Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/11.5TACBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA PILAR DE OLIVEIRA
Descritores: CRIME FISCAL
MULTA
RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Data do Acordão: 10/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2.º JUÍZO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 8.º, N.º 7, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS (RGIT); ARTIGO 29.º, N.º 5, DA CRP
Sumário: É inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29.º, n.º 5 da Constituição, a norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias, quando aplicável a gerente de um ente colectivo que, tal como este, foi condenado, a título pessoal, pela prática da mesma infracção tributária.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I. Relatório
No processo comum singular nº 76/11.5TACBR do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Coimbra em 6.3.2013 foi proferido despacho que, ao abrigo do disposto no artigo 8º, nº 7 do RGIT, declarou o arguido A..., condenado por sentença transitada em julgado, como autor de um crime de abuso de confiança à segurança social p. e p. pelo artigo 107º, nº 1 do RGIT, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de oito euros, solidariamente responsável pelo pagamento da pena de multa em que foi condenada no mesmo dispositivo e em razão do mesmo crime, a sociedade arguida B..., Lda. de que era gerente.

Inconformado com esta decisão, dela recorreu o arguido A..., condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões:
1. O recorrente A... foi condenado pelo crime de abuso contra a Segurança Social previsto e punido pelos arts. 105º nº 1 e 107 nº 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, numa pena de € 800.00 de multa.
2. A sociedade arguida "B..., Lda.", foi igualmente condenada, pelo mesmo crime, na multa de € 1.000,00.
3. O recorrente procedeu ao pagamento da multa que lhe foi aplicada, tendo a respetiva pena sido extinta.
4. A sociedade arguida não pagou a multa em que foi condenada, levando o Ministério Público a promover a determinação da responsabilidade subsidiária do arguido A... pelo pagamento da pena de multa imposta à sociedade, por considerar mostrarem-se preenchidos os pressupostos estabelecidos no art. 8º, nº 1, alínea a) do Regime Geral das Infrações Tributárias.
5. A Meritíssima Juiz a quo considerou estarem preenchidos, não os pressupostos do nº 1 alínea a) do RGIT, mas sim os pressupostos do nº 6 e 7 do art. 8º do RGIT, considerando deste modo o arguido A... solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada à sociedade, conforme Despacho datado de 06.03.2013.
6. Acontece que recentemente o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre esta questão, julgando inconstitucional a norma do art. 8º, nº 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias, por violação do disposto no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República, quando aplicável ao gerente de uma pessoa coletiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária (Acórdão nº 1/2013 de 22.2.2013). 
7. Ora, o Tribunal Constitucional entendeu que o regime constante do nº 7 do art. 8º do RGIT não pode ser reconduzido a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio.
8. Resulta do refendo acórdão que, “ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na prática uma consequência jurídica do mesmo ilícito penal pelo qual o gerente foi já punido, a título individual, através da aplicação direta de pena de multa”.
9. E ainda que “... a responsabilidade solidária assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração, que é imputado ao agente a título de culpa, e que arrasta não só a sua condenação individual como a condenação da pessoa coletiva no interesse de quem agiu”.
10. O art. 8º nº 7 do RGIT impõe ao representante da pessoa coletiva a cumulação da responsabilidade penal própria com a responsabilidade solidária pelo cumprimento da sanção penal pecuniária imposta à pessoa coletiva, violando assim o Princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
11. Com efeito, tendo sido o aqui recorrente, condenado a título pessoal pela mesma infracção tributária da sociedade arguida, não poderá ser considerado solidariamente responsável pelo pagamento da multa que foi aplicada à sociedade, sob pena de violação do Princípio ne bis in idem.
Termos em que se requer ao Venerando Tribunal da Relação que seja revogado o Despacho recorrido nos termos dos fundamentos supra expostos.
E ASSIM V/EXCELÊNCIAS FARÃO JUSTIÇA

O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, concluindo o seguinte:
1 - A decisão proferida no Ac. nº 1/2013 do Tribunal constitucional - que julgou inconstitucional a norma do artigo 8.0, n.º 7, do Regime Geral das lnfracções Tributárias, quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária, por violação no disposto no art.º 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa foi proferida no âmbito de um recurso de fiscalização concreta sucessiva da constitucionalidade, no quadro da decisão ali recorrida, não tendo sido apreciada a constitucionalidade em abstracto, da mencionada norma.
