Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/09.1TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARATEIRO MARTINS
Descritores: MÚTUO
RESERVA DE PROPRIEDADE
NULIDADE
Data do Acordão: 02/14/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 294.º E 409.º DO CC
Sumário: 1. O contrato de crédito ao consumo está sujeito ao regime jurídico constante do DL n.º 359/91, de 21.09, na redacção vigente à data o contrato (a do DL n.º 101/2000, de 02.06), quanto às invalidades suscitadas.
2. No contrato de mútuo, é usual a aposição de uma convenção em que o financiador reserva para si a propriedade da coisa até integral pagamento das prestações do empréstimo pelo consumidor.

3. Tal cláusula é nula por ser contrária a uma norma de natureza imperativa – art. 409.º do CC.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

A..., S.A. intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra B... e esposa C..., pedindo que

a) Seja declarada judicialmente a resolução do contrato de crédito celebrado entre A e RR.; e consequentemente

b) Sejam os RR. condenados a restituir à A. o veículo o veículo automóvel marca Volkswagen, modelo Golf IV Diesel, com a matrícula ...; e que

c) Seja reconhecido o direito ao cancelamento do registo averbado em nome dos RR..

Alegou, para tal, que, no âmbito da sua actividade, celebrou com os RR., em 28.11.2005, o contrato n.º 550229, em que lhes financiou a quantia de € 15.000,00, destinada à aquisição do veículo automóvel marca Volkswagen, modelo Golf IV Diesel, com a matrícula ...; tendo, como garantia do financiamento, sido constituída reserva de propriedade a seu favor sobre o mencionado veículo.

Por força do referido contrato, os RR. assumiram a obrigação de pagar uma prestação mensal no valor de € 341,23 por um período de 72 meses; e, não tendo pago as prestações nºs 13, 15, 17 a 19, 24 e seguintes, notificou-os (por cartas datadas de 15/01/2008) e concedeu-lhes um prazo suplementar de 8 dias úteis para pagamento das prestações em atraso, o que eles não fizeram nem entregaram o veículo, razão porque, como preliminar desta acção, requereram, com êxito, providência cautelar de apreensão do veículo.

Os RR. contestaram, aduzindo, em suma, que outorgaram com a A. um contrato de adesão, previamente elaborado, não podendo negociar o seu conteúdo; que não lhes foi entregue cópia da proposta do contrato de crédito e, consequentemente, não lhes foi facultado qualquer período de reflexão; que o contrato contém cláusulas gerais nulas por preverem obrigações indefinidas, cuja definição cabe à A. após a sua outorga e, por conseguinte, não conhecidas pelos réus no momento da sua assinatura; que o contrato é desproporcionado e leonino, consubstanciando um abuso de direito e enriquecimento sem causa para a autora; que configura um contrato de locação financeira encapotado, o que constitui fraude à lei; que, em síntese, é nulo e insusceptível de produzir efeitos.

A A. respondeu, pugnando pela validade do contrato e reiterando o teor da PI.

Proferido despacho saneador – em que a instância foi declarada totalmente regular, estado em que se mantém – organizada a matéria factual com interesse para a decisão da causa, instruído o processo e realizada a audiência, o Mm.º Juiz proferiu sentença, julgando a acção totalmente procedente.

Inconformados com tal decisão, interpuseram os RR. recurso de apelação visando, nas alegações apresentadas, a sua revogação e a sua substituição por outra que julgue a acção improcedente.

Terminam a sua alegação com as seguintes conclusões:

1.º O Acórdão recorrido viola o disposto no art. 6.º, n.º 1 do DL 359/91 de 21/09, Directivas do Conselho das Comunidades Europeias n.º 87/102/CEE de 22/12/1986, 90/88/CEE de 22/02/1990; art. 1.º do DL 446/85 de 25/10; 334.º do C. Civil.

2.º A sentença recorrida deve ser revogada e julgar-se a acção improcedente, decretando-se a nulidade do contrato de fls. 18 e 19.

3.º O art. 1º da BI deve julgar-se provado, atendendo aos depoimentos das testemunhas E... , que depôs a toda a matéria, com início às 14h48m07s e termo às 15h09m44s do dia 4/2/2011; e de F..., que depôs a toda a matéria, com início às 15h10m22s e termo às 15h21m00s de 4/2/2011, depoimentos gravados em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus Média Studio”. Sendo que F... negou peremptoriamente a entrega de tal contrato aos R.R..

4.º Sendo que, tal facto ao contrário do constante da sentença, não se limita à entrega da proposta do contrato de crédito aquando da sua assinatura, mas à sua não entrega, independentemente do seu momento temporal.

5.º O que tem relevância crucial para a sentença a proferir afinal.

6.º Por outro lado, ao não se ter dado como provado o facto vertido no art. 2º da BI, daí resulta que o contrato em causa, além de ser um contrato de crédito é um contrato de adesão.

7.º Andou mal o tribunal ao considerar válida a renuncia pelos R.R. ao exercício do direito de revogação, constante em tal proposta de contrato que foi transformado em contrato de crédito, após a aprovação desta (ponto 1, 2, 17)

8.º Pois, o contrato em causa é nulo nos termos do art. 6º nº 1 do DL 359/91, 21/9.

9.º Nulidade, essa, até conhecida pelo tribunal a quo a fls. 11, quando diz que a A., não fez prova de ter observado o dever que lhe é imposto pelo art. 6º nº 1 do DL 359/91.

10.º Nulidade, essa, que resulta ainda do facto constante no art. 1 da BI, que deve ser dado como provado.

11.º Assim, tal renúncia carece de qualquer valor legal.

12.º Por outro lado, o contrato em causa é nulo porque desproporcionado, consubstanciando uma desproporção nas obrigações assumidas pelos RR. e um benefício desproporcionado para a A..

13.º Pois, na sequência de um contrato de mútuo, que teve por objecto € 15.000, a A. reclama o montante de cerca de € 48.115,72 (quarenta e oito mil cento e quinze euros e setenta e dois cêntimos).

14.º Porque pertinente para tal facto devia ser admitida a reclamação dos R.R. à B.I., e serem carreados os factos constantes do art. 19 e 21 da contestação.

15.º Bem como, igualmente devia ter sido carreado à BI, o facto carreado em 7º da contestação. Pois, não se encontra prejudicada pela alínea P) dos factos assentes. Sendo que os factos constantes em 1. e 2. da Fundamentação de Facto, impunham conhecer de tal facto. (o facto de a A. não ter facultado aos R.R. qualquer prazo de reflexão e daí os R.R. não poderem revogar tal contrato).

16.º Finalmente, a inovação por parte dos R.R. em sede de acção judicial, da nulidade do contrato de crédito, não encerra nenhum venire contra factum próprio, nem abuso de direito.

17.º Vide por todos, Ac. do STJ de 28/06/2007 in www.dgsi.pt; Ac. RL Proc. 40978/03.0TJLSB.L1 de 20/5/2010.

18.º Situação, essa, de abuso de direito, que nem sequer foi arguida pela A..

19.º Devia o tribunal a quo, como resulta de tais acórdãos, ter ponderado que se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor.

20.º Tendo em primeira linha a A., violado de forma censurável, os deveres de cooperação, de lealdade e de informação, de boa fé, na celebração desses contratos.

21.º Caso, a A. tivesse actuado de acordo com a lei, os R.R. nunca poderiam invocar a nulidade de tal contrato.

22.º Ora, a A. não invocou sequer que a declaração de nulidade de tal contrato, lhe trazia grave prejuízo.

