Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
314/09.4IDAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
Data do Acordão: 10/24/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 105º, DO RGIT (REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS)
Sumário: Tratando-se o crime de abuso de confiança fiscal de um crime omissivo, o pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal, é exigível assim que decorra o prazo para o efeito (cfr. n.º 4, do art.º 105º, do RGIT), tenha ou não o sujeito tributário recebido a quantia do cliente/devedor.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 314/09.4IDAVR, supra identificado, após a realização da audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu:

1- Condenar o arguido A... pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.º 1 a 5 e 7, e artigo 7º, n.º 3, ambos do RGIT, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10, dispensando-o, porém, de pena, nos termos do artigo 22º, n.º 1 do mesmo diploma;

2- Condenar o arguido A... pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.º 1 a 5 e 7, e artigo 7º, n.º 3, ambos do RGIT, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 10, o que perfaz o montante de € 1.500, e no caso de não pagamento, em 100 dias de prisão subsidiária;

3- Condenar a arguida “Ww...& ., Lda” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 a 5 e 7, artigo 7º, ambos do RGIT, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 15, dispensando-a, porém, de pena, nos termos do artigo 22º, n.º 1 do mesmo diploma;

4- Condenar a arguida “Ww...& ., Lda” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º, n.ºs 1 a 5 e 7, artigo 7º, ambos do RGIT, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 15, o que perfaz o montante de € 2.250.


*

Os arguidos discordaram da decisão proferida, e dela interpuseram o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

A) Dos documentos juntos aos autos e ao depoimento prestado em Audiência de Julgamento pela única testemunha B..., leva-nos a concluir que, salvo melhor e douta opinião, houve erro notório na apreciação e na valoração da prova ou, pelo menos, insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto proferida, prova essa que implicava decisão diversa da obtida pelo Tribunal a quo,

B) Com efeito, atento o teor dos documentos juntos aos autos pelo Serviço de Finanças de X..., e aos documentos juntos pelos recorrentes, quer com a sua Contestação, quer aquando da realização da Audiência de Julgamento, mais precisamente dos extractos de conta corrente e balancete analítico do cliente "U..." e facturas emitidas pela recorrente àquela firma resulta desde logo que à prestação tributária de IVA referente ao mês de Janeiro de 2010, é devida, em grande parte, de trabalhos efectuados pela recorrente Ww...& ., Lda., à firma U..., Lda., cujo valor total das facturas emitidas pela Recorrente àquela firma em Janeiro de 2010, ascende a € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868,96 , e não de apenas €32.508,00 como foi julgado provado na Douta Sentença em apreciação.

C) Do total facturado pela sociedade recorrente à U... em Janeiro de 2010,  - € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868.96 - nada foi pago pela sobredita firma e como tal também não foi recebido pela sociedade recorrente ou seu gerente, quer no período em apreço ­Janeiro de 2010, quer posteriormente, pelo que também não receberam o IVA de € 5.868,96 inerente às facturas emitidas pela recorrente à U..., Lda.

D) Assim, excluindo tal montante de € 5.868,96 não foi recebido, inerente às facturas emitidas pela sociedade recorrente à U..., Lda. no período de Janeiro de 2010, ao valor do IVA em falta de que os recorrente foram condenados - € 10.767,45 - resulta que o montante que materializa a prestação recebida pela sociedade recorrente dos clientes e que tinha obrigação de entregar ao Estado é de          € 4.898,49 , isto é, inferior a € 7.500, pelo que não está verificado um dos elementos objectivos do crime.

E) Verifica-se "contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão", vício previsto no artigo 410.°, n.º 2, alínea b), atento a que o Tribunal a quo deu como provado factos incompatíveis entre si, concretamente entre os factos referidos em 6, 7, 8, 10 e 11 e os referidos em 9, 14 e 15.

F) Os recorrentes liquidaram o IVA referente ao período de Dezembro de 2008, na sua totalidade, em 7 de Dezembro de 2010, encontrando-se assim reposta a verdade sobre a situação tributária em data anterior muito anterior à notificação da Acusação proferida pelo Ministério Público, a qual só foi deduzida em Janeiro de 2011, pelo que no que toca aos crimes de abuso de confiança fiscal inerentes ao período do IVA referente a Dezembro de 2008, sempre deveria ter-­se decidido pelo arquivamento do processo, considerando para o efeito que o IVA foi totalmente pago pelos recorrentes quando o processo ainda estava em fase de inquérito, e por se verificarem os pressupostos da dispensa da pena.

