Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
793/13.5PBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: ASSISTENTE
REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 03/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (J I CRIMINAL –J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º, 28.º, 303.º, 307.º E 309.º DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário: I - O assistente ao optar pela via judicial, em detrimento da via hierárquica, na sindicância do despacho de arquivamento do inquérito, num caso em que entende que o Ministério Público tem já nos autos elementos necessários à dedução de acusação, deve incluir no requerimento de abertura da instrução, não só as razões da sua discordância com a não dedução da acusação contra os arguidos por falta de um pressuposto processual, como formular uma acusação alternativa à não deduzida pelo Ministério Público, que permita a prolação de um despacho de pronúncia.

II - Constando do requerimento de abertura da instrução que o assistente B... não pede a pronúncia dos arguidos, mas apenas o prosseguimento dos autos pelo Ministério Público e, sendo o mesmo omisso na dedução de acusação contra os arguidos, entendemos que bem andou a Ex.ma Juíza de Instrução ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Decisão Texto Integral:






Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

           

     Relatório

                       

            Nos presentes autos de instrução que correm na Comarca de Coimbra – Instância Central – Secção de Instrução Criminal – Juiz 1, em que são arguidos A... , B... e C... , a Ex.ma Juíza de Instrução, por despacho de 13 de julho de 2016, decidiu rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente D...., por inadmissibilidade legal da instrução.

           Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o assistente D... , concluindo a sua motivação do modo seguinte:

1.ª O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo tribunal recorrido, por o ora

recorrente não poder conformar-se com a mesma.

2.ª O ora recorrente apresentou queixa, na qualidade de pessoa que há mais de 40 anos cuida e

trata de um pinhal e eucaliptal, designadamente amanhando, cortando e limpando as árvores que no mesmo existiam, cortando o mato e outra vegetação e vigiando o mesmo, dele colhendo todos os frutos, desde a utilização ao seu uso, anteriormente pertencente aos seus pais e, à data dos factos, registado na Conservatória do Registo Predial em nome do seu sobrinho, G..., a quem adveio por doação que os seus avós e progenitores daquele lhe fizeram, sem qualquer oposição destes e daquele.

3.ª O Ministério Público recebeu a queixa e, deu início às investigações, através do titular a quem foi distribuído o processo de inquérito.

4.ª O novo titular deste procedeu ao arquivamento dos autos por entender que o queixoso carecia de legitimidade para se queixar, uma vez que não era o proprietário do prédio rústico e, quem detinha a propriedade do mesmo, era o referido G... , que, ouvido em declarações, confirmou que o ora recorrente era quem cuidava e tratava do pinhal nos precisos termos em que se queixou, mas, declarou não pretender procedimento criminal nem indemnização dos visados na queixa e, assim, o Ministério Público considerou que não tinha legitimidade para prosseguir o procedimento criminal.

5.ª Insatisfeito com esta decisão, o ora recorrente, na qualidade de assistente, requereu a abertura de instrução, cujo requerimento foi rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, uma vez que não descrevia os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

6.ª A requerida abertura da instrução não visava apurar da suficiência indiciária factual, uma vez que o despacho de arquivamento não tinha por fundamento a insuficiência de indícios para ser proferida acusação, mas apenas a ilegitimidade do queixoso e, foi esta a questão suscitada no requerimento de abertura de instrução, pois não podia ser outra, por não existir.

7.ª A finalidade do âmbito da instrução, nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do código de processo penal, tem de ser entendida em termos amplos, porquanto o seu escopo não é apenas averiguar e decidir da insuficiência ou suficiência indiciária factual, porque não se confina ao domínio do facto naturalístico e, também, compreende a dimensão normativa do mesmo e, por conseguinte, a sua suscetibilidade de levar ou não a causa a julgamento, pois é esta a sua finalidade última.

8.ª O despacho final do inquérito proferido pelo Ministério Público não é uma sentença, mas tem força de caso decidido, pelo que, no caso em apreço, terá de ser suscitada a intervenção do Juiz de Instrução para dirimir a questão da ilegitimidade e, assim, evitar que o arquivamento, com este fundamento, adquira instituto de decisão definitiva e inatacável.

9.ª Salvo o devido respeito, a decisão instrutória fez uma errada interpretação e aplicação do direito tendo violado o disposto no artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na medida em que o pedido de análise da questão da ilegitimidade do queixoso e, consequentemente, da ilegitimidade do Ministério Público, não viola a regra sobre a finalidade da instrução, porque a comprovação judicial, a que se reporta esta disposição legal, não se limita ao domínio do facto naturalístico, mas sim sobre a suscetibilidade de levar ou não a causa a julgamento, o que só é possível se o Ministério Público efetuar todas as diligências para o apuramento do cometimento dos factos e da identificação dos seus agentes, prosseguindo a fase investigatória, mas não interpretou nem aplicou aquela disposição legal com este sentido e deveria ter interpretado e aplicado, tendo feito uma interpretação restritiva da mesma.