23.º Sendo a regra imposta, a protecção do consumidor, esta protecção, só deve ser desconsiderada, em casos de conduta, a todos os títulos, censurável e injustificada, o que não é o caso, nem tal foi invocado pela A., ou sequer se provou.

24.º Não caindo a conduta dos R.R. em abuso de direito ao invocar tal nulidade.

25.º Sendo legitimo que os R.R. enquanto consumidores, apercebendo-se na presente acção do que está efectivamente em causa, em que a A. tudo pede, desde prestações vincendas, prestações vencidas, juros remuneratórios, impostos de selo, clausula penal, acção executiva, com todos os meios ao seu alcance.

26.º Sendo que, foi a conduta primeira da A. violadora dos princípios da informação, cooperação, lealdade, em súmula dos princípios, da boa fé contratual, que deu origem à invocação de tal nulidade.

A A. respondeu, sustentando, em síntese, que a sentença recorrida não violou qualquer norma, designadamente, as referidas pelos recorrentes, pelo que deve ser mantida nos seus precisos termos.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 -Vêm os Recorrentes alegar que os factos vertidos no artigo 7º da Contestação (“Pelo que, não foi facultado nenhum período de reflexão, não podendo os R.R.. revogar tal contrato”), no artigo 19º da Constestação (“Não nos podemos esquecer que no âmbito do alegado contrato de crédito, os RR já pagaram a quantia global de €9.816,48”) e no artigo 21º da Contestação (“A A. fica com a propriedade de um veículo que custou € 15.000,00, que vale actualmente €12.500,00”), deviam ter sido carreados para a Base Instrutória, por terem relevância para a boa decisão da causa, tendo o douto tribunal a quo violado o artigo 511º do C.P.C.

2-Quanto ao facto vertido no artigo 7º da Contestação de alegadamente não ter sido facultado nenhum período de reflexão aos Recorrentes, não podendo os Recorrentes revogar o contrato de crédito ora em causa, dispõe o artigo 511º, n.º 1 do C.P.C. que “O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida” (sublinhado nosso).

3 -Ora, a Recorrida, em sede de Resposta de à Contestação, alegou que tal facto era falso já que os Recorrentes/Réus abdicaram desse direito através de declaração de renúncia assinada por ambos e produziu prova documental nesse sentido, juntando aos autos a referida declaração.

4 -Sendo que os Recorrentes, e apesar de se terem pronunciado sobre a junção de tal documento, não o impugnaram nos termos dos artigos 544º ou 546º, ambos do C.P.C..

5 -Assim sendo, dispõe o artigo 376º, n.º1 do C.C. que “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (...)”.

6 -Por conseguinte, face ao exposto, o facto vertido no artigo 7º da Contestação não é matéria que se considere controvertida, dado que foi julgado como matéria assente (alínea P) facto incompatível com o mesmo, pelo que não pode tal constar da Base Instrutória dos presentes autos, devendo improceder a impugnação do despacho proferido à Reclamação à base instrutória apresentada pelos Recorrentes/Recorridos.

7-Quantos aos factos vertidos no artigo 19º da Contestação “Não nos podemos esquecer que no âmbito do alegado contrato de crédito, os RR já pagaram a quantia global de € 9.816,48” e no artigo 21º da Contestação “A A. fica com a propriedade de um veículo que custou €15.000,00, que vale actualmente €12.500,00”

8 -Como já acima referido, dispõe o artigo 511º, n.º 1 do C.P.C. que “O juiz, ao fixar a base instrutória, selecciona a matéria de facto relevante para a boa decisão da causa (...)” (sublinhado nosso).

9-Portanto, não está aqui em causa, porque a Recorrida/Autora não formula tal pedido, a condenação dos Recorrentes/RR no pagamento das prestações vencidas e não pagas por estes no âmbito do contrato de crédito celebrado com a Recorrida/Autora ora em causa.

10-Aliás, como refere a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, “resulta da matéria assente que a autora intentou a referida acção executiva contra os réus, pedindo o pagamento da quantia de €19.396,03, com base em livrança subscrita por eles. Todavia, afigura-se-nos que tal extravasa já o objecto destes autos porquanto não é aqui reclamado o pagamento de qualquer quantia.”

11-Ora, os factos vertidos nos artigos 19º e 21º da Contestação acima referida apenas poderiam ser relevantes nos presentes autos caso em causa também estivesse a condenação dos Réus/Recorrentes no pagamento de tais prestações vincendas e não pagas, o que, como já referido, não é o caso!

12-De facto, com tais factos os Recorrentes visam alegadamente demonstrar que houve desproporção das obrigações assumidas por estes, pelo que alegadamente tal contrato consubstanciaria uma situação de abuso de direito ou de enriquecimento sem causa!

13 -Ora, mesmo que estivessem preenchidos os presssupostos de tais figuras jurídicas, que não estão, a consequência não seria a declaração de nulidade/anulação do contrato de crédito em causa, como também refere a douta sentença proferida pelo tribunal a quo!

14-Por conseguinte, face ao exposto, os factos vertidos no artigos 19 e 21º da Contestação apresentada pelos Recorrentes/Réus não são factos relevantes para a boa decisão da causa, pelo que não podem os mesmos constar da Base Instrutória nos presentes autos, devendo improceder a impugnação do despacho proferido à Reclamação à base instrutória apresentada pelos Recorrentes/Recorridos.

15-Vêm os Recorrentes/Réus alegar que “a douta sentença faz errada apreciação da prova efectivamente produzida em julgamento”, sendo que sustentam que, apesar dos artigos que constam na Base Instrutória terem sido dados como não provados, “para fundamentar a decisão de direito, o tribunal a quo entra em contradição e dá como não provados factos que foram provados”.

16 – Ora, se o tribunal julga os factos constantes na Base Instrutória como não provados como é que entra em contradição ao basear-se no facto de aqueles terem sido julgados como não provados para fundamentar a decisão de direito?

17-Seja como for, estes claramente não procederam à leitura integral da sentença proferida pelo tribunal a quo, tendo feito uma interpretação errada da mesma!

18 -A Base Instrutória nos presentes autos consiste em dois artigos: “1-A A. não entregou aos RR cópia do documento de fls. 18 e 19?” e “2 – A A. e Réus negociaram o conteúdo escrito de fls. 18 e 19, previamente às respectivas assinaturas?”

19-Quanto ao artigo 1º da Base Instrutória, na sentença o tribunal a quo considera-o formulado na positiva, como refere “É certo que, de acordo com a forma como foi redigido o artigo 1º da base instrutória, o ónus da prova do facto nele contido, tal como mencionado na decisão sobre a matéria de facto, competia aos réus e que tal artigo obteve resposta negativa. Todavia, como vimos, atento o princípio da protecção do consumidor como parte mais frágil, era à autora que incumbia provar o cumprimento do estipulado na segunda parte do n.º1 do artigo 6º do Decreto-lei n.º359/91, de 21.09, enquanto requisito do contrato de que se quer prevalecer. E caso o referido artigo tivesse sido formulado na positiva, atendendo à prova produzida sobre a matéria em causa, a resposta não teria sido diferente. Cabe também referir que, mesmo com o artigo redigido na forma negativa, a autora teve oportunidade de demonstrar a entrega de um exemplar do contrato/fazer contraprova da sua não entrega.”

20-Assim sendo, é notório que o mesmo, considerado na positiva, não foi julgado como provado, como aliás se depreende da Fundamentação de Facto da sentença.

21-Isto é, na prática foi julgado como provado que “A A. não entregou aos RR cópia do documento de fls. 18 e 19”.”

