Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
218/21.2GCCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONDIÇÕES PESSOAS E ECONÓMICAS DO ARGUIDO
RELATÓRIO SOCIAL
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
SUPRESSÃO DO VÍCIO PELO TRIBUNAL QUE DETERMINOU A CULPABILIDADE DO ARGUIDO
Data do Acordão: 06/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 371.º E 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), DO CPP
Sumário: I - A matéria sobre as condições pessoais do arguido e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], é essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.

II - Esse relatório não é obrigatório mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo em casos em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.

III - A não realização de relatório social não acarreta o cometimento de qualquer nulidade ou mesmo de qualquer irregularidade.

IV - Porém, a falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através desse relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, poderá constituir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP].

V - Nessas circunstâncias, impõe-se a anulação da sentença e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (artigo 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal, assente que este reenvio parcial tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
             1. A SENTENÇA RECORRIDA

No processo sumário n.º 218/21.2GCCVL do Juízo Local Criminal da Covilhã, por sentença datada de 23 de Setembro de 2021, foi decidido: 
· condenar o arguido AA, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. nos termos conjugados dos artigos 292º, n.º 1 do CP e 69º/1 a) do Código da Estrada, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, subordinando tal suspensão a regras de conduta e com regime de prova, «cujo plano de reinserção social deverá privilegiar o tratamento do arguido para problemática do consumo de álcool, obtendo-se, para o efeito, o prévio consentimento do arguido, aquando da notificação da presente sentença»;
· determinar a cassação a cassação do titulo ou títulos que habilite(m) o arguido AA à condução de quaisquer veículos a motor na via publica, a quem fica vedada a concessão de novo título pelo período de 1 ano, devendo proceder à entrega da carta de condução e quaisquer outros títulos que o habilitem à condução nos termos aqui referidos, no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da referida decisão, na secretaria do tribunal da condenação.

            2. O RECURSO
Inconformado, o MINISTÉRIO PÚBLICO recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

I. «Não se conformando com a douta sentença que, em suma, condenou o pela prática, para além do mais, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, dela vem o Ministério Público recorrer quanto à escolha da pena.
II. Em primeiro lugar, estranha-se que se determine a suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova, orientando-se o plano de reinserção social para o tratamento do arguido para a problemática do consumo de álcool quando o mesmo não deu o seu consentimento para tal.
III. O consentimento do arguido, previsto no artigo 52.º, n.º 3, do Código Penal, tem que ser prévio à decisão do Tribunal, não podendo ser prestado aquando da notificação da sentença.
IV. Mal andou o Tribunal a quo ao determinar a sujeição do regime de prova a um tratamento médico para o qual o arguido não deu o seu consentimento prévio, violando o disposto no artigo 52.º, n.º 3, do Código Penal.
V. A fundamentação da douta sentença recorrida, no que concerne à opção pela pena substitutiva, mostra-se absolutamente escassa e conclusiva.
VI. As exigências de prevenção geral são elevadas, atenta a grande sinistralidade rodoviária existente em Portugal.
VII. O grau de ilicitude dos factos é elevado, atenta a taxa de álcool apresentada pelo arguido.
VIII. O arguido demonstrou total indiferença perante a sua situação jurídico-penal, perante o presente processo e perante as respectivas consequências penais, nem se dignando a comparecer na audiência de julgamento.
IX. O arguido já foi condenado por doze ocasiões, cinco delas pela prática do mesmo tipo de crime, estando inclusivamente ainda sujeito a um regime de prova (no decurso do qual praticou os factos pelos quais foi agora condenado).
X. A suspensão da execução da pena de prisão de prisão não realiza, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, nem terá a virtualidade de demover o arguido da prática de novos crimes.
XI. O arguido revela uma atitude absolutamente contrária aos valores que regem a sociedade, não respeita as condenações de que é alvo (praticando crimes no decurso do período de suspensão da execução de outras penas de prisão) e não compreende o alcance do desvalor das suas condutas, sendo elevadíssimas as exigências de prevenção especial.
XII. O Tribunal a quo, ao determinar a suspensão da execução da pena de prisão em que condenou o arguido, violou o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal.

· Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e, em consequência, condenando-se o arguido pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, numa pena de nove meses de prisão (efectiva)».

            3. O arguido não respondeu a este recurso.

            4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se, corroborando as alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido do provimento do recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
Assim sendo, as questões à partida em discussão são:
· foi bem fixada a pena PRINCIPAL?
· deveria a pena aplicada ser efectiva e não suspensa na sua execução?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição):

Factos Provados:

«1. No dia 04.09.2021, pelas 17h56, o arguido AA conduziu o veículo automóvel ligeiro de matrícula ..-..-OG, propriedade de BB, na Estrada ..., ..., ..., ....
2. AA conduziu o veículo mencionado com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,840 g/L.
3. AA bem sabia que a quantidade e qualidade das bebidas alcoólicas que havia ingerido, em momento anterior à condução, era susceptível de ser superior a 1,2 g/l, e que, por isso, não podia conduzir o referido veículo na via pública.
4.AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei como crime.
*
DAS CONDIÇÕES PESSOAIS E SÓCIO ECONÓMICAS DO ARGUIDO:
5. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
A – Nos autos de proc. 290/00...., do ..., por decisão de 13-02-2001, transitada em julgado em 17-09-2007, foi condenado pela pratica de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CPenal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de 600$00, e cuja pena foi declarada extinta 07-01-2010.
B - Nos autos de proc. 124/01...., do ..., por decisão de 24-10-2002, transitada em julgado em 28-01-2008, por factos praticados em 23-03-1998, foi o arguido condenado pela pratica de crime de falsificação ou de contrafação de documento e de um crime de burla simples , p. e p. pelos arts. 256, ns. 1 al.a ) e 3 e 217, ambos do CPenal, respetivamente , na pena única de 280 dias de multa à taxa diária de 4,00 euros , pena esta declarada extinta em 08-09-2010 .
C- Nos autos de proc. 278/01...., do ..., por decisão de 12-02-2008, transitada em julgado em 13-03-2008, foi condenado pela pratica de crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348, n. 1, al. a ), do CPenal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, pena esta declarada extinta em 19-09-2008 .
D- Nos autos de proc. 1027/..., do ..., por decisão de 02-02-2009, transitada em julgado em 19-01-2010, por factos praticados em 21-08-2004, foi condenado pela pratica de crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo art. 6, da Lei n. 22/97, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, pena esta declarada extinta em 20-11-2013.
E- Nos autos de proc. 18/00...., do ..., por decisão de 23-07-2009, transitada em julgado em 19-01-2010, por factos praticados em 16-04-2000, foi condenado pela pratica de crime de roubo, p. e p. pelo art. 210, do CPenal, e de um crime de violação de domicilio, p. e p. pelo art. 190, do CPenal, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, pena esta declarada extinta em 21-05-2012.
F- Nos autos de proc. 354/10...., do ..., por decisão de 22-09-2010, transitada em julgado em 16-11-2010, por factos praticados em 30-08-2010, foi condenado pela pratica de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, n. 1, do CPenal, na pena de 7 meses e 29 de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 meses, conforme o disposto no art. 69, n. 1, al. a), do CPenal, pena esta declarada extinta em 13-09-2012.
G- Nos autos de proc. 11/12...., do ..., por decisão de 26-04-2012, transitada em julgado em 18-06-2012, por factos praticados em 27-03-2012, foi condenado pela pratica de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, n.1, do CPenal, na pena de 60 períodos de prisão.
H- Nos autos de proc. 272/11...., do ..., por decisão de 11-12-2014, transitada em julgado em 02-07-2020, por factos praticados em 28-06-2011, foi condenado pela pratica de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, n. 1, do CPenal, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
I- Nos autos de proc. 100/17...., do ..., por decisão de 28-06-2018, transitada em julgado em 02-07-2020, por factos praticados em 26-06-2017, foi condenado pela pratica de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, n. 1, do CPenal, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 ano e 2 meses, conforme o disposto no art. 69, n. 1, al. a ), do CPenal.
J- Nos autos de proc. 178/18...., do ..., por decisão de 10-10-2018, transitada em julgado em 02-07-2020, foi condenado pela pratica de crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348, n.º 1, al. a), do CPenal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses.
K- Nos autos de proc. 103/14...., do ..., por decisão de 30-10-2018, transitada em julgado em 22-06-2020, foi condenado pela pratica de crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348, n. 1, al. b), do CPenal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.
L- Nos autos de proc. 57/20...., do ..., por decisão de 28-02-2020, transitada em julgado em 22-06-2020, por factos praticados em 17-02-2020, foi condenado pela pratica de crime de condução de veiculo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292, n. 1, do CPenal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 ano e 15 meses, conforme o disposto no art. 69, n. 1, al. a), do CPenal».