10.ª O Ministério Público fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação e aplicação do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, quanto aos titulares do direito de queixa, na medida em que a titularidade deste não é exclusiva, no caso dos crimes de dano e dos crimes de furto, do proprietário da coisa danificada furtada, sendo também atribuída, por exemplo, ao arrendatário, usufrutuário, comodatário, ou possuidor, ou seja, a quem está confiada peio dono a guarda e a fruição do bem, pelo que a posse ou um mero poder de facto sobre a coisa constitui condição de legitimidade para apresentação de queixa. Neste sentido, o Acórdão do STJ n.º 7/2011, proferido no processo n.º 456-08.3GAMMV, de 27 de abril de 2011. Mas o Ministério Público assim não entendeu nem interpretou aquela norma legal e fez uma interpretação e aplicação restritiva da mesma.

11.º No caso em apreço da queixa, e das declarações do referido G... , resulta que o recorrente estava legitimado a deter, usar e fruir o prédio rústico, logo tem legitimidade para ter apresentado a queixa e, assim, o Ministério Público fica legitimado a prosseguir a ação penal em matéria de inquérito.

Nestes termos e, nos mais e melhores de direito aplicável, sempre com o muito douto suprimento dos Venerandos Juízes-desembargadores, o presente recurso deve ser recebido, por tempestivamente apresentado e por quem tem legitimidade para tal, sendo-lhe concedido provimento, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que considere admissível a instrução e, julgue que o ora recorrente tem legitimidade para ter apresentado a queixa e, corolariamente, que o Ministério Público tem legitimação para prosseguir com o procedimento criminal, tendo em vista a realização das finalidades do inquérito, com o que, assim, se fará douta, sã e serena justiça.

           

           O Ministério Público na Comarca de Coimbra, Instância Central  respondeu ao recurso interposto pela assistente, pugnando pelo não provimento do mesmo.

          

         A Ex.ma JIC declarou, no despacho de sustentação, manter na integra o despacho recorrido.

           O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer o sentido da improcedência do recurso interposto pelo assistente e manutenção do despacho recorrido.

          

            Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido, na sua resposta, declarado aderir ao parecer apresentado  pelo Ministério Público.

           Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

      Fundamentação

O Despacho recorrido tem o seguinte teor:

« O assistente D... veio requerer, a fls. 241 e seguintes, a abertura de instrução.

Nos termos do n° 1 do artigo 286° do Código de Processo Penal, a instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Se o juiz de instrução decidir que a causa deve ser submetida a julgamento, aceitando as razões apresentadas pelo assistente, isso significa que recebe a acusação implícita no requerimento para abertura da instrução, pronunciando o arguido em conformidade com ela.

Assim, o requerimento apresentado pelo assistente para abertura de instrução há-de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, como resulta desde logo do n° 2 do artigo 287° do Código de Processo Penal, que remete para as alíneas b) e c) do n°3 do artigo 283° do mesmo diploma legal.

Nos termos das alíneas b) e c) do n° 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e ainda a indicação das disposições legais aplicáveis.

Como comenta Maia Gonçalves, o requerimento do assistente para abertura da instrução “deverá, a par dos requisitos do n° 1, revestir os de uma acusação, que serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do princípio do contraditório, e a elaboração da decisão instrutória” - in "Código de Processo Penal Anotado", 1999, 11ª Edição, pág. 552.

Neste sentido o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1993, in CJ, T. IV, 61, ou seja, se no “requerimento de abertura de instrução em causa não se faz qualquer enumeração dos factos concretos que se pretende estarem indiciados nos autos, não se faz uma descrição da conduta do arguido.

Não compete ao Juiz de instrução perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se poderão indiciar como cometidos pelo arguido, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da ação penal, com violação dos princípios constitucionais e legais vigentes”.

O requerimento para abertura de instrução deverá conter as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação. Deverá, igualmente, conter factos que constituem uma verdadeira acusação. Isto é um pressuposto da instrução, uma vez que, desta forma se fixam os poderes de cognição do juiz. Sem tais elementos não poderá o juiz abrir tal fase processual.

Apreciemos, pois, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

O requerimento de abertura de instrução em causa contém os          motivos de discordância do despacho de  arquivamento, mas o assistente não elaborou uma verdadeira acusação, como o exige os normativos legais supra referidos.