22-E isto embora a Recorrida não possa concordar com tal, dado que do depoimento da testemunha E... se apurou que, no dia em que em que os Recorrentes assinaram a proposta contratual em causa, foi-lhes entregue em mão cópia do mesmo e que, novamente no dia 30-11-2005 foi enviada por funcionária da Recorrida/Autora por correio simples cópia do mesmo.

23-Não tendo o depoimento da testemunha F... inviabilizado tal depoimento, dado que, ao responder às perguntas que lhe foram dirigidas sobre o assunto não respondeu com toda a certeza, dado que disse que “Penso que não, acho que não trouxe papéis”.

24-Seja como for, foram julgados como provados, o que os Recorrentes não contestam, os seguintes factos “2-Os Réus subscreveram o documento junto como n.º1, enquanto proposta n.º921521332. 3 – A proposta referida em 1 foi submetida à aprovação da autora, que a subscreveu, dando origem ao contrato de crédito n.º550229, datado de 28.11.2005, tendo tal número sido aposto após aprovação da autora. 4-Pela proposta e subsequente aprovação, autora e réus declararam que aquela financiaria os réus pelo montante de €15.000,00”.

25-Isto é, in casu estamos perante um contrato celebrado entre ausentes.

26-Assim, só após a assinatura do contrato por ambos os contraentes é que deve – e pode – ser entregue ao consumidor um exemplar do mesmo, pois que antes não existe qualquer contrato válido e juridicamente eficaz.

27-O disposto no artº 6º nº1 do DL 359/91 de 21.09, não se aplica aos contratos entre ausentes, ou seja, aqueles em que as assinaturas dos outorgantes são apostas em momentos diferentes.

28-Bastando, nestes casos, que o exemplar do contrato seja enviado ao consumidor após a assinatura da mutuante.

Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede,

29-Sempre andou bem o Tribunal a quo a considerar que “Não é razoável que os réus invoquem a nulidade do contrato num momento em que o deixem de poder cumpri-lo. Com efeito, ao pretenderem a declaração da nulidade do contrato, depois de um comportamento positivo de cumprimento contratual e de terem usufruído ao longo do tempo das respectivas vantagens, os réus adoptam uma conduta claramente contraditória com a anterior, colocando em crise os princípios da confiança e da boa fé””.

30-De facto, muito bem entendido pelo tribunal a quo “No caso em análise, os réus receberam o financiamento feito pela autora, utlizaram o seu montante para adquirir o veículo que pretendiam e circularam com este durante, pelo menos, cerca de dois anos, dado que pagaram 18 das 72 prestações mensais acordadas, a primeira com vencimento em, 23.12.2005 e a última em 08.11.2007, num total de €6.142,14. Decorreu, portanto, pelo menos, um período de quase dos anos e, que os réus tiraram partido do financiamento feito pela autora, utilizando o veículo adquirido, e sem nunca terem questionado a validade do contrato, sendo que só o fizeram em situação de incumprimento e depois de interpelados judicialmente”.

31-Pelo que, considera o douto Tribunal “a quo”, que “a arguição da nulidade do contrato em questão é atentatória do princípio geral de boa fé contratual e configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium”

32-A tais argumentos invocam os Recorrentes que “Entende-se que não. Pois foi a A. que deu azo com a sua conduta pré-contratual, contratual e pós-contratual à presente situação de incumprimento por parte dos RR. “!!!

33-Não entende a Recorrida a que conduta da Recorrida se estão os Recorrentes a referir, muito menos como é que tal conduta poderia ter levado a que os Réus deixassem de cumprir, após cerca de dois anos após a celebração do contrato, as obrigações contratualmente assumidas perante a Recorrida (proceder ao pagamento das prestações a que se tinham vinculado no âmbito do contrato de crédito em causa), dado que a Recorrida sempre cumpriu com as suas!

34-Recorde-se que foram os Recorrentes que se dirigiram ao stand, quiseram comprar a viatura ligeira de passageiros, marca Volkswagen, modelo Golf V Diesel, de matrícula ... e procuraram financiamento para a sua aquisição!

35-Tendo sido julgado como provado (tendo nomeadamente em conta o depoimento prestado pela testemunha F... arrolados pelos Recorrentes/Recorridos) que os Recorrentes negociaram com a Recorrida através de intermediário, pelo menos, o preço do veículo e o valor das prestações do contrato de crédito em causa, conforme consta do n.º12 da fundamentação de facto do douto despacho proferido pelo tribunal a quo, pelo que o artigo 2º da Base Instrutória foi julgado parcialmente como provado, ao contrário do alegado pelos RR.

36-Aliás, os próprios Recorrentes não alegam, nem muito menos provam, como muito bem entende o tribunal a quo que “a autora se tenha recusado a prestar qualquer informação solicitada pelos réus ou que estes tenham pedido cópia do contrato ou pretendido anulá-lo.”

37-Pelo contrário, reconhecendo a validade do contrato, os Recorrentes por sua própria iniciativa, quiseram celebrar acordo com a Recorrida, tendo sido encestadas negociações, que acabaram por sair frustradas, sendo que a testemunha E... afirma mesmo que falou inúmeras vezes com os Recorrentes para tal fim!

38-Note-se que os Recorrentes ainda alegam que a figura de abuso de direito não é invocada pela Recorrida/AA.

39-Ora, não foi mas também não tinha que o ser, dado que o abuso de direito é uma excepção peremptória de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 496º do C.P.C. a contrario, segundo o qual “O tribunal conhece oficiosamente de todas das excepções peremptórias cuja invocação a lei não torna dependente da vontade do interessado”.

40-Mais, os Recorrentes alegam que a Renúncia constante do escrito de fls. 18 e 19, e carreado para alínea P) do Factos Assentes enferma de nulidade, dado que “tal renúncia consta de uma proposta assinada pelos RR. e não de um contrato”, pelo que “tal renúncia efectuada para um contrato de mútuo futuro, e como tal sem valor”, o que é falso.

41-A declaração de renúncia ao exercício de direito de revogação ao contrato de crédito em causa data de 28/11/2005, que é a mesma data de celebração deste, sendo que tal

documento não foi oportunamente impugnado pelos Recorrentes nos termos e ao abrigos dos artigos 544º e 546º do C.P.C., não tendo também os Recorrentes apresentado reclamação quanto à alínea P) dos factos assentes.

42-Também os Recorrentes vêm alegar que “atendendo ao facto não provado em 2º da BI, o contrato, em causa, consubstancia um contrato de contrato de adesão”, o que mais uma vez indicia que os Recorrentes não leram integralmente a douta sentença proferido pelo tribunal a quo.

43-De facto, o mesmo foi julgado parcialmente provado, visto constar do artigo 12º dos factos julgados como provados que “Autora e réus discutiram o preço do veículo e o valor das prestações a que alude o escrito de fls. 18-19”, pelo que ficou provado que as partes tiveram oportunidade de discutir, pelo menos, parte do conteúdo do contrato em causa, pelo que, claramente não estamos perante um contrato de adesão no seu sentido puro.

44-E finalmente, os Recorrentes vêm ainda alegar que “o contrato em causa é desproporcional, consubstanciando uma desproporção nas obrigações assumidas pelos RR face à A.”.

45-Ora, os Recorrentes não alegam tal com base em cláusulas contratuais abusivas ou desproporcionais, mas sim com base no facto da Recorrida/Autora “reclamar em acção

executiva (...) o montante de €23.299,24!

46-Em primeiro lugar, não está aqui em causa, porque a Recorrida/Autora não formula tal pedido, a condenação dos Recorrentes/RR no pagamento das prestações vencidas e não pagas por estes no âmbito do contrato de crédito celebrado com a Recorrida/Autora ora em causa.