G) A Douta Sentença ora em impugnação é violadora na sua integração jurídico-penal, porquanto, pese embora com a nova redacção do artigo 105° do RGIT - que suprimiu o termo «apropriação» - o tipo de ilícito de que os recorrentes vêm condenados prescindir do elemento de apropriação da prestação tributária, bastando-lhe a mera falta de entrega passados 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação, exige-se contudo, nos casos em que a prestação tributária pressuponha uma autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida (neste sentido, veja-se inequivocamente Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, 2a edição, Almedina, IDEF, Coimbra, 2007 p. 168 e a mesma autora (sublinhando a sua posição) em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo Pitta e Cunha, Almedina, Coimbra, II Volume, 2009, p. 260 e Paulo Marques, Infracções Tributárias, Volume I, Ministério da Finanças e da Administração Pública, Lisboa, 2007 p. 13) e Acórdão da Relação de Coimbra de 15.12.2010, no proc. n.º 24/06.4IDGRD.C1, Acórdão da Relação de Coimbra de 29.02.2012. no proc. n.º 1638/09.6IDLRA.Cl; e Acórdão do STA de 10-12-2008, processo n.º 0579/08, (também no Ac. STA n.º 542/08 da mesma data e na mais recente jurisprudência daquele Tribunal, nomeadamente nos acórdãos de 28/5/2008, 11/2/2009, 2/12/2009 e de 21/4/2010, proferidos nos recursos n.ºs 279/08, 578/08, 887/09 e 85/10)

H) Quanto à prestação tributária de IVA referente ao mês de Janeiro de 2010, a mesma resulta, em grande parte, de trabalhos efectuados pela recorrente Ww...& ., Lda., à firma U..., Lda., cujo valor total das facturas emitidas pela Recorrente àquela firma no período em apreço - Janeiro de 2010 -, ascende a € 35.213,78 , com IVA incluído de € 5.868,96 , o qual não foi recebido pela sociedade recorrente ou seu gerente, quer em Janeiro de 2010, quer posteriormente, pelo que também não receberam o IVA de € 5.868,96 inerente àquelas facturas emitidas pela sociedade recorrente à U..., Lda.

I) Assim, excluindo tal montante de € 5.868,96 não foi recebido, ao valor do IVA em falta de que os recorrente foram condenados - €10.767,45 - resulta que o montante que materializa a prestação recebida pela sociedade recorrente dos clientes e que tinha obrigação de entregar ao Estado é de          € 4.898,49 , isto é, inferior a €7.500, pelo que não está verificado um dos elementos objectivos do crime.

J) Ao decidir nos termos da Douta Sentença em recurso, o Tribunal "a quo" violou o disposto nos artigos 410°, n.º 2, do Código de Processo Penal, art. 105° do RGIT.

TERMOS EM QUE,

Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta Sentença recorrida e, em consequência os recorridos absolvidos dos crimes de que vêm condenados.


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Respondeu a Magistrada do MºPº junto do tribunal “a quo” defendendo a improcedência do recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, acompanhando a resposta da Magistrada do MP junto do tribunal recorrido.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, os arguidos não responderam.

Os autos tiveram os vistos legais.


***

II- FUNDAMENTAÇÃO

Da sentença recorrida consta o seguinte (por transcrição):

II – Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. A arguida é uma sociedade comercial por quotas e tem por objecto a manutenção industrial – serralharia civil e mecânica, e iniciou a actividade em 28-05-1999.

2. A empresa arguida encontra-se enquadrada, em sede de IVA, no regime normal, com periodicidade mensal.

3. O arguido A..., à data dos factos infra descritos, era o único gerente que tomava todas as decisões atinentes à gestão quotidiana da arguida, designadamente, gerir os fluxos financeiros da empresa em termos de pagamentos e recebimentos, tudo em nome e no interesse da empresa arguida.

4. O arguido, enquanto representante legal, na qualidade de gerente e agindo em nome e no interesse da empresa arguida, remeteu à Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, as declarações periódicas, relativa aos meses infra discriminados, sem qualquer meio de entrega da prestação tributária referente ao IVA que lhe era exigível e que foi auto-liquidado pela empresa arguida, tudo conforme resulta do quadro infra:

Período   ---------------------------------------------------------    Valor do IVA

Dezembro de 2008 -------------------------------------------------€ 12.867,80

Janeiro de 2010 ----------------------------------------------------€ 10.767,45

5. O termo do prazo para entrega daqueles montantes, a título de IVA, ocorreu até ao dia 10 do 2.º mês seguinte ao mês a que dizem respeito.

6. Assim, a empresa arguida, por intermédio do arguido, não entregou aos Cofres do Estado, simultaneamente com a declaração periódica mensal de IVA, a prestação tributária referente ao IVA que lhe era exigível e que foi auto-liquidado pela arguida aos sujeitos fiscais passivos.

