode praticar actos do tipo daqueles por que vai condenado nestes autos e contrariando as tendências desvaliosas da sua personalidade.
                  E a vítima?
                  Onde fica ela em tudo isto?
                  Fazem-se ouvir os ecos da Convenção de Istambul.
                  A criança é hoje vítima, contra ventos antigos, ao abrigo das novas luzes lançadas pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto de 2021 que veiculou, aos sete novos ventos, que «Vítima» é a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica».
                  O STJ, em 2003, já dava o sinal de alarme (Recurso n.º 1090/03-5):
                   «Hoje assiste-se com uma frequência preocupante ao autêntico escárnio dos mais sagrados sentimentos de crianças indefesas, tantas vezes transformadas sem escrúpulo em meros instrumentos de satisfação libidinosa, não raro por actuação perversa e cobarde, até, dos próprios progenitores, ou de quem, acobertado pelo recato do lar, e em regra, por isso, portador da sua inocente confiança total, não hesita em conspurcar esse sacrário de inocência no seu próprio chafurdo sexual, não pode o sistema jurídico-penal dar outra resposta que não seja um inequívoco sinal de segurança, enfim, proporcionando porto de abrigo a quem dele tão veementemente mostra necessitar: as crianças.
                  Nos tempos actuais de fragmentação de valores e de referências, os crimes sexuais emergem como verdadeiro mal democrático numa sociedade onde a igualdade de condições conduz à redução da alteridade. 
                  A proximidade emocional própria do universo comunicacional das efervescentes democracias contemporâneas anula a distanciação, transportando fenómenos sociais de exigência intensa na resposta a crimes sexuais; o legislador, interpretando os sinais de sociedade, teve de sublimar e reordenar as imposições sociais na grelha de intervenção do direito e das reacções do sistema penal que tutela os valores mais essenciais da comunidade. 
                  Os crimes sexuais, sobretudo os abusos sexuais sobre crianças, contêm, na imagem das democracias de comunicação, uma dimensão de negação alucinatória da ordem natural as coisas, uma desordem da natureza, um desequilíbrio cósmico que a cidade quer eliminar sem o referir (cfr. DENIS SALAS, Le délinquant sexuel, in "La Justice et le mal", ed. Odile Jacob, 1997, p. 53 e segs).
                  O abuso sexual sobre crianças significa, nas representações sociais, “o mal absoluto”, com o sentimento de presença do inumano no humano pelo uso patológico da liberdade de acção».
                  E é constante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que, nos crimes de abuso sexual de crianças, as exigências de prevenção geral têm uma “finalidade primordial, e a medida de prevenção deve ser essencialmente determinada pela projecção da ilicitude dos factos” (vide os acórdãos do Supremo Tribunal, de 2003.05.08, processo n.º 1090/03, de 2003.06.05, processo n.º 1656/03, de 2003.11.29, processo n.º 2729/03 e de 2003.11.05, processo n.º 201/03). 
                  Este homem, quase pai, ao longo de um ano inteiro, tão cobardemente, desprezou, com um desrespeito total pela pessoa da BB.
                  O Abuso Sexual Infantil é definido como a exposição de uma criança a estímulos sexuais impróprios para a sua idade, o seu nível de desenvolvimento psicossocial e o seu papel na família.
                  As vítimas de abuso sexual também falam.
                  E querem falar, tantas vezes através de hesitações, esgares, silêncios comprometidos e constrangedores, sinais…
                  Nem sempre produzem palavras.
                  Porque o acto de que foram vítima é, por demais, monstruoso para caber num catálogo de sílabas e ditongos, substantivos e adjectivos.
                  E, quando se fala em crianças, tal ainda é mais verdadeiro.
                  Todos sabemos que é muito complicado lidar com crianças violentadas na sua própria inocência.
                  «Nessas situações, quão difícil também se torna perceber o que realmente se passou no silêncio dos quartos. Quão delicado é falar com estes menores que nos aparecem assustados e titubeantes e a quem é penoso pedir explicações sobre actos tão vilipendiantes. O interrogatório de um menor deve, assim, revestir, uma extrema delicadeza, havendo que tentar perceber os silêncios, os esgares, os sorrisos nervosos, as hesitações, os olhares, as entrelinhas no discurso de um menor nesta situação.
                  O menor violentado na sua sexualidade deixa de poder ser sujeito do seu próprio destino, da sua própria história sonhada, projectada ou construída. A história que lhe vão impor ultrapassa-o em velocidade e substância, deixa de ser "sua" para passar a ser aquela que não lhe ensinaram, para a qual não pediram sequer um assentimento seu que fosse. De si, apenas um murmúrio surdo, um grito abafado na calada do quarto dos fundos, no canto recôndito da garagem mal iluminada, um "não" ouvido nas paredes da sua alma que não tinha voz suficiente para soar. De si, apenas urna imagem de um corpo usado como vazadouro de néctares infelizes, numa toada de lamento e dor, tantas vezes silenciada em nome de um amor maior...» (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, respectivamente, pp. 61 e 62 e 43).
                  Restam apenas, em muitas situações, os depoimentos das vítimas, face à inconcludência dos exames científicos feitos.
                  «E aí restam os depoimentos sofridos, contidos, às vezes infantil e naturalmente contraditórios e incoerentes, das vítimas dos abusos e as demais provas testemunhais circunstanciais – há que dizer, neste jaez, que à Justiça de Menores basta a denúncia séria e minimamente fundamentada para que se despoletem os mecanismos necessários à imediata protecção da vítima, ficando para a Justiça Penal o apuramento de todo um conjunto de pormenores relevantes à descoberta da verdade material. É por demais evidente a prudência que se deve ter na condução do interrogatório de uma vítima de abuso sexual, assente que para ela é doloroso denunciar quem lhe é querido ou uma situação que ainda não compreendeu muito bem, imbuída por sentimentos de preconceituosas moralidades, herdadas de uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar de forma saudável como corpo e com o sexo. Para essa vítima, é sempre um segredo que tem de ser revelado” (Paulo Guerra, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, pp. 79 e 80).
                  Por isso, haverá que ter muito cuidado na inquirição feita a uma criança nesta sede.
                  «Importa equacionar a necessidade de existirem regras específicas para a inquirição dos menores vítimas, para o registo e validade dos seus depoimentos, bem como para o modo de os poder contraditar, num adequado balanceamento entre a exigência do apuramento da verdade, os direitos da criança e os direitos do arguido; investir na formação dirigida a magistrados e membros dos órgãos de polícia criminal; assegurar uma adequada assessoria técnica. … Tenho para mim que esta (a valoração da prova) tem de ser encarada como uma questão maior da nossa prática judiciária, importando que seja promovido o conhecimento actualizado sobre as técnicas de entrevista e inquirição das crianças sobre o estado das investigações quanto a alguns frequentes pré juízos, como sejam: que as crianças não são tão boas como os adultos na observação e relato dos acontecimentos que lhes respeitam; que têm propensão para fantasiar acerca das questões sexuais; que são altamente sugestionáveis; que têm dificuldade em distinguir a realidade da fantasia; que têm propensão para confabular» (Rui do Carmo, in «O Abuso Sexual de Menores – Uma Conversa sobre Justiça entre o Direito e a Psicologia», Almedina, 2ª Ed., 2006, Rui do Carmo/Isabel Alberto/Paulo Guerra, pp. 74 e 96, nota 39).
                  E continua Isabel Alberto:
                  «Perante estas considerações, o contexto físico e pessoal da inquirição deve ser cuidadosamente trabalhado. Deve ser um espaço aconchegante e confortável, longe da agitação e da conotação policial, que não favoreça o encontro e o cruzamento com o agressor, podendo o menor estar acompanhado de um adulto da sua confiança, por ele escolhida para a audição, embora esta pessoa tenha de ser neutra (Carmo, 2000; Hamom,1988; Somers & Vandermeersch,1998). A entrevista não pode assumir um aspecto inquisitório, que retrai a vítima, e deve conter desde logo a referência a todos os elementos informativos essenciais: "o primeiro exame convém que seja minucioso, o que igualmente permitirá a recolha de vestígios susceptíveis de desaparecerem ou se atenuarem com o decurso do tempo" (CEJ, 1991, p.12). O recurso ao registo em vídeo das inquirições (Carmo, 2000), com aviso do registo e aceitação da vítima, e uma entrevista bem conduzida evitam a sucessão e a repetição de inquirições, servindo um único registo para todas as fases do processo.”. (Isabel Alberto, na mesma obra a pp. 81 e 82).
