Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
577/15.6T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
INEXISTÊNCIA DE DESPACHO DE ARQUIVAMENTO
INEXISTÊNCIA DE ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L CRIMINAL – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 278.º, 287.º E 288.º DO CPP
Sumário: I - Na falta de despacho de arquivamento pelo MP sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução [pelo assistente].

II - Só depois de provocado um despacho do MP no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o RAI, ou seja só perante um despacho do MP expresso de arquivamento, pode reagir-se através do RAI.

III - Como tal não aconteceu, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o RAI apresentado pelo assistente recorrente.

Decisão Texto Integral:






            Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra

Nos autos de instrução criminal supra identificados que corre termos na comarca de castelo Branco, o Exmo Juiz de Instrução, em despacho de 25/01/2017 decidiu rejeitar, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, A... e B... , por inadmissibilidade legal de instrução (por falta de objecto de instrução) – cfr artº 287º, nº 3 do CPP.  

Inconformado com o despacho de rejeição de abertura de instrução dele interpôs recurso o assistente, A... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:


1. Com o presente recurso não pretende o ora Recorrente colocar em causa o exercício das mui nobres funções dos ilustres Julgadores, mas simplesmente exercer o direito de se manifestar em posição contrária, traduzida no direito de recorrer, consagrado nas alíneas a), c) do nº 2 e n.º1 do art. 69.º CPP e no n.º 1.º do art. 32.º da CRP.
2. O Assistente ora Recorrente vem recorrer do Despacho que julgou legalmente inadmissível o requerimento para abertura de instrução (RAI) apresentado pelo Recorrente A... , pelo facto de o Ministério Público, no seu despacho de arquivamento, nada refere aos crimes invocados pelo Assistente no seu RAI.
3. Com efeito, o Assistente A... , no seu RAI, acusa o Arguido C..., seja pronunciado pela prática de um crime de devassa da vida privada (artigo 192º nº 1 alínea d) do Código Penal); um crime de acesso indevido a dados pessoais (artigo 44º nº 1 e nº 2 alínea b) em conjugação com os artigos 2º, 3º alíneas a), b), c), h), 4º nº 1, 5º nº 1 alíneas a) e b) da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro; e um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão (artigo 209º nº 1 do Código Penal).
4. Entende assim, a Decisão/Despacho do Tribunal recorrido, que o Assistente não poderá reagir requerendo a instrução, mas primeiramente deve provocar a ação do Ministério Público, para depois se for o caso sindicar jurisdicionalmente a sua atuação (arquivamento ou acusação) e que essa reação só pode ocorrer no inquérito e perante o Ministério Público, de onde perante tal omissão, o assistente deve provocar ou uma tomada de decisão – alertando para a omissão de pronúncia sobre um investigado crime, pois, entende ainda que,
5. O Ministério Público está obrigado por força do princípio da legalidade a pronunciar-se sobre ele, podendo sua falta constituir nulidade por omissão de pronúncia (artigo 120º nº 1 alínea d) a arguir nos termos do artigo 120º nº 3 alínea c) do CPP),no prazo de 5 dias a contar da notificação do despacho de encerramento do inquérito, ou promover a intervenção hierárquica, nos termos do artigo 278º do CPP, de modo a que se determine que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam.
6. O Assistente ora recorrente discorda da decisão e fundamentação do Despacho proferido pelo Tribunal recorrido, por entender que o RAI apresentado pelo Assistente ora Recorrente é legalmente admissível, e não existe omissão de pronúncia no Despacho de arquivamento proferido pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, e por outro lado ainda discorda da interpretação efectuada pelo Tribunal recorrido às normas legais infra indicadas, com efeito,
7. O Recorrente A... , quando apresentou o seu RAI, na qualidade de Assistente, teve o cuidado que o mesmo obedecesse aos requisitos legais previstos no artigo 287º nº 2 em conjugação com o disposto no artigo 283º nº 3 alíneas b) e c) ambos do CPP (Código de Processo Penal), o mesmo é dizer que o Assistente/Recorrente formulou o seu RAI para que este revestisse a forma de uma verdadeira acusação, em substituição da acusação que não foi proferida pelo Ministério Público.
8. Nesta parte, a Decisão que ora se recorre não colocou em crise tal facto, pelo que o Assistente entende que o RAI obedeça aos requisitos de uma verdadeira acusação para que o mesmo seja legalmente admissível nos termos do artigo 287º nº 3 do CPP, cumprindo assim as exigências legais e mesmo constitucionais das garantias de defesa do arguido (artigo 32º nº 1 da CRP – Constituição da República Portuguesa) e em respeito da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º nº 5 da CRP), sem que daí surja qualquer limitação ao Assistente no acesso aos tribunais para fazer valer os seus direitos e pretensões (artigo 32º nº 7 da CRP).
9. Por outro lado, o que se constata da leitura do Despacho de arquivamento do Ministério Público, afirma que o arguido C... não praticou o crime de apropriação dos bens ou que tenha sido devassada a vida privada dos queixosos, neste sentido confira-se antepenúltima página do Despacho de arquivamento,
10. Sem prescindir, embora o Despacho do Ministério Público não faça menção expressa ao crime de acesso indevido a dados pessoais, mas, em boa verdade,
11. o Ministério Público afirma no Despacho de arquivamento, afirma que o arguido C... , ao realizar uma (duas) cópia(s) da conta bancária titulada pelo Assistente, e o arguido utilizá-la(s)  no âmbito de um processo judicial de que o Assistente não é parte (Executado) e usar outra cópia numa queixa ao Banco de Portugal contra uma Instituição Financeira e Bancária, que tal facto não é crime...,
12. E que o arguido ao visualizar uma caderneta bancária do Assistente, retirado de um veículo automóvel que se encontrava encerrado e do qual o arguido é fiel depositário, não pratica qualquer crime, mais que estaria excluída a ilicitude dada a prossecução de um interesse legítimo...
