Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1728/20.4T8FIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
RECLAMAÇÃO DO DESPACHO SANEADOR
PRECLUSÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
MORTE POR SUICÍDIO
Data do Acordão: 04/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA FIGUEIRA DA FOZ DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 195.º E 199.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 8.º E 14.º, N.º 1, ALÍNEA A), DA NLAT
Sumário:
I – A nulidade ocorrida na audiência de julgamento, por violação de qualquer das regras processuais a que a mesma deva estar submetida, tem de ser invocada no decurso da mesma audiência por apenas poder corresponder a uma nulidade secundária e se tratar de ato cometido em presença do mandatário (arts. 195º e 199º/1ª parte do CPC).

II – Se o autor não concordava com os factos dados como assentes no despacho saneador, podia e devia ter reclamado do despacho saneador. Caso o tivesse feito e não concordasse com o despacho que tivesse recaído sobre a sua reclamação, podia então recorrer do mesmo em sede de apelação, ao não o ter feito, precludiu a possibilidade de recorrer do despacho saneador.

III – É acidente de trabalho o que se verifica no local e tempo de trabalho ou está com ele relacionado.

Diante de cada caso concreto, cumpre analisar se há uma conexão (razoável) entre o trabalho e a determinação suicida.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
                  Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra

                  Juízo do Trabalho da Figueira da Foz

                  1728/20.4T8FIG.C1

                                                                                         *

                  Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

AA, por si, e na qualidade de legal representante de suas filhas menores BB, nascida a ../../2016, e BB, nascida a ../../2017 e ainda na qualidade de herdeiro e cabeça de casal por óbito de sua esposa CC, falecida em ../../2020 intentou a presente ação emergente de acidente de trabalho com processo especial contra A..., S.A., peticionando o seguinte:

A- Declarar-se que a sinistrada sofreu no dia ../../2020 um acidente de trabalho que causou a morte, descrito na participação, e de que resultaram as lesões descritas no relatório da autópsia, que aqui se dão por integralmente reproduzidas com as legais consequências.

B- Condenar-se a ré a tal reconhecer.

C- Condenar-se a ré a indemnizar a autora no montante nunca inferior a €10.000,00 e que vier a ser apurada pelo Douto Tribunal.

D- Condenar-se a ré no pagamento de juros de mora à taxa legal de 4%, sobre todas as quantias reclamadas, vencidas e vincendas, até integral pagamento, a contar da citação.

E- Condenar-se a ré nas custas e demais encargos com o processo.”

Alegou em síntese:

-À data dos factos, CC trabalhava como administrativa sob a autoridade, direção, fiscalização e por conta da entidade empregadora B..., Unipessoal, Lda., com sede na ..., ... ..., Concelho ... e auferia a quantia mensal base de €635,00 x 14 meses + €6,41 x 22 dias x 11 meses (subsídio de alimentação) correspondente ao valor anual de €10.441,22;

-A entidade patronal tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, integralmente transferida para a companhia de seguros A..., pela apólice de seguro ...73, aqui ré;

-No dia ../../2020, pelas 17h06m, quando se deslocava na estrada nacional nº ...09, junto à localidade de ..., ..., Concelho ..., foi interveniente num acidente de viação, entre a viatura de matrícula ..-SI-.. que conduzia e o veículo pesado de mercadorias, de matrícula espanhola ....LBY;

- Devido a esse acidente, a sinistrada veio a falecer nesse dia no hospital da ...;

-O acidente deu-se durante o seu horário normal de trabalho, e decorreu durante o trajeto que lhe tinha sido determinado pela entidade patronal, para ir buscar uma peça que era precisa com urgência para o normal exercício da atividade da entidade patronal;

-A ré recusa-se a assumir as suas responsabilidades que assumiu ao celebrar o contrato de seguro consubstanciado na apólice junta aos autos, com o nº ...73;

A ré A..., S.A. apresentou contestação, alegando em síntese:

-Aceita o contrato de trabalho alegado na ação bem como a transferência da responsabilidade através de contrato de seguro;

-A condutora do veículo ligeiro e sinistrada nos presentes autos, exercia a atividade de condução numa situação de desequilíbrio psíquico, num sofrimento emocional, com uma conduta de premeditação suicida, que acabou por concretizar, o que a falta do cinto de segurança também indicia;

-Assim, ao cruzar-se com o veículo articulado, a falecida impôs ao veículo uma alteração súbita da trajetória do veículo em que seguia, permitindo que o mesmo invadisse de forma brusca e a uma distância não superior a cinco metros do outro veículo;

-Não permitindo ao condutor do outro veículo articulado qualquer manobra de emergência no sentido de evitar a colisão;

-A colisão que ocorreu de forma frontal angular, produziu a destruição total do veículo conduzido pela vítima;

-Com este comportamento, a infeliz vítima quis por termo à vida de forma consciente e voluntária, optando por esta via – projeção súbita para cima do outro veículo;

-Sofria de uma depressão grave, com tendência suicida;

-O suicídio ocorreu fora do âmbito da sua atividade profissional, pois a vítima não se encontrava ao serviço da tomadora de seguro;

-A ré concluiu pela absolvição dos pedidos contra si formulados.

Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões veio deduzir contra a Ré A..., S.A. pedido de reembolso de prestações pagas aos demandados, no valor de €6.286,85, acrescido das pensões que se vencerem e forem pagas na pendência da ação até ao limite a conceder, bem como juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Alegou que, por morte da beneficiária, o Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões (ISS/CNP), pagou ao autor, viúvo da falecida beneficiária e legal representante das filhas menores, pensões de sobrevivência no valor total de €6.286,85), cujo reembolso tem direito nos termos do artigo 70.º da Lei n.º 4/2007 de 16 de janeiro e do Decreto de Lei n.º 59/89 de 22 de fevereiro.

A ré A..., S.A. apresentou contestação ao pedido deduzido pelo “Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões”, mantendo a posição sufragada na contestação à ação.

O autor veio, por requerimento de 14/7/2023, impugnar os documentos juntos pela ré com a contestação, nos termos exarados a fls. 216 e 217.

Foi proferido despacho saneador, onde se procedeu ao saneamento da ação, verificando-se a validade e regularidade da instância, e foi selecionada a matéria de facto assente e foram fixados os temas de prova.

Em 11/4/2023, o “Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões veio atualizar o seu pedido para a quantia de €9.977,91, em face dos pagamentos, entretanto efetuados aos beneficiários, juntando certidão para prova do alegado.

Em 19/4/2023, veio a ré seguradora contestar a referida atualização do pedido do ISS, com os argumentos já anteriormente invocados.

Procedeu-se à realização da audiência final e na sequência da mesma foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelos fundamentos expostos, julgo improcedente, por não provada, a presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, bem como igualmente improcedente, por não provado, o pedido de reembolso de prestações da Segurança Social deduzido nestes autos, e, em consequência:

7.1.) Absolvo a Ré “A..., S.A..” dos diversos pedidos formulados pelo Autor, AA, em nome próprio e em representação das duas filhas menores de idade, BB e BB;

7.2.) Absolvo a Ré “A..., S.A.” do pedido contra si deduzido pelo “Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Nacional de Pensões.”

Inconformado, o autor interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…).

A recorrida A..., S.A., apresentou contra-alegações, sustentando em síntese que não existem razões fundadas que permitam alterar a decisão tomada pela primeira instância, devendo manter-se a decisão de facto e a douta sentença recorrida.

Neste Tribunal, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, “entendendo que, como pretende o Recorrente, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provado (nos pontos 5.1.1.25, e 5.1.1.28) que o veículo conduzido pela sinistrada efetuou uma alteração súbita de trajetória, por ter sido a sinistrada quem impôs essa trajetória, com o intuito de, desse modo, por termo à sua vida de forma voluntária e consciente, devendo tal matéria passar a constar, antes dos factos não provados.

Sendo efetuada essa alteração na matéria de facto, não podendo, então, a conduta da sinistrada ser subsumida na previsão do artigo 14º da Lei 98/2009, de 4/09, deverá o acidente em análise ser qualificado como de trabalho, com as legais consequências, revogando-se a sentença recorrida e condenando-se a Recorrida nas prestações legalmente devidas”.

Os recorrentes responderam a este parecer, declarando que concordam com as respetivas conclusões, na parte em que lhes é favorável.

O recurso foi admitido pelo juiz relator.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

OBJETO DO RECURSO

Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso ou aquelas cujo conhecimento fica prejudicado pela resposta dada a outras, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes:
1. Nulidade processual.
2. Impugnação da decisão de facto.
3. Qualificação jurídica do acidente sofrido pela sinistrada CC.
4. Culpa do condutor do veículo pesado.
*

FUNDAMENTOS DE FACTO

O Tribunal de 1ª instância fixou a matéria de facto da seguinte forma:

“5.1.1. Factos provados

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados, nomeadamente, os seguintes factos:

5.1.1.1. CC, nascida em ../../1986, faleceu no dia 9/12/2020, no estado de casada, em regime de comunhão de adquiridos, com AA.

5.1.1.2. BB, nascida em ../../2017, é filha de AA e CC.

5.1.1.3. BB, nascida em ../../2016, é filha de AA e CC.

5.1.1.4.  A falecida CC, no dia ../../2020, pelas 17h06, na EN ...09, Km 132.100, ..., ..., área desta comarca, foi interveniente em acidente de viação, quando conduzia o veículo ligeiro de passageiros, Smart, de matrícula ..-SI-.., envolvendo a intervenção do veículo pesado de mercadorias, de matrícula ....LBY.

5.1.1.5.  Correu termos o Inquérito n.º1879/20...., no DIAP ..., no qual foi proferido despacho de arquivamento, concluindo que não foram colhidos elementos suficientes que permitam afirmar que a conduta do outro condutor não foi conforme com as normas que regulam a circulação estradal ou que tenha exercido uma condução descuidada ou imprudente, tudo indicando que o acidente se ficou a dever à conduta da vítima.

5.1.1.6. Foi efectuada a autópsia da falecida, encontrando-se o relatório nos autos de fls. 82 a 87, que aqui se dá por integralmente reproduzida, de onde se retira que a morte foi devida a lesões traumáticas torácicas e abdominais, dos membros inferiores e meningo-encefálicas, o que é compatível com acidente de viação.

5.1.1.7. Resulta do inquérito, do auto de notícia, que o cônjuge da falecida, no dia dos factos, deslocou-se, no dia do acidente, ao posto da Guarda Nacional Republicana de ..., para formalizar o desaparecimento da sua esposa, informando que esta tinha deixado duas cartas, uma de despedida (dizia que ia por termo à vida) e outra para que os seus órgãos fossem doados à ciência.