                  E voltamos ao relator deste acórdão:
                  «Daí que haja a necessidade das entidades que procedem aos interrogatórios destas vítimas estarem munidas de cautelas e de conhecimentos bastantes sobre a arte de interrogar uma criança, de forma a que consigam interpretar esgares, silêncios, hesitações, monossílabos, um simples "sim" ou um simples "não", a construção frásica, a clareza do discurso, as pausas, as interrupções, as emoções e sentimentos que a criança evidencia (vergonha, culpa, tristeza, alegria, alívio, ansiedade), a labilidade e o distanciamento emocionais, o olhar, a postura, o sorriso, a colocação das mãos, o grau de sugestionabilidade, os seus desenhos, o seu comportamento com os brinquedos, o seu comportamento sexualizado, o tipo de pressão ou coerção a que pode estar sujeito, o contexto da sua revelação inicial...
                  Tais interrogatórios não se devem repetir para que a criança não tenha de injustificadamente reviver as cenas de um passado que quer definitivamente esquecer, sem prejuízo da tomada complementar de declarações sempre que o seu interesse superior o demandar, embora se considere, tal como o faz Razon (Laure Razon, in “Famille incestueuse et confrontation à la justice; de l’acte à la parole. Dialogue – Recherches cliniques et sociologiques sur le couple et la famille”, 1999, p.10) que "o primeiro depoimento é a maior parte das vezes o mais desenvolvido, argumentado, logo credível» (Paulo Guerra, na mesma obra a p. 83 e 84).
                  Concluímos, assim, que a prova da verificação nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, é particularmente difícil, na medida em que escasseia a prova directa, sendo notório que, regra geral, só o arguido e sua vítima têm conhecimento da maioria dos factos.
                  Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, pois só nesse caso é susceptível de formar, de forma válida, a convicção do julgador.
                  E o depoimento desta jovem menina foi suficientemente esclarecedor relativamente à morte que lhe ofereceram em vida, por muito forte que se tenha mostrado (e a relativa frieza detectada pela defesa não foi por nós percepcionada na audição cuidada que se fez das suas declarações para memória futura).
                  Porque o abuso sexual MATA.
                  Do site da APAV, retira-se que:
                  «A violência sexual também traz consequências negativas para a saúde emocional e psicológica, tais como:
                  · Choque, especialmente quando a violência sexual é cometida por alguém que se conhece ou em quem se confiava;
                  · Raiva da vítima para quem praticou o ato e da vítima (erradamente) em relação a si própria, por não a ter conseguido evitar;
                  · Culpa, apesar de a vítima não ter qualquer responsabilidade no que aconteceu;
                  · Ansiedade ou medo constante, ligados a pensamentos e recordações frequentes em relação ao que aconteceu;
                  · A vítima sentir-se sem valor (deixar de gostar de si própria);
                  · Tristeza profunda, fazendo com que a vítima sinta que a vida não tem significado ou propósito;
                  · Medo de que a situação de violência se repita;
                  · Medo de estar sozinho/a;
                  · Medo de quem praticou o crime ou de que algo de mau lhe aconteça (especialmente se a vítima conhecer o/a autor/a);
                  · Vergonha de contar o que se passou;
                  · Medo da vítima de que ninguém acredite em si caso conte a alguém o que se passou;
                  · Medo de nunca conseguir recuperar do ato violento (ficar “marcado/a” para sempre)».
                  A violência sexual também pode provocar mudanças no comportamento da vítima, tais como:
                  · «Ficar mais agressiva com as pessoas em seu redor, mesmo com as pessoas de quem gosta muito;
                  · Magoar-se de forma propositada;
                  · Começar a ter comportamentos de crianças mais pequenas (ex.º dormir de luz acesa, voltar a fazer xixi na cama);
                  · Afastar-se de pessoas de quem gosta ou de locais (porque podem fazer lembrar o que aconteceu);
                  · Desinteressar-se pela escola e descer as notas;
                  · Desinteressar-se por outras atividades que antes gostava (ex.º fazer desporto, tocar instrumentos musicais)».
                  Finalmente, tendo em conta o tipo de actos praticados, é de esperar que apareçam outras mudanças, nomeadamente no comportamento sexual, como por exemplo:
                  · «Dificuldade da vítima em estabelecer relações íntimas e saudáveis com os outros;
                  · Dificuldade em respeitar o “não” de outra pessoa e os limites que ela lhe impõe (ex.º: não compreender que a outra pessoa não queira ter contactos sexuais);
                  · Ter comportamentos sexuais de risco (ex.º ter diferentes parceiros/as sexuais, não utilizarem métodos contracetivos)».
                  Ou seja:
                  Muitas vítimas de abuso sexual, incluindo crianças, sofrem traumas profundos.
                  A sua vida, se o(s) evento(s) traumático(s) não forem tratado(s), passa a ser organizada de forma condicionada, como se o que causou o trauma ainda estivesse a acontecer, sem alteração e com a mesma intensidade. É isso que define, de forma simples, um evento traumático.
                  Cada nova experiência é contaminada pelo evento passado, como se uma gota de petróleo tivesse caído numa bacia de água límpida.
                  Ao contrário de experiências traumáticas de episódio único, como acidentes, catástrofes naturais e outras em que o estímulo ocorre e a vítima pode ter uma resposta adaptativa adequada (fugir/enfrentar/congelar) que pode ser desativada, após o perigo passar, no abuso sexual ou na violência doméstica isso não acontece.
                  No caso do abuso sexual ou da violência doméstica, a vítima é constantemente "bombardeada" com estímulos que activam os mecanismos associados ao stress e não pode acionar os mecanismos de fuga/enfrentamento ou congelamento, pois está aprisionada, sem possibilidade de procurar solução imediata (criando o chamado stress crónico, na feliz acepção de António Castanho).
                  Isto é particularmente grave nas crianças, pois a constante activação dos mecanismos de resposta ao stress pode causar danos na estrutura cerebral, em desenvolvimento, com todas as consequências associadas.
                  Os estudos mundiais também nos fazem concluir que crianças que crescem em famílias afectadas por violência e abuso sexual ou doméstico têm:
                  Ø Um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida (Bogat, DeJonghe, Levendosky, Davidson e von Eye, 2006; Meltzer, Doos, Vostanis, Ford e Goodman, 2009 Mezey, Bacchus, Bewley e White, 2005; Peltonen, Ellonen, Larsen e Helweg-Larsen, 2010).
                  Ø Risco aumentado na saúde física (Bair-Merritt, Blackstone e Feudtner, 2006);
                  Ø Risco de abandono escolar e outros desafios educacionais (Byrne e Taylor, 2007; Koenen, Moffitt, Caspi, Taylor e Purcell, 2003; Willis et al., 2010);
                  Ø Risco de envolvimento em comportamentos criminais (R. Gilbert et al., 2009; T. Gilbert, Farrand, & Lankshear, 2012) e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras (Black, Sussman & Unger, 2010; Ehrensaft et al., 2003; Siegel, 2013);
                  Ø São também mais propensos a sofrer e a praticar bullying (Baldry, 2003; Lepistö, Luukkaala e Paavilainen, 2011) e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007; Turner, Finkelhor & Ormrod, 2010).
                  Basta isto para que se perceba o quão mal este homem fez à BB.
                  E a pena que irá cumprir expiará o desvalor do seu acto, fazendo-o expiar tal mal maior, acreditando-se ainda que «um erro na vida não significa uma vida de erros» e que o J. será capaz de se sublimar, entregando-se a uma terapêutica adequada, que também pode ser eficaz em reclusão.