47 -Aliás, como refere a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, “resulta da matéria assente que a autora intentou a referida acção executiva contra os réus, pedindo o pagamento da quantia de €19.396,03, com base em livrança subscrita por eles. Todavia, afigura-se-nos que tal extravasa já o objecto destes autos porquanto não é aqui reclamado o pagamento de qualquer quantia.” (sublinhado nosso)

48-Em segundo lugar, a tribunal a quo procede a uma análise do contrato de crédito em questão, tendo concluído que “Em suma, tomando em consideração o exarado, conjugado com o princípio da liberdade contratual, as taxas de juro acordadas – juros compensatórios e sobretaxa a 4% a título de cláusula penal – são válidas e não violam o princípio da boa fé nem se mostram desproporcionadas.”, o que os RR. não contestam.

49-Por conseguinte, salvo o devido respeito pelos Recorrentes, estes não compreenderam/interpretaram correctamente a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, tendo andado bem este douto tribunal a julgar a acção procedente, por provada, não tendo o mesmo violado quaisquer normativos.

50-Pelo contrário, ao julgar a acção procedente, por provada, face à inúmera prova documental e também à prova testemunhal produzida (com base na prova testemunhal, foi julgado parcialmente como provado o artigo 2º da Base Instrutória), o tribunal a quo atendeu não só à lei em vigor mas também aos princípios basilares do direito como o princípio da boa fé, o princípio da realização da justiça material.

Dispensados os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*



II – Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos apurados – cronologicamente alinhados – com relevo para a apreciação do recurso:

1. A autora é uma sociedade anónima que tem por objecto a prática das operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos.

2. Os réus subscreveram o documento junto como n.º 1, enquanto proposta n.º 921521332.

3. A proposta referida em 1 foi submetida à aprovação da autora, que a subscreveu, dando origem ao contrato de crédito n.º 550229, datado de 28.11.2005, tendo tal número sido aposto após aprovação da autora.

4. Pela proposta e subsequente aprovação, autora e réus declararam que “é celebrado o presente contrato de crédito, nos termos das seguintes condições particulares, condições gerais e documentos anexos”.

5. Mediante proposta e subsequente aprovação, autora e réus declararam que aquela financiaria os réus pelo montante de € 15.000,00.

6. Autora e réus declararam que o montante referido em 5 se destinava a financiar a aquisição da viatura ligeira de passageiros, marca Volkswagen, modelo Golf IV Diesel, de matrícula ....

7. Como garantia foi constituída a favor daquela reserva de propriedade sobre a viatura referida em 6.

8. Encontra-se registada a favor do réu, por apresentação n.º 0625, de 18.01.2006, a propriedade da viatura referida em 6, com reserva de propriedade a favor da autora.

9. Das condições particulares da proposta e subsequente aprovação pela autora consta como fornecedor da viatura referida em 6 D....

10. Da proposta subscrita pelos réus e aprovada pela autora foi fixado o reembolso do montante referido em 72 prestações mensais no valor de € 341,23, com vencimento da primeira prestação em 23.12.2005.

11. Da proposta subscrita pelos réus e aprovada pela autora foi fixada a taxa nominal de 17,04% e a TAEG de 19,90% – provado por acordo (artigo 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

12. Autora e réus discutiram o preço do veículo e o valor das prestações a que alude o escrito de fls. 18-19.

13. Os réus não efectuaram o pagamento das seguintes prestações:

- 13.ª prestação, com vencimento em 08.01.2007, no montante de € 79,19;

- 15.ª prestação, com vencimento em 08.03.2007, no montante de € 339,72;

- 17.ª prestação, com vencimento em 08.05.2007, no montante de € 339,72;

- 18.ª prestação, com vencimento em 08.06.2007, no montante de € 339,72;

- 19.ª prestação, com vencimento em 08.07.2007, no montante de € 339,72;

- 24.ª prestação, com vencimento em 08.12.2007, no montante de € 339,72.

14. A autora enviou aos réus, que os receberam em 17.01.2008, os escritos de fls. 21 e 22, datados de 15.01.2008, de que consta o seguinte: “A contar da data de recepção desta carta, vimos ainda conceder um prazo suplementar de oito (8) dias úteis para que proceda(m) à liquidação da(s) importância(s) em atraso, acrescida(s) dos juros de mora contratuais, no total de € 2.208,85.

Se decorrido tal prazo, o pagamento ora solicitado não se encontrar efectuado, o contrato considera-se automaticamente resolvido com as legais e convencionais consequências, nomeadamente o accionamento de todas as garantias ao nosso dispor nos termos contratualmente previstos”.

15. Os réus não procederam à entrega da viatura referida em 6.

16. A autora intentou em 27.10.2008 providência cautelar para apreensão do veículo referido em 6, que correu termos sob o n.º 460/08.1TBFVN, a qual foi decretada por decisão de 17.12.2008.

17. Os réus subscreveram o escrito de fls. 63 em que declararam “Nos termos e ao abrigo do n.º 5 do artigo 8.º do Decreto-lei n.º 359/91, de 21.09, tendo-nos sido entregue o bem, vimos renunciar ao exercício do direito de revogação do Contrato de Mútuo N.º (espaço em branco) com a A..., S.A. e, consequentemente, declaramos prescindir do prazo que legalmente é concedido para tal efeito”.

18. A autora intentou acção executiva, que corre termos sob o n.º 65/09.0TBFVN, contra os réus, pedindo o pagamento da quantia de € 19.396,03, com base em livrança subscrita por aqueles.

19. Pela cláusula 5.ª do documento de fls. 18 e 19 autora e réus declararam que “(…) al. b) A Taxa Anual de Encargos Efectiva Global (TAEG), fixada nas condições particulares deste contrato, poderá será alterada sempre que a A... proceder à actualização das suas taxas activas, por alteração da legislação fiscal, ou nos termos das Condições Particulares”.

20. Pela cláusula 7.ª, alínea a), do documento de fls. 18 e 19 autora e réus declararam que “(…) Em caso de mora do Cliente, a A... cobrará sobre o montante em débito, e durante o tempo de mora, juros de mora à taxa contratual de em vigor acrescida a título de cláusula penal de quatro pontos percentuais. Os juros de mora e a cláusula penal poderão ser capitalizados em conformidade com os usos das instituições bancárias.” – provado por acordo (artigo 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

21. Pela cláusula 8.ª do documento de fls. 18 e 19 autora e réus declararam que “(…) b) O Cliente assume ainda a obrigação de pagamento de todas as despesas e encargos de natureza fiscal e outras, resultantes da execução do contrato, incluindo todas as despesas judiciais, extrajudiciais e administrativas em que a A... venha a incorrer para garantia e gestão dos seus créditos, sendo igualmente responsável pelo pagamento de uma comissão de gestão adicional, a determinar de acordo com o valor estipulado na tabela afixada para o efeito e disponível para consulta na sede do locador”.

22. Pela cláusula 17.º do documento de fls. 18 e 19 autora e réus declararam que “(…) Caso o cliente pretenda que lhe seja enviado recibo de quitação periodicamente, deverá informar a A..., estando neste caso sujeito a um pagamento adicional, de acordo com o estipulado na tabela afixada para o efeito e disponível na sede da A....” – provado por acordo (artigo 659.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).


*


III – Fundamentação de Direito

O caso dos autos e do recurso decorre dum contrato de crédito ao consumo, em que, como é hoje vulgar, o financiamento não é dado ao consumidor pelo vendedor, mas por um terceiro; por uma sociedade financeira que concede ao consumidor um mútuo (de escopo ou de destinação), em que a entrega do dinheiro é feita directamente ao vendedor.

