Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/08.2TBFCR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
INSTITUTO PÚBLICO
TÍTULO EXECUTIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: PORTARIA Nº 317-A/2000, DE 31/05; D. L. Nº 308/99, DE 10/08; E D.L. Nº 141/2007, DE 27/04; 804º E 806º DO CPC
Sumário: I – O Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo (hoje designado por Instituto de Turismo de Portugal) é um instituto público dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio, que tem por objecto o apoio ao fortalecimento, modernização e desenvolvimento das estruturas empresariais, a promoção do desenvolvimento de infra-estruturas e investimento no sector do turismo, bem como a promoção interna e externa de Portugal como destino turístico – D. L. nº 308/99, de 10/08, e D.L. nº 141/2007, de 27/04.
II – O Instituto de Turismo de Portugal pode certificar as dívidas de que é credor, constituindo essa certidão um verdadeiro título executivo (administrativo), nos termos do artº 46º, al. d), do CPC.

III – Tal tipo de título executivo pode ser submetido à jurisdição comum.

IV – Na oposição à execução baseada nesse tipo de título, além dos fundamentos enunciados no nº 1 do artº 814º do CPC, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados no processo de declaração – artº 816º CPC -, designadamente a discussão relativa ao cumprimento ou incumprimento do contrato administrativo que está na origem do dito título, se esse for o meio de defesa do oponente.

Decisão Texto Integral:        ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

I.

TURISMO DE PORTUGAL, I.P., intentou no Tribunal Judicial de .... processo de execução comum contra B....e mulher, C...., servindo de título executivo uma certidão emitida pelo Exequente ao abrigo do disposto do artº22º de sua lei Orgânica para cobrança da quantia de 39.198,18€, facultada ao Executado no âmbito de um contrato de concessão de incentivos, com ele celebrado nos termos do artº18º da Portaria nº317 – A/2000 de 31 de Maio que foi objecto de resolução por seu incumprimento.

Citados, os Executados deduziram oposição à execução, alegando, em síntese, em primeiro lugar, a inexequibilidade do título e, de seguida, impugnando a matéria vertida na petição da execução, dizem que deram cumprimento a todos os deveres contratuais assumidos, não se justificando, a resolução contratual operada pelo Exequente e a consequente acção executiva que deve ser extinta.

Na sua contestação, aquele Instituto Público, além do mais, excepcionou a incompetência material do tribunal comum para conhecer do acto administrativo em que se traduziu a resolução do contrato em apreço que devia ser objecto de impugnação nos tribunais administrativos (artº58º,2 do CPTA e artº4º, b) do ETAF) e não o foi, não podendo agora aquele tribunal apreciar eventual ilegalidade da dita rescisão contratual.

No despacho saneador, o Senhor Juiz, no tocante a esta matéria, ponderou que, se era competente para a execução, também, decerto, o seria para a oposição que, nos termos da lei, segue por apenso.

Inconformado com esta solução, o TURISMO DE PORTUGAL. dela veio interpor recurso autónomo, concluindo a sua alegação do seguinte modo:

[………………………………………………………………………………..]

Contraminutando, os Oponentes pugnam pela nautenção do despacho recorrido.

Colhidos os vistos cumpre apreciar e decidir.

 II.

O objecto do recurso respeita à questão da competência material e as suas incidências factuais ou processuais já foram descritas pelo que seria fastidioso voltar a repeti-las.

Vejamos então:

A – Os antecedentes:

O Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo, hoje, designado por Instituto de TURISMO DE PORTUGAL., é um instituto público dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio que tem por objecto o apoio ao fortalecimento, modernização e desenvolvimento das estruturas empresariais, a promoção do desenvolvimento de infra-estruturas e investimento no sector do turismo, bem como a promoção interna e externa de Portugal como destino turístico (cfr artº1º e 4º do DL nº 308/99 de 10.08, redacção do DL 77/2004 e no mesmo sentido, na sua actual Lei Orgânica, aprovada pelo DL nº141/2007, os artº1º e 4º).

No âmbito do Sistema de Incentivos a Pequenas Iniciativas Empresariais (SIPIE), regulado pelo DL 70-B/2000 de 5.04 e Portaria nº317-A/2000 de 31.05, o IFT/ITP – cfr o artº13º deste último diploma - podia apreciar projectos e conceder incentivos financeiros cuja concessão era objecto de contrato celebrado pela entidade gestora mediante minuta, homologada pelo Ministro de Economia, que, entre outro clausulado, pré formataria os montantes a conceder, os termos das propostas pelos candidatos, os direitos e deveres das partes, etc.. (artº 13º, 1 e 2 daquele decreto e 18º,1 da citada portaria).