                              f)- A pena do cúmulo deverá, pois, constituir, também, a resposta exigida pela necessidade de reafirmação valorativa das expectativas comunitárias para “recompor” a concreta ofensa sofrida por estes profundos valores sociais com a grave e censurável conduta do arguido reflectida nos crimes sexuais praticados.
                              Assim, tendo em consideração o disposto nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal e visto, agora em termos unitários, o circunstancialismo agravativo e atenuativo já ponderado na determinação das penas parcelares e, em geral, o conjunto dos factos praticados, com o denominador comum constituído pela personalidade do arguido, tem-se por justo e adequado condená-lo na pena única de DOZE anos de prisão efectiva, TIDA POR NÓS COMO JUSTA E ADEQUADA.
                  Improcede, pois, também, nesta sede, este recurso, pois esta Relação valida esta pena de 12 anos de prisão a aplicar a esta tio pelos vis actos praticados sobre a jovem BB, sua sobrinha.

                  3.2.2.3. Finalmente, uma palavra sobre a indemnização arbitrada a favor da jovem BB, a pedido do MP, em termos de arbitramento oficioso, nos termos do artigo 16º, n.º 1 do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4/12.
                  Atenta a natureza dos factos em apreciação e a idade da ofendida, assiste à mesma o estatuto de vítima particularmente vulnerável e o direito ao ressarcimento pelos danos sofridos.
                  Com efeito, segundo o art. 82.º-A, n.º 1, do CPP, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, o tribunal em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
                  E dispõe concretamente o art. 16.º, n.º 1, da Lei 130/2015, de 4/12, que à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
                  Por sua vez, preceitua o n.º 2, do mesmo artigo que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
                  De acordo com o art. 67.º-A, n.º 1, al. b), do CPP, na redação dada pela Lei 130/2015, de 4/12, considera-se “vítima especialmente vulnerável”, a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
                  Prosseguindo, dispõe o art. 483º do Código Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
                  Da leitura do disposto no art. 483º do Código Civil resulta que a obrigação de indemnizar imposta ao lesante assenta na verificação de vários pressupostos, a saber: a) o facto, b) a ilicitude; c) o vínculo de imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
                  No caso vertente, temos factos praticados pelo lesante, entendidos enquanto comportamento dominável pela vontade, ilícitos, na medida em que integram a prática de um crime, dos quais resultaram danos não patrimoniais (facto provado n.º 47).
                  No que respeita aos danos não patrimoniais, determina o art. 496º, nº 1 do Código Civil que, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”.
                  Este preceito tem carácter geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes da lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (vide, sobre o tema, Vaz Serra, R.L.J., 113º, pág. 96).
                  O nº 3 do mesmo preceito regula o modo de fixação do montante da indemnização devida, impondo o recurso à equidade, mediante a ponderação das circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo diploma legal.
                  Os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária.
                  Assim, a sua indemnização não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o facto danoso, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas ou morais sofridas e também sancionar a conduta do lesante.
                  A gravidade do dano, para justificar a concessão de uma indemnização, é apreciada em função de um padrão tanto como possível objectivo, ainda que se deva sempre atender às circunstâncias concretas que envolvem o caso.
                  Por outro lado, o nº 1 do art. 496º do Código Civil tem alcance geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes de lesão corporal, quer de outros, desde que pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (cfr. Vaz Serra, R.L.J. nº 113º, pág. 96).
                  Para determinar o montante da indemnização por danos não patrimoniais, há que atender, entre outros factores, à sensibilidade da indemnizanda, ao sofrimento por ela suportado e à situação sócio-económica da vítima e agressor.
                  Importa, ademais, ponderar as decisões levadas (em casos tão próximos quanto possível do caso sub iudice) designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça – podendo ver-se, neste âmbito, por mais significativos, os acórdãos de 27 de Novembro de 2019 (processo 1257/18.6SFLSB.L1.S1), de 13 de Janeiro de 2010 (processo 213/14.6PCBRR.L1.S1), e os mais neles citados.
                  Tudo ponderado, e sem desprimor para a sensibilidade traduzida no acórdão recorrido, afigura-se-nos adequada a reparação de 20.000 euros, a tanto se reduzindo o montante de 30.000 euros concretizado na 1ª instância, manifestamente exagerado face ao que consta dos factos provados quanto à situação económica do infractor e aos danos que foram dados por provados.
                  Nesta parte, procede parcialmente o recurso B.

                  3.2.3. Tudo resumido, resta concluir pela procedência parcial deste recurso B, APENAS quando à indemnização a entregar à ofendida, improcedendo em tudo o mais.

