Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
669/15.1T9CLD-A.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
FORÇA VINCULATIVA
Data do Acordão: 10/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.ºS 32.º, N.º 5, E 219.º, N.º 1, DA CRP; ART.ºS 1.º E 3.º, N.º 1, AL. C), AMBOS DO ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO; ART.ºS 53.º, N.ºS 1 E 2, AL. C), 283.º, N.º 3, AL. C), 358.º, N.ºS 1 E 3, 445.º, N.º 3, 446.º E 447.º, TODOS DO CPP; ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 11/2013, DE JUNHO DE 2013
Sumário: I - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, deve ser interpretado no sentido de que a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, que o Tribunal a quo fixou ao receber a acusação e designar dia para julgamento integra-se no mérito da causa e não nas questões prévias ou incidentais.

II – O segundo período do n.º 3 do art.º 445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.”

Decisão Texto Integral:

            Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra

           

     Relatório

            Por despacho de 28 de março de 2019, proferido pela Ex.ma Juíza, no início da audiência de julgamento que iria decorrer no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Caldas da Rainha, em que são arguidos HM, CA, AM e EM, decidiu alterar a qualificação jurídica da acusação do Ministério Público e, consequentemente, julgar verificada a incompetência material do tribunal singular, determinando a remessa dos autos, após trânsito, ao Tribunal Coletivo competente, isto é, aos Juízos Centrais Criminais de Leiria.

           Inconformado com a douta decisão dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1. A Mm.ª Juiz procedeu à alteração da qualificação jurídica constante da acusação deduzida pelo Ministério Público no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova.

2. Por força do princípio do acusatório e do disposto nos artigos 219.º, n.º 1, da C.R.P., 1.º e 3.º, n.º 1, alínea c), ambos do Estatuto do Ministério Público, 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 283.º, do Código de Processo Penal, é ao Ministério Público que compete deduzir acusação e efectuar a qualificação jurídica dos factos que vão ser submetidos a julgamento

3. Após, a alteração da qualificação jurídica efectuada pelo Ministério Público só pode ser realizada após produção de prova, que terá que ocorrer necessariamente em julgamento, como resulta do disposto no artigo 358.º n.º (s) 1 e 3, do Código de Processo Penal.  

4. Esta questão já foi resolvida pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, que fixou jurisprudência no sentido de que “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art.º 358º nºs 1 e 3 do CPP.

5. No entanto, não se descura que no presente caso a discussão sobre a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação funciona como questão prévia - inserida na decisão posta em causa no art.º 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal - para aferir da competência desta Instância Local Criminal, julgamento em Tribunal Singular – ou da Instância Central – julgamento perante Tribunal Colectivo.

6. Ou seja, como bem mencionado, quanto a nós, na decisão recorrida “caso se venha a concluir, após a produção da prova, pela demonstração, tout court, dos factos descritos na acusação [e posto que, neste momento, não compete a este tribunal efectuar qualquer juízo de valor ou de prognose com referência à (in)existência de prova bastante à sua demonstração], sendo estes subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24.º, alínea h), do DL 15/93, de 22.01, sempre se imporia, então, proceder à alteração jurídica dos mesmos com a subsequente declaração de incompetência material deste tribunal singular e anulação de todos os actos probatórios então praticados.”

7. E compreende-se o sentido do voto de vencido de MANUEL JOAQUIM BRAZ no douto aresto acima referenciado ao entender que: «Prosseguir com a audiência, para, no final, se declarar o tribunal incompetente, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada

8. Assim, e nessa medida, concorda-se com a posição expressa na decisão posta em crise na parte em que refere concretamente que, in casu, “a alteração de qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública releva para decidir da (in)competência do tribunal singular, tal circunstância poderá configurar, a nosso ver e com o devido respeito por melhor entendimento, um elemento de diferenciação entre o caso dos presentes autos e a jurisprudência fixada no douto Acórdão do STJ n.º 11/2013, acima melhor identificado, justificando, no caso concreto, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação no início da audiência de julgamento, i.e., previamente à produção da prova.”

9. De todo o modo, pese embora se entenda que esse deveria ser o sentido do entendimento quando está em causa uma alteração da qualificação que contende com a competência do Tribunal assim se evitando repetições do mesmo julgamento, o certo é que, de acordo com o regime instituído, ao proferir a decisão recorrida nos termos em que o fez violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 1, da C.R.P., 1.º, e 3.º, n.º 1, alínea c), ambos do Estatuto do Ministério Público, 53.º, n.º (s) 1 e 2, alínea c), 283.º, n.º 3, alínea c), e 358.º, n.º (s) 1 e 3, todos do Código de Processo Penal, e o fixado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que designe data para a audiência de julgamento, assim se fazendo a acostumada Justiça!

