Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
795/22.0JALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA COSTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO
RELATÓRIO DE AUTÓPSIA
CAUSA DA MORTE
PROVA POR PRESUNÇÃO
INTENÇÃO DE MATAR
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 131.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 120.º, N.º 2, ALÍNEA D), E 127.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGO 628.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL/C.P.C.
Sumário:
I – Se, na motivação da decisão da matéria de facto, o tribunal de julgamento fundamentar a decisão com os gestos efectuados em julgamento por testemunhas e arguido, tal prova é insusceptível de ser sindicada pelo tribunal de recurso, porque não tem a relação de proximidade com os meios de prova que o princípio da imediação confere ao primeiro.

II – O relatório de autópsia não é o único meio de prova da causa da morte, assumindo, também, relevância os depoimentos de pessoas presentes no local, corroborados com os vestígios existentes no local.

III – A morte por asfixia mecânica é, por norma, determinada por exclusão de outras causas de morte, alcançando-se com a informação circunstanciada dos factos.

IV – Pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar e a fixação dos elementos subjectivos do dolo.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Alcina Ribeiro
1.ª Adjunta: Ana Carolina Cardoso
2.º Adjunto: Paulo Guerra

I. RELATÓRIO

1. …, foi o arguido, , CONDENADO, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de 10 (dez) anos de prisão;

2. Inconformado, recorre o arguido, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:

Nona

Não foi produzida qualquer prova testemunhal que permita dar como provado … que o arguido desferiu com força e com o tubo metálico, um golpe na cabeça de ….

Décima

A prova pericial constituída pelo relatório de autópsia assentou essencial e determinante, conforme esclareceu o Senhor Perito Médico, na informação circunstâncial reproduzida ipsis verbis em itálico no campo “2. Conteúdo da Informação” a fls. 310 a 311, cuja origem corresponde exatamente ao teor de fls. 27 do Auto de Inspeção Judiciária elaborado e subscrito no mesmo dias dos factos, 06/08/2022, pelo Senhor Inspetor da Polícia Judiciária que teve a incumbência da investigação.

Décima Primeira

Tal informação é tendenciosa e incompleta porquanto não foi atualizada por omissão deliberada e consciente de realização de diligências de prova ordenadas pelo MP …

Décima Segunda

A omissão deliberada da realização de tais diligências de prova inquina toda a prova pericial constituída pelo relatório de autópsia, no qual, tal como admitido pelo Senhor Perito Médico que o subscreveu, o seu labor foi encaixar o que lhe era dado a observar, como se peças de um puzzle fossem, no puzzle completo que lhe foi oferecido pela PJ, pelo que quando as peças não encaixavam, faziam-se encaixar.

Décima Terceira

A nulidade de insuficiência de inquérito, prevista na al. d) do nº 2 do art. 120º do CPP foi arguida na sessão de audiência de 19/06/2023 …

Décima Quarta

A questão desta nulidade consta arguida na ata daquela sessão de audiência e aí foi decidida por despacho que a julgou extemporânea e por não constituir uma nulidade insanável, despacho de que o arguido não recorreu.

Décima Quinta

Contudo do não recurso não resulta que tal nulidade não seja intrínseca ao inquérito e que o inquine, tal como inquinou a elaboração do relatório de autópsia.

Vigésima Primeira

Foi usurpada pelo mesmo Senhor Inspetor a competência de direção do Inquérito, assim se concentrando numa única entidade as competências de direção e investigação, assim se logrando obter um relatório de autópsia que, elaborado de boa-fé pelo Senhor Perito Médico, partiu de informação incompleta e que poderia ser bem diferente, nomeadamente no que respeita às causa da morte (apurassem-se elas ou não, hipótese esta clara e expressamente admitida pelo Senhor Perito Médico) se a investigação ordenada no aludido despacho do MP tivesse sido realizada pela PJ.