                  3.3. SOBRE O RECURSO A

                  Agora sim, estamos aptos a decidir este RECURSO A.
                  É verdade que a BB foi ouvida em declarações para memória futura.
                  A sua previsão legal geral encontra assento do artigo 271º do CPP mas tem concretização singularizada no artigo 33º do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas, e no artigo 24º, do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro.
                  O n.º 2 do artigo 271º, sempre que haja vítimas menores de idade, obriga mesmo que haja sempre esta diligência de prova antecipada.
                  Desejável seria que a vítima, depois de ser ouvida nesta sede, não tivesse de ser de novo «incomodada» com uma nova inquirição mais tarde, em inquérito, instrução ou julgamento, sob pena de ser o sistema judiciário a provocar-lhe dano acrescido pois todos sabemos como cruel é obrigar uma criança a repetir, vezes sem conta, o que de mal lhe aconteceu no corpo e na alma.
                  Contudo, a realidade desmente esse desejo.
                  Como bem escreveu Ana Teresa Leal, no Manual de Violência Doméstica CEJ/CIG, 2020:
                  «No particular aspeto da repetição da audição da vítima em julgamento, depois de a mesma ter prestado declarações para memória futura, por norma deve ser evitada, já que esta é a melhor forma de a proteger de um sofrimento desnecessário, resultante de um novo relato que implica o reviver situações traumáticas.
                  De notar que, segundo o art.º 24º, nº 6, do EV, prestadas que tenham sido declarações para memória futura, tão só nas situações em que tal seja indispensável à descoberta da verdade, deve ser repetido o depoimento em audiência de julgamento. Esta norma apresenta-se muito mais restritiva no leque de possibilidades de tal acontecer, por comparação com o que dispõem os arts. 271º, nº 8, do CPP e 33º, nº 7, do RJPVVD, onde a possibilidade de repetição da audição na audiência de julgamento acontece sempre que tal seja possível e desde que não coloque em causa a saúde física ou psíquica de que deva prestar o depoimento.
                  Esta diferença de terminologia parece não ter sido completamente assimilada pelos magistrados, demostrando a prática judiciária que, as mais das vezes, as vítimas são chamadas a prestar depoimento na fase de julgamento, depois da prestação de declarações para memória futura, sem que se mostre verificada a atual exigência legal da sua indispensabilidade para a descoberta da verdade.
                  O termo “possibilidade” importa uma latitude de aplicação completamente diversa e muitíssimo mais lata da que decorre do termo “indispensabilidade”, pelo que não podem os tribunais continuar a atuar neste campo como se nada tivesse mudado».
                  Mas a verdade é que continuam muitas vezes a assim agir.
                  A BB, mesmo com 17 anos, não deixa de ser CRIANÇA para este efeito.
                  Atendendo a tudo o que se decidiu atrás, a propósito do RECURSO B, só tem este Tribunal que validar a decisão colegial do Colectivo de Viseu em não permitir a 2ª audição – agora em julgamento - perante um juiz de uma jovem que, um ano antes (em 4 de Junho de 2020) - o julgamento destes autos teve a sua 1ª sessão em 16/3/2021 -, prestou as suas declarações para memória futura, confiando legitimamente que não mais seria «incomodada» pelo sistema judiciário que não pode contribuir para a vitimação secundária desta jovem abusada.
                  O tribunal recorrido foi claro na sua fundamentação:
                  A repetição das declarações prestadas no contexto de julgamento apenas deve ser efectivada, caso se mostre absolutamente essencial ao apuramento da verdade.
                  Está em causa, de facto, o interesse da protecção de uma criança (e é-se criança, ao abrigo da Convenção sobre os Direitos da Criança, até aos 18 anos de idade) que, no caso em concreto, prevalece, sobre qualquer outro interesse.
                  O artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, estabelece também que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal».
                  Para o tribunal recorrido, «a menor BB prestou declarações para memória futura em 4.6.2020, encontrando-se as mesmas disponíveis nos autos. Por outro lado, foi a mesma submetida a diversos exames médico-legais, cujos relatórios e devidos esclarecimentos, muitos requeridos pelo arguido, estão juntos aos autos.
                  Acresce que, no que diz respeito às alegadas contradições/incongruências nas declarações prestadas pela ofendida, a existirem, serão as mesmas apreciadas, em sede de acórdão, em conjugação com a demais prova que foi produzida».
                  E foi o que fez o Colectivo.
                  Note-se que o RECURSO B também versa muito sobre a falta processual desta reinquirição da jovem BB no julgamento dos autos, reiterando muito do que se alega no RECURSO A.
                  Este Colectivo de Viseu contextualizou as aparentes contradições existentes no depoimento da jovem e validou o seu depoimento para servir como prova rainha na condenação deste homem.
                  Dispõe o artigo 271º, n.º 8 do CPP que:
                  «A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar».
                  Diremos nós, sempre que ela for possível – sucederá quando foi realizada a diligência apenas por receio do depoente se vir a ausentar para o estrangeiro, o que não veio a suceder - e absolutamente necessária.
                  Tem sido seguida esta orientação por parte do Ministério Público:
                  Nos casos de crimes sexuais nos quais seja ofendido menor de idade, tendo presente a especial vulnerabilidade da vítima, em razão da sua idade e da natureza dos actos de que foi alvo, fortemente perturbadores da sua intimidade e integridade sexual, deverá o Ministério Público, sempre que possível e salvo a existência de especiais e ponderosas razões que o desaconselhem, providenciar pela tomada de declarações para memória futura ao ofendido, nos termos prevenidos no artigo 271º do CPP, assegurando também que, tendo presente o estatuído na parte final do seu nº 3, no decurso dessa diligência, esteja obrigatoriamente presente defensor do arguido constituído ou a constituir, assim se assegurando o princípio do contraditório que vigora em processo penal.
                  Também se sabe que, por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública.
                  Este princípio, porém, comporta excepções, pois verificada a impossibilidade de reiterar as declarações prestadas no inquérito ou na instrução, seja por ausência ou morte do declarante, seja por circunstâncias específicas de vulnerabilidade da pessoa, podem essas declarações ser valoradas na audiência de julgamento.
                  É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo ou em cross-examination.
                  Por isso, se tem decidido que o modo de prestar declarações por memória futura respeita no essencial o princípio do contraditório.
                  Em resumo:
                  De acordo com o artº 271º do CPP, na redacção conferida pela Lei nº 48/2007, de 29/8, as declarações para memória futura de menor vítima de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual em inquérito constituem acto obrigatório e a documentar através de registo áudio ou audiovisual, valendo como prova de julgamento independentemente da criança vir a ser novamente ouvida durante a audiência.
                  E note-se até que, segundo jurisprudência superiormente firmada, com força obrigatória (cfr. Ac. STJ n.º 8/2017, de 21/11): «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código».
