Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
92/13.2TBLSA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PRIVADO
ACTOS DE GESTÃO PÚBLICA
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: AL. I) DO ART.º 4.º DO ETAF
Sumário: Visando a autora efectivar a responsabilidade civil de pessoa colectiva de direito privado por alegada acção lesiva levada a cabo no exercício das suas prerrogativas de direito público -danos causados na condução de processo expropriativo, em relação ao qual a demandante é alheia- estamos perante acção de responsabilidade civil por acto ilícito cuja competência é hoje atribuída, por força do disposto na al. i) do art.º 4.º do ETAF, ao foro administrativo.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

No Tribunal Judicial da Lousã,

A..., Lda., com sede na ..., Lousã, instaurou contra EP – Estradas de Portugal, S.A., com sede na Praça da portagem, em Almada, acção declarativa de condenação, a seguir a forma ordinária do processo, pedindo a final a condenação da demandada a indemnizá-la “por todos os danos emergentes da apropriação ilícita dos prédios descritos no artigo 12º da PI, danos esses que se traduzem, globalmente considerados, na privação temporária do uso pleno do estabelecimento da A. e na sua posterior relocalização, com todos os custos e encargos inerentes, directa ou indirectamente elencados a PI, em quantia sempre superior a 750.000,00€ (setecentos e cinquenta mil euros), montante a que acrescem os juros de mora devidos, calculados à taxa legal supletiva de juros civis, desde a citação até efectivo e integral pagamento”.
Em fundamento alegou, em síntese, que corre termos no Tribunal Judicial da comarca da Lousã sob o n.º 917/08.4TBLSA processo de expropriação, sendo expropriante a aqui ré e expropriados A... e mulher, o qual tem por objecto a parcela n.º 24, com a área total de 1756 m2, a destacar do prédio rústico sito na freguesia da Lousã, inscrito na matriz da mesma freguesia sob os artigos 3844 e 3846. Sucede, porém, que no decurso do referido processo expropriativo a demandada, sem o seu consentimento e fazendo uso de maquinaria pesada, procedeu, no início de Março de 2010, à demolição de dois armazéns implantados naquele prédio, os quais se encontravam inscritos na matriz urbana da sobredita freguesia sob os artigos 9029.º e 4936.º. Tais imóveis, que não se encontravam abrangidos pela declaração de utilidade pública, pertenciam à demandante, que os adquirira por usucapião, que expressamente invoca, e neles instalara estabelecimento, o qual explorava no âmbito da sua actividade de carga e descarga, montagem e comercialização de pneus, assim como de mudança/venda de óleos e venda de derivados petrolíferos vários, entre outros produtos.
Mais alegou que na sequência da referida demolição a ré passou a fazer uso da área assim desocupada, aí tendo montado o seu estaleiro e procedendo ao alisamento de terras, privando temporariamente a demandante do uso do estabelecimento que nos demolidos armazéns instalara e explorava, obrigando a relocalizá-lo, com o que sofreu os prejuízos cujo ressarcimento reclama.
A ré contestou arguindo, além do mais, a excepção dilatória de incompetência material do Tribunal por entender que as acções, como a dos autos, destinadas a efectivar a responsabilidade civil da EP – Estradas de Portugal, S.A. com fundamento em exercício abusivo das suas funções de administração e gestão do património do Estado, no caso, a condução de processo expropriativo, e na qualidade de dona da obra pública cuja realização determinou a ocupação de áreas para além das expropriadas, são da competência dos tribunais administrativos.
A autora replicou, pugnando pela improcedência da excepção, defendendo ter radicado a pretensão material que formula no instituto da “via de facto”, o qual assenta na violação ilícita, ao arrepio de qualquer acto ou decisão administrativa, de direitos privados de conteúdo patrimonial, encontrando-se subtraídos à jurisdição administrativa conforme vem sendo tradicionalmente decidido, tendo identificado jurisprudência conforme à tese por si defendida.
Em sede de prolação do despacho saneador a Mm.ª juíza julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta daquele Tribunal Judicial da Lousã e, fazendo apelo ao disposto nos artigos 101.º, 105.º, n.º 1, 493.º, nºs 1, e 2, 494.º, alínea a), 495.º e 510.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, absolveu a ré da instância.[1]