Trata-se de caso recorrente nos nossos tribunais; de caso – exactamente com os mesmos contornos e questões – sobre o qual os nossos tribunais superiores[1] já tiveram oportunidade de se debruçar longa, detalhada e profundamente e de traçar algumas linhas de decisão firmes e estáveis[2]; de caso em que estão fundamentalmente em causa questões respeitantes à invalidade de todo contrato de crédito ou, pelo menos, de algumas das cláusulas contratuais.

Caso em que a sentença recorrida, seguindo de perto a “melhor” linha jurisprudencial, deu respostas às várias invalidades suscitadas que no essencial merecem a nossa total concordância; com uma única excepção: quanto à cláusula de reserva de propriedade, que a sentença recorrida – amparada nas decisões jurisprudências (que cita) em tal sentido – considerou válida, mas que a nosso ver não pode ser considerada válida, o que muda por completo o desfecho útil da lide.

Vejamos:

1 – Começando pelas questões em que as respostas merecem a nossa concordância, dá-se aqui como reproduzido o que, em termos de fundamentação, proficuamente, se refere na sentença recorrida; e, esquematicamente, limitar-nos-emos aqui a referir:

O escrito/contrato de fls. 18/19 contém, indiscutivelmente, cláusulas predeterminadas destinadas à generalidade dos cidadãos e não passíveis de negociação individualizada, o que o sujeita ao regime das cláusulas contratuais gerais, previsto no DL n.º 446/85, de 25.10 (com as alterações constantes dos DL n.º 220/95, de 31.08 e n.º 249/99, de 07.07).

Escrito/contrato que, em face do que do mesmo consta e do que se provou, tem necessariamente que ser qualificado como um contrato de crédito ao consumo (e não, como pretendiam os RR/apelantes, uma locação financeira “encapotada”); sujeito ao regime jurídico constante do DL n.º 359/91, na redacção vigente à data do contrato (a do DL 101/2000, de 02.06) quanto às invalidades suscitadas.

Escrito/contrato que, pese embora as ineficácias lato sensu decorrentes da possível inobservância do art. 6.º, n.º 1 e 2, f) do DL n.º 359/91, não pode/deve ser declarado nulo ou ineficaz, uma vez que, no contexto dos factos, a invocação de tal nulidade e/ou ineficácia configura um claro abuso de direito (334.º do CC), um venire contra factum proprium.

O que responde à alegação/invocação dos RR/apelantes de não lhes ter sido entregue cópia da proposta do contrato de crédito e de não lhes ter sido facultado qualquer período de reflexão.

O art. 6.º do DL 359/91, sob a epígrafe “requisitos do contrato de crédito”, determina (à época da celebração), no seu n.º 1, que o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura; “fulminando” o art. 7.º/1 com a nulidade a inobservância do prescrito naquele artigo 6.º/1, nulidade que, de acordo com o n.º 4, se presume imputável ao credor e só pode ser invocada pelo consumidor (nulidade, pois, atípica).

Significa isto (sendo manifesto que os RR. surgem na veste de consumidores – cfr. art. 2.º/1, da Lei n.º 24/96, de 31.07, e 2.º/1/b) do DL n.º 359/91, de 21.09) que cabia à A. provar a entrega aos RR. dum exemplar do escrito de fls. 18-19, aquando da sua assinatura por estes.

Não fez tal prova – não lhe foi dada a possibilidade de a fazer – mas a verificação do abuso de direito, na invocação de tal nulidade, retira relevo jurídico a tal lapso processual[3].

Não é por entre a data da assinatura do contrato e a do seu incumprimento haver transcorrido significativo período de tempo que, só por isso, a nulidade contratual não deve ser declarada, pois a nulidade é invocável a todo o tempo (art. 286º do CC)[4]

Sucede, porém – é isto que impressiona – que durante mais de três anos (o contrato é de 28/11/2005 e a contestação dos RR. de 04/05/2009) nunca os RR. solicitaram à A. cópia do contrato ou qualquer outra informação sobre o seu clausulado, nem mesmo após a carta de 15-01-2008 (ponto 14 dos factos provados) que lhe reclamou os valores em dívida; tudo isto ao mesmo tempo que foram pagando prestações (as 12 primeiras e mais 6) sem efectuar qualquer reclamação e que foram utilizando o veículo financiado.

Quem assim procede, não pode à luz dum comportamento honesto, correcto e leal invocar a nulidade que os RR. suscitam; invocação que se apresenta como incompatível ou contraditória com a conduta anterior, que no mínimo fez criar na contraparte uma fundada expectativa de que não seria invocada; revelando-se a invocação da nulidade como algo manifestamente desleal e intolerável, um “abuso da nulidade”, uma “venire contra factum proprium”.

Como sabiamente se refere no Ac. do STJ de 31/03/2011, “vir só agora, na contestação da acção, depois de se atrasar no pagamento das prestações do contrato, invocar a falta da entrega da respectiva cópia ou exemplar e a correspondente nulidade, como se durante todo este tempo (mais de dois anos) andasse enganada sobre os seus direitos de consumidora, sem dúvida que representa uma atitude de abrupta e flagrante contradição com o comportamento que vinha tendo, instigador de objectiva confiança – um “Venire contra factum proprium”.

E o que acaba de ser dito quanto à “ilegitimidade” da invocação da nulidade, no que diz respeito à não entrega dum exemplar do contrato, vale “mutatis mutandis” para a questão, também suscitada, de não lhes ter sido facultado qualquer período de reflexão (a que alude o art. 8.º/1 do DL n.º 359/91, segundo o qual a declaração negocial do consumidor relativa à celebração de um contrato de crédito “só se torna eficaz se o consumidor não a revogar, em declaração enviada ao credor por carta registada com aviso de recepção e expedida no prazo de sete dias úteis a contar da assinatura do contrato, ou em declaração notificada ao credor, por qualquer outro meio, no mesmo prazo”).

Concorda-se igualmente com a argumentação da sentença recorrida que rechaça a invocação dos RR/apelantes do contrato conter cláusulas mais ou menos vagas e indefinidas (em desrespeito do art. 280.º do CC); e que repele a invocação, bastante vaga, do contrato em causa ser desproporcionado e leonino, consubstanciando um abuso de direito e enriquecimento sem causa para a A..

Efectivamente, o contrato em causa contém as menções elencadas no artigo 6.º/2 e 3 do DL 359/91, de 21.09; especificando, além do mais, o montante do crédito, o valor total das prestações, o seu número, valor e datas de vencimento, a taxa de juro e o valor da TAEG.

Por outro lado, importa salientar que se provou (resposta ao quesito 2.º) que a “A. e os RR. discutiram o preço do veículo e o valor das prestações a que alude o escrito de fls. 18-19”; circunscrevendo-se essencialmente a este facto e às atinentes cláusulas a questão da resolução contratual.

Por outras palavras, as pretensões formulados pela A/apelada não exigem que nos debrucemos/pronunciemos sobre o exacto montante dos créditos emergentes do contrato de mútuo celebrado; não está em causa saber qual é o exacto montante global do crédito da A. (isso são questões que estarão por certo em discussão no processo – em sede de oposição – referido no facto 18).

Aqui – além do que irradia da cláusula de reserva de propriedade – apenas estão em causa as questões respeitantes à ineficácia contratual lato sensu (aqui se incluindo, em tal ineficácia em sentido amplo, a resolução contratual).