7. Com efeito, aqueles montantes, apesar de terem sido liquidados pela empresa arguida nas operações activas em que interveio com terceiros, foram apoderados pela mesma, que os fez seus e lhe deu um destino diverso, não os tendo entregue aos Cofres do Estado.

8. Acresce que decorreram já mais de 90 dias sobre o termo do respectivo prazo legal de pagamento daquelas quantias devidas ao Estado a título de IVA, não o tendo feito até à presente data.

9. Em 07 de Dezembro de 2010, a empresa arguida, através do arguido, procedeu à entrega de     € 9.732,42, por conta da prestação em dívida referente ao mês de Dezembro de 2008.

10. Apesar de notificados nos termos e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, em     29-09-2010, nem a arguida, nem o arguido procederam ao pagamento de todas as quantias supra aludidas, devidas a título de IVA, juros legais e coimas, decorrido que se encontra o prazo de 30 dias.

11. O arguido agiu de forma livre, voluntária, em representação e no interesse da empresa arguida, com os propósitos concretizados de não entregar à Fazenda Nacional as aludidas quantias que sabia serem devidas a título de IVA, integrando-as na sua esfera patrimonial, não obstante saber que tais montantes, tendo já sido auto-liquidados pela arguida nos termos da lei fiscal nos respectivos períodos supra aludidos, pertenciam e deviam ser por ele entregues à Fazenda Nacional, o que não fez, bem sabendo que impendia o dever de enviar ao Estado o meio de entrega daquele montante juntamente com a aludida declaração mensal de IVA.

12. Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

13. A empresa arguida efectuou o pagamento do IVA da liquidação, juros e coimas, referente ao período de Dezembro de 2008, em 07.12.2010.

14. No dia 8 de Fevereiro de 2012, pelo Serviço de Finanças de X..., foi certificado que no processo de execução fiscal nº … , instaurado contra a sociedade executada Ww...& ., Ldª, por falta de pagamento de IVA, respeitante ao período de 2010/01, no valor de € 10.767,45, que actualmente a dívida perfaz o montante de € 10.885,17, o que significa que já foi pago a importância de € 1.918,81 (imputado a juros de mora e a custas processuais).

15. No que toca à prestação tributária de IVA referente ao mês de Janeiro de 2010, a mesma resulta, parcialmente, de trabalhos efectuados pela sociedade Ww...& ., Ldª, à firma U..., Ldª, no valor total de € 32.508,00, com IVA incluído, que, tendo sido facturados em Janeiro de 2010, não foram pagos pela sobredita firma.

16. O arguido A...é primário face ao Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

17. O arguido A...tem como habilitações literárias o 8º ano de escolaridade; vive com a ex-mulher (empresária) e filhos, com 14 e 16 anos de idade, estudantes; aufere mensalmente    € 1100; paga empréstimo para aquisição de habitação própria o montante mensal de € 500; não tem outros encargos, além dos normais.


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III – Factos não provados

Inexistem factos não provados.


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IV - Motivação da decisão de facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente:

Nas declarações do arguido A..., que esclareceu os factos, apresentando o seu ponto de vista, ou seja, justificando a sua conduta porque considera que não usufruiu do dinheiro do imposto, já que a empresa a quem facturou não lhe pagou; logo, nem sequer chegou a receber o IVA; entrou em negociação com as Finanças, tendo entregue o crédito desta empresa às Finanças para colmatar a dívida; o período correspondente ao IVA de Dezembro de 2008 já pagou; a empresa arguida continua a laborar, sendo que o arguido continua a exercer funções de gerente; a U... foi a empresa que ficou a dever as quantias do imposto de IVA; depôs de forma convincente sobre a situação pessoal e económica, coincidente com o teor do relatório social de fls. 229 e seguintes.

No depoimento da testemunha B..., inspectora tributária, em Aveiro; depôs de forma objectiva, explicando que procedeu à acção de fiscalização à empresa, confirmando o teor dos documentos já juntos aos autos,

Ajudou, ainda, a formar a convicção do Tribunal os documentos juntos aos autos, nomeadamente, de fls. 3-4, 10-14, 48-54, 55-157, 209-215, 224, 240-247, 256-258 e 262 e o Certificado de Registo Criminal de fls. 228.


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APRECIANDO

O âmbito dos recursos é limitado em função das conclusões extraídas da respectiva motivação, pelos recorrentes, sem prejuízo, no entanto, das questões de conhecimento oficioso, conforme o disposto nos artigos 412º, n.º 1 e 410º, n.ºs 2 e 3 do CPP.

No presente recurso impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, considerando os recorrentes ter sido efectuada errada apreciação da prova produzida em julgamento.