            A Ex.ma Procuradora-geral adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá proceder.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, não houve resposta.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

     Fundamentação

O despacho recorrido, proferido após abertura da audiência de julgamento, tem o seguinte teor

«Nos presentes autos, o Ministério Público acusa, em Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular, HM, CA, AM e EM pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de menor gravidade, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 ambos do DL 15/93, de 22 de Janeiro.

Para tanto, alega-se, em síntese e além do mais, na peça acusatória que:

«( ... )

5- Em datas não concretamente apuradas, mas pelo menos entre 25-05-2015 e 11-­05-2016, HP, CA e AC introduziram no Estabelecimento Prisional X (...) , resina de canábis e heroína.

6- No interior do estabelecimento Prisional X (...) , HP, procedeu à entrega da resina de canábis e heroína a outros reclusos mediante a entrega de uma quantia em dinheiro.

7- Nesse período, em número de vezes não concretamente apurado, CA adquiriu, resina de canábis e a heroína, junto de fornecedores cuja identificação não foi possível apurar, para depois introduzir no interior do Estabelecimento Prisional X (...) .

(...)

9- AC e EM, conjuntamente, adquiriram resina de canábis e heroína, junto de um fornecedor cuja sua identificação não foi possível apurar, para depois introduzir no interior do Estabelecimento Prisional X (...) .

(...)

11- Outras vezes, em datas não concretamente apuradas, mas dentro do período temporal referido em 7, [a resina de canábis e a heroína] foram introduzidas [no estabelecimento Prisional] por AC, e EM aquando das visitas íntimas dentro de “capsulas de ovo kinder”, introduzidas na vagina e/ou ânus.

(...)

17- Agiram os arguidos HP, AC, CA e EM, de forma livre, voluntária e consciente, em comunhão de esforços e vontades e mediante plano previamente elaborado, com o intuito concretizado de introduzirem resina de canábis e heroína, no interior do Estabelecimento Prisional X (...) , e dessa forma disseminar tal produto pelos reclusos para assim obterem compensação económica. (...)».

Ora, não obstante termos previamente admitido a douta acusação também pelas disposições dela constantes, na sequência de melhor análise para preparação da audiência de julgamento, verificamos, malgrado apenas neste momento, que os factos alegados na acusação e acima transcritos são directamente subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24.º, alínea h), do DL 15/93, de 22.01.

Ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.º n.º l e 24, alínea h), do DL 15/93, de 22.01 é aplicável pena de prisão de 5 a 15 anos e, consequentemente, o seu julgamento é da competência do Tribunal Colectivo.

Ocorre, porém, que, nos presentes autos, o Ministério Público não fez uso da faculdade prevista no art.º 16.º n.º 3 do CPP.

E, como tal, este Tribunal Singular será materialmente incompetente para prosseguir o julgamento e proferir sentença pelo crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p, pelos arts. 21.º n.º l e 24, alínea h), do DL 15/93, de 22.01 acima referenciado.

Questiona-se, por isso, da necessidade/admissibilidade de se proceder, neste momento, à alteração jurídica dos factos descritos na acusação pública nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 358.° n.ºs 1 e 3 do CPP para aferir da competência material deste Tribunal Singular.

Nesta matéria não desconhecemos, é certo, a douta jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 11/2013, proferido em 12.06.2013 e publicado no DR, 1.ª Série, n.º 138, de 19.07.2013.

De facto, tal como decorre do douto aresto, sendo o Tribunal livre no exercício da qualificação jurídica dos factos, apenas estando vinculado tematicamente pelo “facto histórico unitário” descrito na acusação, o momento processual próprio para o fazer ocorre, em regra, após a produção de prova, na fase de elaboração da sentença, quando está a julgar o mérito no caso concreto.

No entanto, no caso dos presentes autos, a discussão da alteração jurídica dos factos descritos na acusação impõe-se como questão prévia para aferir da competência deste Tribunal Singular.