5.1.1.8. Consta igualmente dos autos, o relatório final do OPC investigante, constando do relatório quanto às causas do acidente: Observando o local dos factos, exames e perícias, danos nos veículos, marcas, vestígios e demais circunstâncias que rodearam o acidente objecto deste relatório, entende-se que para a produção do acidente, concorreu unicamente a alteração súbita/desvio brusco da trajectória para a esquerda efectuada pela condutora do  ligeiro de passageiros, que não possibilitou, tempo e espaço, ao condutor do conjunto de veículos de efectuar manobra evasiva que evitasse o acidente ou que resultasse um resultado menos danoso”.

5.1.1.9. Na altura do acidente, a falecida exercia a sua profissão de recepcionista/administrativa, por conta e direcção de "B..., Unipessoal", de que é gerente, o viúvo, mediante a retribuição anual de €10.441,22, assim constituída: 635,00€ x 14= 8.890,00€ (retribuição base) + 6,41€ x 11= 1.551,22 (subsidio de refeição).

5.1.1.10. Como beneficiários legais da sinistrada existe: O viúvo, AA, nascido em ../../1983, portador do CC. ..., nif. ...85, residente na Rua ..., ..., ... ... e as duas filhas menores, BB, nascida em ../../2016, e BB, nascida em ../../2017.

5.1.1.11. As despesas com o funeral da sinistrada foram suportadas pelo viúvo e importaram o valor €3.414,00.

5.1.1.12. Numa fase inicial do processo, aquando da participação de acidente de trabalho, foi pedida, por mensagem de correio electrónico da entidade empregadora, datada de 14/12/2020, a sua anulação, porquanto a funcionária em causa, no dia do acidente estava em licença de férias, segundo informação da entidade empregadora, nos termos que constam a fls. 28 a 21, cujo teor aqui se dá por integralmente produzido.

5.1.1.13. Após, por requerimento da entidade empregadora apresentado, em 4/1/2021, por mandatário nessa data constituído, conforme fls. 34 e 35, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, tal versão é contrariada, afirmado que a falecida não estava em gozo de férias e que a mesma se tinha deslocado, a pedido da gerência, para ir buscar uma peça.

5.1.1.14. Na data referida em 5.1.1.4, a entidade empregadora B..., Unipessoal, Ld.ª tinha transferido, por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ...73, para a “C..., S.A.” responsabilidade emergente de acidentes de trabalho de CC, com base na remuneração anual referida em 5.1.1.9.

5.1.1.15. Na ocasião referida em 5.1.1.4, a sinistrada deslocava-se, a mando da sua entidade patronal, a uma empresa situada perto de ..., para ir buscar uma peça, conhecida por cadernal, e depois regressar à empresa, onde tinha estado antes, e falado com o legal representante da entidade patronal, e tinha estado com outro trabalhador.

5.1.1.16. A falecida padecia de perturbação depressiva, sendo medicada para tal patologia, pelo menos desde 11 de Agosto de 2008.

5.1.1.17. Recorrendo várias vezes ao Centro de Saúde de ..., com diagnóstico de perturbação depressiva/distúrbio ansioso/estado de ansiedade/tensão.

5.1.1.18. A falecida foi internada em 2012 por tentativa de suicídio.

5.1.1.19. Faltou a algumas consultas no centro de saúde (inclusive com a psicóloga) e teve acompanhamento psiquiátrico particular.

5.1.1.20. Na consulta de dia 30/4/20218, a falecida demonstrou ideação suicida activa, tendo verbalizado à médica de família que “quando está a conduzir pensa em guinar o carro sempre que vê um camião…já desligou o ABS do carro”.

5.1.1.21. Em 4/5/2019, a falecida verbalizou, na consulta, à médica que se “sente incapaz de cuidar das duas filhas (tem a última com 4,5 meses e a mais velha com 21 meses), do trabalho e da vida em casa.”

5.1.1.22. Ao longo do tempo a falecida foi mudando de medicação, quer por orientação médica, quer por iniciativa própria.

5.1.1.23. A falecida foi ainda internada no Hospital ... de 2 a 9 de Março de 2020 por depressão recorrente major com ideação suicida, tendo tido alta com medicada com topiramato 25 2 id + sertralina 100 + diazepan 10.

5.1.1.24. A última consulta no Centro de Saúde é de 14/10/2020, mantendo-se o diagnóstico de perturbação suicida, com a seguinte medicação: paracetamol (40 mg); Alprazolam (0,5 mg); Diazepan (10 mg); Sertralina (100 mg); Tramadol + parecetamol (37,5 mg +3,25 mg) e Furosemida.

5.1.1.25.  Nas circunstâncias referidas em 5.1.1.4, a condutora do veículo ligeiro, ao cruzar-se com o veículo articulado, impôs ao veículo uma alteração súbita da trajectória do veículo em que seguia permitindo que o mesmo invadisse de forma brusca e a uma distância não superior a dez metros do outro veículo.

5.1.1.26. Não permitindo ao condutor do outro veículo articulado qualquer manobra de emergência no sentido de evitar a colisão.

5.1.1.27. Colisão que ocorreu de forma frontal angular, produzindo a destruição total do veículo conduzido pela vítima.

5.1.1.28. Com este comportamento, a vítima quis por termo à vida de forma consciente e voluntária, optando por esta via projecção súbita para cima do outro veículo.

5.1.1.29. Assim, gerando o acidente que causou de forma directa a sua morte.

5.1.1.30. O Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões, pagou ao Autor a quantia de €1.316,43 a titulo de subsídio por morte.

5.1.1.31. O Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões, à data de 1 de Junho de 2023, tinha pago ao viúvo, a titulo de pensão de sobrevivência, o valor total de €5.770,84 sendo o valor mensal de €183,64.

5.1.1.32. O Instituto de Segurança Social, I.P., através do Centro Nacional de Pensões, à data de 1 de Junho, tinha pago a cada uma das filhas menores da sinistrada, a título de pensão de sobrevivência, o valor total de €1.590,91, sendo o valor mensal, de cada uma, de €53,77.

5.1.1.33. O prémio do seguro foi agravado para criar provisão em função da pendência do presente processo e o imprevisível desfecho do mesmo.

5.1.1.34. A sinistrada estudou ciências de nutrição na FCNAUP, tendo tido o próprio negócio em ..., na Naturhouse, que colocou em trespasse em 2019.

5.1.1.35. A sinistrada iniciou o seu vínculo laboral, junto da Segurança Social, com a “B..., Unipessoal, Ld.ª” no dia 1/12/2019.

5.1.2. Factos não provados

5.1.2.1. O facto descrito 5.1.1.12 foi induzido pelos funcionários da Ré.

5.1.2.2. O facto referido em 5.1.1.5 foi involuntário.

5.1.2.3. A manobra referida em 5.1.1.25 foi realizada a menos de cinco metros do outro veículo.

***

Não existem outros factos provados ou não provados com interesse para a discussão da causa e os demais alegados são matéria conclusiva/instrumental e/ou de direito ou repetida e irrelevante.”

                                                                       *

FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Nulidade processual.

O recorrente alega que foram juntos documentos no dia 5-06-2023, já após a audiência de julgamento ter terminado, que não lhe foram notificados. Tal constitui uma nulidade insanável que implica a nulidade de todos os atos praticados posteriormente, designadamente a sentença em causa nos presentes autos, que é nula, por esse motivo.

Vejamos.

O CPC trata das nulidades processuais nos artigos 186.º a 202.º e das nulidades da sentença e do acórdão nos artigos 615.º, 666.º e 685.º.

Se entendermos que a nulidade invocada pelo recorrente  pode integrar o disposto no artigo 195º do CPC, tal nulidade processual pode existir mesmo que a sentença não padeça, de qualquer vício, nomeadamente dos consagrados no 615º do CPC, ocorrendo, ainda assim, um vício processual decorrente da omissão de notificação de documentos que foram juntos no dia 5-06-2023, já após a audiência de julgamento ter terminado, implicando assim que naquele momento não estivessem ainda reunidos todos os elementos necessários para a prolação da dita sentença.

Em bom rigor, e pese embora o recorrente reaja contra a sentença proferida, certo é que não ataca diretamente o seu conteúdo, mas sim a prévia omissão, pelo tribunal a quo, de um ato processual que se impunha, pelo que, o meio processual próprio para reagir contra aquela omissão seria, a nosso ver, a reclamação perante aquele tribunal, nos termos do artigo 199º do CPC.[1]

É exatamente assim.

A sentença recorrida foi proferida no dia 8-08-2023, sendo que os documentos foram juntos no dia 5-06-2023, conforme consta da ata respetiva (referência 91502009; cfr. fls. 362, parte final, dos autos) concluída a audição das testemunhas e antes das alegações orais, a Mma. Juiz a quo proferiu o seguinte:

“DESPACHO

Após a produção de prova entende o Tribunal que se reveste pertinente para uma boa decisão da causa e cabal esclarecimento dos factos a junção ao presente processo de cópia integral do processo crime que correu termos no DIAP ... e já aqui referido nos autos. É o Proc. nº. 1879/20...., nomeadamente por o mesmo conter alguns elementos fundamentais que se afiguram relevantes para apreciar a dinâmica do acidente, nomeadamente as fotografias que neste processo se encontram a cores e, portanto, mais percetíveis em conformidade.

Deste modo, entende o Tribunal. ao abrigo do art.º 411º. do C.P.C., aplicável por força do disposto no art.º 1º., nº. 2, al. a) do C.P.T., determinar a junção aos autos da referida cópia integral do processo crime que correu termos e já se encontra arquivado (cópia simples extraída do sistema citius, obtida no exercício das minhas funções).

O despacho ficou registado em ficheiro digital, processado no módulo H@bilus Media Studio, tendo iniciado às 16:09:18 horas e findou às 16:11:18 horas.

Pelos ilustres mandatários das partes disseram nada terem a opor a junção de tal cópia e subsequentemente que se prossiga para alegações.

Nesta altura foi junto aos autos cópia digitalizada do Proc. nº. 1879/20.... que correu termos no DIAP ....

Neste momento foi pedida a palavra pela ilustre mandatária da Seguradora, e tendo lhe sido concedida disse:

O A..., Ré nos autos, notificada do novo pedido de reembolso apresentado pela Segurança Social, vem manter o teor da sua contestação apresentada no primeiro pedido formulado por esta entidade.