Vigésima Segunda

No que respeita à intenção do arguido na sua conduta, ou seja o porquê da sua abordagem ao … e dos termos em que a fez, não estando provado qualquer comportamento que admita concluir pela premeditação de comportamento criminoso,

Vigésima Quinta

Por falta de prova concludente que ultrapasse qualquer dúvida razoável não poderiam ter sido dados como provados quer a causa da morte quer a intenção de matar, …

Vigésima Sexta

Admitindo-se, por mera hipótese e sem prejuízo da conclusão antecedente, que “A morte de … ficou a dever-se a asfixia mecânica por compressão torácica.” produzida pelo recorrente, também tem de se admitir que o recorrente deveria ter previsto o desfecho de tal compressão, apesar de, enquanto efetuava tal compressão, mesmo que de forma não muito intensa, tal poderia causar a morte, conforme, aliás, esclareceu o Senhor Perito Médico.

Vigésima Sétima

Ora não tendo o arguido intenção de matar …, razão pela qual gritava que chamassem a GNR/Polícia, sendo a causa da morte a asfixia por compressão toráxica, era exigível ao arguido que prevesse o desfecho da mesma, ainda que com o mesmo não se conformasse nem o mesmo pretendesse, o que constituem elementos típicos do crime de homicídio por negligência, ou seja, ainda que sendo previsível o desfecho, o arguido não o previu.

Vigésima Nona

Quanto à medida da pena e sem prejuízo das duas conclusões antecedentes, ainda se dirá que atendendo às circunstâncias concretas do caso, a pena aplicada revela-se excessiva …

II. QUESTÕES A DECIDIR

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

.

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

1.  Nulidade por insuficiência de inquérito

O Recorrente destina as Conclusões 10:ªa 15:º a invocar a nulidade por insuficiência de inquérito, uma vez que o Senhor Inspector da Policia Judiciária não realizou as diligências que foram ordenadas pelo Ministério Público.

Tal nulidade foi arguida em audiência, na sessão de 19 de junho de 2023, sobre a qual recaiu o seguinte despacho: Em face do exposto, o Tribunal considera, por um lado, extemporânea a invocação da nulidade da causa e, por outro, que não se verifica qualquer nulidade insanável, nomeadamente a invocado».

Notificado deste despacho, assistia o direito ao arguido de o impugnar por via do Recurso.

Ora, de acordo com o disposto no artigo 411º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, o prazo de interposição do recurso é de 30 dias a contar, nos casos de decisão oral reproduzida em acta, a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente.

Considerando, no caso, que a decisão foi proferida oralmente, no dia 19 de junho de 2023, tendo sido notificada ao Recorrente nesse mesmo dia, facilmente se conclui que, desde então decorreram já mais de 30 dias, sendo, por isso, extemporâneo o recurso agora interposto pelo Recorrente.

Consequentemente, transitou em julgado o despacho sindicado (cf. artigo 628º, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal), encontrando-se esgotado o poder jurisdicional sobre aquela questão.

Não se vislumbrando nem sendo arguida qualquer nulidade insanável, as questões suscitadas pelo Recorrente nas Conclusões 10.ª a 15.º são manifestamente improcedentes.

2. Omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade

Insurge-se o Recorrente contra dois despachos proferidos em audiência, na sessão de 19 de junho de 2023: i) o que indefere a prestação de esclarecimentos por parte da Senhora Perita médica … e ii) o respeitante ao indeferimento da reprodução do vídeo que cintem as declarações de …  prestadas a um canal de televisão, por inexigência legal, sendo a sua valoração ou não valoração efectuada em sede de decisão final.

Estes despachos não foram impugnados pelo Recorrente, pelo que, aplicando mutatis mutandis os fundamentos de facto e de direito referidos no ponto anterior, já transitaram em julgado, não podendo, ser reapreciados.

3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

3.1. Os poderes de cognição do Tribunal de Recurso

Como é por demais sabido, o julgamento da causa realiza-se na primeira instância, sob a égide dos princípios da oralidade e imediação, garantes do principio da livre apreciação da prova por parte do julgador inscrito no artigo 127.º, do Código de Processo Penal e onde são produzidas as todas as provas e ouvidas as pessoas que hajam de prestar declarações.

E é precisamente essa relação de proximidade entre o tribunal do julgamento em primeira instância e os meios de prova que lhe confere os meios próprios e adequados para valorar a credibilidade dos depoentes e que de todo em todo o tribunal do recurso não dispõe. [Acórdão da Relação de Évora, de 14-03-2006, processo n.º 1050/05-1, http://www.dgsi.pt].  