Esse contrato, nos casos previstos no artº15º daquele Decreto-lei, mormente, o incumprimento do beneficiário, podia ser objecto de resolução unilateral pelo IFT/ITP com a consequência jurídica de, no prazo de 60 dias, o beneficiário ser obrigado a restituir o montante dos incentivos, acrescido, nomeadamente de juros à taxa contratada e mesmo ser proibido de concorrer a outros apoios no prazo de cinco anos (artº15º,2 e 3 deste último diploma).

Resta acrescentar, tal como resulta do artº22º do DL 141/07 citado, idêntico ao artº31º do DL 308/99 de 10.08 que as certidões negativas de pagamento emitidas pelo IFT/ITP constituem título executivo bastante, nos termos previstos na al. d) do artº 46º do CPC.

Foi este o percurso do Recorrente no âmbito das relações jurídicas travadas com o Oponente: invocando o incumprimento contratual, resolveu, unilateralmente, esse mesmo contrato, pediu a devolução dos montantes nele concedidos e não a obtendo, usou o privilégio que a lei lhe confere, emitindo seu próprio título executivo que constitui a base da execução apensa.

B- A Competência:

Ninguém duvidará, por certo que quer o contrato aqui envolvido quer os actos de rescisão e de emissão do título executivo têm natureza administrativa: o primeiro porque se enquadra no âmbito da gestão de fundos públicos para fomento de interesses públicos, através de incentivos financeiros a particulares em cuja regulamentação legal se plasmam de forma imperativa “cláusulas exorbitantes” de que decorre de forma clara o exercício de poder sancionatório – cfr Ac TC 218/2007 de 23.03.07, pº nº859/03, in www.tribunalconstitucional.pt/tc - como, por exemplo, as relativas à possibilidade de rescisão unilateral por parte da entidade gestora à devolução das quantias concedidas pouco consentâneas com a liberdade de contratar do direito privado – cfr, também, o AC STA de 15.05.06, pº nº0193706, in www.dgsi.pt; os segundos, porque, seguramente, neles está em causa o exercício de um poder autoritário para exigência de pagamento de determinada quantia que tem origem na sua natureza jurídica pública.

Mas se é assim, como justificar a presença desta acção executiva no tribunal judicial, comum, de competência genérica? Pela simples razão de o Recorrente, como já se elucidou, poder certificar as dívidas de que é credor, constituindo a certidão verdadeiro título executivo nos termos do artº 46º, al. d) do CPC. Não fora, porém, a questão de sua exequibilidade já ter sido decidida em termos definitivos nos autos e bem poderia discutir-se se, apesar disso, seria esta ordem de tribunais a competente para essa acção executiva, como se fez, aliás, no Acórdão do TC já citado, onde se julgou, organicamente, inconstitucional, norma similar, relativa à cobrança de dívidas do IFADAP por violação da reserva constitucional da jurisdição administrativa (artº212º,3 da CRP).

Assente, pois que está a opção do legislador em submeter título executivo desta natureza à jurisdição comum, não se deve estranhar que a regulamentação da respectiva acção executiva siga os termos para ela previstos no CPC. E segundo este - artº816º-, na oposição à execução baseada naquele título, além dos fundamentos enunciados no nº1 do artº814º, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados no processo de declaração.

Isso fizeram os Oponentes que, de relevante, alegaram matéria que pode infirmar e inviabilizar o título executivo e extinguir a execução. Foi neste quadro que o Recorrente excepcionou a incompetência material do tribunal para conhecer dos argumentos usados na dita oposição.

Como se sabe, a apreciação deste pressuposto processual deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material, na versão que surge em juízo pela mão do A., conferindo-se especial enfoque aos termos de sua pretensão – cfr Ac do STJ de 12.01.94 (CJ, STJ, 1994, 1º,328), STA de 6.7.00, Rec nº46161 e Manuel Andrade, Noções Elementares…1º, 88. Afere-se, portanto, como se escreve nesta última obra, pelo quid disputatum, não dependendo ou exigindo indagação relativa à procedência ou mérito do pedido formulado.