O assistente, depois de tecer as considerações quanto á discordância do despacho de arquivamento, devia elaborar a acusação relativamente á qual pretende ver os arguidos pronunciados.

Em momento algum se indica o lugar e data dos factos e não se expõem os factos praticados pelos arguidos.

Não cabe ao Tribunal escolher os factos que deveriam fazer parte dessa acusação.

Por outro lado, no requerimento de abertura de instrução não consta nem um único elemento quanto ao dolo dos arguidos.

Quanto a esta parte, também não está cumprido o disposto na          lei quanto á narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigos 283°, n° 3, e 287°, n° 2, do CPP), uma vez que o dolo é um facto.

Se se omitiu qualquer referência ao plano ou momento ético ou emocional do dolo traduzido no conhecimento pelo agente de que os factos narrados preenchem, ou são susceptíveis de preencher, um dado tipo de ilícito, não pode ter lugar a pronúncia do arguido - cfr. Ac. da RP de 1997, in dgsi.pt

Aliás, como afirma o Ac. da RG, in CJ n° 165, II, 2003, “não existem presunções de dolo; e, por isso, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir das circunstâncias externas da acção concreta. Embora, processualmente, o dolo seja apreciado de forma indirecta, através de actos de natureza externa, é sempre necessário comprovar a existência dos diversos elementos constitutivos e relacioná-los com as pertinentes circunstâncias típicas de cada ilícito.

Não se pode pois ter como implícita ou subentendida a descrição do dolo no requerimento de abertura de instrução. Conforme resulta do artigo 283°, n° 3, al. b), do CPP, na formulação da “acusação” não há lugar à existência de “factos implícitos, mas apenas à “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena...”. E percebe-se porquê, se tivermos bem presente que é pela acusação que se define e fixa o objecto do processo o objecto do julgamento - e, portanto, passível de condenação é tão só o acusado e relativamente aos factos constantes da acusação”. Doutro modo, sempre o arguido estaria impedido de se defender cabalmente, por ignorar, nomeadamente, a modalidade do dolo.

Aliás, o assistente acaba mesmo por dizer que não pede um despacho de pronúncia mas apenas o prosseguimento dos autos pelo M.P. Se era essa a finalidade, o assistente tinha outros meios processuais que poderia utilizar. A instrução, como se disse supra, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e, uma instrução vinda de assistente, obedece a todos os requisitos supra mencionados.

Assim sendo, o requerimento para abertura de instrução apresentado contraria, pois, o disposto nos supra citados n° 2 do artigo 287° e alíneas b) e c) do artigo 283° do Código de Processo Penal, por não conter uma verdadeira acusação.

Como refere José Souto de Moura, “se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados (...) . Aliás, um requerimento de instrução sem factos,  subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz de instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto" - in “Inquérito e Instrução” (cfr. "Jornadas de Direito Processual Penal", pág. 120) .

A falta de descrição de factos e normas legais no requerimento de abertura de instrução do assistente constitui ao mesmo tempo a nulidade prevista no artigo 283°, n° 3, alíneas b) e c) , dada a remissão do artigo 287°, n° 2, e, em conformidade com o n° 3 deste último preceito, causa de rejeição desse requerimento.

De referir o Acórdão da Relação do Porto de 23 de Maio de 2001, in CJ, III, 238, que esclareceu que: “ o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando o M° P° arquiva o inquérito fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do juiz de instrução”.

Segundo o Ac. da RP de 21.11.2001, in CJ, V, 2001, há fundamento para rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, se tal requerimento, não descreve os factos, nem indica as disposições legais incriminadoras por forma a que cada arguido possa saber concretamente o que lhe é imputado. Num tal caso, existe falta de acusação, e não apenas acusação deficiente, o que torna a instrução legalmente inadmissível.

Assim sendo, o requerimento apresentado pelo assistente enferma da nulidade, prevista no artigo 283°, n° 3, para que remete o artigo 287°, n° 2, ambos do Código de Processo Penal (só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no n° 2 do artigo 287° do Código de Processo Penal), devendo por isso ser rejeitado.

Nestes termos, decide-se rejeitar o presente requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça reduzida ao mínimo.».

                                                                       *

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96   e de 24-3-1999   e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

Como bem esclarecem os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).  

No caso dos autos, face às conclusões da motivação do assistente D... a questão a decidir é a seguinte:

- se o assistente não pode no requerimento de abertura da instrução pedir a pronúncia dos arguidos quando o despacho de arquivamento foi proferido pelo Ministério Público com fundamento em não dispor de legitimidade para prosseguir o procedimento criminal.