Inconformada, recorreu a autora e, tendo produzido alegações, rematou-as com as seguintes necessárias conclusões, que se transcrevem:
“1.ª- O despacho de fls., debalde douto, deve ser revogado.
2.ª- 2. O Tribunal “a quo” fez uma errada subsunção normativo-legal da factualidade articulada na PI de fls. – i.e., da causa de pedir – concluindo, sem fundamento, pela competência da jurisdição administrativa, em detrimento da competência da jurisdição comum.
3.ª- Com todo o devido respeito pelo Tribunal recorrido – que muito é –, cremos que esta decisão poderia ter sido evitada se tivesse sido levada em linha de conta a argumentação expendida pela A. em sede de réplica e, em particular, a jurisprudência recenseada nesse articulado de fls.
4.ª- Isto porque, o que está em causa é saber se, à luz da composição factual emergente da causa de pedir, estamos, ou não, perante um caso de “via de facto”, a cair no âmbito material de competência dos Tribunais Comuns (o que o Tribunal recorrido, aparentemente, não nega…),
5.ª- Ou se, inversamente, estamos perante uma hipótese de responsabilidade civil extracontratual do Estado ou de entes públicos equiparados (nos quais, reconhecidamente, cabe a R.), caso em que, como é pacífico, a competência material é dos Tribunais Administrativos.
6.ª- Ora, com todo o devido respeito, atendendo à forma como a relação material controvertida é configurada na PI de fls. – ponto de partida obrigatório da avaliação material a fazer –, filtrada à luz da mais recente jurisprudência dos nossos tribunais superiores (de ambas as jurisdições), dúvidas não temos de que o Tribunal Judicial da Lousã (e, por conseguinte, a jurisdição comum) é materialmente competente para o litígio em causa.
7.ª- E, para o dizermos, comecemos pela argumentação expendida pelo Tribunal recorrido (posto o que, compulsaremos a argumentação aduzida na réplica de fls., que o Tribunal “a quo” desconsiderou olimpicamente, não lhe dedicando, sequer, umas vagas linhas…).
8.ª- O Tribunal “a quo”, após um longo excurso puramente teórico e de formulação exclusivamente abstracta, entende – com fundamento em douto Acórdão do STJ, de 19.03.1998 (ver sentença de fls.) – que, para se verificar uma situação de via de facto, importa que ocorram, cumulativamente, três condições: A existência de uma actividade material de execução por parte da Administração; Que daquela actividade material resulte um grave atentado a um direito de propriedade do particular; Que a referida actuação da Administração enferme de uma ilegalidade de tal forma flagrante, grave e indiscutível que seja “manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração” (cfr. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, págs. 172 e sgs. – acórdão citado).
9.ª- Ora, considera o Tribunal recorrido – embora sem o fundamentar convenientemente, dentro da linha de argumentação abstracta que percorre a sentença de fls. – que este último pressuposto não se verifica.
10.ª- Ou seja, que não estamos perante uma ilegalidade grave e indiscutível, manifestamente insusceptível de ser reconduzida ao exercício de um poder de natureza pública (i.e., à função administrativa).
11.ª- E quais são, nessa matéria, os concretos argumentos do Tribunal recorrido?
12.ª- Diz o Tribunal “a quo” que “No caso vertente, estão em causa eventuais danos causados à autora na sequência de processo expropriativo necessário à execução da obra da EN 236 – ligação à Lousã (cfr. artigo 3.º da petição inicial), levada a efeito pela ré.”.
13.ª- Depois de uma análise (sempre…) abstracta da configuração jurídica da Estradas de Portugal – e dos poderes que lhe estão conferidos pelo Estado –, conclui o Tribunal recorrido que “Do exposto resulta que as acções e omissões da ré são reguladas por disposições e princípios de direito administrativo. Por outro lado, seguindo de perto o entendimento perfilhado no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03.03.2004, a conduta da ré não configura “via de facto”, por não se verificar o terceiro requisito, ou seja o de a conduta ser “manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração”.