Ficou registado em ficheiro digital, processado no módulo H@bilus Media Studio, tendo iniciado às 1611:18 horas e findou às 16:11:42 horas.

Pelo ilustre mandatário do Autor foi dito nada ter a opor como anteriormente.

Ficou registado em ficheiro digital, processado no módulo H@bilus Media Studio, tendo iniciado às 1611:18 horas e findou às 16:11:42 horas.

Finda a produção de prova, pela Mma. Juiz foi dada a palavra aos ilustres mandatários das partes, para alegações o que fizeram, tendo ficado registadas em ficheiro digital, processado no módulo H@bilus Media Studio, pelo ilustre mandatário do Autor iniciado pelas 16:12:17 horas e findou às 16:21:26 horas; pela ilustre mandatária da Ré Seguradora, iniciado pelas 16:21:32 horas e findou às 16:26:11 horas.

Findas as alegações, a Mma Juiz de Direito proferiu o seguinte:

DESPACHO

Considerando que a sentença proferir não reveste manifesta simplicidade, não é de convocar o disposto no artigo 73º, nº. 2 do Código do Processo do Trabalho, determinando-se que estes autos fossem conclusos, nos termos do n.º 1 do referido artigo 73.º e 135.º do mesmo diploma legal, a fim de ser proferida sentença que incidirá, de forma conjunta, sobre as questões de facto e de direito objeto deste processo.

*

Do despacho acabado de proferir foram todos os presentes devidamente notificados, ficando registado ficheiro digital, processado no módulo H@bilus Media Studio, com início às 16:25:06 horas e terminus às 16:26:11 horas.
*

A presente audiência foi declarada encerrada pelas 16 horas e 30 minutos.

                                                                       *

Para constar se lavrou a presente ata, que, após lida e achada conforme, vai ser assinada eletronicamente pela Mma. Juiz de Direito, DD, nos termos do disposto no artigo 19º. da Portaria nº. 280/2013, de 26/13, e, em papel, por mim, EE, que a elaborei.”

Assente que os documentos foram juntos na audiência de julgamento (e não após esta ter terminado) a violação de qualquer das regras processuais a que a mesma deva estar submetida, tem de ser invocada no decurso da mesma audiência por apenas poder corresponder a uma nulidade secundária e se tratar de ato cometido em presença do mandatário (arts.195º e 199º/1ª parte do CPC).[2]

O recorrente não reclamou da alegada omissão perante o juiz da 1ª instância, no tempo e no modo legalmente apropriados.

Acresce dizer que não se verifica a nulidade processual em causa, conforme resulta de forma clara do teor da ata da sessão de julgamento, sendo certo que não foi invocada a sua falsidade.

É, pois, manifesta a improcedência da nulidade invocada.

                                                                       *
2. Impugnação da decisão de facto.

De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº 1, do CPC “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº 5, do CPC.

“O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência”[3].

“A verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psicossociológico”[4].

“Perante impugnação da matéria de facto, deve a Relação reapreciar os meios de prova indicados relativamente aos pontos da matéria de facto que o recorrente questiona, almejando uma autónoma convicção probatória, razão por que se alude a um segundo grau de julgamento da matéria de facto”[5].

No seu blog IPPC, Teixeira de Sousa escreveu a 19-05-2017 (Jurisprudência-623)[6]:

“É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida.

Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância.

É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”

Procedeu-se à audição integral da prova gravada, em conjugação com a análise da prova documental junta aos autos, sendo certo que o apelante juntou aos autos a transcrição dos depoimentos.

O recorrente sustenta que os factos 5.1.1.7, 5.1.1.8, 5.1.1.16 a 5.1.1.24., 5.1.1.25 a 5.1.1.29 e 5.1.1.33 não podiam ser considerados provados.

Por sua vez, os factos 5.1.2.1., 5.1.2.2., 5.1.2.3., não podiam ser considerados como não provados.

Factos provados postos em causa:

5.1.1.7. Resulta do inquérito, do auto de notícia, que o cônjuge da falecida, no dia dos factos, deslocou-se, no dia do acidente, ao posto da Guarda Nacional Republicana de ..., para formalizar o desaparecimento da sua esposa, informando que esta tinha deixado duas cartas, uma de despedida (dizia que ia por termo à vida) e outra para que os seus órgãos fossem doados à ciência.

5.1.1.8. Consta igualmente dos autos, o relatório final do OPC investigante, constando do relatório quanto às causas do acidente: Observando o local dos factos, exames e perícias, danos nos veículos, marcas, vestígios e demais circunstâncias que rodearam o acidente objeto deste relatório, entende-se que para a produção do acidente, concorreu unicamente a alteração súbita/desvio brusco da trajetória para a esquerda efetuada pela condutora do ligeiro de passageiros, que não possibilitou, tempo e espaço, ao condutor do conjunto de veículos de efetuar manobra evasiva que evitasse o acidente ou que resultasse um resultado menos danoso.

O Tribunal a quo considerou os factos descritos em 5.1.1.1. a 5.1.1.14 admitidos por acordo razão pela qual se consideram assentes (veja-se despacho saneador proferido em 3/10/2023.

Quando ao facto provado 5.1.1.7, entende o recorrente que explicou em Tribunal os motivos pelos quais alegou a existência de cartas, pois o motivo era que queria saber a localização telemóvel da falecida, para saber onde é que ela estava em concreto, pois ela não lhe atendia as chamadas (artigo 33º das alegações de recurso).

Quanto ao ponto seguinte, 5.1.1.8, não existem elementos nos croquis do acidente, que mostrem que a falecida fez uma viragem brusca para a esquerda, pois desse mesmo croquis resulta que o camião é que faz uma trajetória para a esquerda, e vai embater no carro da falecida, e ficando tombado sobre a sua direita, no meio da estrada.

Ora se o camião tivesse sido embatido pela falecida deliberadamente, teria decerto virado o volante para a direita, a procurar evitar o acidente, e a trajetória seria ao contrário, e a tombar, seria para a sua esquerda, o que não aconteceu.

Pelo que tal não podia ter sido dado como provado nestes Autos (artigos 34º, 35º e 36º das alegações de recurso).

Cumpre decidir.

Dispõe o art.131.º do CPT, o seguinte:

“1. Findos os articulados, o juiz profere, no prazo de 15 dias, despacho saneador destinado a:

(…)

c) Considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados;

(…).”

Dispõe o artigo 596.º do CPC:

“1. Proferido despacho saneador, quando a ação houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova.

2. As partes podem reclamar do despacho previsto no número anterior.

3. O despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final.

4. (…).”

Se o autor não concordava com os factos em causa que foram dados como assentes no despacho saneador, podia e devia ter reclamado deste. Caso o tivesse feito e não concordasse com o despacho que tivesse recaído sobre a sua reclamação, podia então recorrer do mesmo em sede de apelação, ao não o ter feito, precludiu a possibilidade de recorrer do despacho saneador[7].

Improcede nesta parte o recurso da decisão de facto.

5.1.1.16. A falecida padecia de perturbação depressiva, sendo medicada para tal patologia, pelo menos desde 11 de agosto de 2008.

O Tribunal a quo considerou os factos descritos em 5.1.1.16. resultaram provados da conjugação das declarações de parte do Autor, com os depoimentos prestados pelas testemunhas FF e GG com os documentos juntos autos (mapa de registo de férias de fls. 127 relativamente a CC; factura de fls. 231 e resposta da empresa de fls. 267).

Efectivamente, o Autor confirmou que inicialmente reportou à Seguradora o acidente de trabalho e também o acidente de viação, sendo que as apólices do seguro de trabalho e do seguro automóvel encontravam-se subscritos junto da mesma entidade. Porém, após tê-lo feito “anulou” o seguro de trabalho, alegando que a trabalhadora se encontrava de férias (pois “amigos”, que não conseguiu concretizar, disseram-lhe que não poderia accionar ambos os seguros ao mesmo tempo e mais referiu que, o Sr. HH, no balcão da Caixa, lhe disse que se pretendia cancelar o accionamento do seguro deveria enviar o pedido por e-mail, a dizer por exemplo que a trabalhadora estava de férias). Infirmou que tenham sido os funcionários do Banco que lhe tenham dado tal recomendação/indicação (não ser possível accionar o seguro de acidente automóvel e seguro de trabalho ao mesmo tempo), mas também perguntou directamente sobre tal assunto, nomeadamente para confirmação da alegada informação prestada por “amigos”.

Ora, não obstante a “justificação” se revelar um pouco inverosímil, não deixa de ser verdade que o Autor certamente estaria num grande estado de instabilidade emocional, pois a sua esposa tinha acabado de falecer e que poderá ter contribuído para o equívoco invocado pelo Autor para o dito cancelamento. O Autor também explicou/concretizou a deslocação que a sinistrada iria efectuar e que se tratava de uma urgência (iria a ... e depois à ..., referindo as peças que a mesma iria levantar).

Em corroboração de tais declarações temos o depoimento da testemunha FF, fornecedor da entidade empregadora há cerca de 5 anos, veio afiançar ao Tribunal que, no dia do acidente, o Autor lhe ligou de manhã a dizer que precisava de uma peça com urgência, tendo-lhe dado a indicação que a peça seria recolhida nesse dia pela sua esposa, no entanto esta não chegou a aparecer. A testemunha também explicou a factura de fls. 231, informando ainda que a peça obviamente não foi entregue nesse dia, facturando sempre na semana da data de entrega. O depoente ainda referiu que o Autor lhe ligou durante o período da tarde a perguntar pela esposa. Ora, entendemos que inexistem razões objectivas para colocar em causa o depoimento claro, detalhado e objectivo desta testemunha, pelo que se nos afigurou credível.

Por outro lado, a testemunha II (ajudante de serralheiro e funcionário da entidade empregadora há 4 anos) asseverou que a sinistrada trabalhava no escritório, mas quando era necessário também se deslocava a fornecedores. Afirmou tê-la visto no dia do acidente (tendo estado com ela durante o período da tarde) e que esta estava “alterada”, estava com pressa para ir a ... buscar uma peça. Não obstante a já referida relação laboral com a entidade empregadora, não colocamos em causa a fidedignidade do seu depoimento, porquanto é congruente com a prova acima referida.