-

Passemos ao conhecimento da questão.

            O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art.262.º, n.º1 do C.P.P.)

É o Ministério Público que dá destino ao inquérito enquanto dominus desta fase processual e titular da ação penal (art.263.º do C.P.P.).

Nos termos do art.276.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação.

Para a decisão da presente questão importa agora considerar apenas o arquivamento do inquérito.

O art.277.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ao estabelecer que « O Ministério Público procede, por despacho, ao arquivamento do inquérito, logo que tiver recolhido prova bastante de se não ter verificado crime, de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento», distingue três causas de arquivamento distintas:

- a primeira, de ordem material, enunciada na 1.ª parte, ocorre quando durante o inquérito for recolhida prova bastante de não se ter verificado crime (arquivamento por razões de facto e/ou por razões materiais). É uma forma de certeza da inexistência. Não está em causa a mera ausência de indícios suficientes mas, muito mais do que isso, a constatação e a afirmação de que não há crime. Dito por outra forma, inexistem factos que possam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.

- a segunda causa de arquivamento, enunciada na 2.ª parte, ainda de ordem material, tem lugar quando, durante o inquérito, for recolhida prova bastante de que o arguido não praticou aqueles factos a qualquer título (arquivamento por razões de facto). Existe a certeza de um crime e, em simultâneo, a necessária certeza de que o arguido não o cometeu. Não está em causa a existência de crime, ou a sua qualificação jurídica, mas somente a participação subjetiva e individual na sua prática, seja como autor, seja apenas como cúmplice.

- a terceira causa de arquivamento, nos termos da 3.ª parte, do art.277.º, nº 1, do Código de Processo Penal, é já de natureza formal, abrangendo um amplo campo polifacetado em que o procedimento criminal é legalmente inadmissível (essencialmente por razões processuais). O normativo aplica-se a situações de proveniência diversa, geralmente classificadas como pressupostos, ou impedimentos processuais, sendo muitas vezes discutida a sua origem processual, material ou mista. É o caso do ne bis in idem (art.29.º, n.º 5, da C.R.P.), da prescrição (art.s 118.º e ss. do C.P.), da amnistia (art.127.° do C.P.), da falta de queixa do titular do respetivo direito (art.49.º do C.P.P.), da falta de constituição como assistente (art.50.° do CPP), das imunidades parlamentares (art.157.º da CRP), da despenalização da conduta (art.2.º, n.º 2, do CP) ou mesmo da incompetência (art.33.º, n.º 4, do C.P.P.). Nesta hipótese, mesmo que porventura existam indícios suficientes da prática de um crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público não pode promover a ação penal, devendo decidir-se pelo arquivamento.

O inquérito pode ainda ser arquivado ao abrigo do n.º 2 do art.277.º do C.P.P., isto é, quando « não tiver  sido possível ao  Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem forem os agentes».

Arquivado o inquérito, nos termos do art.277.º, n.º1, do Código de Processo Penal, pode o respetivo despacho ser sindicado por intervenção hierárquica, espontânea ou requerida ( art.278.º do C.P.P.) ou por via judicial, através da abertura da instrução ( art.287.º do C.P.P.).

Já o inquérito arquivado ao abrigo do n.º 2 do art.277.º do C.P.P., apenas pode ser reaberto  quando surjam novos elementos de prova ( art.279.º do C.P.P.).

Não havendo reclamação hierárquica, nem requerimento de abertura instrução, a decisão de arquivamento do Ministério Público faz “caso decidido”[1] , conceito mais próprio que o de  “caso julgado”, uma vez que este instituto se reporta exclusivamente a decisões de natureza jurisdicional. 

Seguindo aqui a exposição de Raul Soares da Veiga (“ O juiz de Instrução e a tutela dos Direitos Fundamentais”), entendemos que a alternativa do recurso hierárquico, face à via judicial, só parece preferível quando se ignora quem é o autor da infração ou quando é manifesto para o próprio assistente que, com os dados de que ele mesmo dispõe, não pode imputar factos concretos ao arguido que se continua a suspeitar ser o responsável pelo crime.[2]

É que por força da estrutura acusatória do processo o Juiz não pode devolver o processo ao  Ministério Público para prosseguir a investigação ou para deduzir acusação.

Quando se não ignora quem é o autor da infração criminal e o assistente dispõe de factos e provas no inquérito para poder imputar uma infração criminal ao arguido, a via normal de sindicância do despacho de arquivamento é a instrução uma vez que esta, nos termos do art.286.º, n.º1, do C.P.P., «… visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.».

