Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
209/14.PBVIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ESCUSA DE JUIZ
Data do Acordão: 05/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA
Decisão: DEFERIDA A ESCUSA
Legislação Nacional: ART. 43.º DO CPP
Sumário: I - Recusa e escusa são pois, duas figuras processuais que comungam o objecto, obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. O que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução.

II - A recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo).

III - O motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.

IV - O contacto entre a arguida e a Sra. Juíza, que a levou a ter conhecimento de factos relativos ao processo leva-nos a concluir que a sua intervenção na fase do julgamento é susceptível de desconfiança, quer dos intervenientes processuais, quer da comunidade, sobre a sua imparcialidade.

Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



I

A Exma. Juíza da Comarca de Viseu – Viseu – Instância Local – Secção Criminal – J2, Sra. Dra. A... vem, ao abrigo do disposto nos arts. 43º, nºs 1 e 4 do C. Processo Penal, formular pedido de escusa a fim de não intervir na audiência de julgamento, e termos subsequentes, a realizar no processo comum singular nº 209/14.0PBVIS, que lhe foi distribuído, no qual é arguida B... – pronunciada que foi pela prática, em concurso real, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º, nº 1, com referência ao art. 155º, nº 1, a), do C. Penal, e de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do mesmo código – e assistente, Delmira Paiva Rolo Campos.

Funda a pretensão nas seguintes razões:

“ (…).

            1. No dia de hoje – 12/04/2016 – teve a signatária o primeiro contacto com o processo supra referido, tendo constatado, designadamente, que a arguida B... , encontra-se pronunciada, da prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de ameaça agravada p. e p. nos termos do art. 153º, n.º 1, com referencia ao art. 155º, n.º 1, al. a), do Código Penal e de um crime de injúrias, p.p. no artigo 181º do Código Penal;

2. A decisão instrutória foi proferida em 16/03/2016, tendo posteriormente os referidos autos sido distribuídos à instância local secção criminal (J2) do Tribunal da Comarca de Viseu e conclusos à signatária em 12/04/2016;

3. Sucede porém que a signatária conhece há muitos anos a arguida B... , em virtude desta ser amiga da sua mãe, pelo que mantém uma relação próxima e de amizade com a mesma, o que é do conhecimento de outras pessoas, tendo inclusivamente a referida arguida relatado à signatária factos que estão directamente relacionados com os que se discutem nos autos supra referidos.

4. Entende a signatária que as circunstâncias relatadas – que, eventualmente são do conhecimento de alguns intervenientes processuais –, podem e são adequadas a gerar, perante o público em geral, desconfiança quanto à sua imparcialidade no julgamento, preenchendo, desta feita, a previsão do n.º 1 do art. 43º do Código de Processo Penal.

(…)”.


*

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*

II


1. Nos termos do art. 44º do C. Processo Penal, a formulação do pedido de escusa é admissível até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório, só o sendo posteriormente, e apenas até à sentença ou até à decisão instrutória, quando os factos que o fundamentam sejam supervenientes ou de conhecimento posterior ao início da audiência ou do debate.

In casu, o pedido de escusa é tempestivo, uma vez que foi deduzido pela Magistrada Judicial a quem competia presidir ao julgamento e os autos se encontram a aguardar a designação de data para a respectiva audiência.

Por outro lado, conforme dispõe o art. 45º, nº 1, a), do C. Processo Penal, o pedido de escusa deve ser apresentado perante o tribunal imediatamente superior. Estando em causa o pedido de escusa de uma Sra. Juíza de Direito, mostra-se o mesmo correctamente apresentado perante a Relação competente.

Nada obstando, portanto, ao conhecimento do mérito do incidente, passemos à sua apreciação.


*

2. Aos tribunais compete, enquanto órgãos de soberania, administrar a justiça em nome do povo (art. 202º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa). Nesta função, os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei (art. 203º, da Constituição da República Portuguesa).

O princípio constitucional da independência dos tribunais impõe a independência dos juízes e a sua imparcialidade, qualidades igualmente garantidas pela Lei Fundamental (cfr. art. 216º), e asseguradas pela lei ordinária (art. 4º da Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Na verdade, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, bem como que as causas em que intervenham sejam objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, que a Constituição da República garante a todos os cidadãos (cfr. art. 20º, nºs 1 e 4), tem como pressuposto a imparcialidade de quem julga pois, sem ela, é impossível alcançar a realização do direito no caso concreto.

Pois bem.

Visando assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o C. Processo Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.

Relativamente às recusas e escusas, estabelece o art. 43º:

1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”.

2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.

            3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.

            4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2.”.

            Recusa e escusa são pois, duas figuras processuais que comungam o objecto, obstar a que um juiz intervenha num processo quando exista um motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. O que as distingue é a diferente legitimidade para a respectiva dedução. A recusa pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (art. 43º, nº 3, do C. Processo Penal), enquanto a escusa só pode ser pedida pelo próprio juiz (nº 4 do mesmo artigo).

            A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, é concebida numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.

Numa perspectiva subjectiva, ela respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque, o teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa (Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 127). Esta imparcialidade presume-se, pelo que só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.

Na perspectiva objectiva, relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade. Aqui, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 06/07/2005 (CJ, S, XIII, II, 236), os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que juiz e do “ser” relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (…) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (…) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.  

O motivo sério e grave referido no nº 1, do art. 43º, do C. Processo Penal, tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal.  