14.ª- Ora, quanto ao 1º argumento, como é evidente, nem todas as acções e omissões da R. são reguladas por normas de direito público (dada a sua configuração de empresa de capitais públicos, integrada no sector empresarial do Estado, a EP desenvolve a sua actividade tanto com recurso a poderes de autoridade, e no âmbito da gestão pública, como nas estritas vestes de um agente económico privado).
15.ª- Quanto ao 2º argumento, apenas podemos concluir, dada a singeleza do raciocínio, que o Tribunal “a quo” se “colou” ao sobredito Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.03.2004.
16.ª- O que, em nosso modesto entender, sempre seria possível se a situação aí apreciada fosse materialmente equiparável àquela apreciada nestes autos.
17.ª- Todavia, lido atentamente tal Aresto, verifica-se que a hipótese aí apreciada consiste na verificação de danos colaterais em propriedade privada, na sequência dos trabalhos de construção desenvolvidos ao abrigo – et pour cause – dos poderes públicos delegados pelo Estado na Estradas de Portugal (no então ICOR).
18.ª- Mais concretamente, com danos em habitação decorrentes da trepidação causada por trabalhos de movimentação de terras.
19.ª- Hipótese que não coincide com a do caso dos presentes autos.
20.ª- A situação “sub iudice” é, prosaicamente, a seguinte: a entidade expropriante, por si ou por intermédio de concessionário, ocupa prédio não abrangido (formalmente) pelo título legalmente habilitante da expropriação, a DUP 12.
21.ª- Ou seja, e sempre considerando a forma como a causa de pedir está articulada, a R. viola o direito de propriedade da A., sem título legal para o efeito.
22.ª- Ora, a moderna jurisprudência – note-se que os dois Arestos que sustentam, em suma, a posição do Tribunal recorrido têm mais de 9 anos – considera, sem sombra de dúvidas, que a ocupação ilegítima, por entidade pública, e ainda que no âmbito de processo de expropriação legalmente autorizado, de terreno não incluído na DUP (ou seja, excesso de expropriação), configura uma situação de via de facto.
23.ª- Donde, uma situação que exorbita, manifestamente, do exercício de poderes públicos.
24.ª- Nesse conspecto, citamos aqui – como fizemos na réplica de fls. (infelizmente, totalmente desatendida pelo Tribunal recorrido) –, o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 22.11.2012 (recentíssimo, portanto), tirado no processo nº 05515/09, relatado pela Exm.ª Sr.ª Juíza Desembargadora Sofia David, disponível em www.dgsi.pt.
25.ª- Logo no sumário desse Douto Aresto pode ler-se que “Os tribunais administrativos são absolutamente incompetentes quer para fixar a indemnização devida pela expropriação de parcelas de terreno, quer para garantir os direitos dos particulares em situações de «via de facto» – isto é, quando um órgão da Administração em flagrante ilegalidade e em flagrante violação dos direitos desse particular ocupa a sua propriedade, apoderando-se dela, designadamente ocupando e construindo num terreno sem que antes haja qualquer início do processo expropriativo ou uma declaração de utilidade pública ou havendo-a, quando exceda qualitativa e quantitativamente o âmbito da declaração de utilidade pública.”. (sublinhado e negrito nosso)
26.ª- Ora, compulsado este doutíssimo Aresto – e a variada jurisprudência que concita – facilmente constatamos a falta de justeza da decisão recorrida.
27.ª- Havendo processo expropriativo em curso, mas desviando-se a administração (directa ou indirecta, ainda que empresarial) ou o concessionário das balizas estabelecidas pelo acto ablativo – tanto quantitativamente, como qualitativamente –,
28.ª A sua actuação sai da esfera de actuação pública, e reconduz-se a uma estrita actuação de direito privado.
29.ª- Foi isto, com o devido respeito, que o Tribunal de 1ª Instância não alcançou.
30.ª- Vejamos, agora, se a fattispecie invocada na PI de fls. se reconduz a esta concreta hipótese de “via de facto”.
31.ª- Ora, tal resulta meridianamente claro tanto da causa de pedir – cf. artigo 20º e ss. da PI, epigrafados de “Da ilicitude – As vias de facto”, e, entre o mais, cf. artigos 68º e ss. daquela peça, que se dá aqui por integralmente reproduzida –,
32.ª- Como do pedido, onde se requer seja a R. condenada a “(…) a indemnizar a A., por todos os danos emergentes da apropriação ilícita dos prédios descritos no artigo 12º da PI (…)”.