O controlo judicial da decisão do Ministério Público, de arquivar o inquérito, tem em vista a submissão da causa a julgamento, ou seja, cremos qualquer que seja a causa do arquivamento, o fundamento da instrução por parte do assistente é sempre que deveria ter sido deduzida acusação.

O art.287.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Penal, estabelece que se o Ministério Público, findo o inquérito, não deduzir acusação por crime público ou semipúblico, pode o assistente requerer a abertura da instrução, acrescentando o seu n.º 2 que tal requerimento « …não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros , se espera provar , sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art.283.º, alíneas b) e c). (…).».

A expressão «… sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art.283.º, alíneas b) e c)», é um aditamento ao n.º 2 do art.287.º do C.P.P. introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

De harmonia com o art.283.º, n.º3 do Código de Processo Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade, nomeadamente:

   « b) A narração , ainda que sintética , dos factos que fundamentam a aplicação a arguido de uma pena ou de uma medida de segurança , incluindo , se possível , o lugar , o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada ;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis; ».

É pacífico que o requerimento acusatório formulado pelo assistente delimita o objeto do processo, com a correspondente vinculação temática do tribunal, garantindo a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer convenientemente o contraditório.

O artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ao mandar aplicar ao requerimento de abertura da instrução o artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do mesmo diploma legal, sem qualquer restrição, conduz logicamente à conclusão que o requerente deve dar cumprimento integral ao teor deste preceito, devendo sempre narrar os factos constitutivos do crime e as disposições legais aplicáveis.

Por outras palavras, da conjugação dos preceitos legais ora mencionados resulta que, como diz o Prof. Germano Marques da Silva, “O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objeto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial.”.[3]

Também o Cons. Maia Gonçalves defende que “…o requerimento do assistente para abertura da instrução constitui substancialmente uma acusação…”.[4]

No sentido ainda de que o requerimento para a abertura da instrução, para além da narração, ainda que sintética, das razões de facto e de direito da divergência relativamente ao despacho de arquivamento, deve conter uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento, decidiram, entre muitos outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006 (proc. n.º 60/03.2TANLS.C1, e de 20 de janeiro de 2016 (proc. n.º 1/13.9GBFVN.C1, subscrito pelo relator e adjunto do presente acórdão), in www.dgsi.pt), o acórdão da Relação de Guimarães, de 14 de Fevereiro de 2005 (C.J., n.º 180, pág. 299) e o acórdão da Relação do Porto , de 1 de Março de 2006 ( proc. n.º 0515574, in www.dgsi.pt).

Em suma, quando o assistente requer a abertura da instrução para comprovação judicial da decisão de arquivamento, em ordem a submeter a causa a julgamento, deve indicar não só as razões pelas quais entende que o Ministério Público não deveria ter arquivado o inquérito mas, ainda, os termos em que deveria ter deduzido acusação, por crime público ou crime semipúblico.  

Sendo admitida a abertura da instrução e realizadas as diligências instrutórias, se as houver, tem lugar o debate instrutório, findo o qual o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia ( artigos 297.º, 307.º e 308.º, do C.P.P.).

É evidente que se a instrução é admitida sem que do requerimento de abertura da instrução conste a narração, pelo assistente, dos factos que pretende imputar ao arguido, qualquer descrição que se viesse a fazer numa eventual pronúncia redundaria necessariamente numa alteração substancial do requerimento, com a consequente nulidade, cominada no art.309.º, n.º1 do C.P.P..

Perante esta situação importa esclarecer qual será a consequência da apresentação de um requerimento de abertura da instrução, por parte do assistente, que não se adequa às exigências da finalidade da instrução, designadamente, por omissão da narração dos factos e/ou das disposições legais em ordem a submeter o arguido a julgamento.

Nos termos do n.º 3 do art.287.º do Código de Processo Penal o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Se no que concerne à rejeição por extemporaneidade e incompetência do juiz não se suscitam dúvidas de interpretação, já o mesmo não sucede relativamente à rejeição por inadmissibilidade legal.

Não existindo uma definição de inadmissibilidade legal da instrução, para efeitos da sua rejeição, os Cons. Simas Santos e Leal-Henriques (Código de Processo Penal anotado, vol. II, Rei dos Livros, 2000, pág.163) sustentam que os casos de inadmissibilidade legal da instrução se circunscrevem aos casos de instrução formulada no âmbito de um processo especial ou por quem não tenha legitimidade para tanto (v.g. , por parte civil , pelo Ministério Público ou pelo assistente nos crimes particulares).

Efetivamente, se a lei veda a instrução nas formas de processo especiais, nunca poderá o assistente requerer ao Juiz de Instrução o controlo dum despacho de não acusação através da instrução; de igual modo, se o crime é particular, não poderá requerer a abertura da instrução porquanto a alínea b), n.º 1 do art.287.º do C.P.P. o impede.