Ou seja, caso se venha a concluir, após a produção da prova, pela demonstração, tout court, dos factos descritos na acusação [e posto que, neste momento, não compete a este tribunal efectuar qualquer juízo de valor ou de prognose com referência à (in)existência de prova bastante à sua demonstração], sendo estes subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.º n.º l e 24.º, alínea h), do DL 15/93, de 22.01, sempre se imporia, então, proceder à alteração jurídica dos mesmos com a subsequente declaração de incompetência material deste tribunal singular e anulação de todos os actos probatórios então praticados. Sendo que, citando o voto de vencido de MANUEL JOAQUIM BRAZ no douto aresto acima referenciado, «Prosseguir com a audiência, para, no final, se declarar o tribunal incompetente, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada.».

Nos termos do art.338.º n.º 1 do CPP, no início da audiência, «O tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.», incluindo-se no normativo citado, nomeadamente, a apreciação da (in)competência do tribunal.

Neste sentido, a questão primordial a apreciar será a da competência material do tribunal singular ou colectivo, configurando a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública uma questão prévia e necessária a tal aferição. Destarte, considerando que, in casu, a alteração de qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública releva para decidir da (in)competência do tribunal singular, tal circunstância poderá configurar, a nosso ver e com o devido respeito por melhor entendimento, um elemento de diferenciação entre o caso dos presentes autos e a jurisprudência fixada no douto Acórdão do STJ n.º 11/2013, acima melhor identificado, justificando, no caso concreto, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação no início da audiência de julgamento, i.e., previamente à produção da prova.

Face ao exposto, entendendo que os factos descritos na acusação proferida pelo Ministério Público a fls. 903-909 são subsumíveis à prática, pelos arguidos, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.° n.º 1 e 24, alínea h), do DL 15/93, de 22.01, procedo à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos nos termos ora enunciados.

Comunica-se aos arguidos nos termos do art.º 358.° n.ºs 1 e 3 do CPP.

Comunica-se ao Ministério Público para, querendo, se pronunciar nos termos e para os efeitos previstos no art.16.º n.º 3 do CPP.».

Notificado o antecedente despacho e comunicada a alteração supra exarada aos presentes, pela Digm.ª Procuradora-Adjunta foi dito não fazer uso da aplicação do disposto no artigo 16.°. n.º 3 do Código de Processo Penal.

Por todos os Ilustres Defensores dos arguidos foi dito nada terem a requerer, acrescentando o Exmo Sr. Dr. Orlando Góis, Defensor da arguida Ana Mariana, prescindir de qualquer prazo.

Em seguida, pela Mm." Juiz de Direito foi proferido o seguinte:

Despacho

Considerando que o Ministério Público não fez uso da faculdade conferida pelo artigo 16.º n.º 3, do Cód. de Processo Penal, atenta a alteração da qualificação jurídica dos factos acima comunicada e uma vez que o crime agora imputado aos arguidos é punível com pena de prisão de 5 a 15 anos, este Tribunal Singular deixou de ser competente para prosseguir com o julgamento e proferir decisão.

Em conformidade, julgo verificada a incompetência material do tribunal singular e determino a remessa dos autos, após trânsito, ao Tribunal Colectivo competente, i.e., aos Juízos Centrais Criminais de Leiria.

Assim sendo, fica por hoje prejudicada a realização da audiência de julgamento.

            Comunique às testemunhas que estão ausentes e à arguida que está no Tribunal de Santarém, não havendo quaisquer condenações em multa quanto às ausências verificadas


 *

                                                                           *

            O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 [1] e de 24-3-1999 [2] e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [3], sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º 3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do Ministério Público a questão a decidir é a seguinte:

- se o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 1, da C.R.P., 1.º, e 3.º, n.º 1, alínea c), ambos do Estatuto do Ministério Público, 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 283.º, n.º 3, alínea c) e 358.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Penal e o fixado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, ao proceder à alteração da qualificação jurídica constante da acusação e, consequentemente, julgar verificada a incompetência material do tribunal singular.


-

            Passemos ao seu conhecimento.

            O recorrente entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, os artigos 1.º, e 3.º, n.º 1, alínea c), ambos do Estatuto do Ministério Público, os artigos 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), 283.º, n.º 3, alínea c) e 358.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Penal e o fixado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, ao proceder à alteração da qualificação jurídica constante da acusação deduzida pelo Ministério Público, no início da audiência de julgamento e antes da produção de prova e, consequentemente, julgar verificada a incompetência material do tribunal singular, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida, e substituída por outra que designe data para a audiência de julgamento.

