Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2638/12.4TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
FILMAGEM
LOCAL PÚBLICO
LOCAL DE LIVRE ACESSO AO PÚBLICO
DEPOIMENTO QUE REPRODUZ FILMAGEM
Data do Acordão: 02/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA LOCAL DE LEIRIA - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 79.º, N.º 2, DO CC; ART. 199.º, N.º 2, DO CC; 125.º E 167.º DO CPP
Sumário: I - A captação de imagens por particulares, em locais públicos ou de livre acesso ao público, não estando ferida de qualquer ilegalidade nem violando os direitos de personalidade que compreendem o direito à imagem, é meio admissível de prova.

II - Efectivamente, as imagens assim captadas, por factos ocorridos nos referidos locais, do suposto autor do crime, não constituem nenhuma violação do “núcleo duro da vida privada” nem do direito à imagem daquele; por conseguinte, não é necessário o consentimento do visado para essa filmagem, nos termos exigidos pelo art. 79.º, n.º 2, do CC, porquanto a imagem do suspeito se encontra justificada por razões de justiça, nem tão pouco a referida recolha de imagens integra o crime de p. p. pelo art. 199.º, n.º 2, do CP.

III - Os depoimentos que reproduzem as ditas filmagens, não estando afectados por qualquer proibição de prova, devem ser livremente apreciados e valorados pelo tribunal.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª secção, criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra:

 

I – Relatório

No processo supra referido, foi submetida a julgamento A... , completamente identificada nos autos, em processo comum com intervenção do tribunal singular, vindo a final a ser condenada pela prática de 6 crimes de falsificação de documento, p.p. pelo artº 256º nº1 do Código Penal, na pena de 70 dias de multa por cada um dos crimes. Em cúmulo jurídico foi a arguida condenada na pena única de 200 dias de multa à taxa diária de € 5,00, perfazendo o montante de € 1.000,00 (mil euros) 


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Desagradada com o assim decidido, veio a arguida interpor recurso despedindo a respectiva motivação com as seguintes

Conclusões:

1.Salvo o devido respeito que o Tribunal recorrido é merecedor e atenta a prova efectivamente produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não poderia o Tribunal a quo dar como provado os factos enunciados sob os números 13, 14, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 42,44 e 48 a 52 supra mencionados.

2. Impõe-se, assim, a reapreciação da matéria de facto relativamente aos factos enunciados dados como provados na douta sentença sob recurso.

3. A questão que se suscita nos presentes autos é apurar se, face à prova produzida em audiência de julgamento, resulta provado que – não obstante alguns talões de devolução terem o nome da arguida na parte destinada ao operador – foi a arguida que os elaborou e que os assinou, com o seu próprio punho, apondo uma assinatura falsa, no espaço destinado à assinatura de cliente como se fosse a deste último.

4. Ora, em lado algum da douta sentença sob recurso, a Mmª Juiz a quo refere qual a motivação para ter considerado como provado que foi a arguida que apôs nos talões de devolução uma assinatura falsa, como o seu próprio punho, no espaço destinado à assinatura do cliente, como se fosse a deste último (factos 17, 22, 30, 33, 44 e 50).

5. Na verdade, não resulta de qualquer dos depoimentos prestados em audiência de julgamento prova inequívoca de que foi a arguida que apôs nos talões de devolução uma assinatura falsa, com o seu próprio punho, no espaço destinado à assinatura do cliente, como se fosse a deste último.

6. Quanto ao facto de ter sido a arguida quem elaborou os talões de devolução, os depoimentos das testemunhas B... , C... , D... e E... baseiam-se exclusivamente nas imagens captadas pelo sistema de vídeo vigilância, as quais, no entanto, não constituíram meio de prova nos presentes autos.

7. As referidas testemunhas não têm conhecimento directo dos factos, não tendo presenciado a arguida a elaborar qualquer talão de devolução ou a assinar no espaço destinado à assinatura do cliente.

8. Por outro lado, não foi realizada qualquer perícia de letra e assinatura para confirmar se a mesma correspondia ou não à assinatura do cliente em questão.

9. Como resulta provado, nem todos os talões de devolução se encontram assinados com o nome da arguida na parte destinada ao operador (cfr. fls.58 e fls 66 dos autos), encontrando-se assinados por outros funcionários da loja Worten, o que demonstra, sem margem para dúvidas, que houve intervenção de outras pessoas nos talões de devolução em análise no caso sub judice.

10. A Mmª Juiz a quo motivou a sua convicção no facto de, na data e hora em que os talões de devolução foram emitidos, a arguida se encontrar sozinha ao balcão, o que – na perspectiva do Tribunal – “permite concluir, com segurança, ter sido a arguida a autora dos mesmos, usando para o efeito os cartões UNIFO de outra colegas de trabalho”.

   11. Acontece que, tal facto apenas está suportado nas imagens captadas pelo sistema de vídeo vigilância, imagens essas que não são prova nos autos.

12. Por outro lado, não existe qualquer prova de que os talões de devolução, nos quais consta o nome da arguida (fls 53, 56, 62 e 70 dos autos) tenham sido efectivamente assinados pela própria.

13. O depoimento da testemunha B... foi prestado de forma pouco coerente e objectiva através de respostas vagas e confusas.

14. Na verdade, em grande parte do seu depoimento, limitou-se a confirmar as questões efectuadas pela Srª Procuradora, respondendo recorrentemente através de expressões como: “certo e exatamente”.

15. Não presenciou os factos, tendo confirmado que há talões de devolução onde não consta o nome da arguida no espaço reservado à assinatura do operador, tendo sido assinado por outro colaborador.