33.ª- Assim, no caso concreto, atenta a causa de pedir e o pedido formulado pela A., a competência para dirimir o presente litígio pertence aos Tribunais da jurisdição comum, porquanto a acção vertente não se erige sob o instituto da responsabilidade civil do Estado ou de entes públicos equiparados (cf. Lei nº 67/2007, de 31.12), mas sim, e diversamente, sob o instituto da “via de facto”, associado à actuação ilícita de órgãos administrativos, em condições equiparáveis às de um qualquer privado, em violação de direitos previstos e protegidos pela lei civil (v.g., a propriedade).
34.ª- Donde, e em conclusão, deve revogar-se a sentença recorrida de fls., julgando-se materialmente competente para apreciar os presentes autos o Tribunal Judicial da Lousã (enquanto instância judicial integrada na jurisdição comum), ordenando-se, concomitante e consequentemente, o prosseguimento dos autos até final, com todas as legais consequências”.
*
A apelada contra alegou e, tendo suscitado a título de questão prévia a intempestiva interposição do recurso, por entender aplicável o prazo reduzido de 15 dias nos termos do art.º 691.º, n.ºs 2, al. b) e 5, defendeu naturalmente, para o caso do seu objecto vir a ser conhecido, a manutenção do julgado.
*
Questão Prévia
O recurso foi admitido mas nas contra alegações a ré veio suscitar a questão prévia da sua intempestividade, por entender ser aplicável o prazo mais curto de 15 dias consagrado no art.º 691.º, n.ºs 2, al. b) e 5 do CPC.
Previamente, cumpre esclarecer que, tendo o recurso sob apreciação sido interposto em data anterior à da entrada em vigor do novo CPC, o normativo a atender é o art.º 691.º, na redacção emergente do DL 303/2007, de 24 de Agosto.
O identificado diploma, tendo consagrado o sistema monista de recursos, veio integrar na apelação, quer os recursos interpostos das decisões finais de procedência ou improcedência, quer os despachos de indeferimento liminar, decisões de absolvição da instância e, bem assim, para o que ora importa, de decisões interlocutórias que não ponham termo ao processo.
Nos termos do art.º 691.º, cabe recurso autónomo e imediato das decisões que ponham termo ao processo (vide n.º 1) e, bem assim, das elencadas no n.º 2 do preceito. O prazo de interposição dos recursos ordinários de decisões finais é de 30 dias (art.º 658.º, n.º 1), sofrendo uma redução para 15 dias nos processos urgentes e, para o que ora importa, quando esteja em causa decisão que aprecie a competência do Tribunal (art.º 691.º, n.º 2).
Verifica-se assim que, no caso em apreço, temos, por um lado, uma decisão que põe termo ao processo, pelo que o prazo aplicável seria o prazo-regra, sendo certo que, por outro, a mesma decisão apreciou a competência do Tribunal, dando aparentemente lugar à aplicação do prazo reduzido.
O conflito suscitado por esta aparente sobreposição de normativos há-de ser resolvido com recurso aos critérios interpretativos consagrados no art.º 9.º do Código Civil. Deste modo, afigura-se que a lei, ao declarar que cabe recurso da decisão que aprecie a competência do Tribunal, teve claramente em vista aquelas situações em que a decisão proferida não pôs termo ao processo, caso em que o recurso da decisão interlocutória sobe autónoma e imediatamente, dispondo a parte que decaiu do prazo curto de 15 dias para interpor o recurso (art.º 691.º, n.º 2 b) e n.º 5); inversamente, quando a decisão recorrida integrar também a previsão do n.º 1 -caso regra dos recursos de apelação- e, concluindo pela incompetência do Tribunal, ponha termo ao processo, o prazo para interposição de recurso é o ordinário de 30 dias, não procedendo aqui as razões de celeridade que impõem o encurtamento do prazo nos casos em que o processo continua a decorrer, determinado pela necessidade de definir a situação controvertida, evitando eventual prática de actos inúteis (cf., neste preciso sentido, aresto desta mesma Relação de 27/10/2009, processo n.º 2288/08.0 TJCBR-AC.1).
Ora, tendo a presente decisão julgado o Tribunal incompetente, assim pondo termo ao processo, integra a previsão do n.º 1 do art.º 691.º do CPC termos em que, tendo a apelante interposto o recurso dentro do prazo de 30 dias contados da notificação, é o mesmo tempestivo.
*
Sabido que pelas conclusões se delimita o objecto do recurso, constitui aqui única questão a decidir determinar se o Tribunal competente é o Judicial da Lousã ou o litígio deverá ser antes dirimido pela jurisdição administrativa.