Alega para o efeito, no essencial, que embora compreenda e concorde com a posição do Tribunal a quo e com o voto de vencido do Cons. Manuel Joaquim Braz proferido no acórdão do STJ n.º 11/2013, de 12 de junho, citado no despacho recorrido, no sentido de que deveria ser possível alterar a qualificação jurídica no início da audiência de julgamento e antes da produção de prova, quando ela se impõe como questão prévia para aferir da competência do tribunal singular para proceder ao julgamento, assim se evitando repetição do julgamento pelo tribunal coletivo, o certo é que de acordo com o regime instituído e a douta jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 11/2013, de 12 de junho, tal não é permitido.     

Vejamos.

É pacífico que, nos termos do art.219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 1.º e 3.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto do Ministério Público e 53.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal, é ao Ministério Público que compete exercer a ação a penal, orientada pelo princípio da legalidade.

Como é também inquestionável que a nossa lei fundamental no art.32.º, n.º 5, consagra o nosso processo penal como um processo de estrutura essencialmente acusatória, integrada por um princípio de investigação da verdade material.

Como bem elucidam os Profs. Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art.32.º da Constituição da República Portuguesa, “O princípio acusatório (n° 5, 1ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).”.[4]

É a acusação, pública ou particular, quem define e fixa perante o juiz o objeto do processo, para o que, além do mais deve narrar os factos e indicar as disposições legais aplicáveis (art.283.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal).  

Concluída a instrução com pronúncia ou esgotado o prazo para requerer a instrução, são os autos remetidos ao tribunal competente para a fase de julgamento, a fim de ser proferido o despacho de saneamento a que alude o art.311.º do Código de Processo Penal.    

Recebida a acusação e designado dia para julgamento, a jurisprudência divergiu vários anos sobre se o juiz é livre de modificar o enquadramento jurídico dos factos da acusação ou da pronúncia no início da audiência de julgamento, cabendo-lhe apenas notificar o arguido nos termos do artigo 358.º, n.º 3, do C.P.P. ou, pelo contrário, se depois de recebida a acusação e antes de produzida a prova em julgamento, o juiz não pode proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos, mas tão-só de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.

O STJ veio tomar posição sobre esta questão, decidindo pelo acórdão n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, fixar jurisprudência no sentido de que «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artº 358º nºs 1 e 3 do CPP.».

A este propósito escreve-se neste acórdão do STJ, designadamente:

“A questão em análise está a jusante do despacho inerente aos artigos 311.º a 313.º do CPP; situa-se após a prolação desse despacho, e, por conseguinte, situa-se em audiência de julgamento depois de ter sido iniciada, e integra-se no mérito da causa.

Por outro lado, a mesma questão não se confunde com o conteúdo permitido pelo artigo 338.º n.º 1 do CPP: - “O tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar.”

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque (2): “O conhecimento das questões prévias ou incidentais inclui o conhecimento dos pressupostos processuais, da conexão de processo na mesma fase processual e da separação de processos, dos impedimentos, recusas e escusas dos peritos, intérpretes e funcionários de justiça, das questões atinentes à assistência por defensor, à substituição de defensor e à representação judiciária dos assistentes, da remessa das partes civis para os tribunais civis, da questão da produção de meios de prova oficiosamente ou a requerimento na audiência de julgamento e das proibições de prova”

E como aduz Maia Gonçalves (3):

“As questões prévias aqui referidas, e em outros lugares do Código, são todas as que, além das incidentais, ou seja das que surgem no decurso da audiência, podem obstar ao conhecimento do mérito. Essas questões podem ter natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, etc.) ou adjectiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade do acusador, etc.). A apreciação das questões prévias de natureza adjectiva deve proceder à apreciação das de natureza substantiva, e dentre aquelas deve ser apreciada prioritariamente a questão da competência, pois que se o tribunal se declarar incompetente deve cessar a sua intervenção, para que o tribunal competente aprecie todas as questões.

As questões prévias devem ser apreciadas tão cedo quanto possível (cfr., v.g. artigo 311.º, n.º 1), mas podem também ser decididas na sentença final (artigo 368.º, n.º 1) e assim terá que suceder necessariamente sempre que a solução estiver dependente de prova a produzir na audiência.”».

O Tribunal da Relação interpreta esta parte do acórdão de uniformização de jurisprudência, no sentido de que a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, integra-se no mérito da causa e não nas questões prévias ou incidentais.