16. Referiu expressamente que a assinatura foi feita pela arguida porque consta o número do cartão da mesma no talão de devolução e porque as imagens revelam que a arguida se encontrava sozinha no balcão no momento em que foi feito o talão de devolução.

17. O conhecimento que as testemunhas C... e D...têm dos factos é apenas do que visualizaram através das imagens que foram captadas pelo sistema de videovigilância, imagens essas que não são prova nos autos.

18. A testemunha C... referiu ainda que as referidas imagens vê-se a testemunha a usar um cartão, mas não sabe se se trata do cartão da própria ou de outra colega.

19. No que concerne à utilização dos cartões UNIFO, resultou uma contradição dos depoimentos prestados pelas testemunhas B... e H... , supra transcritos.

20. A douta sentença deu como provado que a arguida utilizou o cartão UNIFO da supervisora G... sem conhecimento da mesma (facto 30), bem como utilizou tal cartão, quando já não se encontrava ao serviço (facto 52).

21. Ora, a testemunha H... referiu claramente que o “cofre está fechado, em que a responsável da loja, neste caso a pessoa que está de permanência à direção, que posso ser eu ou qualquer outra chefia, tem de a chave e é aberto, entregue o cartão á pessoa e ao final do dia o cartão é entregue pela pessoa novamente e guardado no cofre.”

22. Portanto, se a funcionária G... já não se encontrava ao serviço, o seu cartão estaria guardado no cofre, não podendo ter sido utilizado pela arguida para efectuar a suposta devolução, pelo que o facto 52 não podia ser dado como provado.

23. Face à prova produzida o Tribunal a quo não deveria ter dado como provado que “a arguida apôs uma assinatura falsa com o seu próprio punho, no espaço destinado à assinatura do cliente como se fosse a deste último”.

24. As filmagens não foram apresentadas como meios de prova, bem como não foi realizada qualquer perícia cde terá e assinatura para confirmar se efectivamente a arguida apôs uma assinatura falsa com o seu próprio punho, no espaço destinado à assinatura do cliente como se fosse a deste último.

25. Nenhuma testemunha presenciou a arguida a elaborar ou assinar os talões de devolução.

26. Ora, da conjugação de todos os meios de prova produzidos em audiência, o tribunal a quo deveria ter entendido, salvo sempre o devido respeito, que existe dúvida séria, objectiva e inultrapassável e, por isso, insanável quanto à autoria dos factos imputados à arguida.

27. Pelas razões supra expostas, e por funcionamento do princípio do “in dúbio pro reo”, transversal em processo penal, o tribunal não deveria ter decidido julgar como provados os factos 13, 14, 16, 17, 18, 21, 22, 23, 24, 28, 29, 30, 31, 33, 34, 35, 36, 42,44 e 48 a 52 e, consequentemente, deveria ter absolvido a arguida dos factos dos quais vem acusada.

28. O princípio do “in dubio pro reo” constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

29. Este princípio é uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência previsto no artº 32º, nº2, 1ª parte da CRP contempla, impondo uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso de persistência de uma dúvida sobre os factos. 


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O recurso foi admitido.

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Respondeu-lhe o Magistrado do Ministério Público, que extraiu, por seu turno as seguintes conclusões:

1. Da motivação e das conclusões apresentadas pelos recorrentes resulta que a mesma não impugnaram a decisão recorrida, nos termos do artº 412º, nº3, alínea b^) do CPP, designadamente não especificaram as concretas passagens em que se fundamentam tal pretensão, nos termos em que a lei o impõe;[1]

2 – A apreciação da matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso, do complexo dos elementos de prova produzidos, que serviram de fundamento à decisão recorrida e, muito menos, um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instancia, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um segmento/reexame meramente parcelar;

3. No caso em apreço não lugar a reformulação das conclusões, uma vez que, constituindo o texto da motivação limite absoluto, que não pode ser extravasado nas conclusões, e sendo estas logicamente, um resumo, há que concluir que o que não constar das motivações stricto sensu, não pode constar das conclusões;

4. Mesmo que assim não se entenda, sempre se dirá que andou bem a Srª Juíza a quo, apreciando a prova, de forma perspicaz, atenta, lógica e crítica, explicitando, de forma clara, as razões de ter ou não atribuído credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas, em sede de audiência cde discussão e julgamento, elementos conjugados com a prova documental;

5- A recorrente impugna a matéria assente como provada, pugnando pela reapreciação da prova, mas não o faz de acordo com as regras legais aplicáveis, inclusive, não especificando “ os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”, por referência às concretas passagens dos depoimentos documentados;

6. Da leitura de toda a matéria de facto, assente como provada e assente como não provada, e da sua fundamentação respetiva não conseguimos vislumbrar a existência de qualquer vício, portanto, não existindo qualquer erro na apreciação da prova, tendo os factos considerados provados pelo Tribunal a quo, resultado de uma correta apreciação e valoração crítica do conjunto da prova designadamente, a prova produzida em audiência;

7. Na fundamentação de tal convicção estão suficientemente demonstradas as razões que levaram o tribunal a considerar provados os factos assentes como tal, questionados pela recorrente;

8. A recorrente invoca, em jeito de conclusão, que deveria ter sido aplicado o princípio “ in dúbio pro reo”, apenas, afinal porque diverge da julgadora, quanto à valoração da prova que foi feita pela mesma;

9. Não assiste razão à recorrente, sendo que a douta sentença recorrida encontra-se perfeitamente alicerçada na respectiva fundamentação, apresentando-se esta, de forma coerente, lógica, em conformidade com os princípios aplicáveis, referentes à  apreciação da prova, nomeadamente, o “ princípio da livre apreciação da prova” e o “ princípio da imediação”, em conformidade com a lei aplicável;

10. Daí que a douta sentença recorrida não padeça de qualquer vício, designadamente, dos apontados pela recorrente, não tendo sido violada qualquer norma ou princípio legal, designadamente, o invocado princípio “ in dubio pro reo”, e

11. Pelo exposto, entendemos que a sentença proferida se encontra devidamente fundamentada, de fato e de direito, mostrando-se em conformidade com as normas e os princípios aplicáveis.