Assim, passando à resolução, começar-se-á por dizer que, além da resolução fundada na lei, admite o art. 432.º, n.º 1, do C. Civil a resolução fundada em convenção; isto é, admite que as partes, por convenção, de acordo com o princípio da autonomia privada, concedam a si próprias a faculdade de resolver o contrato quando ocorra certo e determinado facto (v. g., o não cumprimento duma concreta obrigação); sendo que a tal convenção/estipulação contratual se dá o nome de cláusula resolutiva expressa.

Dizemos isto apenas e só para chamar a atenção que a A/apelante não tinha a seu favor (na letra miudinha das “condições gerais de fls. 19”) e por conseguinte não invocou uma cláusula resolutiva expressa, tendo antes recorrido e percorrido – como resulta do ponto 14 dos factos – para radicar e obter a resolução ao caminho do art. 808.º, n.º 1, do C. Civil.

Em face da mora dos RR., assistia à A/apelada, nos termos gerais, a faculdade de converter tal mora em incumprimento definitivo, tendo em vista exercer o direito potestativo extintivo em que resolução dum contrato se traduz.

Direito – a converter a mora em incumprimento definitivo e a resolver o contrato – a cuja execução a A/apelada deu início quando procedeu às comunicações referidas no facto 14 deste acórdão; isto é, quando, em 15/01/2008, por cartas registadas, comunicou aos RR. o montante considerado em dívida, num total de “€ 2,208,85”, e, bem assim, “vimos ainda conceder um prazo suplementar de oito (8) dias úteis para que proceda(m) à liquidação da(s) importância(s) em atraso, acrescida(s) dos juros de mora contratuais, no total de € 2.208,85. Se decorrido tal prazo, o pagamento ora solicitado não se encontrar efectuado, o contrato considera-se automaticamente resolvido com as legais e convencionais consequências, nomeadamente o accionamento de todas as garantias ao nosso dispor nos termos contratualmente previstos”.

Efectivamente, tal comunicação enquadra-se e respeita a previsão da 2.ª parte do n.º 1 do art. 808º do CC podendo assim levar à conversão da mora em incumprimento definitivo[5]; por outras palavras, tal notificação, pelo seu conteúdo, configura uma intimação ou interpelação cominatória[6], pelo que, não tendo, como foi o caso, os RR cumprida a obrigação em mora dentro do prazo suplementar fixado na mesma interpelação ou intimação, podem ocorrer as consequências do art. 801º do CC.

Isto é, decorridos 8 dias úteis sobre a data em que os RR. receberam a notificação/comunicação referida sem que tenham posto termo à mora, impõe-se – face à eficácia (224.º do CC) da comunicação – atenta a irrevogabilidade (230.º do CC) da interpelação admonitória, considerar que, em tal data (8 dias úteis após o recebimento da notificação/comunicação – 8 dias úteis após 17/01/2008), a mora se transformou em incumprimento definitivo, por força e ao abrigo do art. 808º, nº 1, 2ª parte, do CC..

Acontecendo isto, é usual dizer-se que, convertida a mora em incumprimento definitivo, passa o “credor”, a partir de tal data, a deter a faculdade alternativa referida no art. 801º do CC, isto é, passa a poder exigir do devedor uma indemnização pelo incumprimento ou, em opção, a poder resolver o contrato.

Todavia, fala-se nesta “faculdade alternativa” em tese.

Na prática, não raras vezes, a notificação/comunicação admonitória logo “antecipa” a opção; logo compreende a “renuncia” a tal “faculdade alternativa”.

É verdade que uma coisa é a declaração admonitória e outra a declaração resolutiva; porém – é este o ponto – nada há que impeça que tais declarações sejam feitas em simultâneo, dizendo-se, por exemplo, que, caso não ocorra o cumprimento no prazo suplementar concedido, se resolve o contrato[7]

É exactamente o nosso caso; é este, inquestionavelmente, o sentido da expressão “o contrato considera-se automaticamente resolvido” constante das comunicações referidas no facto 14.

Efectivamente, não estamos perante aquela hipótese, relativamente comum, em que o credor termina a comunicação admonitória dizendo “sob pena de requerermos judicialmente a resolução do contrato por incumprimento definitivo”, situação em que pode dizer-se que “reserva” a opção e/ou que a opção, na referida faculdade alternativa, ainda não foi claramente assumida.

Tudo isto para explicarmos que não é a PI dos autos que representa e constitui a declaração resolutiva que faz cessar o contrato.

Sem prejuízo de acrescentarmos que o princípio geral do art. 436.º, n.º 1, do C. Civil – embora instituindo o regime regra da declaração unilateral – não infirma uma intervenção judicial declarativa da correcção/confirmação no exercício do direito de resolução; ponto em que – de correcção/confirmação da resolução e, principal e aparentemente, de condenação nos efeitos da resolução – em termos úteis e práticos, se situa a presente acção.

O mais normal seria os RR., se delas discordavam, terem vindo impugnar as declarações resolutivas que receberam em 17/01/2008, porém, não fizeram; o que, todavia, é irrelevante, uma vez que como acabámos de expor a resolução contratual extra-judicial efectuada pela A/apelada produziu os seus efeitos, em 29/01/2008.

Reconhecido o correcto exercício da resolução, impõe-se normalmente analisar os efeitos da mesma, uma vez que é neste âmbito – dos efeitos da resolução – que em regra se situa a utilidade da resolução contratual.

Quanto aos efeitos da resolução, a lei (art. 433.º do CC) equipara a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico; equiparação que se traduz numa eficácia retroactiva – devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (289.º, n.º 1, do CC) – bem como e implicitamente numa eficácia liberatória das obrigações ou prestações ainda não executadas.

Dupla função esta – desvinculativa e restitutiva das prestações cumpridas – que é ou pode ser insuficiente para a satisfação do interesse contratual da parte que a declara; daí que a lei haja previsto expressamente a cumulação da resolução com a indemnização (art. 801.º, n.º 2, 802.º, n.º 1, ambos do CC).

Ora, como é bom de ver, não é em nenhum destes âmbitos que os 2.º e 3.º pedidos – respeitantes à restituição do veículo – se situam.

Num contrato de mútuo como é o caso – cujo objecto mediato é composto por fluxos financeiros – quer a sua resolução quer a sua nulidade (ambas ineficácias “lato sensu”) têm como efeito, à partida, a ocorrência de fluxos financeiros inversos, de reposição/restituição.

Sobre fluxos financeiros, sobre a “relação de liquidação” decorrente da resolução contratual, tratará, como já referimos, a execução (e respectiva oposição) referida no facto 18.

Os 2.º e 3.º pedidos não é pois nos efeitos da resolução contratual que encontram o seu sustento jurídico; procurando antes a A/apelada apoiá-los na reserva de propriedade que tem registada a seu favor.

2 – Passemos pois à questão da reserva de propriedade:

É usual, bem o sabemos, a aposição de uma convenção, no contrato de mútuo, em que o financiador reserva para si a propriedade da coisa até integral pagamento das prestações do empréstimo pelo consumidor.

Trata-se duma via (encontrado pela prática financeira para assegurar o reembolso parcial do crédito) e instrumento que não está expressamente previsto nem no DL 359/91 nem no próprio C Civil.

Suscita-se pois a questão da sua admissibilidade; questão que tem sido exaustivamente tratada nos nossos tribunais[8] e na doutrina[9].

Num 1.º momento, a larga maioria não se opunha à cláusula, tendência que se inverteu e que, hoje, pelo menos no nosso mais alto tribunal, parece ser a contrária[10].