                  No nosso caso, o Colectivo não viu necessidade de repetir a audição da jovem e decidiu na sua motivação de facto em sede sentencial o valor probatório que atribuiu àquele depoimento, não o deixando fragilizado com algumas contradições ou incompletudes que contextualizou sabiamente e explicou devidamente.
                  Na nossa situação, nas declarações da BB para memória futura foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa (foi representado por defensora, tal como o seria em audiência de julgamento realizada na sua ausência, com os direitos estabelecidos no artigo 271º, nºs 3 e 5, do CPP, equivalentes àqueles previstos no artigo 349º do mesmo diploma).
                  Diremos ainda que as alegadas contradições que o arguido aponta aos depoimentos da ofendida poderiam e deveriam ter sido resolvidas na diligência de prestação de declarações para memória futura (onde são asseguradas as garantias de defesa, na interpretação adequada do artigo 32º, nº 2, da CRP), sendo nessa fase que poderia e deveria o arguido, com a amplitude legal conferida, formular as questões que apenas neste recurso acaba por colocar.
                  Invoquemos o aresto aludido na resposta a este recurso B: «A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos essenciais”.
                  Ora, não é para isso que o arguido quer ouvir de novo a BB.
                  Dá vontade de dizer que a quer ouvir até dela ouvir o que lhe agrada.
                  De facto, o arguido pretendia que a jovem prestasse declarações em julgamento para esclarecer as alegadas contradições que, em seu entender, padecem os depoimentos (escritos e orais) anteriormente por ela prestados, sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, conforme decorre da apreciação da prova realizada pelo Tribunal a quo.
                  Na realidade, afigura-se-nos que o recorrente do que discorda é da convicção do Tribunal no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela ofendida, tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos[20].
                  A doutrina é peremptória – a possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças.
                  A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.
                  Deve antes sublinhar-se a razão de ser do depoimento para memória futura, concretamente a necessidade de proteger a integridade física e psíquica da vítima e sobretudo evitar revitimações, notando-se que vítima tem um direito de protecção (ao abrigo do n.º 4 do artigo 67º-A do CPP), devendo ser evitada a repetição de depoimentos pata prevenir a vitimação secundária (cfr. artigo 17º, n.º 2 do Estatuto da Vítima).
                  «Em síntese, para que a vítima preste depoimento em julgamento, quando anteriormente já prestou declarações para memória futura, nos termos da lei, impõe-se que esse novo depoimento seja necessário à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa (artigo 340º, n.º 1 do CPP), com o limite inultrapassável de não ser prejudicial à sua integridade física e psíquica» (Mouraz Lopes e Tiago Milheiro, obra já citada, p. 449).
                  ORA, este Tribunal de Recurso, ouvida toda a prova gravada, também valida tal apreciação probatória (assente que não vislumbra qualquer vício de sentença ou qualquer erro de julgamento – cfr. ponto 3.2. deste acórdão), não vendo qualquer necessidade de ver reinquirida a BB para efeitos de um contraditório devida e completamente já feito em sede própria, razão pela qual só pode fazer improceder este RECURSO A.
                  *
                  Em SUMÁRIO desta decisão, diremos:
                  1. Em qualquer processo judicial, os julgadores dificilmente conseguem tomar uma decisão sem serem influenciados por pistas que os ajudam a organizar e a simplificar essa mesma informação (procurando tomar decisões com base numa quantidade menor de informação), sendo essa tendência tanto maior quanto maiores as pressões externas para que essas decisões sejam tomadas de uma forma rápida, ou quanto maior a incerteza.
                  2. Estas pistas são designadas por heurísticas e são habitualmente usadas de uma forma automática ou inconsciente - apesar de terem como função ajudar a organizar e a simplificar a informação, tornam os processos de tomada de decisão menos fidedignos e, nesse sentido, com uma maior probabilidade de incluir erros ou enviesamentos.
                  3. Como tal, terá de haver uma análise muito cuidada e profunda do caso concreto a fim de se evitarem tais enviesamentos que podem turbar a convicção criada.
                  4. Em delitos sexuais em que são vítimas crianças, é normal a vítima revelar grandes inibições e dificuldades em relatar os factos, quer pelo esforço que, certamente, fez ao longo do tempo para arredar da memória os abusos de que foi vítima, quer pelas reacções emocionais que sua memória lhe provocava, quer pelo prejuízo que dos mesmos resulta para a sua auto-imagem.
                  5. Todas estas condicionantes contribuem de forma decisiva para que as referidas declarações contenham imprecisões, contradições, omissões e inconsistências, de tal forma que estranho seria que não padecessem dessas características.
                  6. De tais imprecisões, contradições, omissões e inconsistências não resulta, por si só, que a criança mentiu.
                  7. É certo que essas imprecisões, contradições, omissões e inconsistências fragilizam o valor indiciário de tais depoimentos, mas não mais do que isso, tanto mais que podem existir outros indícios que corroborem a essencialidade do depoimento e o núcleo central.
                  8. Para efeitos do artigo 173º do CP, a inexperiência da vítima pode ser motivada por uma forçada e tenebrosa experiência movida pelo medo, pela intimidação e pelo receio de desagradar a alguém a quem se está ligada emocionalmente.
                  9. Nesse sentido, há também imaturidade – além de impossibilidade física - nessa decisão de não se conseguir dizer não ao agressor, sendo determinante para a actuação dolosa do agente o abuso dessa inexperiência da sua vítima assim concebida e conseguida e que lhe vai garantir a desejada e desejável menor força de resistência por parte dela aos seus avanços sexuais.
                  10. Se nas declarações da vítima para memória futura foram proporcionadas ao arguido todas as garantias de defesa, é de recusar uma reinquirição da vítima se o tribunal se aperceber que o recorrente apenas discorda da convicção dos julgadores no que à valoração da prova concerne, designadamente no se reporta aos depoimentos prestados pela ofendida, tecendo a esse propósito considerações sem que as mesmas tenham qualquer fundamento, querendo apenas impor aquilo que seria a sua própria convicção sobre os factos.
                  11. A possibilidade de prestar novamente depoimento na audiência de julgamento deve ser usada com alguma cautela, no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente, quando estão em causa vítimas especialmente vulneráveis, como são as crianças.
                  12. A não ser assim, transforma-se em regra o que deve ser uma excepção, sob pena de se desvirtuar todo o sistema de protecção de uma vítima que é vulnerável por ser criança e que vai reviver o seu passado de horror de forma impune e desnecessária, e apenas por razões que se prendem com o mero jogo processual de «partes» interessadas em forçar o tribunal a inverter alguma ideia pré-concebida que tenha sido criada após as declarações iniciais e desejavelmente únicas daquela.
                  13. A prestação de eventuais novas declarações pela alegada vítima, em julgamento, apenas deve ter lugar quando se mostrarem absolutamente necessárias para o apuramento de circunstâncias ou factos novos ou para a obtenção de esclarecimentos considerados essenciais pelo foro.