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Já nesta Relação para onde os autos foram entretanto enviados, o Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência, louvando-se no essencial na resposta dada ao recurso na 1ª instância.

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Questões a decidir:

É consensual quer na doutrina quer na jurisprudência, que são as conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que delimitam os poderes de cognição do tribunal de recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das nulidades e vícios a que se reporta o artº 410º do CPP.

Pois bem, das conclusões supra referidas resulta que o recorrente pretende que este tribunal reaprecie a matéria de facto.


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Fundamentação.

A decisão recorrida julgou os seguintes

Factos provados:

A... foi admitida ao serviço da Loja Worten do Centro Comercial (...) Shopping, situado no (...) , pertencente á sociedade WORTEN – Equipamentos para o Lar, SA, com sede na Rua João Mendonça, nº. 505 - Senhora da Hora, mediante contrato de trabalho celebrado em 01.04.2004;

De acordo com os procedimentos em vigor na aludida Loja Worten a devolução de artigos adquiridos pelos clientes obedece a alguns pressupostos e segue uma tramitação previamente definida;

Segundo a qual, nomeadamente, para o cliente efectuar uma devolução e receber o respectivo reembolso é necessária a apresentação obrigatória pelo mesmo do comprovativo de compra original (talão de compra, factura ou talão/prenda);

A operação tem de ser realizada dentro do prazo de devolução, a saber 15 dias de calendário após a compra, com excepção quanto aos artigos com defeito de fabrico/qualidade, cujo prazo está definido por lei em 2 anos;

Tem que ser igualmente apresentada pelo cliente a embalagem de origem, em bom estado, acompanhada dos acessórios, manuais de instruções e outros documentos incluídos no artigo quando aplicável;

Bem como é obrigatória a obtenção de autorização prévia de um empregado que integra a denominada “permanência de loja”;

O qual utiliza um cartão chamado UNIFO, pessoal e intransmissível, e que não pode ser usado por quem não seja o seu titular;

Posto isto, o respectivo operador que efectua o atendimento confere o artigo a devolver, pelo código que está assinalado no talão de compra, recolhe o artigo devolvido e emite um talão de devolução;

Neste talão de devolução, terão de ficar a constar as assinaturas do empregado que efectua a transacção, do cliente interessado e da aludida “permanência de loja”;

E é então que é devolvido o dinheiro ao cliente;

No dia 04-05-2012 foi efectuado na referida Loja Worten um inventário de máquinas fotográficas;

Na sequência do mesmo foram detectadas divergências de stock referentes a dois artigos, a saber:

- uma máquina da marca Nikon S3100, com o código 8431016431649, que tinha o preço de venda ao público de € 79,00;

- uma máquina da marca Sony W 570, com o código 4905524752441, que tinha o preço de venda ao público de € 109.

Artigos estes que, supostamente, haviam sido objecto de devoluções, ambas efectuadas pela arguida;

Devoluções essas, porém, que se revelaram ser de natureza fictícia;

Assim, no que concerne à situação ocorrida com a máquina da marca Nikon S3100, a cliente do artigo em questão - titular da factura nº. 503/001385 - efectuou, no dia da compra, um tax free, tendo deixado esquecido o respectivo talão no balcão da secção Worten Resolve;

A arguida apropriou-se do referido talão de compra original e fez uma devolução fictícia em proveito próprio;

Com efeito, no dia 15-04-2012, pelas 20:07 horas, a arguida elaborou um “talão de devolução” que não correspondia à realidade e apôs-lhe uma assinatura com o seu próprio punho no espaço destinado á assinatura da cliente, como se fosse a desta última;

Posto o que a arguida se apropriou da quantia de € 79, que retirou da caixa da Loja Worten, e fez sua;

Tendo, no dia 02-05-2012, a aludida cliente se deslocado para o Brasil, levando consigo a referida máquina fotográfica Nikon S3100, que não devolveu;

No que diz respeito à máquina da marca Sony W 570E, o cliente deslocou-se à loja, no dia 28-04-2012, para devolver o artigo com o código 5420027515274 SN Navman F3S0, no valor de €69,90;

Esta situação possibilitou que a arguida tivesse acesso a uma cópia do respectivo talão de compra, que usou para efectuar uma devolução fictícia em beneficio próprio no dia 01-05-2012, às 15.47 horas;

Elaborando a arguida, para o efeito, um “talão de devolução” que não correspondia à realidade, no qual apôs uma assinatura com o seu próprio punho, no espaço destinado á assinatura do cliente, como se fosse a deste último;

Posto o que a arguida se apropriou da quantia de € 69,99, que retirou da caixa da Loja Worten, e fez sua;

Para camuflar a sua actuação, a arguida utilizou, para o efeito, o cartão UNIFO de Supervisora da empregada J... , sem conhecimento da mesma;

Continuando, todavia, o cliente com a aludida máquina Sony W 570E na sua posse;

No dia 17-05.2012, após realização do inventário de áudio portátil, a gerência da Loja Worten verificou uma diferença de stock relativa ao artigo GPS Start 20EUR VP, que tem o código 0636926053709 e o preço de venda ao público de € 139,00;

Pelo que foram novamente analisadas as devoluções do artigo em questão;