Tal prova por declarações e prova testemunhal é corroborada com o mapa de férias da sinistrada, de onde resulta que a mesma não estaria de férias nesse dia (Mapa de registo de férias de fls. 152 relativamente a CC). Ademais a factura de fls. 231 e resposta da empresa de fls. 267 vão de encontro ao mencionado. Apesar da factura estar datada de 10/12/2020 apenas atesta que a peça foi entregue nessa semana (aproveitando outro transporte, conforme foi explicado).

5.1.1.17.  Recorrendo várias vezes ao Centro de Saúde de ..., com diagnóstico de perturbação depressiva/distúrbio ansioso/estado de ansiedade/tensão.

5.1.1.18. A falecida foi internada em 2012 por tentativa de suicídio.

5.1.1.19. Faltou a algumas consultas no centro de saúde (inclusive com a psicóloga) e teve acompanhamento psiquiátrico particular.

5.1.1.20. Na consulta de dia 30/4/20218, a falecida demonstrou ideação suicida ativa, tendo verbalizado à médica de família que “quando está a conduzir pensa em guinar o carro sempre que vê um camião…Já desligou o ABS do carro”.

5.1.1.21. Em 4/5/2019, a falecida verbalizou, na consulta, à médica que se “sente incapaz de cuidar das duas filhas (tem a última com 4,5 meses e a mais velha com 21 meses), do trabalho e da vida em casa.”

5.1.1.22. Ao longo do tempo a falecida foi mudando de medicação, quer por orientação médica, quer por iniciativa própria.

5.1.1.23. A falecida foi ainda internada no Hospital ... de 2 a 9 de Março de 2020 por depressão recorrente major com ideação suicida, tendo tido alta com medicada com topiramato 25 2 id + sertralina 100 + diazepan 10.

5.1.1.24. A última consulta no Centro de Saúde é de 14/10/2020, mantendo-se o diagnóstico de perturbação suicida, com a seguinte medicação: paracetamol (40 mg); Alprazolam (0,5 mg); Diazepan (10 mg); Sertralina (100 mg); Tramadol + parecetamol (37,5 mg +3,25 mg) e Furosemida.

5.1.1.25. Nas circunstâncias referidas em 5.1.1.4, a condutora do veículo ligeiro, ao cruzar-se com o veículo articulado, impôs ao veículo uma alteração súbita da trajetória do veículo em que seguia, permitindo que o mesmo invadisse de forma brusca e a uma distância não superior a dez metros do outro veículo.

5.1.1.26. Não permitindo ao condutor do outro veículo articulado qualquer manobra de emergência no sentido de evitar a colisão.

5.1.1.27. Colisão que ocorreu de forma frontal angular, produzindo a destruição total do veículo conduzido pela vítima.

5.1.1.28. Com este comportamento, a vítima quis por termo à vida de forma consciente e voluntária, optando por esta via – projeção súbita para cima do outro veículo.

5.1.1.29. Assim, gerando o acidente que causou de forma direta a sua morte.

O Tribunal a quo formou a sua convicção relativamente aos factos 5.1.1.16. a 5.1.1.29.:

“Os factos vertidos em 5.1.1.16 a 5.1.1.29 resultaram da conjugação da prova documental junta aos autos (tanto na fase conciliatória, como na fase contenciosa) com a prova testemunhal produzida em audiência final.

Em concreto, a factualidade que resulta dos pontos 5.1.1.17 a 5.1.1.24 decorreu do histórico clínico da Sinistrada, junto pelo Autor e posteriormente também pelo Centro de Saúde de ..., não tendo sido sequer colocado em causa a sua veracidade pelo Autor (o qual, em declarações de parte, até confirmou o estado depressivo da sua esposa de há muitos anos, “quando a conheci já era assim”).

No que respeita à dinâmica do sinistro (pontos 5.1.1.24 a 5.1.1.29), o Tribunal fundou a sua convicção a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida em sede de audiência final, em particular, nos depoimentos testemunhais. Os ditos depoimentos foram corroborados com o teor dos elementos documentais juntos aos autos, bem como na conjugação de uns e outros elementos entre si e com as regras da experiência comum.

Ora, vejamos.

Em primeiro lugar, atente-se ao depoimento prestado pela única testemunha ouvida que presenciou o acidente em causa nos autos.

JJ (68 anos, perito averiguador de sinistros automóveis e reformado da banca) revelou conhecimento directo dos factos (por ter presenciado o acidente, sendo que era o condutor que seguia imediatamente atrás do camião que foi embatido pela falecida) e depôs de uma forma isenta, objectiva, e esclarecedora, pelo que se nos afigurou totalmente convincente.

A testemunha referiu que estava a preparar-se para ultrapassar o referido camião, quando viu o Smart na direcção oposta à sua (o que o impediu efectuar a manobra de ultrapassagem naquele momento) e quando o Smart estava a cerca de 10 metros do camião “guinou à esquerda embatendo no pesado”. Apercebeu-se que o camião tentou se desviar (“tentativa de chegada à direita”), mas o embate foi inevitável, vindo o camião a tomar, ocupando toda a faixa de rodagem, enquanto que o Smart foi projectado para fora da faixa de rodagem. O depoente afirmou que o mesmo, assim, como o camião deveriam ir a cerca de 80/90 km/h (estava apenas a guardar que o Smart passasse para ultrapassar o camião). Na altura tentou falar com o motorista do camião, mas o senhor, de nacionalidade espanhola, estava em “estado de choque”. Dirigiu-se ao Smart e ligou para o 112, tendo-se apercebido que a condutora do Smart já não estaria com vida (não se apercebeu se esta tinha ou não cinto de segurança colocado). Questionado, o depoimento declarou, de forma peremptória e clara, que não encontra outra explicação para o acidente se não o suicídio. Interpelado para explicar tal conclusão, afirmou que a manobra que visualizou, pela forma como foi feita (“manobra demasiado brusca e incisiva”), apenas poderia ter essa explicação. De facto, a testemunha (directa) afirmou que, a “guinada à esquerda foi demasiado abrupta e a poucos metros do camião”, pelo que vislumbra outra justificação para o ocorrido. Contextualizou que não se apercebeu de qualquer falha técnica ou avaria (ex. rebentamento de pneu).

Apesar do Autor ter pretendido desacreditar a referida testemunha por também prestar serviços para a empresa que elaborou o relatório de investigação junto aos autos pela Ré (empresa “D..., Lda.”, que, por sua vez, presta serviços para várias seguradoras), de fls. fls. 169 a 191, o depoente foi claro ao afirmar que não participou em qualquer investigação deste acidente, nem o poderia fazer pois era testemunha dos factos. Afirmou, ainda, que não teve qualquer contacto com o processo. Para afiançar tal isenção, é de verificar que o relato da testemunha é congruente com o por si exposto logo no momento da chegada das autoridades policiais, conforme resulta do auto de ocorrência de fls. 63 a 67 e declaração prestada pelo mesmo nesse momento à Guarda Nacional Republicana (fls. 67 verso), sendo também coincidentes com as declarações, nessa data, prestadas pelo condutor do veículo pesado (fls. 68). Ora, no momento do acidente, em que presta declarações à Guarda Nacional Republicana, certamente que o depoente não saberia qualquer era o seguro contratado pelo veículo Smart e muito menos saberia quem seria a entidade que iria mais tarde iria proceder à averiguação do acidente que tinha acabado de presenciar.

Por conseguinte, esta testemunha mereceu-nos total credibilidade, quer pela forma objectiva, detalhada e coerente como depôs, quer pela corroboração do seu depoimento com a prova documental junta aos autos. Acresce que, a circunstância de prestar actualmente serviços de perito averiguador de sinistro até lhe concede uma maior experiência que o normal dos cidadãos não teria nestas situações (por exemplo, o depoente logo se encarregou de fechar a via para evitar a eventual dispersão de vestígios) e de avaliar a realidade que presenciou.

Em segundo lugar, o acidente de viação em causa nos autos foi objecto de processo de inquérito crime (processo n.º 1879/20.... – vide cópia integral do processo que foi junto electrónica e oficiosamente na última sessão da audiência final), constando o respectivo relatório final, de fls. 116 a 124 , referindo-se nesse relatório, entre o demais, quanto às causas do acidente: “Observando o local dos factos, exames e perícias, danos nos veículos, marcas, vestígios e demais circunstâncias que rodearam o acidente objecto deste relatório, entende-se que para a produção do acidente, concorreu unicamente a alteração súbita/desvio brusco da trajectória para a esquerda efectuada pela condutora do ligeiro de passageiros, que não possibilitou, tempo e espaço, ao condutor do conjunto de veículos de efectuar manobra evasiva que evitasse o acidente ou que resultasse um resultado menos danoso” (sublinhado nosso).

Por sua vez, KK (Cabo do NICAV da GNR), que foi o instrutor do processo e procedeu ao exame ao local e dos veículos, tendo sido o subscritor do relatório final acima referido, foi ouvido, como testemunha em sede audiência final. O depoimento desta testemunha foi prestado de forma lógica, objectiva, espontânea e esclarecedora, tendo o mesmo detalhado todas as diligências que realizou (nomeadamente, exame ocular do local, exames dos veículos e audição de testemunhas, concretamente o condutor de pesados e o condutor do veiculo que seguia imediatamente atrás deste – a testemunha acima identificada e ouvida em julgamento) e as conclusões que extraiu e a razões para as mesmas. O depoente declarou ainda que, quando chegou ao local, já a falecida tinha sido deslocada para o hospital, tendo visto o Smart fora da faixa de rodagem e o camião tomado na via sobre a lateral direita.

Clarificou que, baseou as suas conclusões nos seguintes pressupostos:

1.º na via não existia qualquer marca de avaria do veículo Smart (exame do local);

2.º do exame que fez dos dois veículos envolvidos (não detectou qualquer anomalia no Smart; analisou o sistema de travagem e pelo “exame que realizou o veículo não tinha qualquer problema”);

3.º a testemunha ocular/presencial referiu logo (no dia do acidente) que o veículo Smart fez um “desvio brusco de trajectória para a esquerda” e o camião “não teve tempo para reagir e evitar o embate”);

4.º a informação que receberam da Guarda Nacional Republicana de ... dando conta que o marido da condutora do Smart se tinha deslocado a esse posto para participar o desaparecimento da esposa e levava cartas escritas pela mesma a dar conta de que a mesma iria por termo vida;

5.º pelos vestígios e pelo depoimento da testemunha presencial, a forma como a colisão ocorreu (demasiado abrupta e muito próximo do camião, concretamente a 10 metros ou inferior) também é indiciadora das suas conclusões;

6.º segundo a informação transmitida pelos bombeiros sapadores que retiraram a sinistrada da viatura, a mesma não usava cinto de segurança (informação transmitida pelos bombeiros sapadores que a retiraram a condutora da viatura, pois quando o depoente chegou ao local a mesma já tinha sido transportada para o hospital, conforme resulta do processo crime).