13. Queiram pois Venerandos Desembargadores colocar-se na posição de quem vê a sua vida pessoal (bancária) devassada, sendo certo que os dados bancários até ao presente momento estão sujeitos ao sigilo bancário, logo de acesso restrito, só as autoridades judiciais podem ter acesso às mesmas e de forma fundamentada...
14. Pelo que o Ministério Público ao afirmar que o arguido C... não praticou qualquer crime, não levanta dúvidas, quanto ao que disse que não praticou qualquer crime (incluindo todos os crime inclusive o crime de acesso indevido a dados pessoais), sendo certo que mencionou diretamente o acesso a contas bancárias por terceiros..., pelo que não se pode conceber que exista omissão de pronúncia no Despacho de arquivamento do Ministério Público.
15. Por outro lado também, o Assistente recorre do Despacho do Tribunal recorrido devido à incorreta interpretação que o Tribunal recorrido efetua dos dispositivos nos artigos 287º nº 1 alínea b) nº 2 em conjugação com o disposto no artigo 283º nº 3 alíneas b) e c) e ainda ao artigo 287º º 3 CPP, quanto ao que seja a inadmissibilidade legal do RAI do Assistente (como acusação) jurisprudência desse Douto Tribunal Superior (Relação de Coimbra), com efeito,
16. O Tribunal da Relação de Coimbra entende que a inadmissibilidade legal da instrução (RAI) tem a ver com requisitos de forma e não com a substância do RAI, ou seja, o RAI do Assistente deve conter os factos susceptíveis de se preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime ou de outro tipo ilícito que possam fundamentar a aplicação de uma pena ao arguido e que lhe compete identificar as disposições legais aplicáveis, e foi o que o Assistente fez (cfr. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 09/01/2017, processo nº 2588/15.2T9VIS.C1) (cfr. Ac. Tribunal da Relação de Coimbra de 15/04/2015, processo nº 2393/12.8TACBR.C1).
17. Por outro lado quanto à interpretação que o Tribunal recorrido efetua do dispositivo do artigo 120º nº 1 alínea d) em conjugação com o disposto no artigo 120º nº 3 alínea d) do CPP, não se aplica aos presentes autos porquanto, não houve qualquer insuficiência do inquérito, não houve qualquer omissão de atos legalmente obrigatórios no inquérito ou omissão posterior de diligências  que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, tal não ocorreu na fase de inquérito, e,
18. e muito menos com o que foi proferido no Despacho de arquivamento do Ministério Público, como se invocou acima pois aí se menciona os crimes de devassa da vida privada e de apropriação ilegítima de bens, e,
19. relativamente ao acesso de uma caderneta bancária do Assistente por parte do arguido C... , efectuar fotocópias do conteúdo da caderneta bancária (dados bancários que estão sujeitos a sigilo bancário) e o arguido usar as fotocópias em processos em que o Assistente não é parte, nomeadamente num processo judicial e numa queixa ao Banco de Portugal, que tal não crime... (não tipifica a prática de qualquer crime – usando a expressão usada pelo Ministério Público).
20. Finalmente, o Assistente discorda da interpretação que o Tribunal recorrido efetua no Despacho ora recorrido, quanto ao invocado no artigo 278º do CPP, com efeito,
21. o artigo 278 º nº 1 refere-se à intervenção do superior hierárquico do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que proferiu o Despacho de arquivamento em apreço, mas..., só se pode requerer a sua intervenção no prazo de 20 a contar da data em que a abertura da instrução não puder ser requerida, ora,
22. o Assistente estava dentro do prazo legal para requerer a abertura da instrução, pelo que o Recorrente nunca poderia recorrer a este mecanismo legal,
23. recorde-se que o Assistente foi notificado por Ofício dos Serviços do Ministério Público com data de 10/11/2016 e o Assistente apresentou o seu RAI no dia 30/11/2016... i.e., dentro do prazo legal para a abertura da instrução,
24. nesse caso, seguindo entendimento do Despacho recorrido, mas considerando o texto do dispositivo legal, cometeria o Assistente uma ilegalidade... confira-se pois os autos.
25. Por outro lado o Tribunal ao querer “obrigar” o Assistente a recorrer à figura da intervenção do superior hierárquico, acaba por privar o Assistente do direito de opção de requerer a abertura da instrução ao invés de suscitar a intervenção hierárquica do superior do Digníssimo Magistrado do Ministério Público que proferiu o Despacho de arquivamento, que se encontra consagrado no artigo 278º nº 2 do CPP.
26. Pelo que o Assistente tem a convicção que o Tribunal da Relação de Coimbra, não deixará de retificar a decisão/Despacho que ora se recorre, que Vªs. Exªs, profiram Acórdão, revogando a decisão que julgou legalmente inadmissível o requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo Assistente A... ,
27. e substitua por outra que reconheçam a admissibilidade legal do RAI do Assistente, e em consequência, que se ordene a abertura da instrução.
Nestes termos, atendendo que o Direito Penal é oficioso, diremos ainda que Vªs. Exªs. colmatarão qualquer deficiência no alegado.
Contando sempre com o mui douto suprimento de Vªs. Exas. Venerandos Desembargadores, requer-se mui humilde e respeitosamente a procedência do presente recurso e profiram Acórdão revogando o Despacho do Tribunal recorrido que julgou legalmente inadmissível o requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo Assistente A... , e substitua por outra decisão que reconheçam a admissibilidade legal do RAI apresentado pelo Assistente, e em consequência, que se ordene a abertura da instrução, assim, estarão V. Exas. a fazer humana e sã JUSTIÇA.
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
Constituição da República Portuguesa: artigo 32º nº 1, nº 5 e nº 7.
Código de Processo Penal:
            artigos 120º nº 2 alínea d) conjugado com artigo 120º nº 3 alínea c);
            artigo 278ºnº 1 e nº 2;
            artigos 287º nº 1 alínea b), nº 2 conjugado com o artigo 283º nº 3 alíneas b) e c), artigo 287º nº 3.

            Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

É este o despacho recorrido:

D... deduziu acusação particular contra o arguido B... (cfr. folhas 389 a 398), imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos arts. 180.º,n.°1, e 183.°, n.°1, alínea b), do Código Penal.

*

C... deduziu acusação particular contra o arguido B... (cfr. folhas 402 a 410), imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos arts. 180.°, n.°1, e 183.°, n.°1, alínea b), do Código Penal.

*

Findo o inquérito, em 26.09.2016, o Ministério Público:

a)         Determinou o arquivamento dos autos, nos termos do art. 277.°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Penal, relativamente aos factos constantes da queixa apresentada por B... e E... contra F... , C... , D... e G... ;

b)         Acompanhou as acusações particulares respetivamente deduzidas pelos assistentes D... e C... .

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O assistente A... veio requerer a abertura de instrução (cfr. folhas 471 a 487), pugnando para que o arguido C... seja pronunciado pela prática de: um crime de devassa da vida privada, previsto e punido pelo art. 192.°, n.°1, alínea d), do Código Penal; um crime de acesso indevido a dados pessoais, previsto e punido pelo art. 44•0, n.°s 1 e 2, alínea b), em conjugação com os arts. 2.°, 3•0, alíneas a), b), c), h), 4•0, n.°1, 5•0, n.°1, alíneas a) e b), da Lei n.°67/98, de 26.10; e um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão, previsto e punido pelo art. 209.°, n.°1, do Código Penal.