Sustentam ainda os recorrentes, que a sentença enferma dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão (als. c) e b) do n.º 2 do art. 410º do CPP), concluindo que deveriam ter sido absolvidos.

Assim não se entendendo, consideram ainda os recorrentes que falta um elemento objectivo do tipo do crime de abuso de confiança fiscal: - o recebimento da prestação tributária que é devida.


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A-

Como sabemos, a matéria de facto pode ser sindicada através da invocação dos vícios a que alude o n.º 2 do artigo 410º do CPP, ou mediante a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.

Vêm os recorrentes questionar a apreciação da prova produzida em audiência, impugnando parte da matéria de facto que foi dada como assente na decisão recorrida.

No que concerne a tal impugnação, como estabelece o n.º 3 do art. 412º do CPP «Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devam ser renovadas.» e, nos termos do n.º 4 «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação».

Quanto aos “concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados”, indicaram os recorrentes os factos 6, 7, 10, 11 e 12 dados como provados, todavia não cumpriram integralmente o ónus de especificação a que estavam obrigados.

Assim, quanto às concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida, indicaram “os documentos juntos aos autos pelo Serviço de Finanças de X... e os documentos juntos pelos recorrentes, quer com a sua Contestação, quer aquando da realização da Audiência de Julgamento, e ainda o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha B...”; porém, constando os documentos a fls. 3-4, 10-14, 48-54, 55-157, 209-215, 224, 240-247, 256-258 e 262, tal como foi mencionado na Motivação da decisão de facto, não concretizaram quais os documentos que impunham decisão diversa e, quanto ao depoimento da aludida testemunha, estando documentado em acta (art. 363º do CPP), não indicaram as passagens da gravação com que fundamentam a impugnação.

Ora, «o recorrente deve explicitar porque razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado» ([1]).

Como anteriormente já havia decidido o STJ (por acórdão de 24-10-2002, no proc. 2124/2002, disponível in www.dgsi.pt): “… o labor do Tribunal da 2ª Instância num recurso da matéria de facto não é uma indiscriminada expedição determinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (…) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida (art. 412º, n.º 3, als. a), b) e c) do CPP).

Se o recorrente não cumpre esses deveres não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe foi pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados, com referências às provas e respectivos suportes”.

Acresce que, não podendo a motivação ser corrigida, mas sim as conclusões, como dispõe o n.º 3 do artigo 417º do CPP, não tinha a relatora de convidar o recorrente a aperfeiçoar a motivação do recurso quanto à matéria de facto.

Por conseguinte, não tendo os recorrentes impugnado a matéria de facto de acordo com o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 412º, tem-se como definitivamente assente a factualidade fixada pelo tribunal de 1ª instância, estando este tribunal de recurso impossibilitado de a alterar, conforme o disposto no artigo 431º, al. b), do Código de Processo Penal, isto sem prejuízo da eventual alteração decorrente da existência dos vícios a que alude o artigo 410º, os quais sendo de conhecimento oficioso, foram também invocados pelos recorrentes.


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B-

Sustentam os recorrentes que a sentença sob apreciação enferma do vício de erro notório na apreciação da prova e do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previstos nas als. c) e b) no n.º 2 do artigo 410º do CPP, concluindo que deveriam ter sido absolvidos.

Para fundamentar o vício de erro notório alegam que:

- atento o teor dos documentos juntos aos autos pelo Serviço de Finanças de X..., e aos documentos juntos pelos recorrentes, quer com a sua Contestação, quer aquando da realização da Audiência de Julgamento, mais precisamente dos extractos de conta corrente e balancete analítico do cliente "U..." e facturas emitidas pela recorrente àquela firma resulta desde logo que à prestação tributária de IVA referente ao mês de Janeiro de 2010, é devida, em grande parte, de trabalhos efectuados pela recorrente Ww...& ., Lda., à firma U..., Lda., cujo valor total das facturas emitidas pela Recorrente àquela firma em Janeiro de 2010, ascende a € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868,96 , e não de apenas €32.508,00 como foi julgado provado na Douta Sentença em apreciação.

E, do total facturado pela sociedade recorrente à U... em Janeiro de 2010,  - € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868.96 - nada foi pago pela sobredita firma e como tal também não foi recebido pela sociedade recorrente ou seu gerente, quer no período em apreço ­Janeiro de 2010, quer posteriormente, pelo que também não receberam o IVA de € 5.868,96 inerente às facturas emitidas pela recorrente à U..., Lda.

Acrescentando que se verifica o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, porquanto o Tribunal a quo deu como provado factos incompatíveis entre si, concretamente entre os factos referidos em 6, 7, 8, 10 e 11 e os referidos em 9, 14 e 15.