*

II Fundamentação
Importando à decisão os factos relatados em I., dir-se-á, preliminarmente, que a competência (no caso jurisdição) de um Tribunal se afere face à identidade das partes e pretensão deduzida pelo autor, iluminada pelos respectivos fundamentos, irrelevando, pois, quer a adequação da providência requerida, quer o respectivo mérito.
O art.º 212.º- n.º 3 da CRP estabelece que: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Por seu turno, e nos termos do art.º 211.º, n.º 1 da Lei Fundamental “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, do que decorre a consagração do princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns, reafirmado no art.º 66.º do CPC, na versão aqui aplicável.
No art.º 212.º. n.º 3 “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4.º)”.[2]
Ainda a propósito da interpretação deste preceito constitucional, ponderou-se no aresto do Tribunal de Conflitos de 23 de Janeiro de 2008 (conflito n.º 17/07, acessível em www.dgsi.pt), que versou extensamente sobre a questão que nos ocupa: “Deste modo, o artigo consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos. E o primeiro problema que a sua interpretação suscita é o de saber se a reserva é absoluta, quer no sentido negativo, quer no sentido positivo, implicando, por um lado, que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro lado, que só eles poderão julgar tais questões. (…) é dominante a interpretação com o sentido de que a cláusula consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material. (…) Esta última linha de leitura, que não é repelida pelo texto (que não diz explícita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas) assenta na ideia de que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do n.º 3 do art.º 214.° foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos, tem sido acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [vide, entre outros, os acórdãos n.º 372/94 (in DR II Série, n.º 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR II Série, n.º170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003].
Este entendimento é, também, o da jurisprudência maioritária do STA (vide, por exemplo, os acórdãos do Pleno de 1998.02.18 - rec. n.º 40247 e da Secção de 2000.06.14 - rec. n.º 45633, de 2001.01.24 - rec. n.º 45636, de 2001.02.20 – rec. n.º 45431 e de 2002.10.31 - rec. n.º 1329/02).
Não se vê razão para divergir desta interpretação. Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode, sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas».
O ETAF[3] veio consagrar a regra de que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (cf. art.º 1.º, n.º 1).
Resulta assim, quer da Constituição, quer do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que, abandonado o pretérito critério da natureza do acto -de gestão pública ou gestão privada-, a competência material dos tribunais administrativos é hoje delimitada fazendo apelo a um critério substantivo, assente no conceito de relação jurídica-administrativa.
Um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será aquele que envolva uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal, assim como aquele que se inscreva em relações que conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou ainda que atribuem direitos ou impõem deveres públicos aos particulares perante a Administração (cf., neste sentido, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25/01/2007, processo nº 019/06, acessível em www.dgsi.pt).
Não obstante a adopção do enunciado critério, no reconhecimento de que dispunha de uma certa margem de liberdade de conformação na transposição do preceito constitucional, o legislador ordinário não deixou de afirmar presidir ao novo ETAF a declarada intenção de “ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns.
A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (…)” (cf. a exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem, citada no acórdão do Tribunal de Conflitos referente ao conflito 17/07 supra identificado).
O art.º 4.º do ETAF define o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal segundo a técnica do elenco não taxativo, quer dando exemplos, pela positiva, dos litígios nela incluídos (cf. n.º 1) quer, pela negativa, daqueles que dela se encontram excluídos (cf. n.ºs 2 e 3)[4].
Da análise do preceito logo se constata que, se as primeiras alíneas do n.º 1 dizem respeito a relações que observam inequívoca e claramente o referido conceito de matriz constitucional, afigura-se, ante a previsão das als. g), h) e i), atinentes à responsabilidade civil extra contratual do Estado e entes submetidos ao mesmo regime, que se acentuou e privilegiou, nesta matéria, “um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos” (Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, pág. 714, citado no aresto identificado).
Adoptou-se assim, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, um critério de atribuição de competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal que atende apenas à natureza pública da entidade demandada, independentemente da natureza da relação jurídica de que emerge o litígio (neste sentido, aresto do Tribunal de Conflitos de 6/12/2012, proferido no conflito n.º 08/12[5] e da Relação de Lisboa de 9/4/2013, processo n.º 1942/10.0 TVLSB.L1-1, versando sobre casos idênticos ao que nos ocupam e acessíveis em www.dgsi.pt).
De volta ao caso dos autos:
Invocando violação do seu direito de propriedade sobre dois armazéns implantados em determinado prédio e a sua abusiva demolição pela ré no decurso de um processo expropriativo a que é alheia, com a consequente ocupação da área correspondente, a autora formulou contra as EP, SA uma pretensão meramente ressarcitória, assente na responsabilidade civil por acto ilícito. Por assim ser, atenta a conformação que pela autora foi dada à lide, a actividade jurisdicional que demanda dirigir-se-á ao apuramento dos pressupostos da responsabilidade civil por acto ilícito, tendo em vista condenar a ré (ou não) no pagamento de uma indemnização. Com efeito, quiçá reconhecendo a inviabilidade de um pedido de restituição -até porque não vem esclarecido a que título ocupava o solo, uma vez que se arroga apenas a propriedade dos dois armazéns (edificações) demolidos-, a autora limitou-se a peticionar indemnização para reparação dos prejuízos sofridos, invocando o seu direito de propriedade e respectiva violação como meros pressupostos da pretensão deduzida.
Por outro lado, a ré, consoante dispõe o art.º 1.º, n.º 1 do DL 374/2007, de 7 de Novembro, é uma sociedade anónima de capitais públicos, que tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão celebrado com o Estado Português (vide art.º 4º, nº1 do referido diploma). Para a prossecução desses fins foram-lhe atribuídos poderes de autoridade, conforme expressa o art.º 10.º do diploma em referência, regendo-se ainda pelo regime jurídico do sector empresarial do estado, nos termos do DL 558/99, de 17 de Dezembro (cf. art.º 3.º daquele diploma), donde não haver dúvida -nem a apelante aqui o questiona- que a ré goza efectivamente de prerrogativas de direito público.
O citado art.º 4.º, n.º 1 do ETAF, para o que aqui releva, atribui aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (cf. al. i).
Tal responsabilidade há-de ser perspectivada à luz da Lei 67/2007, de 13/12 (alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17/7)[6], que fixou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, importando o seu art.º 5.º, n.º 1, nos termos do qual: “1 - A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
(…) 5. As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Daqui decorre, atenta a natureza jurídica da entidade demandada e a pretensão deduzida pela autora, iluminada pelos seus fundamentos, que estamos no âmbito da responsabilização de pessoa colectiva de direito privado por alegada acção lesiva levada a cabo no exercício das suas prerrogativas de direito público -condução de processo expropriativo, em relação ao qual a demandante é alheia- o mesmo é dizer, inscrevendo-se no âmbito das acções de responsabilidade civil por acto ilícito cuja competência é hoje atribuída, por força do disposto na al. i) do art.º 4.º do ETAF, ao foro administrativo.
Daí que a decisão recorrida não mereça censura.