Cumpre, preliminarmente, apreciar e decidir da admissibilidade legal do referido requerimento para abertura de instrução, uma vez que o Ministério Público não se pronunciou acerca dos referidos crimes, no despacho de arquivamento proferido a folhas 411 a 420.

O art. 286.° do Código de Processo Penal dispõe, no seu n.°1, que:

«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».

Dispõe o n.°2 do art. 287.° do Código de Processo Penal que:

«O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.° 3 do artigo 283.°. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas».

Em termos gerais, na fase processual da instrução (autónoma e de carácter facultativo) visa-se a comprovação judicial ou controlo jurisdicional das seguintes decisões:

i)          da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;

ii)         da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido; e/ou

iii)        do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.

Com efeito, «a instrução não se destina a repetir ou a "completar" o inquérito ou a sindicar a investigação, apenas a fiscalizar a decisão que põe termo ao inquérito» (cfr. Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pp. 999), resultando num despacho de pronúncia quando forem recolhidos indícios suficientes da prática do crime pelo arguido, ou num despacho de não pronúncia quando os indícios forem insuficientes ou quando se conheçam e se declarem nulidades ou outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

Contudo, no caso em apreço, o Ministério Público nada refere quanto aos crimes de devassa da vida privada, previsto e punido pelo art. 192.°, n.°1, alínea d), do Código Penal; de acesso indevido a dados pessoais, previsto e punido pelo art. 440, n.°s 1 e 2, alínea b), em conjugação com os arts. 2.°, 30, alíneas a), b), c), h), 40, n.°1, 5•0, n.°1, alíneas a) e b), da Lei n.°67/98, de 26.10; e de apropriação ilegítima em caso de acessão, previsto e punido pelo art. 209.°, n.°1, do Código Penal, invocados por A... , no requerimento para abertura de instrução, apresentado nestes autos.

Acompanhamos, neste particular, a fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30.04.2014, proc. n.°1059/11.0GBPNF-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, do qual consta o seguinte:

«Como expressa Germano M. da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, verbo, 3•a Ed., 2009, pp. 151, "A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para a abertura da instrução", pelo que se não existe arquivamento não pode haver instrução, pois sendo a instrução neste caso um ato de sindicância da legalidade da atuação do Ministério Público, nada há para sindicar ainda. Não se pode falar de um arquivamento implícito, que seria inadmissível face ao princípio da legalidade, por revestirem a qualidade de atos decisórios que devem ser escritos e fundamentados (art. 970, n.°s 3, 4 e 5, do Código de Processo Penal), mas apenas e só de uma ausência de decisão quanto a determinado facto, pois o requerente de um requerimento para abertura de instrução nunca poderia indicar as razões da sua discordância "relativamente à não acusação" (art. 287.°, n.°2, do Código de Processo Penal). Assim, parece-nos que o assistente não poderá reagir requerendo a instrução mas primeiramente deve provocar a ação do Ministério Público, para depois se for o caso sindicar jurisdicionalmente a sua atuação (de arquivamento ou acusação). Ora, tal reação apenas pode ocorrer no inquérito e perante o Ministério Público, de onde perante tal omissão, o assistente deve provocar ou a tomada de uma decisão - alertando para a omissão de pronúncia sobre um investigado ou denunciado crime (e na medida em que o tenha sido), pois o Ministério Público está obrigado também por força do princípio da legalidade a pronunciar-se sobre ele, podendo a sua falta constituir nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 120.°, n.°1, alínea d), a arguir nos termos do art. 120.º , n.°3, alínea c), no prazo de cinco dias a contar da notificação do despacho do encerramento do inquérito, ou promover a intervenção hierárquica, nos termos do art. 278.° de modo a que se determine que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam. Em alternativa, e para o caso de se verificarem novos elementos (v..g. porque o arquivamento ocorreu por falta ou insuficiência de prova) poderá sempre ser requerida a reabertura do inquérito (o que, no nosso caso, não se mostra que esteja em causa). ( ... ) Daqui resulta assim, que na falta de despacho de arquivamento pelo Ministério Público sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução. Só depois de provocado um despacho do Ministério Público, no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o requerimento para abertura de instrução, ou seja, só perante um despacho do Ministério Público expresso de arquivamento, pode reagir-se através do requerimento para abertura de instrução. Caso tal não aconteça, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente recorrente".