A cláusula em causa, da reserva de propriedade, tem em vista, essencialmente, a protecção dos financiadores; uma vez que lhes assegura o pagamento das prestações perante o inadimplemento e eventual insolvência do consumidor e visto que restringe os poderes de disposição do mutuário quanto ao bem financiado.

A favor da admissibilidade da reserva, vêm sendo alinhados os seguintes argumentos:

- A necessidade de tutela do financiador;

- A interpretação extensiva e actualista do art. 409.º, n.º 1, do CC e dos art. 5.º, 15.º e 18.º do DL 54/75;

 - O conteúdo do art. 6.º, n.º 3, f), do DL 359/91 (que fala em reserva de propriedade);

 - A conexão entre os contratos de compra e venda e de mútuo para consumo;

 - A necessidade de concordância do direito e da vida negocial (sem prejuízo de se reconhecer que a “situação é anómala” e que “o meio porventura mais adequado para garantir o pagamento das prestações seria a constituição de hipoteca”).

Contra a admissibilidade da reserva, vem sendo invocado:

 - O facto da cláusula de reserva de propriedade se reportar inevitavelmente e incindivelmente aos contratos de alienação;

 - A inexistência do direito de propriedade na esfera jurídica do financiador, o que impede consequentemente a reserva;

 - Ser juridicamente impossível, apesar da conexão que possa existir entre os contratos de mútuo e de venda para consumo, que alguém reserve um direito de propriedade que não tem;

 - A necessidade de coincidência entre o alienante e o titular da reserva de propriedade prevista no art. 409.º do CC;

 - Não poder o intérprete substituir-se ao legislador defendendo soluções não contempladas na sua letra, nem no seu espírito;

 - Reportar-se o art. 6.º, n.º 3, f) do DL 359/91 apenas e tão só a situações em que o vendedor é o financiador (através de alguma das formas previstas no art. 2.º)

- A possibilidade do financiador reservatário conseguir realizar a penhora do bem sem necessidade de cancelamento do registo de reserva de propriedade[11];

- A faculdade, acessível para o financiador, de lançar mão de outros mecanismos de garantia de crédito, em particular a hipoteca do veículo.

Tomando posição, impõe-se reconhecer que não se pode afirmar que a inadmissibilidade da cláusula representa um agravamento substancial da posição jurídica do financiador; uma vez que o seu interesse pode ser salvaguardado por outras vias (fiança, aval, hipoteca).

É verdade que o art. 6.º, n.º 3, f), do DL 359/91 (na redacção à época vigente) alude explicitamente à reserva de propriedade[12], porém, não é crível que se esteja a referir à reserva de propriedade a favor do financiador, não é crível que um diploma que visa exclusivamente a tutela dos interesses do consumidor esteja a prever/conceder ao credor/financiador a possibilidade de reservar para si a propriedade; o plausível é que se esteja a pensar nas situações em que o vendedor (através de alguma das formas previstas no art. 2.º) é também o financiador.

Ademais, por mais elaborada e sedutora que seja a argumentação que se construa a favor da admissibilidade da reserva, o certo é que a simplicidade de raciocínios – como o do financiador nunca ter sido proprietário da coisa, não a ter adquirido para a revender, não a ter alienado, não ter sequer a coisa passado pelas suas mãos – aponta com bastante força em sentido contrário; se o quadro factual nos diz que o consumidor comprou o bem a um terceiro, o fornecedor, para o que se serviu do financiamento concedido, como é que o financiador/mutuante pode reservar a propriedade da coisa? Se nunca foi dele, se não a transmitiu?

Pelo que o mais seguro, em termos argumentativos, ainda é dizer, chãmente, que para o art. 409.º, n.º 1, do CC – e para o art. 15.º, n.º 1, do DL 54/75 – a admissibilidade da convenção (reserva de propriedade) está dependente da posição do reservatário num contrato de alienação; que o alargamento do campo de aplicação da reserva de propriedade a um negócio de cariz diverso – o mútuo – parece não se enquadrar na finalidade visada pelo legislador[13].

Tanto mais que a abordagem da questão pelo lado da “conexão contratual” – procurando defender a admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a partir dos efeitos da uma união contratual – não pode perder de vista que o art. 12.º/1 e 2 do DL 359/91 estabelece um regime especial e exclusivo de protecção para o beneficiário do crédito, não podendo/devendo ser posto ao serviço dos interesses próprios do financiador.

Finalmente, também não decorre da conexão dos interesses do triângulo contratual, só por si, que o mutuante/financiador fique sub-rogado nos direitos do vendedor ou do devedor, pois que a vontade de sub-rogar tem que ser expressa (art. 589º e 590º/ 1 e 2 do CC); e, no caso de ser o devedor a sub-rogar o terceiro que lhe emprestou o dinheiro para cumprir o contrato, teria a declaração, além de ser expressa, que constar do documento do empréstimo (art. 591º/1 e 2 do CC). Ora, olhando para os documentos escritos que titulam, no caso dos autos, o contrato de financiamento (fls. 18 e 19), não vemos que alguma declaração sub-rogatória dele consta, nem os factos provados permitem supor que haja sido essa a vontade das partes.

Em conclusão, a cláusula de reserva, como é o caso, em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é contrária a uma norma de natureza imperativa – art. 409.º do CC; e, em consequência, tal estipulação é nula, ao abrigo do art. 294.º do CC, não produzindo qualquer efeito. Por outras palavras, na sequência da venda efectuada aos RR., a transmissão da propriedade da coisa opera automaticamente e os RR/consumidores passaram a ser proprietários sem qualquer ónus[14].

Improcede, assim, tudo – com excepção da invalidade/nulidade da reserva de propriedade – o que em contrário os RR/apelantes invocaram e concluíram na sua alegação recursiva (ficando naturalmente prejudicado o conhecimento da impugnação da resposta dada ao quesito 1.º e da reclamação à base instrutória) o que determina a confirmação do sentenciado na 1ª instância quanto à resolução contratual e a revogação da parte restante.


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IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui pela declaração/reconhecimento da resolução (com efeitos a partir de 29/01/2008) do contrato de crédito ao consumo celebrado entre A. e RR., julgando-se, em tudo o mais, a acção improcedente e assim absolvendo os RR. dos demais pedidos.

Custas, em ambas as instâncias, por A. e RR., em partes iguais.


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Barateiro Martins (Relator)

Arlindo Oliveira

Emídio Santos



[1] Ver por todos “Contratos Comerciais”, in Temática da CJ edições, pág. 183 a 218, onde inúmeros acórdãos, quer na íntegra quer por sumário, são citados.

[2] “Linhas” estas – e respectiva evoluções – que a A., estamos certos, conhece amplamente, uma vez que terá nos seus dossiers centenas de sentenças e acórdãos que se pronunciaram, nem sempre coincidentemente, sobre tais questões.

[3] Na sentença recorrida, o Ex mo Juiz deu-se conta, e bem, que o quesito 1º não estava redigido de acordo com o ónus da prova – perguntava-se se: “a A. não entregou aos RR. cópia do documento de fls. 18/19?” – sendo certo que a resposta dada, “não provado”, não torna desnecessária e supérflua uma pergunta/quesito feita de acordo com o ónus da prova (isto é, “a A. entregou aos RR. cópia do documento de fls. 18/19?).