No que tange à questão do camião ter ficado tombado para a direita, a testemunha explicou que, com o embate, o camião ficou sem roda do lado esquerdo e sem direcção, pelo que não vislumbra qualquer problema na questão do embate “ter sido do lado esquerdo e o camião ter tomado para direita”. Pela dinâmica, o condutor do veículo tenta evitar embate, a roda da esquerda fica inoperacional e o veículo pesado com tractor fica sem direcção e vai tombar para a direita. Não se vislumbrando a razão da questão reiteradamente veiculada pelo ilustre mandatário do Autor, pois que um camião sem direcção e com carga é difícil prever a posição final do mesmo, ainda que tenha sido um veículo pequeno a colidir com o camião.

Também referiu que a visibilidade “era boa” (100 metros de ambos os lados) e a via também estava em boas condições, negando que houvessem no local quaisquer obras (questão também levantada no processo crime pelo aqui Autor, mas sem qualquer explicação alternativa).

(…).

Em terceiro lugar, a CC há vários anos (pelo menos desde 2008, atendendo-se aos registos clínicos que foram juntos aos autos) que sofria de diagnóstico de perturbação depressiva/distúrbio ansioso/estado de ansiedade, tendo já sido, pelo menos duas vezes, internada por tentativa de suicídio. Acresce que, numa das consultas médicas, concretamente na consulta de 30/4/20218 (entre outras), a falecida demonstrou ideação suicida activa, tendo nesta expressamente verbalizado à médica de família que “quando está a conduzir pensa em guinar o carro sempre que vê um camião…Já desligou o ABS do carro” (negrito nosso). Efectivamente, no caso em apreço, a falecida já tinha “planeado” o modo de execução da sua ideação suicida. Assim, cerca de dois anos de meio antes do acidente, CC afirmou, de forma clara, perante autoridade de saúde (sendo expresso de tal modo sério que a médica citou a expressão da paciente no episódio da consulta), que idealizava, sempre que via um camião, em guiar o carro na direcção do mesmo. Ora, tal foi o que ocorreu precisamente nestes autos, segundo o depoimento da única testemunha presencial e face ao depoimento das testemunhas que avaliaram o sinistro (o Cabo da GNR que procedeu à investigação e o perito avaliador que elaborou o relatório junto pela Ré). Não se diga que quem verbaliza tal intenção suicida, não tem efectivamente propósito de se suicidar, pois esta/s patologia/s psiquiátrica/s são imprevisíveis e muitas vezes de difícil recuperação, sobretudo em pacientes com longos registos da doença. Saliente-se que, CC tinha estado internada nove meses antes do acidente por “depressão recorrente major com ideação suicida”.

Também é de salientar que, atentos os registos clínicos de fls. 277 a 311 verso, o seguinte:

- O acompanhamento médico de CC era irregular (por vezes faltava as consultas e só ia a consulta quando a médica se recusava a passar a medicação – vide consulta de fls. 281, onde se pode ler “faltou consulta em Agosto. Não passo medicação até vir a consulta”; também, v.g., fls. 281 verso e 284 verso, onde a médica diz que apenas passa receita se vier a consulta);

- Por vezes, a sinistrada alterava, por sua iniciativa, a medicação – vide consulta de 23/5/2019, a fls. 283 “esta noite para dormir tomou 10 alprazolam 1 mg + 4 alprazolm de libertação modificada para dormir. Suspendeu medicação prescrita pelo SU por não se sentir bem decidiu voltar a tomar o mesmo que lhe tinha sido prescrito em 2012”);

- O registo da última consulta é de quase dois meses antes do acidente, não resultando de tal registo qualquer alteração à sua patologia, mantendo-se a informação de perturbação depressiva.

- Nesse mesmo ano do acidente, cerca de 10 meses antes do mesmo, a médica registou, entre o demais, “ainda não fez os exames cardíacos pedidos em Outubro. Vai fazer amanhã. Engordou 6 kg em menos de 1 ano!!! Tem formação em nutrição!!!”.

Ora, todo este histórico clinico, vem afiançar o relato da única testemunha directa que foi ouvida em audiência final e também é congruente com as conclusões o que chegou o Cabo da Guarda Nacional Republica (que e´ especialista” na investigação de acidentes de viação, pertencendo ao NICAV, tendo já larga experiência neste campo), que investigou o sinistro e elaborou o relatório final.

Em quarto lugar, do auto de notícia consta que o Autor, no dia dos factos, deslocou-se ao posto da GNR de ..., para formalizar o desaparecimento da sua esposa, e que esta tinha deixado duas cartas, uma de despedida (dizia que ia por termo à vida) e outra a pedir que os seus órgãos fossem doados à ciência. O Autor tentou justificar-se dizendo que as cartas já eram antigas (tinham já sido escritas em 2014, dizendo também que “ela estava sempre a escrever”). No entanto se assim efectivamente ocorreu (se as cartas já nem sequer eram recentes) não se compreende a razão do Autor não a ter junto aos autos as mencionadas missivas (é verdade que não era o Autor que o tinha de provar, mas em face do que foi reportado por todas as entidades envolvidas, o Autor facilmente tinha posto em causa tal argumento (argumento que até é infirmado pelas próprias declarações do Autor, tendo dito que a sua esposa, estava sempre a “escrever”; também a prova documental o infirma pois resulta dos autos que a falecida nesse mesmo ano foi internada por “ideação suicida”). Também disse que apenas levou as cartas porque lhe foi dito, pelos militares, que tinham de ter alguma coisa que indiciasse algo suspeito para poderem averiguar e apenas por essa razão foi buscar as cartas. Porém, tal informação não consta do referido auto de notícia, nem o militar da GNR ouvido o referiu.

Em quinto lugar, temos “o relatório de avaliação de danos corporais” de fls. 169 a verso a 191 subscrito pelo perito averiguador que presta serviços para a empresa “E..., Lda.”, que, por sua vez, também presta serviços para a aqui Ré´. O subscritor do mencionado relatório prestou depoimento na audiência final. Ora, a testemunha LL explicou, de forma detalhada, esclarecedora e objectiva, o relatório que elaborou, bem como as diligências que realizou.

A testemunha referiu que, por exemplo, tentou contactar o marido da falecida, foi à Guarda Nacional Republicana e ao Tribunal, deslocou-se ao local do acidente, falou com a testemunha JJ, que lhe afiançou que a condutora do Smart “guinou para a via em sentido oposto sem qualquer motivo aparente, tendo o condutor do camião ainda tentado guinar para a direita para evitar o acidente, mas ficou tombado na via impedindo a circulação” e as conclusões a que chegou. Mais acrescentou esta testemunha que na altura fez pesquisas, poucos dias (“não deve ter passado de uma semana”) após o acidente (altura em que lhe foi remetido o processo) nas redes sociais (Facebook) e encontrou o perfil da falecida, conforme prints que anexou ao seu relatório de onde consta a última publicação da CC, no dia do acidente, a despedir-se das filhas. Esta testemunha também referiu que o camião ficou desgovernado ao tentar evitar a colisão e ao sofrer a colisão frontal acabou por cair para a esquerda. Afirmou, ainda, que o camião ficou na via vários dias pois era difícil rebocá-lo.

Em sexto lugar, da análise do Facebook da sinistrada, a testemunha LL constatou que a mesma estudou ciências de nutrição na FCNAUP, tendo tido o próprio negócio em ..., na Naturhouse, que colocou em trespasse em 2019. Cerca de 30 minutos antes do sinistro, a sinistrada fez uma publicação ao marido e às filhas e no início do dia (pelas 06:48 horas) fez uma publicação às filhas “se amanhã não estiver cá”. As publicações foram comentadas por “amigos”, dizendo, entre outras coisas, “faz todo o sentido, mas na hora ninguém se apercebeu”. A testemunha também verificou a existência de outras publicações em tom depressivo nos dias anteriores.

O Autor impugnou tal documento e até, em requerimento apresentado nos autos, informou que iria “accionar criminalmente os autores desses supostos relatórios com base em páginas de Facebook, que o Autor nem sequer tem acesso, pois é nosso entendimento que estamos perante a prática de vários crimes, e que terão de ser apurados pelo Tribunal competente.”. Ora, inexiste noticia que efectivamente o Autor “tenha accionado criminalmente os autores de tal relatório”, nem vislumbramos qual crime em que estaria/am a praticar porquanto se a testemunha teve acesso à dita página de Facebook da falecida é porque esta era pública e estava acessível. O Autor afirmou que a página de Facebook já não está activa (no entanto, não afirma que a mesma não existia ou era falsa”), o que foi confirmado por esta testemunha. No entanto, conforme é de conhecimento comum, não seria certamente a Ré que poderia “cancelar” um perfil do Facebook da falecida, pois que o mesmo apenas poderia ser cancelado por alguém que tivesse acesso à conta da sinistrada…Ademais, não vemos qual seria o interesse em cancelar a página do Facebook se não omitir “vestígios” deixados pela Sinistrada que corroborassem a tese da Ré (suicídio).

Também não subsistem dúvida que o referido perfil era da falecida, o Autor nunca o nega e a testemunha MM, prima da falecida e amiga desta, quando foi confrontada com páginas do mesmo, o confirmou.

Em sétimo lugar, a testemunha NN (guarda da GNR), que elaborou o auto de noticia, tendo referido as diligências que encetou, logo após ter recebido a chamada do 112, tendo que aguardar a patrulha de ..., pois estava sozinho no Posto. Quanto chegou ao local, viu o camião tombado para a lateral direita e atravessado na faixa de rodagem. A sinistrada falecida já tinha sido retirada da sua viatura (que se encontrava bastante danificada). Também tomou declarações à testemunha que seguia imediatamente atrás do camião. A testemunha contactou o posto da GNR de ... (tendo identificado o colega como OO) para solicitar que a família fosse avisada, mas o seu colega daquele posto disse-lhe que já lá se encontrava o marido da sinistrada a comunicar o desaparecimento da mesma e que tinha levado uma carta de despedida e outra, conforme fez constar do auto. Afiançou que, o camião estava carregado e que a estrada nacional esteve cortada durante 40 horas, pela necessidade de reboque e por ter havido necessidade de articulação com os colegas das fronteiras. Referiu que o camião tinha seguro, assim como o reboque. Na perspectiva da testemunha o camião ao guinar para a direita perdeu o controlo do veículo.