No caso concreto, inexiste despacho de arquivamento pelo Ministério Público sobre os crimes invocados.

Por essa razão, o requerimento para abertura de instrução apresentado nestes autos pelo assistente A... não é legalmente admissível obrigando, consequentemente, à rejeição daquele requerimento nos termos do art. 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

Nada mais resta, por isso, do que decidir em conformidade com o exposto.

*

O assistente B... veio requerer a abertura de instrução (cfr. folhas 508 a 516), pugnando pela pronúncia de C... , D... e G... .

O assistente imputa, assim, à arguida G... a prática de um crime de falsas declarações, previsto e punido pelo art. 348.°-A, n.°2, do Código Penal, alegando que esta "mentiu em sede de inquérito".

Ora, dando aqui por integralmente reproduzidas os fundamentos acima expostos (a propósito do requerimento para abertura de instrução apresentado nestes autos pelo assistente A... ), verifica-se que inexiste despacho de arquivamento sobre o referido crime, cometido, segundo o assistente, no decurso do próprio inquérito.

Por essa razão, o requerimento para abertura de instrução apresentado nestes autos, nesse particular, pelo assistente B... não é legalmente admissível obrigando, consequentemente, à rejeição parcial daquele requerimento nos termos do art. 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal.

*

Através do mesmo requerimento para abertura de instrução, o assistente B... imputou a C... e a D... a prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203.° e 204.°, n.°2, do Código Penal, com referência ao art. 202.°, alínea b), do mesmo Código.

Contudo, nenhuma conduta é imputada objectivamente aos arguidos.

O assistente limita-se a alegar que constatou que tinham desaparecido da sua casa bens e valores (cfr. ponto 6.° do requerimento para abertura de instrução), os quais não ficaram a constar do auto de penhora.

Nada mais refere acerca da atuação objectiva dos arguidos.

O requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se tome inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronuncia.

A estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com

natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que as deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência por acórdão de 12.05.2005 (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 7/2005, publicado no D.R.- 1 Série A de 04.11.2005) nos termos seguintes:

"Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.°, n.°2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".

Já no que concerne às consequências da inobservância do preceituado no art. 287.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.°, n.° 3, alíneas b) e c) do mesmo diploma legal.

Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309.° do Código de Processo Penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento - por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283.°, n.° 3, alíneas a) e b) do Código de Processo Penal -, implica a sua nulidade, tomando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

A inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento - como referido no acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001: "(...)na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir - na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido". Ainda segundo este aresto: "(...) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito".

No caso concreto, e como acima se referiu, o assistente não elementos típicos de qualquer ilícito.

Assim, entendo que o requerimento de abertura de instrução não obedece ao que se estatui no citado art. 287.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, por referência ao art. 283.°, n.° 3, alíneas b) e c), do mesmo diploma legal.

Por conseguinte, tal requerimento é nulo, sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução; tudo implicando que seja rejeitado, nos termos do art. 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução.

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Decisão

Pelo exposto, e nos termos dos acima citados normativos legais, decido:

a) Julgar legalmente inadmissíveis os requerimentos para abertura de instrução, apresentados, respetivamente, pelos assistentes A... e B... .

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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335).

Cumpre decidir:
O Assistente, A... , no seu RAI, pretende que o Arguido C... , seja pronunciado pela prática de um crime de devassa da vida privada (artigo 192º nº 1 alínea d) do Código Penal); um crime de acesso indevido a dados pessoais (artigo 44º nº 1 e nº 2 alínea b) em conjugação com os artigos 2º, 3º alíneas a), b), c), h), 4º nº 1, 5º nº 1 alíneas a) e b) da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro; e um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão (artigo 209º nº 1 do Código Penal).

            Portanto, o assistente imputa ao arguido C... a prática de três crimes - devassa da vida privada, acesso indevido a dados pessoais, de apropriação ilegítima em caso de acessão - que tem natureza semipúblico pois o procedimento criminal depende de queixa, e como tal o assistente não pode acusar desacompanhado do MºPº, pois que nos termos do artº 284º1 CPP o assistente apenas “pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.”, ora no caso o MºPº não acusou por tal tipo de crime, pelo que também o assistente não o pode fazer.