2 - A questão da constitucionalidade permanece, nestes casos, delimitada pelo caso concreto em que surgiu, não tem qualquer efeito vinculativo, quer para os tribunais comuns, quer para o próprio TC, nem qualquer influência sobre a vigência abstracta da norma, a qual continua a poder ser aplicada noutros processos, por outros Tribunais que tenham, a propósito da sua conformidade com a CRP outro entendimento, ou seja, tal decisão incide apenas sobre a norma tal como foi aplicada ou desaplicada na decisão recorrida.
3 - Só quando o TC procede ao confronto abstracto de uma norma infraconstitucional com a Constituição, a declaração de inconstitucionalidade abstracta da norma tem força obrigatória geral e implica, em regra, a sua invalidação (art.º3°, nº 3, da CRP) e a impossibilidade de voltar a ser aplicada por qualquer tribunal ou autoridade (art.º282º), sendo necessários três juízos concretos de inconstitucionalidade para ser desencadeado o processo de fiscalização abstracta com vista à declaração de Inconstitucionalidade da norma com força obrigatória geral (art.º 281º, nº 3).
4 - No caso concreto, o Tribunal a quo entendeu ser a norma constante do art 8º, nº 7, do RGIT conforme com a CRP por não violar quaisquer normas ou princípios constitucionais.
  5 - A decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada e foi proferida de acordo com o ordenamento jurídico vigente.
Vªs Exas, porém, decidirão, fazendo como se espera, JUSTIÇA

A Mmª Juiz a quo admitiu o recurso, não se pronunciando nos termos do artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Remetidos os autos a esta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não ocorreu resposta.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais foi realizada conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentos da Decisão Recorrida
A decisão recorrida é do seguinte teor:
Considerando estarem preenchidos os pressupostos do nº 1 do art. 8º do RGIT, a Digna Magistrada do M.P. com vista aos autos, veio requerer a responsabilização do co-arguido A..., no pagamento da multa aplicada à co-arguida “ B... LDA.”.
Conferido o contraditório, o arguido veio pugnar pela não aplicação de tal norma já que, em seu entender, a aplicação mesmo violaria os princípios constitucionais do non bis in idem e, bem assim, da presunção de inocência, com violação dos direitos de audiência e defesa.
Decidindo.
Estabelece o artigo 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT):
“I. Os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são subsidiariamente responsáveis:
a) Pelas multas ou coimas aplicadas a infracções por factos praticados no período do exercício do seu cargo ou por factos anteriores quando tiver sido por culpa sua que o património da sociedade ou pessoa colectiva se tornou insuficiente para o seu pagamento;
b) Pelas multas ou coimas devidas por factos anteriores quando a decisão definitiva que as aplicar for notificada durante o período do exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento
(…).”
Sabemos que recentemente o Tribunal Constitucional, pronunciou-se no acórdão n.º 437/2011 de 03. 10 sobre a responsabilidade civil subsidiária dos administradores e gerentes por coimas aplicadas a pessoas colectivas em processo de contra-ordenação, a que alude o nº 1 do artigo 8ºl do RGIT.
Aí se concluiu que “não é inconstitucional o 8º, nº 1, alíneas a) e b), do RGIT, quando interpretado no sentido de que consagra uma responsabilidade pelas crimes que se efectiva pelo mecanismo da reversão da execução fiscal, contra gerentes ou administradores da sociedade devedora”, sendo que manteve o julgamento constante do ac. nº 35/2011 que seguiu na esteira dos acórdãos n.ºs 129/2009 e 150/2009, e contrariando a jurisprudência constante dos acórdãos nºs 24/2011, 26/2011 e 85/2011, que concluíram no sentido da inconstitucionalidade)
Como se salienta neste acórdão “o que esta em causa (nas als. a) e b) do n.º 1 do artigo 8º não é a mera transmissão de uma responsabilidade contra-ordenacional que era originariamente imputável à sociedade ou pessoa colectiva; mas antes a imposição de um dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente, e que constitui causa adequada do dano que resulta, para a Administração Fiscal, da não obtenção da receita em que se traduzia o pagamento da multa ou coima que eram devidas”.