Antes de mais convém relembrar que a existência dos invocados vícios tem de resultar do texto da sentença recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, não podendo o tribunal ad quem socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo.

Importando ainda referir que o artigo 410º do CPP, onde estão previstos os vícios da decisão, está intimamente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, n.º 2 do mesmo diploma, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

Ocorre erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida (Simas Santos e Leal Henriques, in Cód. Proc. Penal anotado, II vol., págs. 739/740).

E, a contradição insanável consiste no enunciado de duas ou mais preposições contraditórias, logicamente inconciliáveis. Ela só existe quando a fundamentação conduziria necessariamente a uma decisão de sinal diferente da proferida.

“Existe contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta, ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados” ([2]).

Desde já avançamos o nosso entendimento quanto à inexistência dos apontados vícios.

Como resulta da sentença recorrida, está em causa a falta de pagamento de IVA ao Estado pela sociedade arguida, nos períodos de Dezembro de 2008 e Janeiro de 2010, respectivamente no valor de € 12.867,80 e € 10.767,45 (ponto 4, dado como assente).

Quanto ao período de Dezembro de 2008, a empresa arguida efectuou o pagamento do IVA da liquidação, juros e coimas, em 07.12.2010, ou seja, em data posterior ao termo do prazo de 30 dias da notificação efectuada, em 29.09.2010, nos termos do artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT (pontos 10 e 13 dados como assentes).

Quanto ao período de Janeiro de 2010, “a prestação tributária de IVA resulta, parcialmente, de trabalhos efectuados pela sociedade Ww...& ., Ldª, à firma U..., Ldª, no valor total de € 32.508,00, com IVA incluído, que, tendo sido facturados em Janeiro de 2010, não foram pagos pela sobredita firma” (ponto 15 dado como assente).

Ora, alegam os recorrentes que quanto aos trabalhos efectuados pela recorrente Ww...& ., Lda., à firma U..., Lda., o valor total das facturas emitidas pela Recorrente àquela firma em Janeiro de 2010, ascende a € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868,96 , e não de apenas €32.508,00 como foi julgado provado na Douta Sentença em apreciação.

E, do total facturado pela sociedade recorrente à U... em Janeiro de 2010,  - € 35.213,78  , com IVA incluído de € 5.868.96 - nada foi pago pela sobredita firma e como tal também não foi recebido pela sociedade recorrente ou seu gerente, quer no período em apreço ­Janeiro de 2010, quer posteriormente, pelo que também não receberam o IVA de € 5.868,96 inerente às facturas emitidas pela recorrente à U..., Lda.

Efectivamente, (pese embora os arguidos tenham referido na contestação que foram efectuados trabalhos pela sociedade arguida à U... no valor total de € 32.508,00 já com o IVA incluído) a totalidade da quantia facturada à U..., Lda., em Janeiro de 2010, foi de € 35.213,78 com IVA incluído de € 5.868,96. Porém, tendo em conta os pagamentos efectuados por parte da U..., relativos a Janeiro de 2010, resta por pagar a quantia de € 32.508,00 , tendo sido esse o valor considerado na sentença recorrida.

Na verdade, como bem observa a Magistrada do Ministério Público na sua resposta:

«com relevância para o que agora importa, encontram-se nos autos as seguintes facturas emitidas pela sociedade arguida à U..., Lda, fornecidas pelos recorrentes à Administração Fiscal aquando da realização do inquérito:

    - Factura 2010/1, datada de 11.01.2010, no valor de € 17,78      - fls. 103;

    - Factura 2010/3, datada de 18.01.2010, no valor de € 114,00    - fls. 105;

    - Factura 2010/14, datada de 27.01.2010, no valor de € 2.574    - fls. 116;

    - Factura 2010/19, datada de 31.01.2010, no valor de € 32.508,00  - fls. 121.

Os originais das referidas facturas foram juntas pelos recorrentes a fls. 244 a 247.

Todavia, não foram pelos mesmos juntos os recibos correspondentes ao valor recebido da U... referente a algumas daquelas facturas.

Ora, tais recibos constam justamente a fls. 133, referente à factura 2010/1, no valor de           € 17,78 ,  a fls. 146, referente às facturas 2010/3 e 2010/14, a que correspondem respectivamente os valores de € 114,00 e € 2.574.

Recibos esses igualmente entregues à Administração Fiscal em fase de inquérito, conforme resulta dos autos.

(…) Por conseguinte, a recorrente recebeu o IVA relativo àqueles recibos, ao contrário do que alega, quando refere que nada recebeu da facturação emitida em Janeiro de 2010 à U....».

Nos termos expostos, falece a argumentação dos recorrentes quanto ao invocado vício de erro notório na apreciação da prova.