Entre os vários argumentos expostos no acórdão do STJ n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, de que o momento processualmente adequado para o tribunal de julgamento se pronunciar sobre a qualificação jurídica do objeto do processo é necessariamente posterior à decisão sobre a factualidade imputada, reproduzimos os seguintes:

«Em suma, como observa o mesmo Autor (Paulo Pinto de Albuquerque), “A solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16.º, n.º 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação [...] Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (acórdão do TC n.º 518798), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior. Razão pela qual o juiz, aquando da prolação do despacho do artigo 311.º, não deve rejeitar a acusação e devolvê-la ao MP para as corrigir erros "claros" de qualificação jurídica dos factos, sendo certo que a "clareza" do direito não é indiscutível.

O tribunal não pode, no início da audiência de julgamento, proferir despacho a alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação [...] Esta conclusão não prejudica o exercício do poder do tribunal durante a audiência nos termos do artigo 358.º n.º 3 (32).

O juiz não pode, no início da audiência, proferir despacho que implique o conhecimento do mérito da causa quanto às questões relacionadas com a matéria de facto, por exemplo, considerando que não estão indiciados suficientemente certos factos atinentes à especial censurabilidade e convertendo, por isso, a imputação de um crime de ofensa à integridade física qualificado num crime simples (acórdão do STJ, de 20.11.1997, in BMJ, [...])”.

(…)

7 - Em síntese, e como bem acentua o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo, em suas doutas alegações:

“Ora, tendo em conta a inserção sistemática do preceito [o artigo 358.º do CPP] no capítulo que define as regras e princípios que regulam a actividade da produção de prova, não se suscitam grandes dúvidas de que o mecanismo da alteração da qualificação jurídica do artigo 358.º n.º 3 do CPP foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após produção de prova.

Na verdade, a alteração da qualificação jurídica poderá ocorrer em duas situações: no decurso de uma alteração dos factos (não substancial); e no caso em que, não obstante os factos resultantes da prova produzida em julgamento serem coincidentes com os da acusação ou pronúncia, o tribunal discorda dessa qualificação jurídica.

Ora, considerando que o referido n.º 3 é uma norma integrada no contexto global do mecanismo da "alteração não substancial dos factos", prevista no artigo 358.º CPP, e que a alteração dos factos (n.º 1) só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, estabelecendo o n.º 3 que aquele n.º 1 "é correspondentemente aplicável" à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente.

[...]

Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição.

É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade.».

No caso em apreciação, a Ex.ma Juíza de julgamento, que no despacho de saneamento e de designação da audiência de julgamento, recebeu a acusação do Ministério Público “pelos factos e disposições dela constantes”, decidiu no dia do julgamento, após abertura da audiência, e verificar “apenas neste momento”, após melhor análise da acusação, que os factos narrados nesta peça “são diretamente subsumíveis ao crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelos arts. 21.º n.º 1 e 24.º, alínea h), do DL 15/93, de 22.01” e, não, ao crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.25.º, n.º1 do mesmo Diploma, como consta da acusação.  

Depois de questionar se nesse momento será admissível proceder à alteração jurídica dos factos descritos na acusação, ao abrigo do disposto no art.358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, entende a Ex.ma Juíza de julgamento que no caso concreto se impõe proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, como questão prévia para aferir da competência do Tribunal Singular, argumento em seu favor com a doutrina do voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Manuel Joaquim Braz aposto no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 11/2013.

Afirmando que a questão primordial a apreciar é a da competência material do tribunal singular ou coletivo, configurando a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública uma questão prévia a tal aferição, conclui que existe “um elemento de diferenciação entre o caso dos presentes autos e a jurisprudência fixada no douto Acórdão do STJ n.º 11/2013, acima melhor identificado, justificando, no caso concreto, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação no início da audiência de julgamento, i.e., previamente à produção da prova.”.

Procedendo, seguidamente, à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos nos termos ora enunciados, comunicou a Ex.ma Juíza essa alteração aos arguidos, nos termos do art. 358.° n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, e convidou o Ministério Público a pronunciar-se nos termos e para os efeitos previstos no art.16.º n.º3 do mesmo Código.

Tendo o Ministério Público declarado não fazer uso do disposto no art.16.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, decidiu a Ex.ma Juíza declarar a incompetência material do Tribunal singular e determinar a remessa dos autos, após trânsito, para ao tribunal coletivo competente.