Constatou-se que o mesmo tinha sido objecto de uma devolução fictícia, novamente realizada pela arguida;

Para o efeito a arguida usou uma fotocópia de talão de uma outra devolução, ocorrida no dia 22.03.2012;

E, no dia 24.03.2012, às 19.38 horas, enquanto estava sozinha no balcão da seção Worten Revolve, utilizando, para o efeito, o cartão UNIFO de Supervisor pertencente a G... , sem conhecimento da mesma, a arguida elaborou um “talão de devolução” falso, no qual apôs uma assinatura falsa, com o seu próprio punho, no espaço destinado á assinatura do cliente, como se fosse a deste último;

Posto o que a arguida se apropriou da quantia de € 139,00 que retirou da caixa da Loja Worten, e fez sua;

Continuando, todavia, o respectivo cliente com o aludido artigo GPS Start 20EUR VP na sua posse, não o tendo devolvido;

No dia 16.06.2012, às 19:31 horas, a arguida emitiu um “talão de devolução” falso do artigo Sigmatex DVBR, que tem o código 3700649100396, e o preço de venda ao público de € 27,99, apondo uma assinatura com o seu próprio punho, no espaço destinado á assinatura do cliente, como se fosse a deste último;

Numa hora em que não existiam clientes no balcão da secção Worten Resolve e também não foi devolvido qualquer artigo, nomeadamente pelo cliente do referido artigo Sigmatex DVBR;

Tratou-se de uma nova devolução fictícia perpetrada pela arguida, que se apropriou do respetivo montante no dia seguinte;

Assim, por volta das 19.30 horas, do dia 17.06.2012, a arguida abriu a caixa da secção Worten Resolve e retirou da mesma, com a mão esquerda, a quantia de € 30,00;

Posto o que, mantendo sempre a sua mão esquerda fechada, a arguida se dirigiu ao computador e trabalhou no respetivo teclado com a mão direita aberta;

Minutos depois a arguida levou a mão esquerda fechada ao bolso das suas calças, onde, nesse momento, meteu a aludida quantia de €30,00, que fez sua;

De seguida, a arguida retomou o seu trabalho no teclado do computador, já com a aludida mão esquerda aberta;

Na hora de jantar da arguida, foi efectuado um controlo à caixa por parte do suporte de caixas da empresa Modelo Continente Hipermercado;

Que apurou que a caixa se encontrava correcta, sem quebra;

Tendo-se esta situação devido à emissão fictícia pela arguida, no dia anterior, do aludido talão de devolução;

No dia 22-06-2012, pelas 17.45 horas, a arguida encontrava-se sozinha no balcão da secção Worten Resolve;

Altura em que a arguida emitiu um “talão de devolução” sem correspondência com a realidade, relativo ao artigo “taxa de diagnóstico”, com o código 2100001262655, e o preço de venda ao público de € 14,90, apondo uma assinatura falsa, com o seu próprio punho, no espaço destinado á assinatura do cliente, como se fosse a deste último;

De imediato, o segurança da loja solicitou que a “permanência da loja” se dirigisse ao posto de trabalho, para análise da respetiva devolução;

O que fez, constatando que a devolução efectuada pela arguida era respeitante a uma “taxa de orçamento”, referente ao processo nº. 538/173623, relativo a um portátil cuja reparação não foi aceite pela cliente;

Desta forma o “talão de devolução” emitido ficou sem efeito, e na posse da arguida, que colocou no lixo o respetivo processo de reparação;

O aludido “talão de devolução” emitido pela arguida era fictício, pois não foi assinado por qualquer cliente, nem houve devolução efectiva de qualquer artigo.

Mais tarde, pelas 20.30 horas, logo após o regresso da arguida do descanso para jantar, a mesma emitiu outro “talão de devolução” falso, utilizando para o efeito uma cópia de um talão do artigo GPS XL Ibéria Class, com o código 0636926056779, e o preço de venda ao público de €99.99;

Apondo a arguida no referido “talão de devolução”, no espaço destinado á assinatura do suposto cliente, uma assinatura com o seu próprio punho, como se fosse a assinatura deste último;

Tratava-se, novamente, de uma devolução fictícia, perpetrada pela arguida, numa altura em que não havia clientes no balcão da secção Worten Resolve, relativamente a um artigo que fisicamente não existia;

Posto o que a arguida utilizou o cartão de Supervisor da empregada G... , quando esta última já não se encontrava ao serviço, para efetuar a suposta aludida devolução;

Por volta das 21.32 horas, do mesmo dia 22-06-2012, a arguida abriu a gaveta da caixa da seção Worten Resolve e verificou o dinheiro lá existente;

Minutos mais tarde, a arguida voltou a abrir a gaveta, amassou algumas notas e, com a mão esquerda, apoderou-se da quantia de €100,00, mantendo a referida mão fechada, com as notas escondidas no seu interior.