Nos presentes autos, o arguido e a sociedade arguida foram condenados, em penas de multa, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal.
In casu, cremos estar perante a responsabilidade solidária a que alude o nº 7 da citada norma legal.
Com efeito, dispõe o artigo 8º, n.º 7, do RGIT que "Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for caso disso."
Como refere o douto Acordão do TRC de 21.03.2012 in www.dqsi.pt "face a esta redacção inexistem dúvidas sobre a responsabilidade solidária do arguido pelas dívidas da sociedade, não no sentido de responsabilidade penal ou contra-ordenacional mas sim do dever indemnizatório que deriva do facto ilícito e culposo que é praticado pelo administrador ou gerente (…)”
A circunstância de o montante indemnizatório corresponder ao valor da multa não paga apenas significa que é essa, de acordo com os critérios da responsabilidade civil, a expressão pecuniária do dano que ao lesante cabe reparar, que é necessariamente coincidente com a receita que deixa de ter dado entrada nos cofres da Fazenda Nacional" vide ainda acórdãos do Tribunal Constitucional com os nºs 129/2009 e 150/2009 de 12/03/2009 e 25/03/2009, proferidos nos processos n.ºs 649/08 e 878/08 , in www.tribunalconstitucional.pt.
Entendemos, ainda, na esteira da jurisprudência citada, e aderindo aos seus fundamentos, não existir aqui violação dos princípios constitucionais invocados pelo arguido.
Como assim, e em suma, dos autos resulta que a sociedade arguida não procedeu ao pagamento da multa penal em que foi condenada (não se mostrando viável o seu pagamento coercivo, atento o disposto no artigo 88º do CI.R.E).
Sabemos que, nos termos do disposto na mencionada norma legal, os co-autores e cúmplices de infracções tributárias, são civilmente responsáveis - relativamente às sanções que vierem a ser aplicadas aos seus co-arguidos - cumulativamente com a sua própria responsabilidade.
O Regime Geral das Infracções Tributárias prevê, uma responsabilidade solidária, de natureza civil, de quem colaborar com a prática de infracção tributária, independente da responsabilidade própria, criminal ou contra-ordenacional que for imputada àquele que presta a colaboração - cfr. Acórdão da Relação do Porto de 23-06-2010, Proc. Nº 248/07.7IDPRT, disponível em www.dgsi.pt que se expressa na mesmo sentido.
Acresce que o nº 6 do art 8º do RGIT dispõe que "quem colaborar dolosamente na prática de infracções tributárias é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas, pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso.”
Nos presentes autos, a Sociedade arguida (por força do disposto nos arts. 7º e 15º do R.G.l.T) e o Sócio e Gerente daquela - o arguido A... - foram ambos condenados, pela prática de um crime de abuso de confiança à segurança social, p. e p. pelo art. 105º n.º1 do R.G.I.T., em penas de multa.
À sociedade arguida foi aplicada a pena de 100 dias, à taxa diária de € 10,00.
O arguido A... era sócio gerente da sociedade arguida sendo ele quem, de facto e de direito, detinha os poderes de gestão e de administração daquela sociedade.
Como resulta assente na sentença condenatória, era este que chamava a si a iniciativa e a responsabilidade pelas decisões da vida societária (com natural inclusão dos pagamentos/não pagamentos devidos pela sociedade).
Efectivamente, os factos assacados ao arguido são precisamente os que se imputavam e imputam à sociedade (mutatis mutandis), por força do disposto no art. 7º e 15º do RGIT e vice-versa (com as necessárias adaptações).
Tudo visto, considero estarem preenchidos os pressupostos do n.º 6 e 7 do art. 8º do RG.I.T e o arguido A... solidariamente responsável pelo pagamento da multa aplicada à sociedade arguida, pelo que determino a sua notificação para pagar em dez dias, a quantia de € 1 000,00, correspondente à multa aplicada à sociedade arguida (sem as consequências penais a que alude o art. 49º do C.P.)