*

III. Decisão
Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente mantendo, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.

*

Sumário (n.º 7 do art.º 713.º do CPC)
I. Visando a autora efectivar a responsabilidade civil de pessoa colectiva de direito privado por alegada acção lesiva levada a cabo no exercício das suas prerrogativas de direito público -danos causados na condução de processo expropriativo, em relação ao qual a demandante é alheia- estamos perante acção de responsabilidade civil por acto ilícito cuja competência é hoje atribuída, por força do disposto na al. i) do art.º 4.º do ETAF, ao foro administrativo.

                                                                       *

Coimbra, 28 de Janeiro de 2014

                                                                       *

Maria Domingas Simões (Relatora)

Hélder Almeida

Nunes Ribeiro (vencido quanto à questão prévia. Entendo, contrariamente á tese que fez vencimento, que o prazo para a interposição de recurso de decisão proferida sobre a competência do tribunal é sempre de 15 (quinze) dias, independentemente da decisão por ou não termo ao processo, atento o estatuído no nº 5 do art.º 691.º do C. P. Civil. De outra forma, cairíamos no absurdo de ter de admitir prazos distintos para a interposição do recurso consoante a decisão proferida sobre a competência fosse de reconhecimento ou de recusa da competência: nos casos em que o tribunal concluísse pela sua incompetência, como no caso conclui, uma vez que a decisão põe termo ao processo, o prazo de interposição de recurso seria de 30 (trinta) dias; mas concluindo, ao invés, ser materialmente competente, como tal decisão já não põe termo ao processo, a parte vencida só disporia então do prazo de 15 dias para a interposição do competente recurso.

            Sendo, pois, o recurso intempestivo, a nosso ver, não conheceria do seu objecto).


[1] É o seguinte o teor integral do despacho recorrido:

 “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – artigo 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa CRP).

“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF).

“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artigo 211.º, n.º 1, da CRP. “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” – artigo 66.º do Código de Processo Civil. Daqui resulta que a competência dos tribunais comuns tem natureza residual.