2.2. Inexistem factos não provados e para esta sede é irrelevante a motivação de facto pois inexiste qualquer impugnação da matéria factual.

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, em pena de prisão suspensa na sua execução, sob regime de prova, além de uma pena acessória.
O recurso do Ministério Público abrange somente a dosimetria da pena principal, defendendo que a pena de prisão aplicada ao arguido deveria ter sido efectiva e não suspensa na sua execução.
Insurge-se ainda pelo facto de ter sido decretada uma suspensão com regime de prova e uma sujeição a um tratamento do arguido contra o seu problema de álcool sem o seu prévio e necessário consentimento.

            3.2. O recurso intentado versa, portanto e só, matéria de DIREITO (escolha e medida da pena).
Contudo, haverá que analisar se padece a sentença de algum vício do artigo 410º/2 do CPP.
De facto, estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
· A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
· A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
· Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá ainda dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios. Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.

3.3. VÍCIO DO ARTIGO 410º/1 DO CPP
Analisada a matéria dada como provada, ressalta à evidência que nada se sabe sobre este homem (dados sobre a sua vida familiar, social e económica, assente que o mesmo faltou a este julgamento sumário), a não ser que praticou um crime e que tem antecedentes criminais.
É verdade que no dia 20/9/2021, perante a falta do arguido, determinou-se que se faria o julgamento sem a sua presença, nada tendo feito o tribunal no sentido de averiguar de forma sumária sobre as suas condições socioeconómicas e familiares.
Marcou dia para leitura de sentença e leu-a sem a sua presença.
Nessa sentença, no seu ponto 5 sobre a rubrica «Condições pessoais e socioeconómicas do arguido», apenas escreveu os seus antecedentes criminais.
Nada mais.
Essa matéria sobre as condições pessoais do agente e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], era essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.
            Significa isto que a decisão se mostra «amputada» de aspectos relevantes para a ponderação da Questão da determinação da sanção [artigo 369º do CPP], o que encontra eco na exiguidade dos factores considerados em sede de determinação da pena, os quais - para além daqueles que já fazem parte do tipo e por isso insusceptíveis de ser de novo valorados -, no essencial, se quedaram pelos antecedentes criminais do arguido.
Um homem ou uma mulher são muito mais do que os seus antecedentes criminais.
A proceder o recurso do MP, arriscava-se este Tribunal da Relação a enviar um homem para a prisão sem que nada sobre ele se soubesse – apenas que, num dia pouco feliz, praticou um facto qualificado na lei como crime e que tem antecedentes criminais.
Não toleraremos tal.
Estava ao alcance do tribunal solicitar a realização de inquérito sumário – à entidade que rotulasse como adequada e idónea - sobre as condições de vida do arguido (familiares, sociais, laborais e socioeconómicas) antes da data para a leitura da sentença.
É certo que lhe aplicou uma pena não pecuniária.
Mas qualquer pena deve ter na sua base o conhecimento efectivo sobre a pessoa que é condenada.
Neste caso, nada se sabe sobre este homem, podendo o tribunal ter encetado diligências para efeitos de realização de um relatório social – ou uma sumária informação social – previsto no artigo 370º do CPP.
Sabemos que esse relatório não é obrigatório mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo, em casos como o presente, em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.
Por isso, o tribunal, sabendo que não tinha tal relatório social aquando do início do julgamento, deveria ter encetado diligências nesse sentido antes da sentença.
E o tribunal precisava dessas informações para avaliar a pena a aplicar e para ajuizar sobre qual a melhor estratégia para o regime de prova caso decidisse pela suspensão da execução de uma pena de prisão – e, neste caso, faria todo o sentido saber algo mais sobre o arguido, assente até que o sujeita a um tratamento médico contra a dependência alcoólica, sem sequer ter o seu efectivo e necessário consentimento (a letra do artigo 52º, n.º 3 do CP é clara, como bem acentua o MP recorrente).