                  *
                              III – DISPOSITIVO       

                              Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
                  · A)- Em negar provimento ao RECURSO A, mantendo o despacho proferido com data de 7/12/2021;
                  · B)- Em conceder parcial provimento ao RECURSO B, apenas na parte da indemnização cível a arbitrar à ofendida BB que se fixa agora em € 20.000 (vinte mil euros) e não em € 30.0000, improcedendo em tudo o mais (impugnação da matéria de facto e medida das penas, todas validadas por esta Relação) este recurso B.

                  No que tange ao RECURSO A, custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs [artigos 513.º, n.o 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa].
                  Sem tributação o RECURSO B (artigo 513º, n.º 1, a contrario sensu, do CPP).

                  Comunique de imediato ao tribunal de 1ª instância, com nota de não trânsito em julgado (cfr. artigo 215º, n.º 6 do CPP).



                  Coimbra, 17 de Março de 2022
                  (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo – artigo 94.º, n.º2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

                  Paulo Guerra (relator)

                  Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)


                  [1] «Pressuposto do que seja a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é desde logo uma noção minimamente exata do que seja o objeto do processo: conjunto de factos ou de questões, cuja determinação é dada em primeira linha pela acusação ou pronúncia, peças processuais a partir das quais se vai estabelecer a vinculação temática do tribunal, mas também pela contestação ou pela defesa, ou ainda pela discussão da causa.
                  Determinando-se desse modo os poderes de cognição do juiz, para assim também se poder afirmar que aquilo que o tribunal investigou ou os factos sobre os quais fez incidir o seu poder/dever de decisão eram, no fundo, os que constituíam ou formavam o objeto do seu julgamento, ou da audiência de julgamento, nos termos do artigo 339.º, n.º 4, do CPP, e que fora deste não ficou nenhum facto que importasse conhecer, dando-os como provados ou não provados, tanto faz. Só se existir algum desses factos, que não tenha sido objeto de apreciação pelo tribunal, é que poderemos concluir pela insuficiência da decisão sobre a matéria de facto provada (ou não provada) e com ela de violação do princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, porquanto o tribunal não investigou, como lhe competia, toda a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa.
                  Em suma, existe insuficiência da matéria de facto quando da análise do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, faltam factos, cuja realidade devia ter sido indagada pelo tribunal, desde logo por imposição do artigo 340.º do CPP, porque os mesmos se consideram necessários à prolação de uma decisão cabalmente fundamentada e justa sobre o caso, seja ela de condenação ou de absolvição» (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).
                  [2] «Teremos uma contradição da fundamentação, impeditiva da função que a esta cabe, se no respetivo texto verificarmos existir uma incompatibilidade entre duas ou mais proposições, cuja conjugação não permita chegar uma conclusão logicamente coerente. Será o caso, por exemplo, de se afirmar que, “nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, “A é B” e que “A não é B”, pois as duas afirmações não podem ser ao mesmo tempo verdadeiras. Ou dar-se como provado que, nas mesmas circunstâncias descritas na acusação, e na sequência de uma discussão entre Alberto, Bernardo e Daniel, Alberto desferiu uma bofetada no rosto de Bernardo, e de seguida, na mesma decisão, dar-se como não provado que Alberto tivesse dado uma bofetada no rosto de Bernardo. Ou que, para motivar a primeira proposição, o Tribunal considerasse unicamente o depoimento da testemunha Carlos, referindo quanto à razão de ciência desta testemunha que ela se encontrava junto a Alberto e Bernardo, mas na mesma motivação da decisão de facto, de seguida, se acrescentasse que, precisamente, por se encontrar junto de Alberto e Carlos, viu presencialmente Daniel a desferir a bofetada no rosto de Bernardo. Sendo a estrutura interna da própria lógica que aqui é posta em causa, na medida em que esta exige como uma das suas regras fundamentais a inexistência de contradição entre enunciados, assim como exige que a sequência desses mesmos enunciados, no raciocínio lógico, obedeça a “uma ordem do fundamento e da consequência”, com o sentido de que o raciocínio, através do qual se obtém a ilação ou inferência, por via indutiva ou dedutiva, não utiliza os enunciados ou proposições de forma arbitrária ou casual.
                  Podendo dizer-se que as possibilidades de vir a ser posta em causa a fundamentação e a relação entre esta e a decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, são essencialmente reconduzíveis à violação da relação lógica que deve existir entre enunciados ou proposições, por violação do princípio da não contradição (contradição da fundamentação) e à violação do princípio do fundamento ou da ordem do fundamento e da consequência (contradição entre a fundamentação e a decisão). Nesta última hipótese caberá o seguinte exemplo: o tribunal dá como provados factos constitutivos do crime de furto, crime pelo qual vinha o arguido acusado, mas na fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica entende que, dado o arguido não ter restituído a coisa furtada, os factos integram também o crime de abuso de confiança, mas na decisão final, julgando procedente a acusação do Ministério Público, acaba por condenar o arguido apenas pelo crime de furto». (Francisco Mota Ribeiro, em e-book CEJ «Processo e decisão penal – Textos», Novembro de 2019).