De seguida, a arguida colocou o referido dinheiro dentro da caixa de um artigo deixado por um cliente, que fora atendido anteriormente;

E dirigiu-se para a parte técnica da Loja Worten, com a referida caixa, e com o dinheiro em se poder, que fez seu;

Pelo que, pelas 23:55 horas, do referido dia, a arguida foi chamada aos escritórios da Gerência, onde foi confrontada com toda a factualidade supra referida, na presença da gerente da aludida loja Worten B... , do responsável de segurança do Modelo Continente Hipermercado C... e do segurança de serviço na Loja Worten D...;

Altura em que a arguida confirmou a prática dos factos descritos supra e devolveu à Gerente de Loja Worten a quantia de € 100 (cinco notas de €20) de que se havia apropriado nesse dia, após as 21.30 horas;

A arguida apresentou a sua demissão, que veio a revogar posteriormente, sendo despedida pela Gerência da Loja Worten do Centro Comercial (...) Shopping, no mês de Agosto do ano de 2012, que invocou o motivo de justa causa, pelos mesmos factos que os supra descritos;

Com o mencionado procedimento a arguida apropriou-se, indevidamente, dos montantes enunciados, que utilizou em seu proveito próprio;

Dos quais a arguida apenas devolveu á Gerência da Loja Worten a quantia de € 100, de que se havia apoderado no dia 22.06.2012;

Causando, desta forma, a arguida prejuízos à Loja Worten, de igual montante ás quantias por si apropriadas e utilizadas em seu proveito próprio;

Toda a atuação da arguida descrita supra foi captada pelo sistema de video-vigilância da aludida Loja Worten, e ficou registada em gravação vídeo, o que permitiu o seu acompanhamento e visualização pelos Seguranças presentes no local;

A arguida agiu consciente, livre e deliberadamente;

Com o propósito de integrar as supra mencionadas quantias em dinheiro na sua esfera patrimonial;

Não obstante saber que as mesmas lhe não pertenciam;

E que procedia contra a vontade da sua dona, a saber a Loja Worten do Centro Comercial (...) Shopping;

Agiu, ainda, a arguida com os propósitos de obter benefícios, que sabia serem ilegítimos, e o de encobrir a apropriação indevida por si efectuada das supra referidas quantias em dinheiro;

Ciente de que os “talões de devolução” que elaborou e assinou lhe eram completamente estranhos e não correspondiam à realidade;

Abalando a arguida, com a sua conduta, a segurança, a genuinidade e a credibilidade que os documentos emitidos pelos estabelecimentos comerciais devem merecer, como o sejam os aludidos talões de devolução;

Sabia que a sua conduta era proibida por lei;

A arguida não tem antecedentes criminais;

A arguida encontra-se desempregada, não aufere quaisquer rendimentos, tem 1 filha com 20 anos de idade que é estudante, vive em casa da mãe e tem o 12.º ano de escolaridade.


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Não existem factos não provados.

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Motivando a sua decisão acerca da matéria de facto nos seguintes termos:

O Tribunal formou a sua convicção positiva com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, globalmente considerada, atendendo nos dados objectivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e fazendo uma análise das declarações e do depoimento prestados.

Assim, o Tribunal considerou provado que a arguida foi funcionária da lesada com base nos depoimentos das seis testemunhas inquiridas, as quais, na altura dos factos, eram funcionárias que se encontravam ao serviço da lesada na mencionada loja Worten do Centro Comercial (...) Shopping, onde ocorreram os factos em causa nos autos, que o referiram de forma unânime e objectiva.

Relativamente aos procedimentos praticados na loja Worten do Centro Comercial (...) Shopping para a devolução de artigos (factos 2 a 10), o Tribunal formou a sua convicção com base no depoimento espontâneo e isento da testemunha B... , gerente da loja em questão, que os descreveu de forma pormenorizada e objectiva. Nesta parte, atento o cargo exercido pela testemunha de gerente da loja, bem como o conhecimento directo que tem dos factos, ao que acresce a forma espontânea com que depôs sobre os mesmos, tudo contribuiu para lograr convencer o Tribunal.

Quanto à realização dos dois inventários, nos dias 04-05-2012 e 17-05-2012, nos quais se detectaram divergências de stock relativamente a alguns artigos supra mencionados (factos 11 a 14 e 26 e 27), foram determinantes os depoimentos das testemunhas B... , E... e F... , que participaram na realização dos mesmos, tendo ainda referido que foi por essa ocasião que se aperceberam que eram feitas devoluções sem que às mesmas correspondesse qualquer entrada de mercadoria.

Foi ainda determinante na formação da convicção do Tribunal o depoimento da testemunha B... na medida em que esta disse ter entrado em contacto com o cliente da máquina de marca Sony W 570E (facto 20), que confirmou encontrar-se na posse da mesma, E..., que disse ter entrado em contacto com o cliente que supostamente devolvera o GPS Start (facto 26), tendo o mesmo referido não o ter feito, e ainda a testemunha F, que por sua vez contactou o cliente da “taxa de diagnóstico”, que por sua vez negou a suposta encomenda para reparação de um portátil, o que confirmou o facto de as devoluções serem, efectivamente, fictícias.

Relativamente ao facto de ter sido a arguida quem elaborou os “talões de devolução” de fls. 53 (em 22-06-2012, às 17h45), 56 (em 22-06-2012, às 20h30), 58 (em 01-05-2012, às 15h47), 62 (em 15-04-2012, às 20h07), 66 (em 24-03-2012, às 19h38) e 70 (em 16-06-2012, às 19h21), tendo por vezes utilizado os cartões UNIFO de outros colegas de trabalho (factos 15, 16, 17, 22, 24, 30, 33, 34, 43, 44, 48, 49 a 52), aos quais não correspondem verdadeiras devoluções (pois às mesmas não se verifica a entrada de equipamento a que as mesmas fazem referência), o Tribunal baseou a sua convicção nos depoimentos conjugados das testemunhas B... , C... (coordenador de segurança), D...(vigilante) e E... (chefe de vendas), todos funcionários na loja Worten à data da prática dos mesmos, dos quais têm conhecimento directo, tendo as mesmas referido, de forma idêntica, objectiva e desinteressada, e por essa razão convencendo o Tribunal, que na hora em que foram emitidos os “talões de devolução” em causa nos autos a arguida encontrava-se sozinha ao balcão, sem que estivesse presente, sequer, qualquer cliente (para além de que estas testemunhas referiram ainda ter visionado os vídeos captados através do sistema de videovigilância da loja, nos quais se podia ver a arguida a emitir os referidos talões de devolução), tudo por sua vez corroborado pelos próprios “talões de devolução” (cfr. documentos juntos a fls.53, 56, 58, 62, 66 e 70), de cujo teor resulta “talão de devolução”, a identificação dos equipamentos que se devolve e respectivo valor, bem como as assinaturas do operador, permanência e cliente.