Algo poderia ter sido feito para colmatar a falta do arguido à audiência.
Admitiremos que se deveria passar à fase sentencial sem essas informações sobre as suas condições de vida caso se concluísse, à evidência, que não seria possível angariar todas essas informações, por exemplo, por se constatar que o arguido estava em parte incerta.
Não foi este o caso.
O Tribunal não agiu como lhe competia, diligenciando por saber algo mais sobre este arguido faltoso, para justificar de forma mais sólida a pena aplicada, à luz dos critérios do n.º 2 do artigo 71º do CP [nomeadamente a sua alínea d)].
Temos como certo – mediante abundante jurisprudência nesse sentido - que:
· A não realização de relatório social não acarreta o cometimento de qualquer nulidade[1], v.g. a contemplada na al.ª c), do n.º 1, do art.º 379.º, do CPP, ou mesmo de qualquer irregularidade, nos termos do disposto no art.º 123.º, do mesmo diploma adjectivo;
· Porém, a falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através desse relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, poderá constituir, e constitui, a nosso ver, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
Ora, não tendo o Tribunal de 1ª instância procedido à indagação necessária à determinação da personalidade e situação pessoal, económica e social do arguido, a sentença enferma, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 06/11/2003, Proc. nº 03P3370; Ac. R. de Lisboa de 10/02/2010, Proc. nº 372/07.6GTALQ.L1-3; Acs. R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. nº 765/05-1 e de 11/06/2012, Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1; Acs. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 268/08.4GELSB.C1 e de 23/02/2011, Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1; Acs. R. do Porto de 18/11/2009, Proc. nº 12/08.6GDMTS.P1 e de 02/12/2010, Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1; Ac. R. de Évora de 20/11/2012, Proc. nº 186/09.9GELL.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Vício que este Tribunal da Relação pode conhecer oficiosamente, mas não pode suprir por falta de elementos que constem dos autos.
Aqui chegados, comungamos da opinião dos relatores do Acórdão da Relação de Lisboa de 23/5/2017 (Pº 307/14.0PEAMD.L1-5), segundo a qual:
«Constatada a existência deste vício, é entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que importa determinar o reenvio do processo para novo julgamento, cingido à investigação dos factos relativos à situação pessoal e económica do arguido, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPP.
Salvaguardando o devido respeito por tal entendimento que, obviamente, é muito, perfilhamos porém a posição sustentada pelo Conselheiro Simas Santos expressa na declaração de voto lavrada no Ac. do STJ de 29/04/2003, Proc. nº 03P756, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma “a meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.
Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição” – perfilando-se também com esta posição os Acórdãos da Relação de Guimarães supra mencionados e bem assim o Acórdão deste Tribunal da Relação e Secção de 10/09/2013, Proc. nº 58/12.0PJSNT.L1-5, consultável no mesmo sítio, por nós relatado».
           
3.4. Deste modo, enferma a sentença recorrida do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, isto é, para uma decisão jurídica criteriosa [artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP] – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 17.10.2002, CJ, ASTJ, X, T. III, pág. 207; de 29.04.2003, proc. n.º 03P756; 06.11.2003, proc. n.º 03P3370; 11.11.2004, proc. n.º 3261/04], o que determina o reenvio – parcial - do processo para uma reabertura da audiência, a incidir exclusivamente sobre as questões supra identificadas, e a poder contar agora com a presença do arguido, outrora faltoso.
Note-se que o prazo de 30 dias do artigo 328º/6 do CPP não se aplica no caso vertente em que se determina o reenvio parcial do processo para uma mera reabertura da audiência, sendo válida a prova produzida anteriormente.
Assim, o tribunal a quo deverá reabrir a audiência, tudo fazendo para que, aquando da prolação da nova sentença, tenha nos autos informação suficiente sobre as condições de vida (laborais, económicas e familiares) do arguido que possa justificar de forma mais cabal a pena que irá enfim escolher e aplicar ao mesmo.