Em oitavo lugar, certo é que, os “depoimentos» não valem pelo número. Valem pelo peso da credibilidade que merecem” [acórdão da Relação do Porto de 20-12-2011, 51/08.7GAMCD.P1, acessível in www.dgsi.pt], porém o depoimento, em audiência final, da testemunha presencial permitiu, de forma conjugada com toda a prova documental junta aos autos (JJ) e com as testemunhas que avaliarem todos os “vestígios” e “indícios” (nomeadamente, KK e LL) extrair a conclusão acima exarada, isto é, que o “acidente” se tratou de um acto voluntário da infeliz CC que pretendeu por termo à sua vida, conforme já tinha “antecipado” tal vontade.

Assim sendo, dúvidas não teve o tribunal quanto à factualidade vertida em 5.1.1.24 a 5.1.1.29.

Entende o recorrente que os factos dados como provados em 5.1.1.16 até ao facto 5.1.1.24, não podiam ser dados como provados, pois, são factos anteriores ao acidente, e nada tiveram a ver com o que aconteceu naquele dia. A falecida não tinha quaisquer substâncias no organismo, conforme resulta da Autopsia junta aos Autos (artigos 38º e 39º das alegações de recurso).

Quanto aos factos dados como provados em 5.1.1.25 a 5.1.1.29, defende o recorrente não podiam ter sido dados como provados, pois não podem resultar de qualquer elemento probatório nos Autos, não passando de presunções. O relatório policial encontra-se efetuado com uma premissa errada, que é a existência de cartas de suicídio, quando essas cartas não existem, nem nunca existiram. Nunca essas cartas foram juntas ao processo, ou ao relatório policial, pois não existem, e foram invocadas pelo ora recorrente pelos motivos que já se alegaram e que constam das suas declarações, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, e que se juntam transcritas e anexo a estas alegações. Por outro lado, as testemunhas arroladas e inquiridas, ou nada viram do acidente, ou “fabularam”, como é o caso da testemunha JJ, que veio dizer aos Autos, que seguia atrás do camião a cerca de 5 a 6 metros, e que, mesmo assim viu o acidente todo. Ora, a essa distância do camião, era impossível ele ver o que se passou na frente esquerda, pois estava tapada a visão pelo reboque!!!! Depois, questionado como é que ele explicava a trajetória do camião, e o facto de ter tombado para a direita e não para a esquerda, aquele veio dizer que havia uma valas de metro e meio à direita do camião. O que é totalmente falso, pois pode-se ver bem do croquis da polícia que não há bermas fundas do lado direito do camião, atento o sentido deste. Além disso, uma das expressões que usou, foi que “todas as hipóteses eram possíveis”, para a produção do acidente. Ora se ele tivesse visto efetivamente o acidente, nunca diria tal coisa!!!!! Pelo que só se pode concluir, a admitir que a testemunha JJ este no local, que ele presumiu ou foi induzido pelo condutor do camião, que como é obvio, não ia assumir qualquer culpa. E dizemos que admitimos que tenha estado no local, porque, sabendo que o mesmo era perito da empresa que efetuou a peritagem para a Ré, o torna uma pessoa interessada no desfecho dos presentes Autos, e como tal, na prática, é um funcionário da Ré, embora indiretamente.          E tendo em conta as contradições do seu depoimento, não podemos deixar de questionar se a testemunha JJ estava mesmo atrás do camião, ou se só apareceu mais tarde. Tal como não podemos deixar de colocar em causa a hipótese de ter sido ele próprio a elaborar o relatório para a seguradora, apesar de este o ter negado, embora sem grande convicção. Consideramos, pois, que o depoimento desta testemunha JJ deverá ser reapreciado, e não deverá ser considerado para a produção de qualquer prova, face o alegado e ao por ele declarado (artigos 38º a 53º das alegações de recurso).

                  Cumpre decidir.

                  No que respeita aos factos 5.1.16 a 5.1.1.24, não colhe a argumentação de que não podiam ser dados como provados porque são factos anteriores ao acidente. Poderia eventualmente argumentar-se que seriam factos irrelevantes, o que também não acontece, porque estando em discussão se houve suicídio, esses factos têm relevância para a decisão desta questão.

                  Quanto aos factos 5.1.1.25 a 5.1.1.29, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não estamos perante presunções, mas sim factos que foram dados como provados com base nos depoimentos de testemunhas corroborados com o teor dos elementos documentais juntos autos, bem como na conjugação de uns e outros elementos entre si e com as regras da experiência comum.

                  A testemunha JJ revelou ter conhecimento direto dos factos, por ter presenciado o acidente, sendo que foi o condutor que seguia imediatamente atrás do camião. Esta testemunha referiu que iniciei a marcha na ... com destino à ..., que seguia pela na Estrada ...09, atrás do veículo pesado. Estava a preparar-se para ultrapassar o veículo pesado, quando viu o Smart na direção oposta à sua, o que o impediu de efetuar a manobra de ultrapassagem. Quando O Smart estava a cerca de 10 metros do camião guinou à esquerda, embatendo no pesado, aproximadamente no eixo da hemifaixa. O veículo pesado saiu da faixa de rodagem, veio para a berma, e voltou para a faixa de rodagem, e entrou em despiste, ocupando toda a faixa de rodagem. O veículo pesado circulava a uma velocidade idêntica à do seu veículo, a cerca de 80, 90 quilómetros. O Smart embateu com o lado esquerdo frontal, do para-choques, no para-choques da parte da frente do camião, do lado esquerdo. O embateu ocorreu na hemi-faixa do camião.

                  Mais, declarou que não encontra outra explicação para o acidente que não seja o suicídio ou uma avaria mecânica, que é sempre possível, uma distração abrupta da condutora, que eu não sou capaz de identificar obviamente, mas da maneira que foi feito, do que eu vi, eu apontaria para o suicídio. Explicitou ainda que “Aquilo foi demasiadamente brusco e incisivo. Vamos lá ver, aqui socorrendo-me da minha experiência de averiguador, só uma falha mecânica é que poderia provocado um desvio daquela rota, essa falha mecânica normalmente ocorre nos pneus do veículo, o que não aconteceu, não sendo nos pneus do veículo, naquele sítio, todos os desvios são feitos muito mais lentamente, estamos a falar de dois veículos, que ambos estão a rodar aproximadamente a 80 quilómetros hora, ou seja, o veículo Smart estava a rodar a aproximadamente a 80 quilómetros hora, e num espaço de 5 metros faz uma guinada brusca para a esquerda, demasiadamente abrupta para ser uma falha mecânica, como o rebentamento do pneu, o que não ocorreu”. “Não ocorreu rebentamento de pneu, o carro virou e estava intacto, isso vi eu, que estava à espera para ultrapassar.”

                  Acresce dizer que foi a única testemunha que presenciou o acidente.

                  No caso da prova testemunhal, o art.º 396.º CC prevê que a mesma se aprecie livremente, querendo com isto significar que “as razões de ciência, a credibilidade e a coerência de cada testemunha e a interligação dos depoimentos com todos os meios de prova constantes do processo exigem uma prudente ponderação que faz intenso apelo à acuidade, à experiência e ao bom senso do julgador”[8].

                  “O tribunal é, pois, livre na apreciação dos depoimentos prestados pelas testemunhas, que deverá avaliar, para efeitos do juízo sobre a demonstração dos factos controvertidos, tendo em conta a sua consciência, a convicção que formou com base nos depoimentos, a isenção e a imparcialidade demonstrada pelas testemunhas, as regras da experiência, os outros meios de prova trazidos para o processo, etc. Em consequência e por exemplo, o tribunal poderá julgar provado um facto com base no depoimento de uma testemunha ainda que toda a demais prova aponte em sentido contrário (com ressalva do que dispõem os artigos 393.º a 395.º) e ainda que essa parte tenha uma relação de parentesco com a parte a quem aproveite o facto”[9].

                  A testemunha JJ depôs de forma objetiva, pormenorizada e coerente, encontrando-se o seu depoimento consentâneo com a prova documental junta aos autos, nomeadamente com o auto de noticia, participação de acidente de viação, declarações da testemunha JJ e condutor do veículo pesado ... (fls. 41-46), despacho de arquivamento (fls. 112-115) e relatório final do NUIPC (fls. 116-123).

                  Não é assim razoável nem aceitável a sua desconsideração, com os argumentos invocados pelo apelante.

                  Foi também relevante o depoimento da testemunha KK, cabo da GNR, no Destacamento de Investigação Criminal de Coimbra e foi quem elaborou o processo de inquérito do acidente dos presentes autos.

                  Esta testemunha referiu que efetuou uma inspeção ocular aos veículos, exame direto ao local onde se situam os vestígios, e inquirição de uma testemunha ocular. O local do acidente era uma reta em que ambos os condutores se podiam visualizar mutuamente, cerca de 100 metros. O veículo ligeiro de passageiros circulava de forma isolada, e o veículo de matrícula espanhola, o trator com o semirreboque cisterna era o primeiro de dois veículos, na altura do acidente. Atrás dele circulava um ligeiro de passageiros conduzido pela testemunha JJ. O acidente produziu-se numa colisão frontal a lateral, com projeção do veículo ligeiro de passageiros e o natural despiste ou perda de controlo do veículo pesado. O contacto entre os veículos produziu-se na via de trânsito destinada ao sentido de marcha do veículo pesado. Mais referiu que do que averiguou junto da testemunha ocular e do próprio motorista do veículo pesado, foi que, na altura, tinha sido o veículo ligeiro que teve um desvio brusco de trajetória para a esquerda. Confrontado com os vestígios encontrados no local, o condutor do veículo pesado disse que foi um espaço tão curto, que não teve tempo para reagir, a tempo de evitar o acidente.

                  Esta testemunha depôs de forma coerente e isenta e como tal credível.

                  Improcede também nesta parte a impugnação da decisão de facto.

                  5.1.1.33. O prémio do seguro foi agravado para criar provisão em função da pendência do presente processo e o imprevisível desfecho do mesmo.

Relativamente à factualidade vertida em 5.1.1.30. a 5.1.1.33, o Tribunal a quo considerou que a mesma resultou provada do teor da certidão junta pela Segurança Social a fls. 318 e 359 verso, da qual decorre a quantia paga ao Autor (em seu nome e em nome das filhas) a título de subsídio por morte e pensão de sobrevivência.