De acordo com o artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF, referindo-se à responsabilidade extracontratual de sujeitos privados, a jurisdição administrativa só é competente para apreciar quando a esses sujeitos for aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Neste conspecto, importa atender ao artigo 1.º, n.º 5, do anexo à Lei n.º 67/2007, de 31.12, no qual se prescreve que as disposições do diploma “são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado (…) por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Assim, no que respeita a entidades privadas, a aplicação do regime de responsabilidade extracontratual do Estado depende de se estar perante acções ou omissões levadas a cabo no exercício de prerrogativas de poder público” ou “que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (vd. Fernandes Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, 1.ª ed., págs. 29 a 32, 35 e 48 a 49, assim como os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 03.11.2011, proc. 9806/09.4TBVNG.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.06.2011, proc. 1394/10.5YXLSB-7, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.07.2009, proc. 2903/08.5TBVCT-AG.1, todos em www.dgsi.pt).

Como bem se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto, “(…) prefiguram-se dois factores determinantes do conceito de actividade administrativa, um deles tendo a ver com o exercício de prerrogativas de poder público, a contender com o desempenho de tarefas públicas para cuja concretização sejam outorgados poderes de autoridade, enquanto o outro respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Como é sabido, para decidir a excepção de incompetência material há que considerar a factualidade emergente dos articulados, isto é, a causa de pedir e, também, o pedido.

No nosso caso, a autora demanda a ré com base na conduta que reputa de ilícita e culposa consubstanciada na ocupação, na sequência do processo expropriativo a que supra se aludiu, de dois prédios de que é proprietária e que não constituem objecto da expropriação.

Na sequência do que acima se deixou dito, a determinação do tribunal materialmente competente para a presente acção passa por saber se, no caso concreto, a responsabilidade civil emergente de facto ilícito decorre de acto de gestão pública ou de gestão privada.

Tem-se entendido que na distinção entre actos de gestão pública e de gestão privada se deve atender à circunstância de o acto se integrar numa actividade de direito público da pessoa colectiva ou numa actividade de direito privado idêntica à desenvolvida pelos particulares. No primeiro caso, será um acto de gestão pública, no segundo, de gestão privada.

A este propósito, considera a autora que a conduta da ré configura um verdadeiro “confisco” ou “via de facto”. Reitera-se que para apreciar os pressupostos processuais, incluindo a competência, o tribunal deve atender à factualidade emergente dos articulados, não estando vinculado à forma como o autor qualifica juridicamente essa factualidade. Daqui resulta que na decisão da excepção em apreço, o tribunal não está limitado por aqueles conceitos – jurídicos – invocados pela autora.

Posto isto, segundo alguma doutrina, a conduta da Administração que actue pela “via de facto”, em termos absolutamente ilegais, não cabe no âmbito da gestão pública; e, por isso, Eugénio F. R. Duarte (18-10-2013 10:41:04) Página 371 de 428 a Administração que a ela recorra fica colocada em posição idêntica à dos particulares, sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03.03.2004, proc. 0357011, em www.dgsi.pt).

De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.03.1998, em www.stj.pt, são três os requisitos para que se possa afirmar que se está perante uma situação de “via de facto”, a saber:

a) A existência de uma actividade material de execução por parte da Administração;

b) Que daquela actividade material resulte um grave atentado a um direito de propriedade do particular;

c) Que a referida actuação da Administração enferme de uma ilegalidade de tal forma flagrante, grave e indiscutível que seja “manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração” (cfr. Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, págs. 172 e sgs. – acórdão citado).

No caso vertente, estão em causa eventuais danos causados à autora na sequência de processo expropriativo necessário à execução da obra da EN 236 – ligação à Lousã (cfr. artigo 3.º da petição inicial), levada a efeito pela ré.

Nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7.11, aplica-se à EP – Estradas de Portugal, S.A. o regime jurídico do sector empresarial do Estado, consagrado no Decreto-Lei n.º 558/99, de 17.12, onde no seu artigo 18.º se prescreve que estas empresas são equiparadas a entidades administrativas, para efeito de competência para julgamento de litígios, nomeadamente respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14.º, cujo n.º 1, alínea b) alude expressamente à utilização, protecção e gestão de infra-estruturas afectas ao serviço público.

No tocante às funções a desempenhar pela EP – Estradas de Portugal, S. A., preceitua o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7.11, que “a EP — Estradas de Portugal, S. A., tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é celebrado pelo Estado”.

Por sua vez, o artigo 10.º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei estipula que “compete à EP – Estradas de Portugal, S. A., relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integrem o objecto da concessão a que se refere o n.º 1 do artigo 4.º, zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre e segura circulação”. E, segundo o n.º 2 deste artigo, “para o desenvolvimento da sua actividade a EP – Estradas de Portugal, S. A. detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita: a) A processos de expropriação, nos termos previstos no respectivo código; … h) À responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública”.