                  [3] Francisco Mota Ribeiro é suficientemente eloquente e exemplificativo ao escrever no e-book já aqui assinalado: «Existirá um erro de tal magnitude quando, por exemplo, se se dá como provado facto, cuja possibilidade de verificação viole as leis da natureza (física mecânica) ou as leis da lógica.
                  Tal vício é oficiosamente cognoscível e tem de resultar do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
                  Poderá suceder um tal erro, como vimos supra, quando na motivação da decisão de facto se invoca facto constante de documento com força probatória plena, que minimamente se reproduza na decisão recorrida, dando-se como provado facto contrário àquele, sem que tal documento tenha sido arguido de falso.
                  Também haverá erro notório na apreciação da prova quando se declare ou não a realidade de um facto, quando é do domínio público que o mesmo não haja ou haja ocorrido.
                  Há erro notório na apreciação da prova se o tribunal dá como provado que o arguido apenas havia bebido um ou dois copos de vinho, quando resulta provado que a esse mesmo arguido lhe havia sido detetada uma TAS de 2,05g/l.
                  Presumindo-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo técnico, científico ou artístico, inerente à prova pericial (n.º 1 do artigo 163.º do CPP), constitui erro notório na apreciação da prova [alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º] divergir--se dele sem fundamentação – Ac. do STJ, de 15/10/97, Pº 97P1494.
                  No âmbito da apreciação da prova indireta, quando o tribunal infere de um facto (a entrada frequente de indivíduos numa casa com volumes) aquele outro facto (de, dentro da casa, uns indivíduos irem adquirir estupefacientes), sem uma base racional sólida que tenha deixado expressa na decisão, está a cometer um erro notório na apreciação da prova, que vicia o acórdão e não permite ao STJ conhecer de fundo – Ac. do STJ, de 04/01/1996, Pº 048666.
                  Na aplicação do princípio in dubio pro reo, quando da decisão recorrida resultar que, tendo chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos, o tribunal a quo decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo o tribunal recorrido essa dúvida, ela resultar, no entanto, evidente do próprio texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo assim de concluir que a dúvida só não foi reconhecida, no sentido de fazer operar aquele princípio, em virtude de um erro notório na apreciação da prova, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP – Ac. do STJ, de 22/05/98, Pº 98P930».
                  [4] “A análise das características e do comportamento criminal dos indivíduos que abusam sexualmente de crianças em contexto intrafamiliar, permite identificar uma maior progressão, severidade e duração dos actos abusivos, já que os abusadores possuem um acesso facilitado e continuado às suas vítimas, e recorrem a estratégias de poder com uma base emocional e/ou financeira, associadas ao papel que desempenham na família”, escreve Cristina Soeiro in Grande Livro sobre a Violência Doméstica – Compreensão, prevenção, avaliação e intervenção, Edições Sílabo, 2022, p. 85.
                  Isabel Alberto, na mesma obra, a pp. 102-103, identifica as quatro dinâmicas centrais do abuso sexual de crianças, em contexto familiar: “a)- relacional (quantas vezes a criança procura afecto e recebe sexo); b)- acomodação (o agente é o cuidador e o abusador da criança, deixando, muitas vezes, a criança impossibilitada de resolver a situação porque quer interromper o abuso mas quer manter a relação com o cuidador); c)- segredo (o abuso sexual de uma criança é um crime secreto, longo e tranquilo para quem o comete – é frequente as crianças verbalizarem, em processos terapêuticos, sentimentos de culpa por assumirem que estas situações são consequência de elas terem falado sobre o abuso e não pelo facto de o agressor ter abusado delas; d)- poder e controlo (o abuso sexual constitui um exercício de controlo e domínio baseado no desequilíbrio de poder entre o adulto e a criança, resultante da diferencial desenvolvimental, de maturidade e dos papéis/estatutos de ambos(cuidador/autoridade vs quem recebe os cuidados/dependente) – neste abuso intrafamiliar, o agressor continua muitas vezes a fazer parte da vida desta criança, e isso só por si é um factor de consolidação do poder na relação sexualmente abusiva”.
                  No nosso caso, mesmo preso, este tio continua e continuará a fazer parte da vida da LM, sobretudo pelo eco familiar que, de forma desencontrada, vai chegando à hoje quase maior de idade.
                  A mesma autora, docente na FPCE da Universidade de Coimbra, adianta ainda, a p. 105-106, “da vasta investigação sobre o tema, verifica-se que os agressores sexuais constituem um grupo heterogéneo, que inclui ambos os sexos, várias faixas etárias, e condições socioeconómicas, e podem ou não ser pedófilos», podendo passar socialmente como cidadãos adaptados e modelares pois “a literatura indica que os abusadores sexuais de crianças raramente são diagnosticados com uma perturbação psicótica” (cfr. Ana Leonor Baptista e Ana Rita Vieira, no Grande Livro da Violência Sexual já citado, p. 142).
                  Como tal, há muito que se abandonou o conceito de «sujeito feio, porco e mau, desconhecido para a sua vítima e com aspecto esquisito», o lombroseano «dirty old man» que afugenta as crianças só com o olhar…
                  [5] Com toda a certeza o facto de dizer que tinha havido penetração com o pénis e depois dizer que não tinha a certeza porque tinha adormecido (nota do relator).
                  [6] A defesa, na sua conclusão XCIV, entende que é bem demonstrativo da consciência da falta de veracidade das suas declarações o facto de a LM se ter mostrado irritada com a perícia, justificando ter sido informada anteriormente que não teria de falar novamente sobre os factos em tribunal.
                  Diremos nós, com toda a veemência: esta irritação é apenas sinal de que o sistema judicial está a funcionar bem. Uma criança é informada que não vai ter de repetir n vezes a sua história ao longo de um processo que dizem que corre em seu favor e no seu superior interesse - e todos nós sabemos como uma criança, em Portugal, pode repetir até 8 (oito!) vezes, em média, o que de mal lhe aconteceu, na pretensa paz dos casarios, no seu corpo sem apelo nem agravo. “É um número excessivo”, di-lo Carlos Farinha, Director do Laboratório da PJ, sempre que o ouvimos. "O considerado razoável seria apenas duas ou três vezes, no máximo". Todas estas crianças - até ao julgamento do agressor – podem ser chamadas a depor perante uma professora numa escola, uma psicóloga numa escola, um inspector da PJ, um procurador do Ministério Público, um técnico da CPCJ, um técnico da Segurança Social ou de instituições de acolhimento, um juiz…
                  Diz-nos Catarina Ribeiro, docente universitária da Faculdade de Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, que «o facto de uma criança ter de contar a sua experiência várias vezes pode gerar elementos desestabilizadores", académica esta que dirigiu um importante estudo - «A Criança na Justiça» - sobre abusos sexuais no seio familiar em crianças dos oito aos 12 anos. "Espero não ter de ir lá outra vez", revela um dos testemunhos por si recolhidos para o estudo. "Tive de estar ali outra vez a contar tudo... estava cheia de vergonha", conta outra. E mais e mais: “Nos tribunais, há uns senhores que nos defendem e também nos fazem muitas perguntas e depois contamos tudo outra vez e assim estamos sempre, sempre a lembrar das coisas más” (Sara, 9 anos) ou Eu contei a dois polícias e eles foram simpáticos mas depois tive de dizer no hospital e depois os polícias foram a minha casa e perguntaram outra vez e agora estou aqui… e a primeira vez que contei já foi há muito tempo… A Drª não sabe? (M, 11 anos).
                  Existem em Portugal muitos obstáculos que as crianças enfrentam no sistema judiciário, tais como os interrogatórios repetidos, os ambientes e procedimentos intimidatórios, a ausência de formação particularmente especializada dos profissionais que as entrevistam, a morosidade não natural dos processos.
                  Portanto, irritar-se uma criança por lhe faltarem à verdade – na medida em que afinal vai ser de novo ouvida - não significa, de todo em todo, que ela esteja a mentir!
                  [7] Em inúmeros casos de abuso sexual de crianças o abusador é uma pessoa em quem a criança confia, conhece e muitas vezes ama. Nos casos de abuso sexual intrafamiliar a psicologia refere-se mesmo a uma ambivalência de sentimentos do menor relativamente ao ofensor que, “para além da dor que provoca à criança pode ser também percebido por esta como a principal fonte de atenção e afecto”.
                  [8] O nome normalmente dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo amor ou amizade pelo seu agressor.
                  [9] “É utilizado, por vezes, como argumento de defesa de alegados agressores, que o contacto sexual foi consentido, na medida em que teria ocorrido, durante aquele, lubrificação vaginal, erecção, ejaculação e/ou orgasmo. Conforme já antes referido, durante uma agressão sexual pode ocorrer não só lubrificação do canal vaginal, como também erecção, ejaculação e/ou orgasmo, sendo todas respostas fisiológicas naturais, inconscientes e automáticas, por activação do sistema nervoso autónomo simpático, independentemente da vontade/desejo sexual ou de ter sido manifestado consentimento para o contacto sexual. Assim sendo, as evidências científicas apontam para que a existência de lubrificação vaginal, erecção, ejaculação e/ou orgasmo durante um contacto de cariz sexual não excluem que este possa ser tipificado como uma agressão sexual” – extraído do artigo assinado por Filipa Gallo no recentemente publicado GRANDE LIVRO SOBRE A VIOLÊNCIA SEXUAL – compreensão, prevenção, avaliação e intervenção (coordenado por Alexandra Anciães e Rute Agulhas, Edições Sílabo, 2022).
                  Portanto, a pessoa constrangida pode sentir prazer involuntário (o que tanta estranheza causou à defesa), pode até entrar em estado de relaxamento para não resistir ao que não consegue evitar – factos 22 e 23 -, adormecendo, porque não, tratando-se de uma criança (o facto de ter adormecido só significa que o evento foi demorado e que o abuso foi, quicá, mais prolongado no tempo do que o intuído pelo Colectivo de Viseu).
                  [10] «A prática clínica tem demonstrado que algumas crianças, apesar de terem sido vítimas de abuso sexual e conviverem em um ambiente familiar desfavorável, não apresentam sequelas psíquicas significativas, nem alterações do comportamento que permitam caracterizar a existência de um dano psíquico.
                  O impacto provocado pela experiência do abuso sexual está diretamente relacionado a fatores que são intrínseco s à criança, tais como: o grau de vulnerabilidade e a resiliência, e a fatores externos tais como a presença de situações de risco e uma rede de proteção (Habigzang & Caminha, 2004).
                  Werner (1992, citado por Munist, Sant os, Kotliarenco, Ojeda, Infante & Grotberg, 1998) estudou um grupo de meninos do nascimento até os quarenta anos de idade, que viviam sob fatores de risco diversos e observou que, a despeito da situação desfavorável em que viviam, alguns tiveram êxito na vida, tanto pessoal como social.
                  A estes meninos ela denominou inicialmente de meninos invulneráveis.
                  Mais adiante, esta denominação suscitou erros de interpretações, sobretudo, quanto ao aspecto biológico, sendo o termo substituído por capacidade de afrontar.
                  Na década de oitenta o termo capacidade de afrontar foi substituído pelo adjetivo inglês resilient, originário do vocábulo resilience (resiliência), utilizado nas ciências físicas, em especial pela metalurgia e engenharia civil, para descrever a capacidade que alguns materiais têm de recobrar a forma original após terem sido
                  submetidos a uma pressão deformadora (Munist et al., 1998).