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            III. Apreciação do Recurso
            Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação. Vistas as conclusões do recurso interposto, a única questão que se suscita para apreciação deste Tribunal consiste em saber se a responsabilidade solidária dos gerentes pelo pagamento de multa em que foi condenada sociedade, quando estes foram condenados também em pena pela prática do mesmo crime fiscal, prevista no artigo 8º, nº 7 do RGIT, viola o disposto nos artigos 29º, nº 5 da CRP porque consiste em dupla punição do mesmo facto; violação do princípio ne bis in idem, devendo ser revogado o despacho recorrido que declarou o arguido responsável solidário pelo pagamento da multa em que foi condenada a co-arguida sociedade.
Vejamos.
Está em causa despacho que declarou o arguido ora recorrente solidariamente responsável pelo pagamento de multa em que foi condenada a sociedade de que era gerente, nos termos previstos no artigo 8º, nº 7 do RGIT que preceitua "Quem colaborar dolosamente na prática de infracção tributária é solidariamente responsável pelas multas e coimas aplicadas pela prática da infracção, independentemente da sua responsabilidade pela infracção, quando for o caso."
Para sustentar a sua tese de que o despacho recorrido viola o disposto no artigo 29º, nº 5 da CRP invoca o recorrente o acórdão do Tribunal Constitucional nº 1/2013, preceituando o citado normativo que "Ninguém pode ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo crime" conteúdo traduzido habitualmente na linguagem jurídica pela expressão latina “ne bis in idem”.
Sobre a responsabilidade solidária a que alude o n.º 7 tem sido divergente a jurisprudência dos tribunais superiores. Em acórdão proferido no processo 142/08.4TACTN-A.C1 de 17.10.2012 pronunciamo-nos no sentido da conformidade à constituição do questionado segmento normativo.
Porém, a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria leva-nos a repensar a questão, sendo certo que em função dessa jurisprudência têm os Tribunais da Relação decidido mais recentemente pela não aplicação da norma com fundamento da sua inconstitucionalidade material, por violação do princípio ne bis in idem previsto no artigo 29º, n.º 5 da CRP, ou por violação do princípio da pessoalidade das penas previsto no artigo 30º, n.º 3 da CRP (desta Relação confrontar o recente Acórdão proferido no processo nº 156/06.9TASAT.C1 de 21.10.2013.)
Com efeito, o TC decidiu:
- no acórdão n.º 1/2013, de 9 Jan.: «julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária»;
- nos acórdãos n.ºs 297/2013, de 28 Maio e 354/2013, de 27 Junho: «julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 30º, n.º 3, da Constituição, a norma do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das Infracções Tributárias na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infracção tributária pelas multas aplicadas à sociedade»;
Estão, pois, reunidos os pressupostos para que seja suscitada a fiscalização abstracta da constitucionalidade da norma em causa, sendo certo que mesmo sem essa declaração há que pesar os argumentos desse alto tribunal e porque nos rendemos à sua justeza recusar a aplicação em concreto da norma.
Remetemos para a fundamentação dos citados acórdãos do Tribunal Constitucional e do Acórdão desta Relação também citado, proferido no processo 156/06.9TASAT.C1, publicado em www.dgsi.pt, por nada mais de relevante termos a acrescentar, transcrevendo deste o seguinte trecho:
(…)
Ora, não se vislumbra à luz de que princípios se admite a possibilidade de, transitada em julgado a sentença, possa vir-se, em sede de execução dessa decisão, pretender-se mais do que nela foi declarado. Pois que transitada em julgado a decisão proferida, o juiz vê esgotado o seu poder jurisdicional.
Transitada a sentença apenas é permitido corrigi-la, nos precisos termos que constam do artigo 380º do Código de Processo Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
O caso julgado é a garantia de certeza e segurança, que nenhum sistema jurídico pode dispensar (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, páginas 282/284; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume III, página 384; Antunes Varela e outros, ob. cit., páginas 704/705).