Porém, outras perspetivas têm sido encontradas e seguidas na jurisprudência, que indo além das razões formais, tocam no conteúdo do requerimento da abertura da instrução, para rejeitar   este.

Quando o requerimento é inadequado à realização das finalidades legais da instrução, em ordem a submeter a causa a julgamento, deve ser rejeitado, pois os atos a praticar na fase da instrução seriam inúteis.   

Existirá um caso de inadmissibilidade legal da instrução, em razão da nulidade prevista no art.119.º, al.d), do C.P.P., se o requerimento da instrução do assistente contiver factos que não tenham sido objeto do inquérito.[5]

E a idêntica conclusão se chega quando o requerimento da abertura da instrução apresentado pelo assistente é total ou parcialmente omisso na narração dos factos essenciais que integram os elementos constitutivos do crime ou quando nenhum crime é concretamente imputado ao arguido.

Um requerimento de abertura da instrução pelo assistente, com estas deficiências, não permitindo submeter o arguido a julgamento, deve ser objeto de rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, como se vêm pronunciando na jurisprudência, entre outros, os acórdãos, da Relação de Coimbra, de 2 de Novembro de 2005 ( proc. n.º 2791/05), da Relação de Lisboa, de 14 de Janeiro de 2003 ( C. J. , ano XXVIII, 1, pág.124) e de 4 de Março de 2004 (C. J. , ano XXIX, 2º, pág.125), da Relação do Porto, de 23 de Maio de 2001( C.J., ano XXVI, 3, pág.239), e da Relação de Guimarães, de 5 de Maio de 2005 (proc. n.º 1272/04-2 , www.dgsi.pt).

Dividiu-se a jurisprudência se haveria ou não lugar a convite do requerente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.

O acórdão n.º 7/2005 do STJ veio fixar jurisprudência obrigatória no sentido de que “ Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287.º, n.º 2 , do Código de Processo Penal , quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”[6]

Em consonância com esta posição jurisprudencial do STJ, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 27/01 decidiu que “ do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efetivação do direito de defesa (na medida em que protege o individuo contra possíveis abusos do direito de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é , em que o Ministério Público  não descobriu indícios suficientes para fundamentar uma acusação e, por isso , decidiu arquivar o processo.”.[7]

Este Tribunal da Relação, constituído pelo presente relator e adjunto, seguia esta posição jurisprudencial e não existem motivos para dela divergir. 

Feitas estas considerações de nível legal importa passar ao caso concreto.

Para a boa compreensão da presente questão – relativamente à qual não conhecemos ainda jurisprudência – é importante consignar aqui, sinteticamente, a sequência dos atos que deu causa à decisão recorrida e, seguidamente, os motivos que fundamentam o presente recurso do assistente.

O ora assistente D... apresentou queixa contra “ E... , Lda” e B... , porquanto, designadamente e em síntese, entre 15 e 20 de dezembro de 2012, o B... e outras pessoas por si dirigidas, ao serviço de E... , Lda”, entraram num terreno de pinhal, eucaliptal e sobreiros, que se identifica, e aí procederam ao corte de vários eucaliptos e sobreiros, que retiram e fizeram seus, sem o conhecimento e consentimento do queixoso e de G... , causando-lhe danos avaliados em € 5000,00. O terreno era propriedade dos pais do queixoso, que o doaram por escritura pública ao seu neto, G... . No entanto, o queixoso mantem-se a cuidar e a vigiar o terreno, tal como antes da doação, “como se trate de coisa sua, comportando-se inclusivamente como proprietário, à vista de todas as pessoas e sem oposição de ninguém”, pelo que “tem por isso legitimidade para apresentar a presente queixa” contra os participados. 

Para prova do alegado, juntou fotografias e arrolou seis testemunhas.

O Ministério Público abriu inquérito aos factos participados e procedeu à realização de diversas diligências de prova, como a tomada de declarações ao queixoso D... , a inquirição das seis testemunhas arroladas pelo queixoso; a inquirição de outras duas testemunhas, ao interrogatório de arguidos, à acareação entre o queixoso e arguidos, e ao reconhecimento pessoal do arguido C... pelo queixoso.

Findas as diligências, o Ministério Público, por despacho de 19 de abril de 2016, declarou encerrado o inquérito e determinou o arquivamento dos autos, nos termos do art.277.º, n.º1 do Código de Processo Penal, por inexistir queixa válida, carecendo, assim, o Ministério Público de legitimidade para prosseguir o processo.