A oralidade e a imediação permite que «as relações entre os participantes no processo sejam mais vivas e mais directas, facilitando o contraditório e, por isso, a defesa, e contribuindo para alcançar a verdade material através de um sistema de prova objectiva, atípica, e de valoração pela íntima convicção do julgador (prova moral), gerada em face do material probatório e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens.» - Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 68. 

Só estes princípios permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, as testemunhas, partes civis e assistentes, a recolha da impressão deixada pela personalidade de cada um. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais» - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I,  1974, páginas 233 a 234.

A garantia do duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, faculta aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto e não já a realização de um segundo julgamento.

Esse o motivo pelo qual o artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal impõe ao sujeito processual que impugne a decisão sobre a matéria de facto, o ónus da especificação sobre: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas.

Em síntese, podemos afirmar que, quando o recurso aponta à decisão sobre a matéria de facto, um erro de julgamento, nos termos em que o faz o recorrente, deve especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como individualizar as passagens da gravação em que baseia a impugnação [artigo 412º, nº3, al. a)].

Dito de outro modo, como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 22 de Outubro de 2014 (proferido no processo nº 27/12.0JACBR.C1):

«estando em causa declarações ou depoimentos prestados em audiência de julgamento, sobre o recorrente impende o ónus de identificar as concretas provas que, em sua interpretação, e relativamente ao(s) ponto(s) de facto expressamente impugnados, impõem decisão diversa, e bem assim de concretizar as passagens das declarações (do arguido, do assistente, do demandante/demandado civil) e dos depoimentos (caso das testemunhas) em que se ancora a impugnação.

Mas tal não basta. Na realidade, o recorrente deve explicar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.

Este é o cerne do dever de especificação. …».

Por último, importa recordar, que «[As] regras de experiência comum (ou técnicas e científicas de conhecimento generalizado), ou máximas da experiência, são juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstracta, sem ligação a factos concretos sobre que há que decidir, mas concretamente observáveis pela experiência anterior de casos semelhantes. E não são resultantes de uma ciência pessoal, mas de um conhecimento que é partilhado (comum) pela generalidade das pessoas de um país, de uma região, de uma classe de pessoas e concretizam-se na ideia de que certos factos geralmente ocorrem associados a outros. De forma mais sucinta, se os factos costumam ocorrer de certa forma, isso permite um raciocínio indutivo que conclua que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma. Assim, é aceite que uma “regra de experiência comum” ou máxima da experiência não passa de uma lei social constatada de forma empírica por observação de factos anteriores.

…” (…) – Proc. 3612/07.6TBLRA.C2.S1, rel. o Cons. Helder Roque, citando [1] Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal, 1967/68, 48) e [2] Vaz Serra (citando Nikisch, in “Provas, Direito Probatório Material”, BMJ nº 110, 97)». [Acórdão do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de janeiro de 2021, Relator. Desembargador, João Gomes de Sousa)]:

Dito isto, vejamos a posição do Recorrente, partindo das Conclusões que delimitam o objecto do Recurso.

3.2.   Aditamento de factos (Conclusões 1ª a 5.ª)

3.3.  O ónus da especificação

 

3.4. A causa da morte (Conclusões 6.ª a 8.ª e 16.ª a 21.ª )

A questão da causa da morte é abordada pelo recorrente sob duas perspectivas: na primeira, coloca crise o modo como pressionou o tubo metálico no peito de … e, na segunda, põe em causa a conclusão do relatório de autópsia, na parte em que concluiu que a morte se deveu a asfixia.

3.4.1. No que respeita à primeira, alega o Recorrente, que os gestos feitos em audiência por si e pelas testemunhas, …, conjugados com as declarações que prestaram permitem inferir que o tubo metálico para imobilizar o … estava posicionado na linha dos ombros quem abaixo do pescoço, une os ombros, não impedindo a vitima de respirar.  

Mas sem razão.

Desde logo, porque, na sequência do principio da imediação acima referenciado, os gestos realizados pelas testemunhas e pelo arguido percepcionados pelo Colectivo de Leira são insusceptíveis de serem sindicados pelo Tribunal do Recurso, por a eles não ter acesso, nos termos já assinalados.