Daí que, na fase executiva, não se possa pretender ir para além do que nela se encontra declarado - seja em termos de condenação penal seja em termos de responsabilidade civil.
Não se vê ainda como se pode declarar, seja quem for, civilmente responsável, prescindindo da alegação e prova de todos os pressupostos dessa responsabilidade, a não se basta com a declaração de existência do dano, mas pressupões ainda a imputação ao agente de um facto ilícito culposo do qual o dano seja causa directa e necessária.
Chama-se aqui à colação a Declaração de Voto à decisão proferida pelo acórdão 437/2011 do Excelentíssimo Conselheiro Dr. Joaquim de Sousa Ribeiro, onde o mesmo aduz, referindo-se à situação prevenida no nº 1 do artigo 8º, no âmbito contra-ordenacional e onde se fala em responsabilidade subsidiária, mas que se aplica ao caso dos autos, por maioria de razão: “Não estando em causa um abuso de direito nem a violação de um direito absoluto, a ilicitude extracontratual só poderia dar-se por violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios (artigo 483º nº 1 do C.C.) Não basta que alguém tenha cometido um facto culposo causador de prejuízos a outrem para que se possa imediatamente reivindicar daquele o pagamento de uma indemnização. Para que proceda a imputação ao autor do facto de responsabilidade civil, de que beneficia o titular do interesse afectado, é mister que este esteja juridicamente protegido, ou por um direito absoluto, ou por uma norma que tenha como escopo justamente a protecção desse interesse. A responsabilidade civil traduz-se numa relação obrigacional entre duas esferas jurídicas, e só assim se identifica o sujeito credor da indemnização.
Por isso que o artigo 78º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais apenas responsabiliza os gerentes, administradores para com os credores da sociedade “pela inobservância culposa das disposições legais destinadas à protecção destes”.
Se não for o caso, os credores ficam sem a faculdade de accionar directamente aqueles sujeitos. Não pode haver responsabilidade civil se não estiverem verificados os seus pressupostos gerais. A qualificação, que consta da epígrafe do preceito, de “responsabilidade civil” é apenas, recorrendo ao nosso Eça o “manto diáfano” que mal esconde a “nudez forte” da responsabilidade contra-ordenacional, sujeita aos princípios que a regem, designadamente o da proporcionalidade”.
Entende-se assim, salvo sempre o devido respeito por entendimento contrário que o artigo 8º número 7 do RGIT, se refere à responsabilização civil de outros que não os arguidos já condenados em processo-crime, pela co-autoria do mesmo crime. Colaborar significa, cooperar, concorrer, contribuir, auxiliar, coadjuvar. Pelo que se o arguido pratica a mesma infracção, até pelo elemento literal se chega à conclusão expressa.
As objecções que se têm vindo a colocar à conformação constitucional do preceito saem reforçadas quando nos movemos no âmbito do processo criminal, pois, “as penas fiscais”, como penas que são, não têm por finalidade ressarcir prejuízos, reais ou presumidos, que a violação de um dever tributário tenha provocado, à entidade credora do imposto. O critério e os fins últimos das penas criminais aplicam-se também às penas fiscais.
A doutrina do Tribunal Constitucional relativamente ao nº 1 do artigo 8º do RGIT aplica-se ao número 7 do mesmo artigo, na interpretação em que repousa a decisão recorrida, quando entende que permite que se declare, por mero despacho, a responsabilidade civil solidária do arguido, pessoa singular, já condenado pela co-autoria do mesmo crime, ainda no pagamento da pena de multa aplicada à pessoa colectiva.
A responsabilidade criminal é própria e como se encontra constitucionalmente consagrado (cf. número 3 do artigo 30º do Constituição da República Portuguesa) é insusceptível de transmissão.
Por isso, pelo cumprimento da pena imposta à sociedade – multa penal – não pode ser responsabilizado outro que não o próprio condenado, doutro modo haverá violação daquele preceito constitucional.
Do mesmo modo que viola o princípio ne bis in idem, porquanto, no caso, os sócios/gerentes foram já condenados, autonomamente, em penas que lhes foram impostas pessoalmente, pela prática do mesmo crime. Não existindo, tal como se encontra conformado o instituto, responsabilidade civil, pelo cumprimento de uma pena de multa criminal.