3. Tendo presente que o deferimento de uma escusa constitui sempre uma derrogação do princípio do juiz natural, constitucionalmente garantido (cfr. art. 32º, nº 9 da Lei Fundamental) e que tem por escopo, como é sabido, a isenção e imparcialidade da decisão a proferir, atentemos nos factos invocados pela Sra Juíza requerente que fundamentam o pedido.

i) Previamente, sob a perspectiva subjectiva de imparcialidade, há que dizer que não está em causa qualquer concreto comportamento da Sra. Juíza requerente susceptível de levantar suspeita, por mínima que seja, da sua imparcialidade. Nem de outro modo poderia ser já que, tendo o incidente sido por si deduzido, o que se evidencia é a conduta escrupulosa da Magistrada requerente.

ii) Atentemos agora na questão, à luz da perspectiva objectiva de imparcialidade.

Face à certidão junta, resulta que à Sra. Juíza requerente foi distribuído para julgamento um processo criminal no qual é arguida a cidadã B... , pronunciada que foi pela prática de um crime de ameaça agravada e de um crime de injúria.

Por outro lado, a Sra. Juíza requerente afirma «conhecer há muitos anos a arguida (…), em virtude desta ser amiga da sua mãe, pelo que mantém uma relação próxima e de amizade com a mesma, o que é do conhecimento de outras pessoas, tendo inclusivamente a referida arguida relatado à signatária factos que estão directamente relacionados com os que se discutem» no processo criminal em questão.

Em suma, invoca a Sra. Juíza como circunstancialismo susceptível de tornar suspeita a sua intervenção no identificado processo e, por essa via, constituir motivo sério, adequado a gerar a desconfiança dos intervenientes processuais e da comunidade quanto à sua imparcialidade, a relação de amizade e proximidade que mantém com a arguida, originada pelo facto de esta ser amiga de sua mãe, e o facto de, por via deste relacionamento, ter tido conhecimento de factos, relatados pela arguida, directamente relacionados com o thema decidendum do processo. Pois bem.

Como se sumariou no Ac. do STJ de 13 de Fevereiro de 2013, processo nº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, «A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador.» (in www.dgsi.pt). Porém, como a lei não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, eles terão que ser densificados, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e senso comum,.

Admitindo-se que possa causar natural desconforto à Sra. Juíza, presidir ao julgamento e proferir sentença no processo comum singular nº 209/14.0PBVIS, no qual é arguida a referida cidadã, esta circunstância não constituirá nunca, fundamento do deferimento de escusa.

E determinará a relação de amizade entre a arguida e a Sra. Juíza e/ou o seu conhecimento de factos ou, talvez melhor dito, da versão de factos, directamente relacionados com os que constituem o objecto do processo, que lhe foram relatados por aquela, uma concreta situação de facto que, a tornar-se conhecida da comunidade, é adequada a gerar, no cidadão médio ou, preferindo-se, na generalidade das pessoas, a desconfiança sobre a sua imparcialidade e isenção?

Em matéria de imparcialidade do juiz, a este não basta sê-lo [imparcial], é também preciso parecê-lo.

No caso concreto, a Sra. Juíza é amiga da arguida e com ela mantém uma relação próxima mas, como se depreende da alegação, por via da relação de amizade da sua mãe com a arguida. Mas este relacionamento de amizade e proximidade entre a Sra. Juíza e a arguida não vem caracterizado de modo a que pudesse concluir-se estarmos perante uma forte e íntima relação de amizade, capaz de condicionar o exercício da função de julgar e de a tornar suspeita perante terceiros, isto embora se reconheça que, não obstante o surto de desenvolvimento das últimas décadas, Viseu é ainda uma cidade de dimensão média, sendo portanto, relativamente fácil a circulação e propagação deste tipo de informação.

Sucede, porém que, para além da alegada relação de amizade e proximidade entre a arguida e a Sra. Juíza, algo mais aconteceu. Por via do relacionamento entre ambas, a Sra. Juíza, como diz no seu requerimento, tem particulares conhecimentos sobre o processo que deveria julgar, conhecimentos que lhe foram transmitidos pela arguida. Ora, como se lê no Ac. do STJ de 20 de Outubro de 2010, processo nº 140/10.8YFLSB, «Objectivamente, para um terceiro colocado numa posição independente, a simples troca de impressões do Juiz que deve proferir decisão com aquele que é sujeito no mesmo processo macula a equidistância que deve ser mantida pelo julgador e que não é mais do que uma da faces da imparcialidade.», podendo ver-se ainda, no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 5Dezembrode 2012, processo nº   1454/12.8PAALM-A.L1-A.S1 (ambos, in www.dgsi.pt).

Assim, o contacto entre a arguida e a Sra. Juíza, que a levou a ter conhecimento de factos relativos ao processo leva-nos a concluir que a sua intervenção na fase do julgamento é susceptível de desconfiança, quer dos intervenientes processuais, quer da comunidade, sobre a sua imparcialidade.   

Concluímos, portanto, pela verificação dos pressupostos da escusa, previstos no art. 43º, nºs 1 e 4, do C. Processo Penal, relativamente ao processo comum singular nº 209/14.0PBVIS pelo que, deve a mesma ser concedida.


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III


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em deferir o pedido de escusa da Sra. Juíza, Dra. A... , relativamente ao processo comum singular nº 209/14.0PBVIS.

Incidente sem tributação.



Coimbra, 4 de Maio de 2016


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Fernando Chaves – adjunto)