Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
219227/10.8YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
SUSPENSÃO
ACÇÃO EXECUTIVA
INSOLVENTE
EXECUTADO
Data do Acordão: 03/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 88º DO CIRE.
Sumário: I – A declaração de insolvência do Executado determina a suspensão da instância das execuções contra este pendentes e não a extinção destas por inutilidade superveniente.

II – Tal entendimento, que sempre correspondeu à interpretação sistematicamente mais adequada do artigo 88º do CIRE, tornou-se indiscutível com a introdução nesta disposição do nº 3 pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa



            1. Em 31/05/2012 foi instaurada execução comum para pagamento de quantia certa[1] por M…, Lda. (Exequente e Apelante no contexto deste recurso) contra R…, S.A. (Executada e aqui Apelada).

            No desenvolvimento desta execução adquiriu-se conhecimento da circunstância de a Executada haver sido declarada na situação de insolvência, por Sentença de 07/01/2013 do 2º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa (proc. nº …), cujo trânsito em julgado ocorreu em 19/02/2013.

            1.1. Determinou esta incidência (declaração de insolvência da Executada) a prolação na presente execução do despacho de fls. 249 – este corresponde à decisão objecto do presente recurso – declarando extinta a instância executiva por alegada inutilidade superveniente da lide[2].

            1.2. Inconformada, apelou a Exequente, concluindo o seguinte:
“[…]”.


II – Fundamentação

            2. Relatado o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar o fundamento da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – transcrevemo-las no antecedente item 1.2. – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC) – ou, se se entendesse aplicável o Novo CPC, nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º deste.

            A questão colocada – o fundamento do recurso – cinge-se à determinação do destino da presente execução, em função da declaração superveniente da insolvência da Executada, sendo que a Sr. Juíza a quo considerou ocorrer “inutilidade/impossibilidade superveniente” da lide executiva, declarando extinta a execução.

            Os factos a considerar aqui – e tratam-se fundamentalmente de factos processuais – são os relatados no item 1. deste Acórdão, estando eles documentalmente estabelecidos no processo.

            2.1. Apreciando o recurso manifestamos a nossa discordância do entendimento que subjaz ao despacho recorrido.

            É relevante a este respeito o teor do artigo 88º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), valendo este aqui, obviamente, na redacção actual (referimo-nos concretamente à redacção introduzida pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril[3]):

Artigo 88º
Acções executivas
1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.
2 - Tratando-se de execuções que prossigam contra outros executados e não hajam de ser apensadas ao processo nos termos do n.º 2 do artigo 85.º, é apenas extraído, e remetido para apensação, traslado do processado relativo ao insolvente.
3 - As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.
4 - Compete ao administrador da insolvência comunicar por escrito e, preferencialmente, por meios eletrónicos, aos agentes de execução designados nas execuções afetadas pela declaração de insolvência, que sejam do seu conhecimento, ou ao tribunal, quando as diligências de execução sejam promovidas por oficial de justiça, a ocorrência dos factos descritos no número anterior.

            Sublinha-se que os nºs 1 e 2 constavam da redacção original do artigo 88º, tendo a Lei nº 16/2012 introduzido neste os nºs 3 e 4, sendo que o nº 3 tornou indiscutível – “[a]s acções executivas suspensas nos termos do nº 1 […]” – o que já tinha amplo espaço interpretativo face à redacção originária do preceito: que a declaração de insolvência do executado suspendia, não extinguia, a execução contra este pendente.

            Note-se que isto mesmo era sublinhado por Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, anotando precisamente essa redacção original (a anterior a 2012) do artigo 88º do CIRE:
“[…]
Em consequência da declaração de insolvência, os credores da insolvência perdem a possibilidade de executar os bens compreendidos na massa insolvente, pelo que são suspensas as diligências executivas ou providências requeridas que atinjam esses bens e é vedada a instauração de acções executivas, devendo ser suspensas as que já estejam instauradas, admitindo-se unicamente a sua prossecução contra outros executados.
[…]” (sublinhado acrescentado)[4].

            Ora, se isto era entendido assim, então, face a um enquadramento legal cujo texto se esgotava nos nºs 1 e 2 do artigo 88º, acrescido respaldo passa (passou) a ter esse mesmo entendimento com a introdução em 2012 do nº 3 referindo-se este expressamente, com inegável expressividade interpretativa, às “[…] acções executivas suspensas nos termos do nº1 […]”, consagrando inequivocamente ser essa a consequência sobre a instância executiva pendente em função da declaração de insolvência do executado. Admitindo que alguma vez existiu no artigo 88º do CIRE algum espaço interpretativo – e cremos nunca ter existido – para, nestas condições, determinar a extinção da instância executiva e não a suspensão, isso perdeu qualquer sentido com a introdução do nº 3 operada pela Lei nº 16/2012.