Alega o recorrente que o ponto 5.1.1.33 não podia ser dado como provado, porque não foi efetuada qualquer prova da parte final do mesmo (artigo 54º das alegações de recurso).

Cumpre decidir.

Assiste razão ao recorrente, porquanto a certidão acima referida apenas pode provar o que consta dos factos 5.1.1.30 a 5.1.1.32.

Nestes termos, o facto 5.1.1.33. passa a ter a seguinte redação:

O prémio do seguro foi agravado.

Factos não provados postos em causa.

5.1.2.1. O facto descrito 5.1.1.12 foi induzido pelos funcionários da ré.

O Tribunal a quo decidiu que não resultaram provados os factos provados em 5.1.2.1. e 5.1.2.2. por se ter provado de forma diversa, conforme fundamentação supra, para onde remetemos.

5.1.2.2. O facto referido em 5.1.1.5 foi involuntário.

O Tribunal a quo formou a sua convicção quanto ao facto 5.1.2.2 da seguinte forma:

“Por outro lado, o facto não provado vertido em 5.1.2.2 resultou da prova conjugada das declarações de parte do Autor (que, nesta parte, acabou por dizer que não foram os funcionários da Ré ou agência da C... que deram indicações para cancelar o accionamento do seguro de acidente de trabalho, declarando que “foram amigos”), devidamente conjugado com o depoimento das testemunhas PP (que apenas confirmou ter recebido a participação por parte do Autor e ter aberto o processo, que reencaminhou para “Lisboa”), HH (confirmou que o Autor efectuou consigo a participação no Banco consigo, tendo accionado os danos próprios e também apólice de acidente de trabalho; sabendo apenas confirmar que mais tarde deu entrada um email da entidade empregadora a solicitar o cancelamento do seguro de acidente de trabalho, pois a trabalhadora estava de férias, tendo previamente o Autor lhe ligado a dizer que pretendia cancelar o acidente de trabalho, tendo o depoente apenas lhe dito que tinha de ser por escrito); QQ (tendo confirmado, enquanto gestora do sinistro de acidente de trabalho, recepcionou a documentação que lhe foi remetida pelo Banco e que entregaram a investigação à empresa que efectuou a investigação, conforme relatório que foi enviado aos autos).”

5.1.2.3. A manobra referida em 5.1.1.25 foi realizada a menos de cinco metros do outro veículo.

O Tribunal formou a sua convicção da seguinte forma:

Da conjugação da prova documental e do depoimento da testemunha JJ e KK apenas foi possível concluir que, de forma firme, a distância aludida no ponto 5.1.1.25 e, nesta decorrência, deu-se como não provado o facto exarado em 5.1.2.3.

Refere o recorrente o seguinte:

Quanto ao facto não provado em 5.1.2.1, não devia ter sido considerado como não provado, mas sim como provado, em face do teor das declarações do ora recorrente, que se pretende também que sejam reapreciadas para que este facto seja dado como provado.

Quanto ao facto não provado 5.1.2.2, também não podia ser dado como não provado, pois não há testemunhos presenciais dos factos que efetivamente aconteceram, pelo que não se pode dizer que o que aconteceu foi voluntário, ou involuntário, e por quem, nos termos já alegados supra, pois, o único depoimento da testemunha que alega ter visto tudo, não pode ser considerado como credível, nos termos que já se alegaram, e como tal, este facto não podia ser dado como não provado, mas sim como provado.

Quanto ao ponto 5.1.2.3, também não podia ter sido dado como não provado, tal como não o devia ter sido dado como provado o facto 5.1.1.25, pelos mesmos motivos já alegados, e que aqui se dão por reproduzidos, pelo que este facto deveria até ser eliminado.

Quanto ao depoimento do senhor Agente que elaborou o relatório, ele nada soube explicar do acidente, tendo-se procurado esquivar às perguntas, e remetendo sempre para o relatório escrito, pelo que o respetivo depoimento, que se pretende que seja reapreciado, também deverá ser desvalorado para a prolação da Douta Decisão.

E a testemunha JJ, também não podia ter sido valorada de forma credível, pois era impossível que ele conseguisse ver o acidente a dar-se tendo em conta a distância a que ele diz que seguia atrás do camião, e a distância que ele diz ter visto a falecida a guinar o carro deliberadamente contra o camião.

Motivo pelo qual se pretende que sejam reapreciadas as respetivas declarações, pois estão eivadas de contradições graves, e além disso, tem interesse no desfecho dos Autos que seja favorável à Recorrida, pois trabalha para ela (artigos 57º a 63º das alegações de recurso).

Cumpre decidir.

Quanto ao facto não provado 5.1.2.1 não é possível inferir das declarações de parte do autor que o facto descrito 5.1.1.12 foi induzido pelos funcionários da ré.

Relativamente ao facto não provado 5.1.2.2, o mesmo tem de manter-se como não provado, porquanto o facto 5.1.1.5. refere-se a conclusões de um despacho de arquivamento.

Por fim, e no que respeita ao facto não provado 5.1.2.3, verificamos que a única testemunha que presenciou o acidente referiu que “o veículo Smart estava a rodar a aproximadamente a 80 quilómetros hora, e num espaço de 5 metros faz uma guinada brusca para a esquerda.

Assim sendo, e porque este facto refere “a menos de 5 metros do outro veículo” e o facto provado 5.1.1.25 alude “a uma distância não superior a dez metros do outro veículo”, entendemos que não se justifica dar aquele como provado.

Com exceção da alteração acima referida, e no que respeita aos factos essenciais mantêm-se pois inalterada a decisão de facto.

                                                                       *
3. Qualificação jurídica do acidente sofrido pela sinistrada CC.

Na sentença considerou-se que não se verificam todos os elementos que definem legalmente o acidente de trabalho, com a seguinte fundamentação que se reproduz parcialmente:

“Revertendo ao caso dos autos, é inegável que CC sofreu um acidente de trabalho, tal como previsto nos artigos 8.º e 9.º, n.º 1, alínea h), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, dado que tinha acordado com B..., Unipessoal, Ld.ª sob sua autoridade, direcção e fiscalização, exercer uma actividade, mediante retribuição, tendo sofrido um acidente in itinere, ocorreu no seu tempo de trabalho e em virtude do mesmo (conforme provado no ponto 5.1.1.14 dos factos provados).

Há casos em que se suscitam dúvidas quanto à sua caracterização como acidente de trabalho. Entendemos que existe sempre acidente de trabalho, independentemente do local onde ocorre, desde que o trabalhador esteja aí por causa ou por ocasião das suas funções, a mando da empresa, sujeito ao controlo directo ou indirecto do empregador, nos termos do n.º 2, alínea a) do artigo 8.º da LAT.

No entanto, a qualificação de um evento como acidente de trabalho não prescinde, da verificação das características que enformam o conceito, a saber, ser o evento datável, de surgimento súbito e que ocorra no local e no tempo de trabalho ou, para o caso que nos ocupa, que tenha relação de causalidade com o dano.

A morte por suicídio não pode ser caracterizada como acidente e muito menos como de trabalho.

Se, por um lado, não estão reunidos os pressupostos legais constantes do artigo 6º da Lei 100/97, de 13/09, designadamente, no suicídio a morte não ocorre de modo não intencional ou involuntário.

A questão a decidir nem sequer tem a ver com a possibilidade do estabelecimento de um nexo de causalidade adequada - entre o acidente e a morte por suicídio da sinistrada.

No caso em concreto, provou-se que o sinistro não é fortuito e não é lícito, sendo insusceptível, como acto premeditado inerente à própria vítima, de estar coberto pelos riscos normais de acidentes de trabalho.

Ora, a seguradora, nos termos da legislação aplicável e da apólice garante a responsabilidade do tomador de seguro pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho, ou seja, o contrato de seguro cobre as prestações por morte desde que esta resulte ou tenha causa num acidente que deva ser caracterizado como de trabalho, conforme cláusula terceira, n.º 1 das condições gerais e especiais da apólice.

Obviamente que o contrato de seguro não cobre o risco de suicídio (vide, v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/1/2010, Processo n.º 196/06.8TTCBR.C1, acessível in www.dgsi.pt.).

Mas a morte ocorrida por suicídio apenas é reparável desde que possa ser atribuída a um acidente caracterizável como de trabalho e consequência do mesmo (como por exemplo, um trabalhador que tem um acidente e sofre lesões e sequelas que o levam a querer por termo à vida).

(…).

Nos termos do artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da NLAT, o empregador (seguradora) não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que for dolosamente provocado pelo sinistrado.

Ora, entende-se por acidente qualquer acontecimento fortuito, súbito e anormal, devido a causa exterior e alheia à vontade da pessoa segura que lhe provoque uma lesão corporal, desde que requeira tratamento de urgência em hospital quer em regime de internamento quer em regime ambulatório.

(…).

Não se verificam-se, pois, todos os elementos que definem legalmente o acidente de trabalho, do qual resulta para o Autor, em nome próprio e em representação das filhas menores de idade, o direito à reparação nos termos da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.

Nesta decorrência, não se provando os factos constitutivos do direito a que se arrogou nesta acção, conduz, destarte, à improcedência in totum desta acção, sendo a Ré ser absolvida dos diversos pedidos contra si deduzidos pela Autor, em nome próprio e em representação das ambas as filhas, menores de idade.”

O recorrente considera que o acidente se deu por culpa do condutor do veículo pesado de mercadorias, que conduzia de forma errática, e distraído, talvez à procura do destino da carga, e que terá sido ele a deixar o camião descair para a faixa contrária, o que levou a que a falecida se tivesse assustado e acabado por colidir com ele. Na perspetiva do Recorrente, haveria sempre, e pelo menos, culpa concorrente, e não qualquer ato deliberado da falecida na produção do acidente, com o objetivo de se suicidar. Estamos perante acidente de trabalho.

Vejamos se pode considerar que o acidente ocorreu por suicídio da sinistrada.

Importa, pois, trazer á colação os seguintes factos:

-No dia 9/12/2020, pelas 17h06, na EN ...09, Km 132.100, ..., ..., a sinistrada CC foi interveniente em acidente de viação, quando conduzia o veículo ligeiro de passageiros, Smart, de matrícula ..-SI-.., envolvendo a intervenção do veículo pesado de mercadorias, de matrícula ....LBY.