                  É muito comum, para a compreensão deste conceito, a utilização da metáfora do elástico que retorna ao
                  mesmo estado após sofrer uma tensão.

                  De acordo com Houaiss (2001), o vocábulo resiliência na língua portuguesa tem os seguintes significados: a) propriedades que alguns corpos apresentam de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica; b) capacidade de se recobrar facilmente ou se adaptar à má sorte ou às mudanças» (Álvaro Júnior, Dano Psíquico em crianças vítimas de abuso sexual sem comprovação de ato libidinoso ou conjunção carnal, Brasília 2006).
                  Diremos nós que a resiliência funciona como um factor protectivo, mas não necessariamente será
                  uma experiência agradável, podendo ceder tantas vezes anos mais tarde numa adultez que, afinal, não se vem a revelar assim tão consistente e segura.

                  [11] Embora o recurso não contenda directamente com esta tipificação encontrada pelo Colectivo de Viseu, diremos que a explanação feita no aresto merece a nossa plena concordância – o facto 19 releva inequívocos actos sexuais de relevo praticados por maior de idade relativamente a uma jovem com 14 anos. Concordamos que no crime de Atos sexuais com adolescentes, tutela-se a autonomia vulnerável da sexualidade dos adolescentes numa fase em que essa autonomia já assume um certo relevo mas ainda está a sedimentar-se, estando essencialmente em causa uma actividade sexual prematura do adolescente, ainda que executada com o seu consentimento, e uma conduta abusiva de aproveitamento sexual por parte do adulto.
                  À partida, a idade entre os 14 e os 16 anos não é um factor exclusivo para determinar a condição de inexperiência do adolescente, mas é um factor preponderante para essa determinação, assentando-se que a expressão “abusando da sua inexperiência” significa que o adulto se aproveitou da maior vulnerabilidade da autonomia da criança para com ela se relacionar sexualmente, admitindo-se a inexperiência mesmo de quem já teve experiências sexuais anteriores (Figueiredo Dias, anotação 18ª ao artigo 174º, in CCCP, 1999).
                  E o próprio Mestre de Coimbra que opina que «seduzir sexualmente significa, neste contexto, explorar a (ou aproveitar-se da) inexperiência sexual da vítima e consequentemente a menor força de resistência que por isso terá diante da cópula ou do coito», ou de qualquer outro acto sexual de relevo, diremos nós.
                  O acórdão recorrido recorre a um aresto da Relação do Porto – de 19.6.2003, proferido no Pº 1004/07.8TALMG.P1 - muito significativo – aí se deixa exarado que:
                  «Nesta conformidade, podemos dizer, como já o fizemos anteriormente (Ac. TRP de 2011/Mar./09, CJ II/226), que nos casos dos crimes dos crimes de abuso sexual de criança (171.º Código Penal) e do crime de actos sexuais com adolescentes acaba por se pretender proteger mediatamente, naturalmente com níveis de intensidade distinta, um adequado desenvolvimento sexual em relação a cada uma dessas fases específicas de crescimento, ou seja e segundo a ordem indicada, a infância e a juventude (69.º, n.º 1 e 70.º, n.º 1 da Constituição) – e não tanto a “intangibilidade sexual” e muito menos uma “obrigação de castidade e de virgindade quando estejam em causa menores”. Assim, só quando uma pessoa for adulta ou mesmo ainda uma jovem madura (16 a 18 anos de idade) é que se pode dizer que se protege a liberdade sexual, porquanto só nestas alturas é que se está em condições de se desenvolver, com capacidade, tal vertente da nossa liberdade.
                  Mas se em relação ao crime de abuso sexual de criança a acção típica poderá simplesmente corresponder a qualquer acto de sexual relevo e, por maioria de razão, extensível à cópula, ao coito anal ou oral, no caso do crime de actos sexuais com adolescentes estes mesmos actos de conotação sexual têm que surgir “abusando da inexperiência” da pessoa menor por parte do agente adulto. Assim, se à partida a idade entre 14 e 16 anos não é um factor exclusivo para determinar a condição de inexperiência da adolescente, pois se assim fosse bastaria traçar a descrição deste tipo legal de crime sem essa exigência, esse escalão etário não pode deixar de ser um factor preponderante para essa determinação.
                  Daí que seja necessário estabelecer, a partir da factualidade provada, esse vinculo ou conexão entre o abuso da inexperiência da menor e o consentimento desta para a prática de actos com conotação sexual relevante ou mesmo de coito (vaginal, anal ou oral) com uma pessoa adulta. Para o efeito não será exigível que esta pessoa adulta tenha uma estratégia de actuação vincada nesse sentido, designadamente através de promessas ou ofertas, porque o que está em causa é a autonomia do relacionamento sexual de uma adolescente e não a obtenção compromissos, rendimentos ou proventos por parte desta última. Daí que o significado de “abusando da sua inexperiência” não possa ser outro de que essa pessoa adulta se tenha simplesmente aproveitado de uma maior vulnerabilidade da autonomia da menor adolescente para esta se relacionar sexualmente. E tal pode ser aferido a partir dos seus níveis de maturação no relacionamento com os outros, mormente para aferir as consequências de um relacionamento sexual, que tanto pode passar pela ingenuidade, como pela prudência».
                  No nosso caso, esse vínculo ou conexão foi feito.
                  No nosso caso, diríamos que a inexperiência desta jovem menina de 14 anos – ignorando-se ao certo se já tivera ou não anteriores relações sexuais – é motivada por uma forçada e tenebrosa experiência movida pelo medo, pela intimidação e pelo receio de desagradar a alguém a quem se está ligada emocionalmente.
                  Nesse sentido, há também imaturidade – além de impossibilidade física - nessa decisão de não se conseguir dizer não ao tio, sendo determinante para a actuação dolosa do agente o abuso dessa inexperiência da sua vítima assim concebida e conseguida e que lhe vai garantir a desejada e desejável menor força de resistência por parte dela aos seus avanços sexuais.
                  Como avança a Juíza Conselheira do STJ Maria do Carmo Silva Dias, na obra «Grande Livro da Violência Sexual – compreensão, prevenção, avaliação e intervenção», Edições Sílabo, 2022, p. 44, “«abuso de inexperiência» significará o aproveitamento da maior facilidade com que o adolescente para aquele específico acto sexual de relevo, que decorre da sua ignorância prática ou da sua imaturidade”.
                  Olhando para os factos provados n.ºs 24 a 29, estão, assim, consumados, também, estes dois delitos do artigo 173º do CP.

                  [12] Acto exibicionista ou constrangimento a contacto de natureza sexual, criminalizando-se nesta norma importunações sexuais que afectem a liberdade sexual, nomeadamente contactos sexuais não consentidos sem configurarem, no entanto, actos sexuais de relevo (propostas ou formulações de teor sexual mais agressivas).
                  [13] A acção típica do n.º 1 consiste em praticar acto sexual de relevo (cópula vulvar, beijo lingual, excitação do clítoris, manipulação das «partes sexuais) com ou em menor de 14 anos (o caso dos 14 crimes expostos nos factos 5, 6, 7, 8, 9 e 18, 1ª parte). Já o n.º 2 pressupõe práticas sexuais qualificadas consistentes em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos (o caso dos 4 crimes expostos nos factos 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18, parte final).
                  [14] Constrangimento de outra pessoa a sofrer introdução vaginal de partes do corpo do agente, suficientemente comprovado no facto n.º 24.
                  [15] Laborando aqui em erro o MP de 1ª instância na sua página 22.
                  [16] Não só se tutela a criança que presencia a agressão sexual, pela potencial aptidão de afectar a sua sexualidade ou liberdade sexual na vertente negativa (no sentido de que não lhe deve ser imposto visualizar agressões sexuais), sendo ainda um reflexo de um maior desvalor da acção do agente que se mantém indiferente à presença de outra criança, bem sabendo que, pela vulnerabilidade, fruto da idade, poderá causar-lhe naturais sequelas psíquicas (ecos nítidos da abençoada Convenção de Istambul).
                  [17] Caso se entende que foi feita um alteração substancial de factos pelo facto de se terem gizado dois crimes de actos sexuais com adolescente, não previstos na acusação – o que não é a nossa opinião pois os factos naturalísticos não são novos nem surpreenderam o arguido -, sempre se dirá, ao abrigo do n.º 3 do artigo 359º do CPP, que todas as partes consentiram expressa ou tacitamente na continuação do julgamento por essas novas tipificações, como resulta do teor do escrito de fls 1016 e 1017, no qual em lado algum o arguido refuta a continuação deste julgamento.
                  [18] Acto sexual de relevo sem introdução de qualquer parte do corpo do arguido na vagina da vítima.
                  [19] Acto sexual de relevo com introdução de qualquer parte do corpo do arguido na vagina da vítima.

                  [20] Como recentemente sentenciou esta Relação no Pº 1153/18.7PBVIS.C1, em aresto datado de 16/6/2021: «Não se aceita ainda a argumentação do recorrente, no sentido de que o indeferimento da prestação de depoimento em julgamento pela ofendida, impediu o esclarecimento das incongruências entre as declarações daquela e o depoimento da testemunha S.. Desde logo, porque o tribunal assinalou essas incongruências e decidiu em sede de motivação dos factos provados, no sentido de se considerar o depoimento da testemunha S. como credível no campo em que colidia com as declarações da ofendida. E assim sendo, não se percebe o que iria a nova inquirição da ofendida adiantar nesse aspeto; ou mantinha a versão já apresentada nas declarações de memória futura – e então a repetição da sua inquirição nada adiantaria – ou alteraria a versão no sentido do conteúdo do depoimento da testemunha S., o que apenas reforçaria a conclusão do tribunal a quo».