            Todavia, a questão da interpretação do artigo 88º do CIRE (tanto antes como depois da alteração do CIRE de 2012) nem sequer se resolvia adequadamente só com base numa argumentação de pendor gramatical e circular, como a construída só em torno do texto da própria norma, descontextualizado de uma análise global das distintas possibilidades de iter e de resultado do processo concursal subsequentemente à declaração de insolvência. É que, em qualquer das redacções do artigo 88º, a suspensão da instância – não a extinção – aparecia-nos como a solução sistematicamente coerente, face a essas diversas possibilidades de evolução (de resultado) do processo concursal, sendo que algumas delas, porventura até de incidência bastante frequente, excluindo a actuação concreta do efeito de execução universal – de liquidação – do património do devedor, anunciado como propósito precípuo no artigo 1º, nº 1 do CIRE, renovavam o sentido e a utilidade das instâncias executivas afectadas (paralisadas) pela declaração de insolvência.

            Com efeito, ocorre recordar a possibilidade, que pode ser excludente da liquidação do património do devedor, representada pela aprovação de um plano de insolvência, nos termos dos artigos 192º a 222º do CIRE (tenha-se presente, quanto ao encerramento do processo, o regime decorrente da alínea c) do nº 1 do artigo 233º do CIRE). E ocorre recordar, igualmente, as hipóteses de encerramento do processo concursal que não pressupõem qualquer liquidação (v. as alíneas a) e d) do nº 1 do artigo 230º do CIRE) e que não determinam, no caso das sociedades comerciais, a extinção destas (v. os nºs 1, 2 e 4 do artigo 234º do CIRE)[5].

            Valem todos estes argumentos, enfim, como demonstração de que a consequência adequada (aliás, para sermos exactos, a consequência que a lei efectivamente estabelece) da declaração de insolvência da Executada sobre a presente instância executiva só pode ser a suspensão dessa instância, nunca a extinção por inutilidade determinada na decisão apelada.

            2.2. É, pois, o que importa aqui determinar, depois da formulação da síntese conclusiva (sumário) decorrente do antecedente percurso expositivo:
I – A declaração de insolvência do Executado determina a suspensão da instância das execuções contra este pendentes e não a extinção destas por inutilidade superveniente.
II – Tal entendimento, que sempre correspondeu à interpretação sistematicamente mais adequada do artigo 88º do CIRE, tornou-se indiscutível com a introdução nesta disposição do nº 3 pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril.


III – Decisão

            3. Face ao exposto, procedendo a apelação, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a substituição deste por outro que determine a suspensão da presente execução.

            Sem custas.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 25/03/2014. 

(J. A. Teles Pereira - Relator)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] Marca esta data, associada à circunstância da decisão recorrida datar de 19/03/2013 (antes de 01/09/2013), a aplicação à presente instância de recurso do regime processual originariamente decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1), não se aplicando o texto do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho (v. os respectivos artigos 7º, nº 1 e 8º, cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, 2013. p. 15).
[2] Aqui se transcreve esse despacho:
“[…]

Face ao teor da aludida certidão com referência electrónica …, tendo sido declarada a insolvência da sociedade aqui executada por sentença proferida no processo n.º …, do 2º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, transitada em julgado em 19/02/2013, declaro extinta a presente execução, nos termos dos artigos 919º, nº 1, 287º, alínea e) e 466º do C.P.C., por inutilidade/impossibilidade superveniente.

Custas a cargo da massa insolvente da executada.

Fixo o valor da causa em € 57.199, 89 (cinquenta e sete mil, cento e noventa e nove euros e oitenta e nove cêntimos).

Registe e notifique.

Cumpra a Secção o disposto no artigo 919º, nº 2 do C.P.C., notificando ainda o Sr. Solicitador de Execução.
[…]”.
[3] Procedeu esta à sexta alteração ao texto original do CIRE aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18 de Março.
[4] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª ed., Coimbra, 2006, p. 119. No mesmo sentido, na jurisprudência, e sempre no enquadramento legal anterior à Lei nº 16/2012, v. os Acórdãos desta Relação de 03/11/2009 (Teresa Pardal), no proc. nº 68/08.1 TBVLF-B.C1, e de 03/05/2011 (Arlindo Oliveira), no proc. nº 5517/08.6TBLRA.C1, disponíveis, respectivamente em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/a8a57e30051264ad802576690051b836 e em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/49c43b003526086880257888003bdb8.
[5] A este respeito, v. o Acórdão desta Relação de 19/10/2010, proferido pelo ora relator no processo nº 1649/09.1TJCBR.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/d5d7d520f2a8862c802577c7003c43b.
Sumário:

I – A insuficiência da massa insolvente, no caso de insolvência de uma sociedade comercial, pode ser constatada na própria declaração de insolvência, nos termos do artigo 39º do CIRE, ou, após esta, na subsequente tramitação do processo concursal, neste último caso nos termos do artigo 232º do CIRE.

II – Em ambas as situações ocorre o encerramento do processo, sem que se proceda à liquidação do património social.

III – Nestes casos, nos termos do nº 4 do artigo 234º do CIRE, o encerramento do processo concursal não corresponde à extinção da sociedade insolvente, devendo a liquidação da mesma ter lugar (fora desse processo) através do procedimento administrativo de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, previsto no Anexo III ao Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março.

IV – Nestas situações, não tendo o procedimento de dissolução e liquidação sido instaurado oficiosamente ou requerido pelos interessados, a simples deliberação em assembleia geral considerando a sociedade liquidada, não correspondendo a um acto de dissolução e liquidação legalmente conforme, não pode como tal ser objecto de registo na Conservatória do Registo Comercial.