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Consideram ainda os recorrentes que a sentença proferida enferma do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, porquanto o Tribunal a quo deu como provado factos incompatíveis entre si, concretamente entre os factos referidos em 6, 7, 8, 10 e 11 e os referidos em 9, 14 e 15.

Para melhor apreensão quanto ao alegado, passamos a transcrever tais factos:

6. Assim, a empresa arguida, por intermédio do arguido, não entregou aos Cofres do Estado, simultaneamente com a declaração periódica mensal de IVA, a prestação tributária referente ao IVA que lhe era exigível e que foi auto-liquidado pela arguida aos sujeitos fiscais passivos.

7. Com efeito, aqueles montantes, apesar de terem sido liquidados pela empresa arguida nas operações activas em que interveio com terceiros, foram apoderados pela mesma, que os fez seus e lhe deu um destino diverso, não os tendo entregue aos Cofres do Estado.

8. Acresce que decorreram já mais de 90 dias sobre o termo do respectivo prazo legal de pagamento daquelas quantias devidas ao Estado a título de IVA, não o tendo feito até à presente data.

9. Em 07 de Dezembro de 2010, a empresa arguida, através do arguido, procedeu à entrega de  € 9.732,42, por conta da prestação em dívida referente ao mês de Dezembro de 2008.

10. Apesar de notificados nos termos e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, em  29-09-2010, nem a arguida, nem o arguido procederam ao pagamento de todas as quantias supra aludidas, devidas a título de IVA, juros legais e coimas, decorrido que se encontra o prazo de 30 dias.

11. O arguido agiu de forma livre, voluntária, em representação e no interesse da empresa arguida, com os propósitos concretizados de não entregar à Fazenda Nacional as aludidas quantias que sabia serem devidas a título de IVA, integrando-as na sua esfera patrimonial, não obstante saber que tais montantes, tendo já sido auto-liquidados pela arguida nos termos da lei fiscal nos respectivos períodos supra aludidos, pertenciam e deviam ser por ele entregues à Fazenda Nacional, o que não fez, bem sabendo que impendia o dever de enviar ao Estado o meio de entrega daquele montante juntamente com a aludida declaração mensal de IVA.

14. No dia 8 de Fevereiro de 2012, pelo Serviço de Finanças de X..., foi certificado que no processo de execução fiscal nº 0140201001003720, instaurado contra a sociedade executada Ww...& ., Ldª, por falta de pagamento de IVA, respeitante ao período de 2010/01, no valor de € 10.767,45, que actualmente a dívida perfaz o montante de € 10.885,17, o que significa que já foi pago a importância de € 1.918,81 (imputado a juros de mora e a custas processuais).

15. No que toca à prestação tributária de IVA referente ao mês de Janeiro de 2010, a mesma resulta, parcialmente, de trabalhos efectuados pela sociedade Ww...& ., Ldª, à firma U..., Ldª, no valor total de € 32.508,00, com IVA incluído, que, tendo sido facturados em Janeiro de 2010, não foram pagos pela sobredita firma.

Ora, não concretizaram os recorrentes em que consistiam as apontadas contradições. De qualquer forma, não se vislumbra na sentença recorrida qualquer contradição entre os referidos factos dados como provados, assim como inexiste qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão proferida.

Com efeito, tal como resultou provado, a sociedade arguida (e o arguido A..., à data dos factos, o único gerente que tomava todas as decisões atinentes à gestão quotidiana da arguida) não entregou nos cofres do Estado as quantias liquidadas aos seus clientes, a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado, referentes aos períodos de Dezembro de 2008 e Janeiro de 2010, no prazo legal ou nos 90 dias subsequentes, nos termos do disposto no artigo 105° n.º 4 alínea a) do RGIT; nem no prazo de 30 dias, de que foram notificados, nos termos do disposto no artigo 105° n.º 4 alínea b) do RGIT; bem sabendo que estavam obrigados a entregá-las e, que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Entretanto, em 07.12.2010, a arguida efectuou o pagamento do IVA da liquidação, juros e coimas, referente ao período de Dezembro de 2008 e, no que respeita ao período de Janeiro de 2010, tendo sido instaurado processo de execução fiscal, contra a sociedade executada Ww...& ., Ldª, em 8 de Fevereiro de 2012, pelo Serviço de Finanças de X..., foi certificado que actualmente a dívida perfaz o montante de € 10.885,17, o que significa que já foi pago a importância de € 1.918,81 (imputado a juros de mora e a custas processuais).