Nesta circunstancia o juiz apenas poderá conhecer desse crime em julgamento se tal feito for introduzido em juízo, e só o poderá ser se tiver ocorrido pronuncia.

Mas para que haja pronuncia e instrução, diz-nos o artº 286º1 CPP que esta “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, necessário será que tenha ocorrido acusação (que não houve) ou arquivamento.

Através da instrução visa-se reagir contra um despacho de arquivamento, por se considerar que tal não devia ocorrer.

Só que como se vê dos autos o MºPº nada refere quanto aos crimes aqui em questão, ao contrário do sustentado pelo assistente,

não proferindo acusação quanto a eles nem proferindo despacho de arquivamento, pelo que parece não haver decisão contra a qual reagir através do requerimento de instrução.

Como refere Germano M. da Silva, Curso de Proc Penal, III, verbo, 3ª ed 2009, pág. 151 “ A decisão de arquivar o inquérito é um pressuposto do requerimento do assistente para abertura da instrução”, pelo que se não existe arquivamento não pode haver instrução, pois sendo a instrução neste caso um acto de sindicância da legalidade da actuação do MºPº nada há para sindicar ainda. Não se pode falar de um arquivamento implícito, que seria inadmissível face ao princípio da legalidade mas também por revestirem a qualidade de actos decisórios que devem ser escritos e fundamentados (artºs 97º3, 4 e 5 CPP), mas apenas e só de uma ausência de decisão quanto a determinado facto, pois o requerente do RAI nunca poderia indicar as razões da sua discordância “relativamente à não acusação” ( artº 287º2 CPP)

Assim parece-nos que o assistente não poderá reagir requerendo a instrução mas primeiramente deve provocar a acção do MºPº, para depois se for o caso sindicar jurisdicionalmente a sua actuação (de arquivamento ou acusação).
Ora tal reacção apenas pode ocorrer no inquérito e perante o MºPº, donde perante tal omissão, o assistente deve provocar ou a tomada de uma decisão - alertando para a omissão de pronuncia sobre um investigado ou denunciado crime (e na medida em que o tenha sido), pois o MºPº está obrigado também por força do principio da legalidade a pronunciar-se sobre ele, podendo a sua falta constituir nulidade por omissão de pronuncia, nos termos o artº 120º1d) a arguir nos termos do artº 120º3c) no prazo de 5 dias a contar da notificação do despacho do encerramento do inquérito, - ou promover a intervenção hierárquica, nos termos do artº 278º de modo a que se determine que seja formulada acusação ou que as investigações prossigam; Em alternativa, e para o acaso de se verificarem (novos elementos, v.g. porque o arquivamento o correu por falta ou insuficiência de prova) poderá sempre ser requerido a reabertura do inquérito (o que no nosso caso não se mostra que esteja em causa). ( Neste sentido Ac. Rel Porto de 30/4/2014.proc, nº 1059/11.0GBPNF-A.P1).

Também em sentido idêntico a mesma Relação no ac. de 26/9/2012, processo 276/10.5JAPRT-A.P1, in www.dgsi.pt “II - Não havendo despacho de arquivamento dos autos quanto a um determinado indivíduo, que também não foi abrangido pela acusação, resta ao assistente, verificados os respectivos pressupostos, requerer a intervenção hierárquica ou a reabertura do inquérito [art. 278.º e 288.º do CPP].”

Daqui resulta assim, que na falta de despacho de arquivamento pelo MºPº sobre determinado crime denunciado não pode ser requerida a abertura de instrução. Só depois de provocado um despacho do MºPº no sentido de acusar ou arquivar é que pode ser apresentado o RAI, ou seja só perante um despacho do MºPº expresso de arquivamento, pode reagir-se através do RAI;

Como tal não aconteceu, não é admissível a instrução, e como tal deve ser rejeitado o RAI apresentado pelo assistente recorrente.

           

Assim, não nos merece qualquer censura o despacho recorrido.

           

            Nestes termos, se decide, negando provimento ao recurso, confirmar o despacho recorrido.


Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 uc (artº 513 do CPP e artº 8º nº 5 e tabela III do RCP).

Coimbra, 13 de setembro de 2017

(Alice Santos- relatora)

(Abílio Ramalho- adjunto)