Salvo o devido respeito, a questão colocada é, em primeiro lugar, de alteração da qualificação jurídica, de alteração do quadro jurídico substancial da acusação, que o Tribunal a quo fixou ao receber a acusação e designar dia para julgamento.

Esta alteração enquadra-se no mérito da causa e não nas questões prévias ou incidentais.

Por tal razão, entre outras acabadas de reproduzir, retiradas do AUJ n.º 11/2013, não pode o Tribunal de julgamento proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, no início da audiência de julgamento, sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art.358º nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal, sem violar a jurisprudência fixada AUJ n.º 11/2013.

É verdade que a Ex.ma Juíza refere que sendo a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação apenas uma questão prévia para decidir a questão da competência do Tribunal, entende que tal situação é diferente da situação apreciada na jurisprudência fixada no douto acórdão do STJ n.º 11/2013.

Salvo o devido respeito, não se nos afigura correta esta diferenciação de situações.

No voto de vencido do Cons. Manuel Joaquim Braz, aposto no douto aresto de uniformização de jurisprudência, consignou-se, nomeadamente e com interesse para a presente decisão:

«Em regra, o tribunal, depois de designada data para a audiência, só decide sobre a qualificação jurídica dos factos na sentença. Nessa altura, os factos a qualificar juridicamente serão os que se tiverem provado, que podem ou não ser os constantes da acusação ou da pronúncia, quando exista.

Mas, em momento anterior a esse, no início da audiência, nos termos do artigo 338.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), «o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar». E para decidir sobre essas nulidades e outras questões prévias ou incidentais pode ter que conhecer da qualificação jurídica dos factos, que, nesse momento, são os descritos na acusação ou na pronúncia, se existir.

Pense-se no seguinte exemplo: O Ministério Público (MP), não fazendo uso da faculdade prevista no artigo 16.º, n.º 3, deduz acusação contra o arguido por factos que integram um crime cujo julgamento é da competência do tribunal colectivo, mas erradamente qualifica esses factos como crime cujo julgamento é da competência do tribunal singular, sendo o processo apresentado a juiz deste último tribunal, que recebe a acusação pelos factos e qualificação jurídica indicados pelo MP, designando data para a audiência.

Num tal caso, o juiz do tribunal singular, apercebendo-se do erro no início da audiência, deve, ao abrigo do artigo 338.º, declarar a incompetência material do tribunal, em função da correcta qualificação jurídica dos factos, remetendo o processo para o tribunal colectivo. Prosseguir com a audiência, para, no final, se declarar o tribunal incompetente, não acautelaria qualquer valor do processo penal e violaria os princípios da economia e da celeridade processual, com a prática de actos inúteis e o arrastamento do processo na sede errada.».

A situação equacionada no voto de vendido corresponde à situação em causa nos presentes autos, sendo exatamente por isso que a decisão recorrida se fundamenta nesse voto para alterara a qualificação jurídica sem produção de prova.

Este argumento foi rejeitado no acórdão de uniformização de jurisprudência, que não seguiu a posição vencida, pelo que ficou ali decidido que recebida a acusação o juiz de julgamento não pode conhecer do mérito da acusação, antes da produção da prova, mas tão-só de questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar à apreciação do mérito da causa.

A finalidade específica do recurso de fixação de jurisprudência é evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores.

O objeto do recurso para uniformização de jurisprudência é uma decisão de última instância, quando no domínio da mesma legislação, o STJ proferir dois acórdãos relativamente à mesma questão de direito, com soluções opostas ou de um acórdão do Tribunal da Relação quando dele não seja já admitido recurso ordinário e esteja em oposição com outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, ou do STJ, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência anteriormente fixada pelo STJ (art.437.º do C.P.P.).

Se de acordo com o art.445.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a decisão tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto e nos processos cuja tramitação tiver sido suspensa nos termos do art.441.º, n.º 2, sem prejuízo da reformatio in pejus, já de acordo com o seu n.º 3 «A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».

Quebrada a força vinculativa do acórdão de fixação da jurisprudência pelo n.º 3 deste art.445.º, prima facie, poderia entender-se que basta uma qualquer fundamentação divergente sobre a jurisprudência fixada pelo acórdão uniformizador, para se afastar a sua observância.

Mas assim não é, como deixam logo antever os artigos 446.º e 447.º do Código de Processo Penal, que estabelecem, respetiva e designadamente, com interesse para a presente questão:

Artigo 446.º: 

«1- É admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo.