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Ora, quanto ao IVA referente ao período de Dezembro de 2008, alegam os recorrentes que “o liquidaram, na sua totalidade, em 7 de Dezembro de 2010, encontrando-se assim reposta a verdade sobre a situação tributária em data anterior à notificação da Acusação proferida pelo Ministério Público, a qual só foi deduzida em Janeiro de 2011, pelo que no que toca aos crimes de abuso de confiança fiscal inerentes ao período do IVA referente a Dezembro de 2008, sempre deveria ter-­se decidido pelo arquivamento do processo, considerando para o efeito que o IVA foi totalmente pago pelos recorrentes quando o processo ainda estava em fase de inquérito, e por se verificarem os pressupostos da dispensa da pena.”.

Aquando da dedução da acusação, em 5-1-2011, não constava qualquer elemento nos autos comprovativo do pagamento da totalidade do IVA relativo ao período de Dez. de 2008, o que só veio a acontecer em 3-6-2011 com a apresentação da contestação dos arguidos (e com os documentos então juntos, a fls. 209 e 210), e posteriormente confirmado pelo Serviço de Finanças de X..., conforme documento de fls. 224.

Estabelece o artigo 44º do RGIT (sob a epígrafe “Arquivamento em caso de dispensa de pena”):

«1. Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, ouvida a administração tributária ou da segurança social e com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa.

2. Se a acusação tiver já sido deduzida, o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, pode, com a concordância do Ministério Público e do arguido, ouvida a administração tributária ou da segurança social, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa.».

Resulta deste preceito que o arquivamento do processo, caso se verifiquem os pressupostos da dispensa da pena, serão decididos pelo Ministério Público ou pelo juiz de instrução, respectivamente nas fases de inquérito e de instrução.

No caso vertente, tendo sido deduzida a acusação e, não tendo os arguidos requerido a abertura da instrução, ainda que estivessem reunidos os pressupostos da dispensa da pena previstos no n.º 1 do artigo 22º do RGIT, não poderia o juiz em fase de julgamento decidir sobre o arquivamento do processo, mas tão só, dispensar os arguidos de pena, como veio a acontecer.

Improcede, pois, também nesta parte a argumentação dos recorrentes.


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C-

Alegam os recorrentes que “pese embora com a nova redacção do artigo 105º do RGIT não seja exigível uma intenção de apropriação, é todavia exigível, nos casos em que a prestação tributária pressuponha autoliquidação, que quem tenha o dever de entrega, tenha recebido a prestação tributária que é devida”.

O crime de abuso de confiança fiscal inicialmente definido no artigo 24º, n.º 1 do DL n.º 20-A/90, de 15/01 (RJIFNA) dispunha: “Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido (…)”.

Ou seja, a questão colocada pelos recorrentes, sobre o recebimento do IVA liquidado, enquanto elemento objectivo do tipo do crime de abuso de confiança fiscal, apenas se colocaria na vigência do RJIFNA pois, no caso de não resultar provado que o arguido recebeu o montante apurado, não estaria preenchido o elemento objectivo do ilícito. E isto porque só no caso de ter recebido a quantia liquidada, e com a inversão do título de posse se poderia falar em apropriação.

Porém, atendendo à data dos factos, nos termos do artigo 105º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT) ([3]), diploma que aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias, e, entre outros, revogou o RJIFNA, “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária ([4]) deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido (…)”.

Como se observa da redacção dos dois preceitos (o 24º do RJIFNA e o 105º do RGIT), com a Lei n.º 15/2001 deixou de se exigir a apropriação, exigindo-se apenas a não entrega, passando assim este ilícito a afastar-se do crime de abuso de confiança previsto no art. 205º do CP ([5]).

Por outro lado, é claro que, como resulta da redacção do preceito, a obrigação em causa não tem por fonte qualquer contrato, e antes deriva da lei. Trata‑se, aliás, de um dever que é essencial para a realização dos fins do Estado, quer para prover à satisfação das suas necessidades financeiras, quer também para prosseguir o objectivo de uma repartição justa de rendimentos e riqueza, constitucionalmente consagrado.

Portanto, o actual regime prescinde de qualquer referência ao elemento subjectivo da intenção de obtenção de vantagem patrimonial indevida, ou de apropriação, e reduz o núcleo da infracção ao denominador comum da não entrega.

Conforme o disposto nos artigos 26.º e 40.º do Código do IVA (aprovado pelo DL n.º 394‑B/84, de 26 de Dez.), o sujeito passivo da relação tributária, de acordo com o artigo 18º, n.º 3 da Lei Geral Tributária (aprovada pelo DL n.º 398/98, de 17 de Dez.), está obrigado a proceder à entrega nos Cofres do Estado dos montantes liquidados a título de IVA.