Estabelece, ainda, o artigo 8.º, n.º 5, do mesmo diploma que “É atribuída à EP – Estradas de Portugal, S. A. a administração dos bens dos domínios público ou privado do Estado, cuja aquisição resulte de processo expropriativo em que a entidade expropriante seja a – Estradas de Portugal, S. A., uma concessionária ou uma subconcessionária de infra-estruturas rodoviárias”.

Também o artigo 14.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 558/99 de 17.12 dispõe que poderão as empresas públicas exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a: “… “a) Expropriação por utilidade pública”.

Retira-se destas normas que pertence à ré a representação do Estado no que respeita às infra-estruturas rodoviárias e que nessa actividade está dotada de poderes de autoridade e, por conseguinte, que a construção da mencionada obra rodoviária se insere no âmbito das funções ré, de natureza pública.

No dizer do Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.01.2010, proc. 025/09, em www.dgsi.pt, “as entidades concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo ex. concessão de obras públicas ou de serviço público) devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo”.

Ora, a ré, enquanto entidade privada concessionária chamada a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo, procedendo à execução de uma obra rodoviária, não actua como qualquer particular, antes se apresenta investida de um poder público, tendo em vista a prossecução de um interesse público e a satisfação de uma necessidade colectiva, daí que se deva qualificar a sua actuação como de gestão pública. A responsabilidade civil extracontratual de que é passível deriva de uma omissão no âmbito de acto que só a ela, enquanto detentora de poderes de gestão sobre a coisa alegadamente causadora de dano, poderia prover.

Do exposto resulta que as acções e omissões da ré são reguladas por disposições e princípios de direito administrativo.

Por outro lado, seguindo de perto o entendimento perfilhado no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03.03.2004, a conduta da ré não configura “via de facto”, por não se verificar o terceiro requisito, ou seja o de a conduta ser “manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração”.

Atendendo a tudo quanto foi dito, a competência para o conhecimento do mérito da causa pertence, não ao tribunal comum, mas ao Tribunal Administrativo, o que determina a absolvição da ré da instância, por força do disposto nos artigos 101.º, 105.º, n.º 1, 493.º, nºs 1, e 2, 494.º, alínea a), 495.º e 510.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Face ao exposto, considera-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, o que obsta à reapreciação do mérito da causa.

Termos em que se declara verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, prevista na alínea a) do artigo 494.º do Código de Processo Civil, absolvendo-se a ré da instância, nos termos dos artigos 101.º, 105.º, n.º 1, 493.º, nºs 1, e 2, 494.º, alínea a), 495.º e 510.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil.

Custas pela autora (artigo 446.º, nºs 1, e 2, do Código de Processo Civil)”.

Registe e notifique”.



[2] Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, 3.ª ed., pág. 815, em anotação ao preceito.
[3] Aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02 (Com as alterações introduzidas pelas Declarações de Rectificação n.ºs 14/2002, de 20-03 e 18/2002, de 12-04, pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19-02, 107-D/2003, de 31-12, 1/2008, de 14-01, 2/2008, de 14-01, 26/2008, de 27-06, 52/2008, de 28-08, 59/2008, de 11-09, pelo DL n.º 166/2009, de 31-07, pela Lei n.º 55- A/2010, de 31-12, e pela Lei n.º 20/2012, de 14-05.)
[4] É o seguinte o teor do preceito:
 “Artigo 4.° Âmbito da jurisdição
1.  Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;
e) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;
d)Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;
e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;
i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;
l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal.
2- Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto a impugnação de:
a) Actos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
3- Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como das correspondentes acções de regresso;
b) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
c) A fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e pelo seu presidente
d) A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, que não conferem a qualidade de agente administrativo, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público.”
[5] Assim sumariado: “I- Face ao actual ETAF (art. 4º, nº 1), compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto: “g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público”, independentemente de lhes ser aplicável um regime de direito público ou de direito privado, acentuando-se o factor de incidência subjectiva decorrente da personalidade pública da entidade demandada. II- Assim, cabe aos tribunais administrativos a competência material para conhecer de pedidos indemnizatórios formulados na réplica pelo Autor reconvinte, com vista ao ressarcimento de danos que diz ter sofrido em resultado de uma conduta ilícita do Réu Município”.
[6] Em vigor desde 30 de Janeiro de 2008 (cf. art.º 6.º), vigorava já à data do acto lesivo imputado à ré.