Para o efeito, considerou, em síntese, que a factualidade descrita na participação crime apresentada por D... , na qualidade de “zelador” do prédio rústico pertença de G... , era suscetível de integrar, em abstrato, a prática, em Dezembro de 2012, dos crimes de furto e de dano simples, previstos e punidos pelos artigos 203.º, n.º 1 e 212.º, n.º 1, do Código Penal. Inquirida a testemunha G... , esta reconheceu ser o proprietário do terreno de que o queixoso apenas “tomava conta ”, e declarou não desejar procedimento criminal pelos factos em causa. Não dispondo o queixoso D... de qualquer título jurídico válido que lhe confira o direito de uso e fruição do imóvel, a queixa não é válida.

O queixoso D... não se resignando com o despacho de arquivamento, requereu a sua constituição como assistente e a abertura da instrução, concluindo o seu requerimento do modo seguinte:
« No caso presente, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por considerar que não tinha legitimidade para prosseguir o procedimento criminal. Desconhece-se, por isso, se o Ministério Público, não fosse o fundamento do seu despacho, entenderia ser necessárias mais diligências com vista à prossecução da finalidade e âmbito do inquérito.
Pelo que, decidida a legitimidade do ora requerente, fica conferida legitimidade ao Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal e, quando reputar oportuno, declarar encerrado o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação nos termos do disposto no artigo 276.º do CPP.

Nestas circunstâncias, salva a decida vénia a douta opinião diversa, entende-se que neste momento o Sr. Juiz de Instrução Criminal não pode proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia. Contudo, atendendo à matéria factual já carreada para os autos, entende-se existirem indícios suficientes da prática dos factos participados e de quem os praticou devendo então serem os seus agentes pronunciados pelos crimes de furto e de dano p. e p. pelos artigos 203.° n.° 1 e 212.° n.° 1 do CPenal.».

Remetidos os autos à Instância Central de Coimbra – Secção de Instrução Criminal – Juiz 1, da mesma Comarca, a Ex.ma Juíza de Instrução, através do despacho recorrido, decidiu rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, por inadmissibilidade legal da instrução, uma vez que o mesmo não contém uma verdadeira acusação, como é exigência do n.º 2 do artigo 287.º e alíneas b) e c) do artigo 283.º, ambos do Código de Processo Penal.

O assistente D... defende, no presente recurso, que a Ex.ma Juíza de Instrução deveria ter admitido a instrução e, finda a mesma, julgado que o ora recorrente tem legitimidade para ter apresentado a queixa e o Ministério Público legitimação para prosseguir com o procedimento criminal, pelo que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que considere admissível a instrução e julgue que o ora recorrente tem legitimidade para ter apresentado a queixa e o Ministério Público legitimidade para prosseguir com o procedimento criminal.

Alega para o efeito, no essencial, que o assistente não podia requerer, na abertura da instrução, a pronúncia ou a não pronúncia dos arguidos, porquanto o despacho de arquivamento foi proferido pelo Ministério Público com fundamento em não dispor de legitimidade para prosseguir o procedimento criminal.

Importava declarar apenas na instrução que o Ministério Público fez uma errada interpretação e aplicação do art.113.º, n.º 1 do Código Penal, quanto aos titulares do direito de queixa, na medida em que a titularidade deste não é exclusiva do proprietário da coisa furtada e danificada, e que o assistente tem legitimidade para a queixa, pois decidido, na instrução, que o assistente tem legitimidade para a queixa o Ministério Público prosseguirá com o procedimento criminal , por ter para tal legitimidade e,  oportunamente, encerrado o inquérito,  deveria deduzir acusação ou despacho de arquivamento.

Vejamos.
Antes do mais não podemos deixar de notar existir alguma contradição nos termos do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente D... .
O assistente refere expressamente, neste seu requerimento, que o Juiz de Instrução não pode proferir despacho de pronúncia ou não pronúncia; o fim da instrução requerida é que se decidida apenas da legitimidade do ora requerente para apresentar queixa e consequente concessão de legitimidade do Ministério Público para prosseguir o procedimento criminal, de modo que este, quando o reputar oportuno, declare encerrado o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação nos termos do disposto no artigo 276.º do C.P.P..

Porém, por outro lado, defende no mesmo requerimento de abertura da instrução que,  atendendo à matéria factual já carreada para os autos, entende-se existirem indícios suficientes da prática dos factos participados e de quem os praticou devendo então serem os seus agentes pronunciados pelos crimes de furto e de dano p. e p. pelos artigos 203.° n.º 1 e 212.º n.º 1 do CPenal.