3.5. Se assim é, fica prejudicado o conhecimento da única questão aduzida no recurso do MP (artigo 660º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP).

3.6. Em sumário, diremos:
1. A matéria sobre as condições pessoais do arguido e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], é essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.
2. Esse relatório não é obrigatório mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo em casos em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.
3. A não realização de relatório social não acarreta o cometimento de qualquer nulidade ou mesmo de qualquer irregularidade.
4. Porém, a falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através desse relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, poderá constituir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP].
5. Nessas circunstâncias, impõe-se a anulação da sentença e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (artigo 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal, assente que este reenvio parcial tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.

            III – DISPOSITIVO       

·             Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação, julgando verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP –, em anular a sentença, ordenando a remessa do processo ao Tribunal a quo, a fim de aí, com intervenção da mesma Juíza, se reabrir a audiência para apurar apenas dos factos em falta relativos às condições socio-familiares-profissionais-laborais do arguido, APÓS o que deverá ser proferida nova sentença complementada com os novos dados que conseguir apurar sobre a situação económica, familiar e financeira do mesmo e, posteriormente, em face deles, determinar a pena a aplicar.

            Sem custas.     

Coimbra, 1 de Junho de 2022
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94.º, n.º 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19.º da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria n.º 267/2018, de 20/09)

 Paulo Guerra (Relator)

Alcina da Costa Ribeiro (Adjunta)

Alberto Mira (Presidente da Secção)



[1] Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães de 13/7/2020 (Pº 414/19.2GAEPS.G1), cuja doutrina adoptamos também - «Dispõe o nº 1 do artigo 370º do CPP com a epígrafe “Relatório Social” que: “O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já constarem do processo”(sublinhado nosso).
A junção do relatório é, pois, facultativa, (cfr Ac. STJ de 06/02/2019 proferido no processo 488/12.7JAAVR.1.P1.S1 in wwwdgsi.pt), na medida em que só se for entendido “necessário à correta determinação da sanção” é que o tribunal deverá diligenciar por obter tal meio de prova. Tal significa, portanto, que a necessidade da sua junção tem de ser casuisticamente, concretamente, avaliada.
Mas significa mais: significa que a não junção do relatório social, quando necessário, consubstancia um vício do procedimento adotado, um “error in procedendo”, mas não necessariamente um vício da decisão, um “error in iudicando”. De facto, pode haver decisões injustas sem que tenham ocorrido vícios de procedimento e pode haver vícios de procedimento que não conduzam a decisões injustas.
Ora, é a lei que diz quais são os vícios de procedimento e também é a lei que estabelece as consequências da sua ocorrência (artigos 118º a 123º do CPP).
É certo que há quem considere (cfr. Ac. RE de 21/12/2017 in wwwdgsi.pt entre outros) que a falta de relatório social consubstancia uma nulidade dependente da arguição por se tratar de “omissão de diligência que pode reputar-se essencial para a descoberta da verdade” (artigo 120º, nº 2, alínea d), 2ª parte). Mas, salvo o devido respeito, não tem de ser, necessariamente, assim.
Desde logo porque se impõe fazer a distinção entre meios ou diligências de prova “essenciais para a descoberta da verdade” (artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP) e meios de prova “necessários para a correta determinação da sanção” (artigo 370º, nº 1 do CPP). E a diferença não está só no conteúdo e força das expressões “essencial” e “necessários”. Está no momento processual a que tal meio de prova se dirige.
Como se sabe, o nosso processo penal consagra um sistema mitigado de cisão (“césure”) entre a decisão sobre a culpa e a decisão sobre a sanção aplicar (artigo 368º e 369º do CPP), havendo até a possibilidade de reabertura da audiência (artigo 371º do CPP) e de produção de prova suplementar, caso tal se revela necessário.
Ora, assim sendo, terá de entender-se que a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade [artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP] respeita à primeira parte (da decisão sobre a culpa), enquanto a falta de relatório social, quando este é necessário para a determinação da sanção, respeita à segunda parte, isto é, à decisão sobre a sanção a aplicar.
Portanto, assim sendo, a falta de relatório social nunca constituiria a referida nulidade».