   2- O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

   3- O Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.».

Artigo 447.º:

  «1- O Procurador-Geral da República pode determinar que seja interposto recurso para fixação da jurisprudência de decisão transitada em julgado há mais de 30 dias.

   2- Sempre que tiver razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada, o Procurador-Geral da República pode interpor recurso do acórdão que firmou essa jurisprudência no sentido do seu reexame. Nas alegações o Procurador-Geral da República indica logo as razões e o sentido em que jurisprudência anteriormente fixada deve ser modificada.

   3 - (…)».[5]

Como esclarece, entre outros, o acórdão do STJ de 5-11-2009, “A lei indica com suficiente clareza, assim, que os Acórdãos para fixação de jurisprudência têm um peso próprio, que lhes é dado pelo facto de provirem do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça. Há, pois, que lhes conceder o benefício, para não dizer a presunção, de que foram lavrados após ponderação exaustiva, face à legislação, à doutrina e à jurisprudência existentes sobre o assunto.

Deste modo, embora os tribunais sejam livres de seguirem a jurisprudência que julgam mais adequada, já que o STJ não “faz lei”, parece estultice tomar outro caminho que não o acolhido no Pleno do STJ, a não ser que se invoquem argumentos novos, não considerados na decisão que fixa a jurisprudência, ou que, considerando a legislação no seu todo, a jurisprudência fixada se mostre já ultrapassada.».[6]

Também o Conselheiro Maia Gonçalves, entende que o segundo período do n.º3 do art.445.º do C.P.P., ao conter uma particular chamada de atenção para o dever de fundamentar as divergências relativamente à jurisprudência que se encontra fixada, impõe “… que os argumentos invocados para o efeito, além de ponderosos, sejam novos, no sentido de não terem sido considerados no acórdão uniformizador, e suscetíveis de criar algum desequilíbrio na avaliação do peso de argumentos a favor do reexame e alteração da doutrina fixada no acórdão uniformizador.”[7]

Ainda no mesmo sentido, e seguindo o acórdão do STJ de 13 -11-2003 (in SASTJ, n.º 75, 100), refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, que “Os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que ela está ultrapassada, isto é, quando a) o tribunal tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador, susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada; b) se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na atualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso; ou finalmente c) a alteração da composição do STJ torne claro que a maioria dos juízes das secções criminais deixou de partilhar fundadamente da posição fixada.”.[8]     

Em suma, como tem enfatizado o STJ, o tribunal judicial divergente não pode limitar-se ao desacato da jurisprudência uniformizada baseado tão-somente na convicção de que aquela não é a melhor solução legal.[9]

A decisão recorrida, ao sufragar o entendimento do voto de vencido, que está em oposição ao 

teor daquele acórdão de uniformização de jurisprudência, não apresentou qualquer argumento novo relevante não ponderado ainda, nem indicou qualquer perceção de alteração notória no sentido de se mostrar ultrapassada a ponderação feita no acórdão do STJ n.º 11/2013.    

Assim, perante a evidente falta de fundamentação relevante para divergir relativamente à jurisprudência uniformizada naquele acórdão, mais não resta que aplicar a jurisprudência fixada ao presente caso.

Mais não resta, pois, que conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o despacho recorrido que procedeu à alteração da qualificação jurídica e que consequentemente julgou incompetente o tribunal singular determinando a remessa dos autos ao tribunal coletivo.

      Decisão

       

             Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e revogar o douto despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento dos autos com nova designação de data para audiência de julgamento.

             Sem custas.


*

        (Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.). 

                                                                       *

Coimbra, 23 de outubro de 2019

Orlando Gonçalves (relator)

Alice Santos (adjunta)


[1]  Cfr. BMJ n.º 458º, pág. 98.
[2]  Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.
[3]  Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350.
[4] Cf. “Constituição da República Portuguesa anotada, Coimbra Ed., 4.ª ed. pág.522.
[5] Sublinhado nosso.

[6] Proc. n.º418/07.8PSBCL-A.S1, in www.dgsi.pt
[7] Código de Processo Penal anotado, Almedina, 17.ª edição, pág.s 1045 e 1046

[8] In "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, edição de 2007, pág.s 1202 e 1203 
[9] Cf. ainda, Cons. Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal comentado”, obra coletiva de Conselheiros do STJ, Almedina, 2014, pág.1591.