Toda a argumentação do Recorrente é no sentido de que os Oponentes deviam ter impugnado na jurisdição administrativa o acto rescisório do contrato por se tratar de um verdadeiro acto administrativo e não o fazendo, a resolução contratual não só se consolidou, mas também, sendo matéria da competência dos tribunais administrativas, inviabiliza, ora, a sua apreciação pelos tribunais judiciais.

Cabe dizer antes de mais que defender que tal matéria não pode ser discutida por não ter sido objecto de impugnação não é argumento ou questão atinente à competência mas à preclusão que, aqui, pura e simplesmente, não cabe apreciar. Por outro lado, dando de barato que o acto rescisório como acto administrativo que é, se tornou definitivo por falta de impugnação do beneficiário, a sua eficácia há-de ficar-se por aquilo que é o efeito jurídico normal da resolução: a extinção do contrato contratual, aqui, aditada,eventualmentedaí o que se retira de prático e útil é que o contrato em apreço se extinguiu por esse meio. Isto é, quer a liquidação que, eventualmente, se segue se houver quantias a devolver quer a eventual emissão da “certidão negativa de pagamento” no caso de não existir pagamento voluntário, já estão para além de tal acto administrativo e de suas consequências por lhe serem posteriores o que pode fazer toda a diferença.

Seguindo a orientação maioritária, entende-se que a oposição à execução é acção declarativa, estruturalmente autónoma, porém, instrumental e funcionalmente, ligada à acção executiva pela qual “o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo” (Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, 1998, p.150/151).

Já se disse que o título que preside ao processo principal é uma “certidão negativa de pagamento” da importância que o IFT/ITP liquidou na sequência do acto rescisório do contrato de concessão de incentivos celebrado com o Oponente marido e na falta de pagamento voluntário deste último. É um título executivo administrativo cuja materialização corresponde a verdadeiro acto administrativo daquele Instituto que optou – podia não fazê-lo, segundo parece - pela via judicial comum e recurso a um outro procedimento e que não se confunde ou restringe ao acto rescisório que serve de cavalo de batalha ao Recorrente. Título que, exclusivamente, traça o fim e os limites da acção executiva em questão e cujos efeitos o Oponente tem de impedir se quer obter a sua extinção.

Através desta nova “porta” que o Recorrente abriu não se vê razão para impedir a discussão relativa ao cumprimento do contrato em discussão se esse for o (único) meio de defesa do Oponente, como é, em boa verdade, para atingir aquele desiderato. Na verdade, não faria sentido que lei especial excepcionasse a jurisdição apenas quanto ao mero título executivo, deixando de fora os factos constitutivos da obrigação exequenda nele reflectidos, e, nomeadamente, o contrato que está na sua origem, e portanto, a discussão sobre o seu cumprimento ou incumprimento com o argumento da sua natureza administrativa. Esta, como é bom de ver não impressionou o legislador na opção por esta ordem de tribunais para a propositura da acção executiva pelo que se não vê razão para que o intérprete para a oposição a essa mesma acção reserve a jurisdição administrativa.

Uma última nota quanto à questão da apensação que o Recorrente suscita: na verdade, a regra da apensação não se confunde com a regra da competência, esta precede aquela, sendo bem diferente seu alcance e propósito. O que, na grande maioria das situações, no entanto, não obstam a que coincidam no mesmo processado. Como sucedeu no vertente caso, onde se estranharia que a medida da competência material para a causa executiva fosse diversa daquela que, apensa, lhe serve de oposição. Como parece ter estranhado o Senhor Juiz a quo, se bem se entende o seu despacho nesse ponto.

Concluindo:

a. o título dado à execução enquadra-se na al.d) do artº 46º do CPC e pertence à categoria dos títulos executivos administrativos;

b. e embora provindo de um Instituto Público e os actos que lhe estão subjacentes tenham natureza administrativa, a competência da ordem dos tribunais judiciais para a acção executiva a que respeita deriva da lei que, especialmente, a determinou;

c. embora esta o não prescreva especialmente, aquela competência estende-se ao apenso de oposição à execução, sendo indiferente para a definição da competência em razão da matéria que o seu objecto recaia sobre o cumprimento/incumprimento de contrato de natureza administrativa.

III.

Destarte, julga-se improcedente a apelação, e embora com outros fundamentos, confirma-se o despacho recorrido.