Para resolver a dificuldade, observou o Ex. mo Juiz que “caso o referido artigo tivesse sido formulado na positiva, atendendo à prova produzida sobre a matéria em causa, a resposta não teria sido diferente. Cabe, também, referir que, mesmo com o artigo redigido na forma negativa, a autora teve oportunidade de demonstrar a entrega de um exemplar do contrato/fazer contraprova da sua não entrega. Finalmente, sempre se dirá que, não obstante ter a autora impugnado genericamente o artigo 4.º da contestação (cfr. artigo 4.º da resposta), analisado o artigo 19.º desta segunda peça processual, percebe-se afinal qual o alcance dessa impugnação, porquanto aí se refere expressamente que a autora enviou aos réus um duplicado do contrato depois de o ter assinado. Em suma, da matéria de facto provada não consta que tenha sido entregue aos réus um exemplar do contrato em causa nos autos no momento da assinatura, pelo que é forçoso concluir que a autora não fez a prova que lhe competia de ter observado o dever que lhe é imposto pelo artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21.09.”

Compreende-se perfeitamente o sentido da observação e até se aplaude o esforço, mas, em rigor, não pode ser; apenas com fundamento em meios de prova sujeitos a apreciação livre num outro momento processual, não se pode dizer, na sentença, que a A. não fez a prova dum facto/ponto que não estava quesitado.

Quando muito, nós, agora – uma vez que tal faz parte do objecto do recurso – poderíamos, se fosse o caso, alterar, para “provado”, a resposta ao quesito 1.º o que, só por si, representaria a certeza factual da R. não ter entregue um exemplar do contrato em causa.

Não é, porém, o caso; não valendo isto como pronuncia sobre a impugnação da decisão de facto, o certo é que ouvimos os 2 depoimentos testemunhais, os quais não permitiriam estabelecer certezas (a indicada pela A., jurista da A., trabalha em Lisboa e nunca contactou sequer pessoalmente com os RR., limitando-se a falar sobre “procedimentos habituais”; a indicada pelos RR, pai e sogro deles, fez naturalmente um depoimento algo interessado e pouco preciso) e responder afirmativamente ao quesito 1.º (evidentemente, ao quesito bem formulado, poderia/deveria ainda a A. indicar o dono do stand, o Sr. D..., que foi quem negociou com os RR e tratou de tudo).

Nestes casos, a solução – para além de, não havendo outro remédio, se ter de anular o processado, mandar fazer o quesito certo e repetir o julgamento – é a de colocar como hipótese de raciocínio, a hipótese mais desfavorável à parte que tem o ónus da prova; é a de trabalhar/raciocinar com a não prova da entrega do exemplar do contrato.

Foi na prática o que o Ex. mo Juiz acabou por fazer; a única divergência está em ter concluído que a A. não provou, quando, a nosso ver, se devia dizer, que se passava a admitir, como hipótese de raciocínio, que o quesito estava formulado correctamente e havia sido respondido não provado, isto é, que se passava a admitir, como hipótese de raciocínio, que a A. não provou a entrega do exemplar do contrato.

[4] Se o legislador pretendesse a sanação de tal vício pelo decurso do tempo, tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como o fez nos casos previstos no art. 7º/2 do mesmo DL nº 359/91.

[5] Consistindo a prestação das RR. numa soma em dinheiro, o prazo concedido, de 8 dias úteis, deve ser considerado como um prazo razoável para o cumprimento.
[6] Na medida em que acaba por conter os 3 elementos típicos da interpelação admonitória: a) a intimação para o cumprimento; b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento; c) a admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
[7] “Para o exercício extra-judicial da resolução, o art. 436.º, n.º 1, exige a declaração à outra parte. Esta declaração pode não ser autónoma do ponto de vista formal, se o vendedor, ao fixar o prazo para cumprimento, comunicar logo que o contrato será resolvido se a prestação não for cumprida nesse prazo” – cfr. Ana Maria Peralta, in “A posição jurídica do comprador na compra e venda com reserva de propriedade”, pág. 86.
[8]Tem apaixonado a jurisprudência em argumentação variada, sem que todavia esteja trilhado o caminho da uniformidade ou tão pouco, ao que se apura, o da tendência maioritária” – escrevia-se, há cerca de 6 anos, no Ac da Rel da Lisboa de 30/05/2006; daí para cá, porém, formou-se e ganhou consistência, a nosso ver, a tendência da inadmissibilidade.
[9] Gravato de Morais, Contratos de Crédito ao Consumo, pág. 299 a 321; que seguimos de perto na exposição sobre o assunto.
[10] Cfr. Ac STJ de 31/03/2011, in www.dgsi.pt, e os inúmeros arestos aí citados, principalmente o Ac STJ de 19/07/2008, in CJ Online, Ref. 3214/2008.
[11] Argumento que em face do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2008, de 09/10/2008 – segundo o qual “a acção executiva, na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concursos de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva” – perde a sua força.
[12] Hoje, após o DL 133/2009, já não alude.

[13] A alienação da propriedade em garantia – como dá nota Gravato Morais, obra citada, pág. 308 – poderá configurar um instrumento adequado para regulamentar, no futuro, esta questão; porém, o legislador ainda não interveio na matéria, ao contrário do C. C. Brasileiro – como também dá nota Gravato Morais – que trata com detalhe o tema da “propriedade fiduciária”; negócio que pressupõe a existência dum crédito, sendo o seu cumprimento garantido por uma coisa; negócio em que o dador de crédito adquire a posição de comprador e fiduciário; e em que o fiduciante transfere a propriedade para fins de garantia ao fiduciário, enquanto conserva a sua posse e a possibilidade do seu uso.

[14] Significa isto que, em linha com o Ac. do STJ de 16/09/2008 (in “Contratos Comerciais”, pág. 189), não teríamos deferido o procedimento cautelar de apreensão do veículo, preliminar desta acção.

Tal procedimento cautelar (art. 15.º e 16.º do DL 54/75, de 12-02) é um dos caminhos normalmente trilhados pelo financiador; daí que, iniciando-se tal caminho, se “siga”, do ponto de vista do financiador, no prazo de 15 dias (art. 18.º/1 do DL 54/75), a acção principal a pedir a resolução do contrato (do mútuo para aquisição com reserva de propriedade a favor do financiador) e a pedir que o consumidor seja condenado a entregar o veículo automóvel. Daí que a A. tenha vindo pedir a resolução dum contrato que até já estava, como explicámos, irrevogavelmente resolvido; e daí que tenhamos supra referido que é nos efeitos da resolução contratual que “aparentemente” se situa – se pretendia situar – a presente acção.

Um dos outros caminhos normalmente trilhado pelo financiador – e, via de regra, como os autos o revelam, em simultâneo – é o recurso à acção executiva para entrega da quantia certa (“dando” como título executivo o título de crédito assinado em branco pelos consumidores, que entretanto preenche); o que faz com que possam co-existir, no mesmo espaço de tempo, que decorre entre o registo da penhora e a venda executiva da coisa, registos de cariz oposto, na medida em que a penhora definitiva pressupõe que o bem pertence ao executado ou a terceiro e, por sua vez, o da reserva de propriedade faz presumir que o bem é propriedade do exequente. Ora – em face do sentido do Ac. Uniformizador 10/2008, de 09-10-2008, supra transcrito – na execução referida no facto 18 chegará o momento (se é que já não ocorreu) em que a aqui A. terá que promover a extinção da reserva de propriedade, “transformando” a decisão desta acção em algo próximo da vacuidade (sem prejuízo da reserva, embora inválida, uma vez que registada, ter acabado por cumprir, na íntegra, a restrição dos poderes de disposição do mutuário quanto ao bem financiado; tanto mais que, penhorado o automóvel na execução, tal restrição passa a ter “substituto”: a indisponibilidade/ineficácia do art. 819.º do CC).