Como é sabido, sendo o Imposto sobre o Valor Acrescentado deduzido nos termos legais, o respectivo pagamento ao Estado é precedido de algumas operações (cfr. ainda os artigos 16º, 19º, 22º e 36º do Código do IVA). Assim,

- numa primeira fase, cabe ao contribuinte apurar, com base nas operações efectuadas no exercício da sua actividade, o imposto devido ao Estado (ou o crédito de imposto a seu favor);

- apurado esse imposto, o contribuinte deve enviar (consoante o regime mensal ou trimestral) à administração tributária a declaração com o IVA apurado; e,

- no caso de ser devedor de imposto, o contribuinte deverá enviar, com a declaração, o montante do imposto exigível, através dos meios de pagamento autorizados.

Quanto à concreta questão suscitada pelos recorrentes - no sentido de que no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal aquele sujeito passivo que, tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto e esteja, por isso, obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal - não tem sido unânime a jurisprudência.

Ora, para efeitos de prática/consumação do crime, isto é, o seu “tempus delicti” estatui o n.º 2 do artigo 5º do RGIT que «As infracções tributárias omissivas (onde se inclui o crime de abuso de confiança fiscal) consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários».

Como refere Taipa de Carvalho ([6]) «o “tempus delicti” do crime de abuso de confiança fiscal é o momento em que terminam os prazos referidos no n.º 4 do artigo 105º do RGIT.

E, nos termos do artigo 7º do CIVA, o IVA liquidado é exigível independentemente do seu recebimento (salvo nas empreitadas e sub-empreitadas de obras públicas), ou seja, deverá entender-se que o IVA é imediatamente devido assim que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que respeita se realize, independentemente da efectiva cobrança do imposto aos clientes.

Por conseguinte, tratando-se o crime de abuso de confiança fiscal de um crime omissivo, o pagamento do IVA liquidado e declarado à Administração Fiscal, é exigível assim que decorra o prazo para o efeito, tenha ou não o sujeito tributário recebido a quantia do cliente/devedor; contrariamente ao que defendem os recorrentes.

Esta tem sido a orientação de recente jurisprudência, que acompanhamos. Designadamente:

-“O IVA é devido desde a respectiva venda, facturação, liquidação e declaração aos serviços, e não desde o momento do pagamento da transacção que lhe deu origem. Por isso, o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não sido recebido do devedor seguinte.” – Ac. RP, de 1-10-2008, no proc. 2659/08;

-“O montante relativo ao IVA é devido ao Estado a partir do momento em que é emitida a factura relativa à operação que a ele está sujeita e liquidado o respectivo quantitativo. Assim, é indiferente o conhecimento se o contribuinte foi, ou não, recebedor da retribuição respeitante a essa operação (incluindo, ou não, o IVA)” – Ac. RL, de 4-2-2009, no proc. 11036/2008-3;

-“O IVA é devido logo que liquidado, ou seja, logo que a transacção a que ele respeita se realize, não dependendo da efectiva cobrança do imposto aos clientes” – Ac. RC, de 21-9-2011, no proc. 142/09.7IDCBR-C1; …

… todos disponíveis em www.dgsi.pt.

No caso vertente, ainda que a sociedade arguida tenha recebido da sua cliente U... os valores indicados nas facturas 1/2010, 3/2010 e 14/2010 conforme referido em B) deste acórdão, para efeitos da responsabilidade criminal dos recorrentes quanto ao IVA relativo ao período de 2010, releva a quantia que foi liquidada e declarada à Administração Tributária, ou seja, o montante de € 10.767,45.

Nos termos expostos, considerando a factualidade dada como assente, verificamos que com a mesma se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artigo 105º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (RGIT), por que os arguidos foram condenados em pena de multa.


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Improcede, assim, na totalidade a argumentação dos recorrentes.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento aos recursos.

Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.


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                                                        Coimbra,


[1] - Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2ª ed., Univ. Católica Editora, pág. 1131.

[2] - Simas Santos e Leal Henriques, CPP, II Vol. pág. 739.
     [3] - Diploma que entrou em vigor no dia 5 de Julho de 2001 (art. 14º).

[4] - Recentemente, com a alteração introduzida pelo art. 113º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 Dez (Lei do Orçamento do Estado para 2009, que entrou em vigor em 1-1-2009 - art. 174º) que veio dar nova redacção ao n.º 1 do artigo 105º do RGIT, ficaram descriminalizadas as situações de omissão de entrega à administração fiscal das prestações tributárias devidas, de valor igual ou inferior a € 7.500.
     [5] - Germano Marques da Silva, Notas sobre o Regime Geral das Infracções Tributárias, in Direito e Justiça, 2001, tomo 2, pág. 67.
[6] - in O crime de abuso de confiança fiscal – As consequências jurídico-penais da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Coimbra Editora, 2007, pág. 51.