O artigo 8º reporta-se a infracções fiscais em que o lesado seja a Administração Fiscal, aplicando-se quando, por virtude da actuação de um gerente, o Fisco deixou de receber uma quantia que lhe era devida e que teria sido paga, caso não tivesse ocorrido o esgotamento culposo do património da sociedade.
A impossibilidade de cobrança coerciva de uma pena de multa criminal não implica para a administração fiscal qualquer dano pois o destino devido a esse título é nos termos do artigo 512º do Código de Processo Penal o que for fixado no CCJ (…) esses montantes são devidos a entidade diversa da Administração Fiscal.
Assim há que concluir que o artigo 8º do RGIT é inaplicável a acção em que a responsabilidade dos gerentes se funda numa condenação em pena de multa, proferida em processo-crime.
A responsabilidade civil emergente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal é regulada pela lei civil, para a qual remete quer o artigo 129º do Código Penal quer o artigo 3º do RGIT.
Pretender que a norma se aplica aos arguidos (pessoas singulares) condenados em processo criminal, era fazer recair sobre outro, que não próprio condenado, a responsabilidade pelo cumprimento de uma pena que lhe fora aplicada em processo crime, em clara violação do princípio da intransmissibilidade das penas, consagrado no artigo 30º nº 3 da Constituição da República Portuguesa.
Acresce que as penas de multa aplicáveis em processo criminal às pessoas colectivas, previstas no RGIT podem ser concretizadas entre 20 e 1920 dias, à taxa diária que varia entre o mínimo de 500 a 5000 euros. Enquanto para as pessoas singulares, a multa poderá ser fixada entre o mínimo de 10 e o máximo de 600 dias, à taxa diária de 1 a 500 euros, (artigos 12º e 15º do Regime Geral das Infracções Tributárias). Determinando a lei que sejam fixadas em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos. Pelo que ficaria vazio de sentido este ordenamento legislativo se a lei permitisse ao credor obter do arguido, pessoa singular, o cumprimento da pena de multa aplicada ao arguido pessoa colectiva, como poderia, tratando-se responsabilidade solidária, não lhe sendo possível opor-se a tal pretensão alegando que a sociedade tinha meios para cumprir a pena que lhe havia sido aplicada.
Daí que, impor o cumprimento da pena de multa aplicada ao arguido ente colectivo, ao arguido, pessoa singular, viola os princípios da culpa (artigos 1º e 27º nº 1), da igualdade (artigo 13º) e da proporcionalidade (artigo 18º) todos da Constituição da República Portuguesa.
A imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de penas de natureza criminal aplicadas à pessoa colectiva configuraria uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica.
Desde que, porém - como é o caso dos autos -, a responsabilidade solidária do gerente acresce à responsabilidade própria decorrente da sua comparticipação na prática da infracção, o que aí está em causa é, não já transmissão de responsabilidade penal, mas a violação do princípio ne bis in idem. Dito de outro modo, a transferência da responsabilidade penal da pessoa colectiva, por via da imposição da obrigação solidária, quando o responsável solidário é também condenado, a título individual, pela prática da infracção, corresponde à atribuição de diferentes consequências sancionatórias relativamente ao mesmo facto ilícito. E caracterização jurídica adquire autonomia e prevalência sobre a possível violação do disposto no artigo 30.º, n.º 3, da Constituição.
(fim de transcrição)
Em consequência concluímos que é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, nº 5 da Constituição, a norma do artigo 8º, nº 7 do Regime Geral das Infracções Tributárias quando aplicável a gerente de uma pessoa colectiva que foi igualmente condenado a título pessoal pela prática da mesma infracção tributária, o que impõe a revogação da decisão recorrida.
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III. Decisão
Nestes termos acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando o despacho recorrido.
Não há lugar a tributação.
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Coimbra, 30 de Outubro de 2013
 
(Maria Pilar Pereira de Oliveira - Relatora)
 (José Eduardo Fernandes Martins)