Da leitura do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente D... resulta medianamente claro que, no seu entender, tem legitimidade para apresentar queixa considerando os poderes que exerce sobre o prédio rústico objeto de dano e de furto, e que existe já nos autos de inquérito prova de factos suficientes para que os arguidos sejam pronunciados pelos crimes de furto e de dano, p. e p., respetivamente, pelos artigos 203.º, n.º 1 e 212.º, n.º, 1 do Código Penal.

O assistente chega a descrever esses factos integradores dos crimes de furto e de dano na motivação do presente recurso.

Pese embora o reconhecimento de que dispõe no inquérito da prova de factos suficientes para que os arguidos sejam pronunciados, cremos que o assistente não formulou uma acusação alternativa ao arquivamento do inquérito – narrando os factos de onde resulta essa sua legitimidade para apresentar a queixa criminal e os que levariam à imputação dos crimes de furto e dano aos arguidos – por entender que o arquivamento do inquérito, quando proferido por razões de natureza formal, nos termos da 3.ª parte, n.º1, do art.277.º, do Código de Processo Penal, impedem que o requerimento de abertura da instrução culmine com a pronúncia dos arguidos.

Só nas situações de arquivamento do inquérito, de ordem material, enunciadas nos n.º1 e 2 do art.277.º do Código de Processo Penal, é que se exigiria formular uma acusação alternativa ao arquivamento do inquérito.

Salvo o devido respeito, o assistente D... não pode visar, no presente caso, com o requerimento de abertura da instrução, que se decida apenas que tem legitimidade para a queixa, e que consequentemente, volte o processo para a fase de inquérito, para o Ministério Público declarar novamente encerrado o inquérito, com dedução de acusação ou de arquivamento.

O assistente ao optar pela via judicial, em detrimento da via hierárquica, na sindicância do despacho de arquivamento do inquérito, num caso em que entende que o Ministério Público tem já nos autos elementos necessários à dedução de acusação, deve incluir no requerimento de abertura da instrução, não só as razões da sua discordância com a não dedução da acusação contra os arguidos por falta de um pressuposto processual, como formular uma acusação alternativa à não deduzida pelo Ministério Público, que permita a prolação de um despacho de pronúncia.  

Dito de outro modo, o assistente D... , tendo optado por requerer a abertura da instrução devia dar integral cumprimento ao disposto no art.287.º, n.º2 , do Código de Processo Penal, incluindo a dedução de uma acusação contra os arguidos, para a qual tem, como reconhece, elementos no inquérito, pois a tal não obsta o arquivamento do inquérito ao abrigo da 3.ª parte, do n.º1 do art.277.º do C.P.P., fundado em razões de natureza formal.

No final do debate instrutório deve ser proferido um despacho de pronúncia ou de não pronúncia, em função das questões de direito e dos factos constantes do requerimento de abertura da instrução.

Como já atrás se consignou, entendemos que, como resulta da jurisprudência fixada pelo  acórdão n.º 7/2005 do STJ, sendo o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o mesmo requerimento.

A falta de menções essenciais no requerimento de abertura da instrução, como seja a falta de narração dos factos constitutivos das infrações penais, pode e deve integrar o conceito de “inadmissibilidade legal da instrução” a que alude o n.º3 do art.287.º do C.P.P., pois a realização da instrução em tal situação seria um ato inútil, designadamente por força do disposto no art.309.º do Código de Processo Penal.

Em suma, constando do requerimento de abertura da instrução que o assistente D... não pede a pronúncia dos arguidos, mas apenas o prosseguimento dos autos pelo Ministério Público e, sendo o mesmo omisso na dedução de acusação contra os arguidos, entendemos que bem andou a Ex.ma Juíza de Instrução ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Assim, mais não resta que confirmar a douta decisão recorrida e negar provimento ao recurso interposto pelo assistente.

            Decisão.

            Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente D... e manter a douta decisão recorrida.

Custas pelo recorrente , fixando em 3 UCs a taxa de justiça.


*

(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.). 

                                                                           *

Coimbra, 15 de Março de 2017

(Orlando Gonçalves – relator)

(Inácio Monteiro – adjunto)

[1] Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código de Processo Penal", UCE, pág.  702; Cons. Maia Costa, Código de Processo Penal comentado, Almedina 2014, pág. 972.    
[2] Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 195.

[3] Cf.. “Do processo penal preliminar”, pág.254.

[4] Cf. “Código de Processo Penal  anotado”, 12ª edição, 2001, pág. 574.

[5] Cf. Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, Verbo, 2000, pág. 140, nota 1.
[6] DR – I , Série A, de 4 de novembro de 2005.

[7] Cf. www.tribunalconstitucional.pt