Importa nesta parte mencionar que, não obstante os “talões de devolução” em causa não se encontrarem todos assinados com o nome da arguida na parte destinada ao operador (apenas os emitidos nos dias 22-06-2012, às 17h45 (fls. 53) e às 20h30 (fls.56), 15-04-2012, às 20h07 (fls.62), e 16-06-2012, às 19h21, (fls.70) foram assinados pela arguida), resultou demonstrado que os “talões de devolução” emitidos nos dias 01-05-2012, às 15h47, (fls.58) e em 24-03-2012, às 19h38, (fls. 66), apesar de assinados por outros funcionários da loja Worten, foram emitidos pela arguida, na medida em que na data e hora em que os mesmos foram emitidos era aquela quem se encontrava sozinha ao balcão – como foi referido pelas testemunhas B... , C... (coordenador de segurança), D...(vigilante) e E... (chefe de vendas), todos funcionários na loja Worten à data da prática dos factos - o que permite concluir, com segurança, ter sido a arguida a autora dos mesmos, usando para o efeito os cartões UNIFO de outros colegas de trabalho.

Quanto ao facto de a arguida se ter apropriado das quantias correspondentes aos valor dos equipamentos cujas devoluções ficcionava (factos 18, 23, 31, 35 a 39, 53 a 56, 60 e 62) foram relevantes para formar a convicção do Tribunal os depoimentos das testemunhas C... , D... e E..., as quais referiram ter visionado os vídeos captados através do sistema de videovigilância da loja, onde era vista a arguida a retirar dinheiro da caixa. O valor dos equipamentos resulta de prova documental, designadamente dos documentos juntos a fls.53, 56, 58, 62, 66 e 70, que consistem nos “talões de devolução”, de cujo teor resulta o valor dos equipamentos.

Os antecedentes criminais da arguida resultam de prova documental, designadamente do C.R.C., de fls. 128.

Relativamente às condições sócio-económicas da arguida, o Tribunal baseou a sua convicção nas declarações prestadas por esta última, que, nesta parte, dada a forma objectiva e sincera com que foram prestadas, mereceram a credibilidade do Tribunal.


*

Conhecimento do recurso

Como consta das conclusões, a arguida rebela-se contra a matéria de facto, onde assentou a sentença condenatória, defendendo que o tribunal não podia fundamentar a sua convicção nos depoimentos das testemunhas que referiu na motivação da convicção porque elas se reportam a imagens captadas por câmaras de vídeo que não foram exibidas em tribunal.

Antes de abordar a questão da valoração da prova testemunhal, convém fazer um breve excurso acerca da licitude, ou falta dela, da captação de sistema de videovigilância, existente na loja “Worten” através do qual as testemunhas presenciaram a arguida a assinar talões de devolução e a retirar dinheiro da caixa correspondente a essas devoluções.

Quanto a esta questão seguimos a jurisprudência, tanto quanto sabemos uniforme, que defende que a captação de imagens por particulares, em locais públicos ou de livre acesso ao público, não está ferida de qualquer ilegalidade nem viola os direitos de personalidade, que compreendem o direito à imagem e, que por isso, são meios admissíveis de prova. Conf. neste sentido Ac. STJ de 28.09.2011, citado, aliás no processo pelo Digno Magistrado do Ministério Público, Ac. Rel do Porto de 23.11.2011, Ac. Rel. Évora de 24.04.2012 e Ac. Rel do Porto de 23.10.2013, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

De acordo com esta jurisprudência, as imagens captadas, em local público ou de livre acesso ao público, por factos aí ocorridos, do suposto autor do crime não constituem nenhuma violação do “núcleo duro da vida privada” nem do seu direito à imagem, não sendo necessário o consentimento do visado para essa gravação, nos termos do exigido pelo artº 79 nº2 do Código Civil, porquanto a imagem do suspeito se encontra justificada por razões de justiça, não podendo essa gravação ser integradora do crime de “gravações e fotografias ilícitas” p.p. pelo artº 199º nº2 do Cód. Penal.

Seguindo o Ac. STJ citado supra : “ Na íntima relação que coexiste entre o regime de admissibilidade de prova por reprodução mecânica – artº 167º do Cód. Proc. Penal e o crime de gravação ilícita 199º do Cód. Penal pode-se dizer, de forma redutora, que a gravação, ou fotografia, que não é crime, é admissível como prova” e “ o direito à imagem não deve ser sacralizado como núcleo essencial da vivência em comunidade, que se sobreponha a qualquer tipo de ponderação de outros valores” concluindo daqui que “age no exercício de um direito e, portanto vê excluída a ilicitude do seu comportamento, o agente cuja conduta é autorizada por uma disposição de qualquer ramo de direito.”

A ausência de ilicitude da captação de imagens radica assim em o particular que procede à filmagem visar apenas a prevenção da prática de crimes contra o seu património e a identificação de eventuais agressões a esse património, como é o caso das casas comerciais que usam este sistema, incluindo as lojas “Worten”, que como é do conhecimento comum, e por maioria de razão do conhecimento da arguida que aí trabalhava, independentemente de saber se estas filmagens obedecem ao licenciamento da Comissão Nacional da Protecção de Dados a que se reporta a Lei nº67/98 de 27.10.