- Consta do relatório final do OPC quanto às causas do acidente: “Observando o local dos factos, exames e perícias, danos nos veículos, marcas, vestígios e demais circunstâncias que rodearam o acidente objeto deste relatório, entende-se que para a produção do acidente, concorreu unicamente a alteração súbita/desvio brusco da trajetória para a esquerda efetuada pela condutora do ligeiro de passageiros, que não possibilitou, tempo e espaço, ao condutor do conjunto de veículos de efetuar manobra evasiva que evitasse o acidente ou que resultasse um resultado menos danoso”.

-A falecida padecia de perturbação depressiva, sendo medicada para tal patologia, pelo menos desde 11/08/2008.

-Recorrendo várias vezes ao Centro de Saúde de ..., com diagnóstico de perturbação depressiva/distúrbio ansioso/estado de ansiedade/tensão.

-A falecida foi internada em 2012 por tentativa de suicídio.

-Faltou a algumas consultas no centro de saúde (inclusive com a psicóloga) e teve acompanhamento psiquiátrico particular.

-Na consulta de dia 30/4/20218, a falecida demonstrou ideação suicida ativa, tendo verbalizado à médica de família que “quando está a conduzir pensa em guinar o carro sempre que vê um camião…já desligou o ABS do carro”.

-Em 4/5/2019, a falecida verbalizou, na consulta, à médica que se “sente incapaz de cuidar das duas filhas (tem a última com 4,5 meses e a mais velha com 21 meses), do trabalho e da vida em casa”.

-Ao longo do tempo a falecida foi mudando de medicação, quer por orientação médica, quer por iniciativa própria.

-A falecida foi ainda internada no Hospital ... de 2 a 9/03/2020 por depressão recorrente major com ideação suicida, tendo tido alta com medicada com topiramato 25 2 id + sertralina 100 + diazepan 10.

-A última consulta no Centro de Saúde é de 14/10/2020, mantendo-se o diagnóstico de perturbação suicida, com a seguinte medicação: paracetamol (40 mg); Alprazolam (0,5 mg); Diazepan (10 mg); Sertralina (100 mg); Tramadol + parecetamol (37,5 mg + 3,25 mg) e Furosemida.

-A condutora do veículo ligeiro, ao cruzar-se com o veículo articulado, impôs ao veículo uma alteração súbita da trajetória do veículo em que seguia, permitindo que o mesmo invadisse de forma brusca e a uma distância não superior a dez metros do outro veículo.

-Não permitindo ao condutor do outro veículo articulado qualquer manobra de emergência no sentido de evitar a colisão.

-Colisão que ocorreu de forma frontal angular, produzindo a destruição total do veículo conduzido pela vítima.

-Com este comportamento, a vítima quis por termo à vida de forma consciente e voluntária, optando por esta via projeção súbita para cima do outro veículo.

-Assim, gerando o acidente que causou de forma direta a sua morte.

Vejamos.

Estabelece o art.º 8º da LAT (Conceito):

“1- É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.

2- Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:

a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador;

b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

c) No caso de teletrabalho ou trabalho à distância, considera-se local de trabalho aquele que conste do acordo de teletrabalho.”

Dispõe o artigo 14.º da LAT (Descaracterização do acidente):

“1- O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:

a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;

b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;

c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.

2- Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.

3- Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”

“A palavra “suicídio” deriva de duas palavras de origem latina, sui (si mesmo) e caedare (matar), podendo ser definido como “Ato ou efeito de se suicidar ou de tirar a própria vida”[10].

(…).

Cremos que um ato suicida praticado no contexto de uma doença do foro psicológico medicamente diagnosticada é implicitamente um ato imbuído de falta de discernimento, racionalidade e autodeterminação. Nessas circunstâncias, o ato suicida é um comportamento praticado pelo próprio lesado, mas condicionado pelo seu estado psicológico debilitado. Não temos dúvidas de que existirão, certamente, atos suicidas intencionais e plenamente conscientes, sem qualquer quadro depressivo prévio. (…) Note-se que uma “depressão” pode ser definida como um “Estado patológico de sofrimento psíquico assinalado por um abaixamento do sentimento de valor pessoal, por pessimismo e por uma inapetência face à vida.”[11]. Portanto, quanto a nós, é possível afirmar (ainda que a posteriori) que o suicídio perpetrado por um trabalhador no contexto de uma doença do foro psicológico, como uma depressão clinicamente diagnosticada, não foi certamente um ato consciente, racional, perpetrado com a plenitude das faculdades mentais”[12].

Segundo Ana Cristina Ribeiro Costa[13] “Salvo melhor opinião, entendemos que o acto suicida do trabalhador ocorrido no local e tempo de trabalho deverá ser, em principio, qualificado como contingência profissional, podendo tal qualificação ser afastada no caso concreto. De facto, é evidente que a presunção não se aplicará de forma inilidível, admitindo-se prova em contrário, em virtude de sempre se pode estar perante situações de fraude, ou ainda, quando se estabeleça com precisão a falta de relação do ato com a atividade laboral. Todavia, uma vez que a presunção determinada pelo legislador nacional é distinta daquela que prevêem os legisladores estrangeiros, admitimos que, para quem exija além de um nexo entre acidente e lesão, também um nexo entre esta e a actividade laboral, para que ocorra acidente de trabalho, haverá necessidade da prova da relação da causalidade, que caberá àqueles que pretendam beneficiar da qualificação como contingência laboral”.

A questão a decidir, tem a ver com a possibilidade do estabelecimento de um nexo de causalidade – adequada.

Escreveu-se no Ac. do TRC, de 28-01-2010[14] “No que à causalidade concerne o nosso ordenamento jurídico consagra[15] a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, sendo necessário demonstrar, no caso, que se não tivesse sido o acidente e as lesões que imediatamente lhe advieram a morte do sinistrado não teria[16] ocorrido.

Conforme se lê no AC. STJ de 28-03-2007[17], o art.º 563º do Cód. Civil “ consagra a vertente mais ampla da causalidade adequada, ou seja, a sua formulação negativa, não exigindo a exclusividade do facto condicionante do dano.

Neste contexto, é configurável a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, do mesmo passo que se admite também a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeia um outro que suscite directamente o dano.

Apesar disso, o facto condicionante já não deve ser havido como causa adequada do efeito danoso, sempre que o mesmo, pela sua natureza, se mostre de todo inadequado para a sua produção. É o que sucede quando o dano só tenha ocorrido por virtude circunstâncias anómalas ou excepcionais de todo imprevisíveis no contexto do trajecto causal”.

E a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu a este, pressupondo que o facto cuja causalidade se discute tenha sido uma das condições do dano, ou seja, que esse facto integre o processo causal que conduziu ao dano.

No caso presente, a morte de sinistrado laboral por suicídio como causa do acidente exigia a prova de um duplo nexo causal- o nexo entre o contexto laboral e a situação psíquica depressiva e a relação causal entre esta e o ato suicida.

Ou seja, por outras palavras, diante de cada caso concreto, cumpre analisar se há uma conexão (razoável) entre o trabalho e a determinação suicida.

Ora, decorre dos factos dados como provados, que a sinistrada cometeu suicídio num quadro de síndrome depressivo, mas sem que se possa considerar verificado o nexo de causalidade entre o contexto laboral e a morte por suicídio.

Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento da questão relacionada com a culpa do condutor do veículo pesado.

Cumpre ainda referir, que não tendo a decisão de facto sido alterada de forma relevante, a decisão de direito não poderia ser diferente da proferida. Convém recordar que segundo o apelante, a sinistrada não cometeu suicídio.

Em suma, não procedem de todo as conclusões recursórias, não violando a sentença quaisquer das normas jurídicas invocadas pelo apelante.

Nesta conformidade, julgamos a apelação improcedente e confirmamos a sentença recorrida, com a alteração relativa à matéria de facto que se deixou consignada.

                                                                       *

DECISÃO

Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida, com a alteração relativa à matéria de facto que se deixou consignada.

Custas pelo apelante- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC.

                                                                                                    Coimbra, 5 de abril de 2024

Mário Rodrigues da Silva- relator

Paula Maria Roberto

Felizardo Paiva

                                                                       *

Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):

(…).

Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original





([1]) Ac. do STJ, de 26-05-2021, proc. 17919/16.0T8LSB-A.L1.S1, relator Henrique Araújo, www.dgsi.pt.

([2]) Ac. do STJ, de 8-09-2021, proc. 737/17.5T8VNF-A.G1.S1, relator Fernando Baptista, www.dgsi.pt.

([3]) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3ª ed.  III, p. 245.
([4]) Ac. do STJ de 11-12-2003, proc. 03B3893, relator Quirino Soares, www.dgsi.pt.
([5]) Ac. do TRG, de 13-03-2023, proc. 8085/17.4T8PRT.P1, relatora Fernanda Almeida, www.dgsi.pt.
([6]) https://blogippc.blogspot.com/search?q=autonomia+da+relação.

([7]) Cf. Ac. do STJ, de 16-12-2020, proc. 564/15.4T8EVR.E1. S1, relatora Paula Sá Fernandes, www.dgsi.pt.

([8]) Anotação ao art.º 396.º, Código Civil Comentado, Parte Geral, coord. de Menezes Cordeiro.
([9]) Rita Gouveia, anotação ao art.º 396.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora.
([10]) “Suicídio”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em https://dicionario. priberam.org/suic%C3%ADdio.
([11]) “Depressão”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disponível em https:// dicionario.priberam.org/depress%C3%A3o.
([12]) Cláudia Alexandra dos Santos Silva, O ato suicida do trabalhador no contexto do regime infortunístico laboral: comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/12/2010, Questões Laborais nº 61, (julho-dezembro, 2022), pp. 151 e 152,
([13]) O Acto Suicida do Trabalhador- A Tutela ao abrigo dos Regimes, Questões Laborais nº 40, 2012, pp. 239 e 240.
([14]) Proc. 196/06.8TTCBR.C1, relator Felizardo Paiva, www.dgsi.pt.
([15]) O art.º 563º do Cód. Civil segundo P. de Lima e A. Varela “Cód. Civil anotado, Vol. I, 4º edição, pág. 579 ”a fórmula usada no art.º 563º deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como que quem diz adequada desse efeito”.
([16]) A averiguação no nexo causal, conquanto se ponha ex post do evento lesivo, deve demandar ao julgador a efectivação de um juízo de prognose, embora póstuma” – Ac. STJ de 21/06/2007, proc.  07S534, relator Bravo Serra, www.dgsi.pt.
([17]) Proc. 06S3956, relator Sousa Grandão, www.dgsi.pt.