Conclui-se assim que a protecção da palavra que consubstancia práticas criminosas ou a imagem que as retrata têm de ceder perante o interesse de protecção da vítima e da eficiência da justiça penal, a protecção da vida privada não pode subsistir quando aquilo que se protege constitui um crime, o direito privado nestes casos, tem de se submeter ao interesse público da prossecução da justiça penal.

Nestes casos, como conclui a jurisprudência citada, são válidas, porque não abrangidas por qualquer proibição de prova, artº 125º do Cód. Proc. Penal e, por isso podem ser valoradas as provas consistentes na gravação de imagens.  

Mas será que os testemunhos na parte em que reproduzem essas gravações também são provas admissíveis?

Não vemos porque não.

As testemunhas que visionaram os videogramas depõem sobre factos que tem conhecimento porque os presenciaram, sem prejuízo de o tribunal se se suscitarem dúvidas acerca destes depoimentos poder oficiosamente proceder à visualização dos referidos videogramas, nos termos do artº 340º do Cód. Proc. Penal.

Não sendo estes depoimentos afectados por qualquer proibição de prova, antes devendo ser livremente valorados pelo tribunal.

 Como se refere no Ac. Rel. Lisboa de 28.05.2009 que pode ser consultado no mesmo sítio, onde estava em causa as imagens captadas por uma câmara que o ofendido colocou no seu portão para descobrir o autor dos danos perpetrados no seu veículo automóvel: “A visualização das imagens recolhidas de forma não penalmente ilícita (já que à vista de toda a gente, e portanto sem surpresa para os filmados, de acordo com o acima explanado) só passou a poder integrar a tipicidade do ilícito previsto no art. 199.º/2b) do CP, e com ela, a anular o respectivo valor probatório para efeitos processuais penais nos termos do art. 167.º do CPP, a partir do momento em que foi instaurado o procedimento criminal contra as pessoas filmadas (ou numa visão que maximalize ao extremo a referida garantia), a partir do momento em que alguém decida usá-las, uso esse que pressupõe a respectiva visualização, pelo menos por uma vez. Antes de ser instaurado aquele procedimento criminal, nada impedia, com efeito, o dono da câmara de visualizar as imagens recolhidas.

Por esta via, mesmo no caso de confirmação da invalidade do uso das imagens recolhidas pela câmara de filmar colocada no portão, nada obstaria, porém, à consideração do testemunho de quem, através da visualização das filmagens captadas, identificou os autores do dano, prova esta apreciar livremente pelo tribunal nos termos do art.º 127º CPP.

E aqui chegados, o problema resume-se à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido.

No que tange à reapreciação da matéria de facto, a 2ª instância não pode agir sem limites, como parece entender a recorrente.

Com efeito, nesta apreciação o tribunal “ad quem” limita-se a controlar o processo de formação da convicção expressa pela 1ª instância e de aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre por referência a motivação/fundamentação da decisão, sendo que o recurso de impugnação da matéria de facto o tribunal ad quem não vai à procura de nova convicção – a sua – mas procura inteirar-se sobre a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação.

Como se diz no Ac. STJ de 23.04.2008, Proc. 899/08, 3ª secção, disponível em www.dgsi.pt: “O recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento de decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas.”

E continua o mesmo aresto: “ Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida, de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela decisão recorrida em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve, substituir a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais…”

Isto posto, verifica-se que no caso que nos ocupa o tribunal recorrido formou a sua convicção a partir do depoimento dos funcionários da loja Wortem onde os factos ocorreram, que constataram existirem devoluções sem estarem no armazém os artigos devolvidos; explicaram o procedimento a seguir pelos funcionários quando algum artigo é devolvido, o modo como a arguida fez as devoluções fictícias, sem que tivesse atendido qualquer cliente a solicita-las, e como resolveram “expia-la” através do sistema de videovigilância, sendo a arguida confrontada pela gerente da loja, com o seu comportamento da última vez que ele foi presenciado, em 22.06.2012, tendo então devolvido o dinheiro correspondente à devolução fictícia no montante de € 100,00 (cinco notas de € 20) de que se tinha apropriado.

Perante os depoimentos referidos, que presenciaram a arguida a assinar os talões que permitiam a devolução, que foram sempre efectuados quando se encontrava sozinha na caixa, não se vê necessidade de proceder a qualquer exame à sua letra.

A fundamentação da convicção a partir dos depoimentos que indicou faz deduções lógicas e em tudo compatíveis com as mais elementares regras da experiência comum, e não se vê como pudesse ter decidido de outro modo. Aliás, se bem entendemos a tese da arguida, a sua impugnação assenta na validade dos testemunhos na parte em que visualizaram o comportamento da arguida, sem que os videogramas tivessem sido exibidos em tribunal, e não no conteúdo dos mesmos, que levou ao juízo de culpabilidade e que foi proficientemente explanado na fundamentação da formação da convicção. 

   Não se vê que o tribunal ao formar a sua convicção nos termos que deixou expresso na motivação da decisão com base nos depoimentos que referiu, que, aliás, foram por nós confirmados, através da gravação áudio - se tivesse afastado das regras da lógica e do normal acontecer que devem nortear o julgador e muito menos se vê como a convicção assim formada de acordo com o art.º 127º do CPP, possa ser substituída pela convicção da arguida de que perante os depoimentos prestados ficou na dúvida acerca da sua autoria nos factos participados, dúvida que, defende, devia conduzir à sua absolvição.

É legítimo que os intervenientes processuais retirem convicções dispares daquela que foi retirada pelo tribunal, mas não podem esquecer que a convicção extraída pelo tribunal é a que vale, desde que devidamente fundamentada e objectivada, como foi no caso dos autos.

Do mesmo modo, não é pelo facto de existirem versões dispares e até contraditórias dos factos, que neste caso nem resultam da prova produzida, que o tribunal está impedido de formar a sua própria convicção desde que ela seja consentânea com as regras da lógica e da experiência comum.

Em suma, o que a recorrente intenta com o recurso é que este tribunal substitua a convicção fundamentada e objectivada pelo tribunal a quo, que é a que vale, que a nós tribunal de recurso, mesmo sem a oralidade e a imediação, também não nos suscita qualquer dúvida, pela convicção que a recorrente entende que devia ser extraída da mesma prova, o que pelas razões expostas não pode merecer acolhimento.

Diga-se, aliás, que a dúvida que a arguida quer lançar acerca da prova da sua culpabilidade não tem fundamento e por isso não pode com base nela aplicar-se a regra do “in dubio pro reo”, que é uma decorrência do princípio constitucional da presunção de inocência plasmado no artº 32º nº2 da Constituição que recorrente defende ter sido violado.

 A dúvida, lançada em abstracto, não legitima o funcionamento do falado princípio “in dubio” – estando em causa factos pretéritos existe sempre uma dúvida abstractamente possível sobre a sua verificação e/ou autoria, na certeza de que quem os aprecia não os presenciou. Mas apenas a dúvida argumentada que, em concreto - após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais – deixa o julgador (objectivo e distanciado do objecto do processo) num estado em que permanece como razoavelmente possível mais do que uma versão do mesmo facto, diga-se que neste caso nem existe uma outra versão contraditória com a que vingou, o arguida remeteu-se ao silêncio, não apresentou outra versão dos factos apenas agora se limita a pôr em duvida os depoimentos prestados e as deduções lógico dedutivas que o tribunal deles retirou.

Com efeito “A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme á razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio razoável” – cfr. Ac. STJ de 04.11.1998, BMJ 481º, p. 265.

Como se refere no aresto citado: “A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de formação de uma convicção positiva sobre a realidade e/ou a autoria de um facto, distingue-se da dúvida abstracta, meramente possível, ou hipotética. Apenas a dúvida séria e razoável - identificada, resultante da apreciação exaustiva e crítica dos meios de prova relevantes em conformidade com os critérios legais de produção e valoração da prova - impede a valoração dessa dúvida na perspectiva contrária ao interessa do arguido.

E, continua:

Com efeito, toda a decisão judicial constitui - precisamente - a superação não só da dúvida metódica, como da “dúvida razoável” sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do acusado. Daí a submissão a um rígido controlo formal e material do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno.

A livre apreciação exige a convicção, fundamentada, do julgador, para além da dúvida razoável. E o princípio in dubio pro reo limita a livre convicção quando, após a produção da prova e sua análise á luz das regras da experiência comum, persista uma dúvida razoável.

Situando-se assim o princípio in dubio pro reo no âmago da livre apreciação da prova. Constituindo como que “o fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios da legalidade da produção da prova, da valoração dos meios prova de apreciação vinculada em conformidade com os critérios legais e por último da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127º do CPP.

Convicção e dúvida constituem como que a face e verso do critério da livre apreciação da prova, limitando-se reciprocamente. Devendo ambas ser fundamentadas na apreciação dos meios de prova validamente produzidos, na apreciação dos meios de prova de apreciação vinculada em conformidade com os critérios legalmente definidos e, em relação aos restantes meios de prova, em conformidade com o critério do art. 127º do CPP. Acabando a livre convicção positiva onde surge a dúvida razoável; e deixando de subsistir a dúvida razoável quando o tribunal estabelece a convicção positiva, ancorada na análise crítica, objectiva e racional dos meios de prova validamente produzidos.

Assentando ambos na legalidade da produção da prova, nos critérios de apreciação vinculada e, na ausência destes, na razoabilidade da sua apreciação á luz do critério previsto no art. 127º do CPP, pela razoabilidade da análise crítica dos meios de prova produzidos oralmente em audiência com base nas regras do conhecimento científico, do convívio social, do efeito nos depoimentos da proximidade ou distanciamento do caso e/ou das pessoas envolvidas, do interesse no resultado do processo, da personalidade de cada depoente.”

Ora, da motivação da convicção como acima se deixou referido, não ressalta que o tribunal recorrido tenha sido acometido por qualquer dúvida quando apreciou os meios de prova que foram postos à sua disposição, e julgou provados os factos e a consequente culpabilidade da arguida, dúvida que a nós, tribunal de recurso, depois de ouvida toda a prova oral e examinadas as demais provas também não nos assalta, em face do que não se pode ter como postergado referido princípio.

Contra isto não vale argumentar que a arguida se remeteu ao silêncio no exercício de um direito e que este comportamento processual não a pode desfavorecer.

Se não a pode desfavorecer também não a pode beneficiar querendo lançar dúvidas no espírito do julgador sem qualquer base onde essa dúvida se possa fundamentar.

Não podendo ser posto em dúvida que os factos provados são suficientes para imputar à arguida a autoria dos crimes pelos quais foi condenada, o recurso da matéria de facto tem necessariamente de improceder.


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Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.


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Custas pela arguida com a taxa de justiça que se fixa em 3 UC.


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Coimbra, 24 de Fevereiro de 2016

(Texto elaborado e revisto pela relatora, artº 94º nº2 do CPP)

 

(Cacilda Sena - relatora)

(Elisa Sales - adjunta)


[1] Foi usado o plural certamente por lapso já que o processo tem apenas uma arguida e só ela recorreu.