Depois, porque o contrário resulta da prova produzida, se analisada global e criticamente, á luz as regras da experiência comum. Foi a conduta do arguido que causou primeiro o desmaio e, depois, a paragem respiratória, da vitima.

Ou seja, como salienta o Acórdão recorrido, não subsistem dúvidas que, quando o arguido se encontrava em cima de …, este já não se mexia, tendo o corpo estremecido um pouco e dado um último suspiro após a saída do arguido de cima do mesmo.

Antes de serem iniciadas as manobras de reanimação, já o corpo de … não reagia a qualquer estímulo …

Improcedem as conclusões 6.ª a 8.ª .

3.4.2. No que toca à asfixia como causa da morte, o Recorrente, coloca em causa a fidelidade das conclusões periciais, acusando a Policia Judiciária, do Ministério Público e o próprio Tribunal de, intencionalmente, quererem a condenação do arguido, tendo, por isso, omitido a realização de diligências essenciais à descoberta da verdade.

Alega o Recorrente que a informação circunstancial enviada pela PJ ao Instituto de Medicina Legal foi determinante da causa da morte por asfixia, pelo que, estando aquela informação viciada por omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade, inquinada fica a conclusão de que a morte da vitima se deveu a asfixia.

E, de facto, pelo Sr. Perito foi explicado em audiência que, sem a informação circunstanciada sobre o ocorrido, não saberia indicar a causa de morte …, já que é muito frequente a morte por asfixia não apresentar evidência no corpo.

Contudo, o relatório de autopsia não é o único meio de prova da causa da morte, assumindo, também, especial relevância os depoimentos das pessoas presentes no local que observaram o comportamento do arguido. No nosso caso,  a clareza dos testemunhos sobre as circunstâncias em que o arguido pressionou o peito da vitima e o modo como esta reagiu, (desmaiou e faleceu no local), factos trazidos pelas testemunhas devem ser tidos em conta na determinação da causa da morte.

Antes de mais importa reter que a mencionada informação coincide na íntegra com as declarações que as testemunhas prestaram em audiência, corroboradas pelos vestígios existentes no local, devendo, por isso, ser tidas em conta na aferição da causa da morte.

Em causa está a seguinte informação:

«(…) tais acções fizeram com que a vitima se encontrava inanimada no chão, ao que o arguido aproveitou para se colocar em cima dele. Perante o alarido, os vizinhos vieram ver o que se passava tendo-se deparado com a vitima deitada no chão inanimada. Cheia de sangue na zona da cabeça, e o  arguido em cima dela, a pressionar o peito da vitima com um aspirador, dizendo que estava a agarrar a vitima até à chegada da policia. O arguido acabou pro sair de cima da vitima após pedidos insistentes das testemunhas.

Accionada a linha de emergência 112, no local foi presente uma equipa dos Bombeiros, bem como uma equipa VMER, tendo a vitima sido encontrada já sem vida. Óbito verificado no local, pelas 01:23 horas do dia 06/08/2022, pelo médico de serviço ao INEM».  

Esta informação foi corroborada pelo relatório do Instituto Nacional de Emergência Médica de fls. 18, atestando que vitima se encontrava em «paragem cardio-respiratória (com hemorragia abundante no couro cabeludo», tendo sido realizado manobras de suporte básico/suportes avançado de vida sem sucesso.

Também as testemunhas presentes no local, ouvidas na altura, explicaram as circunstâncias em que o arguido pressionou o tubo metálico no peito de … confirmando, assim, a informação circunstancial prestada pela Policia Judiciária.

Donde, sendo verdadeiros os factos constantes na informação circunstanciada, nada obsta a que sejam considerados na aferição da causa da morte, até porque, como esclareceu o Senhor perito, a morte por asfixia mecânica é, por norma, determinada por exclusão de outras causas de morte, alcançando-se a mesma em com a informação circunstanciada dos factos, o que sucedeu no caso dos autos.

E, neste particular, explicou, em audiência, o Sr. Perito responsável pela elaboração do relatório de autópsia:

O meu papel também é conjugar a informação que me é dada com aquilo que encontro.

Por isso mesmos (…) juntando aquilo que observei, aquilo que os exames complementares me deram juntando isso à informação que me foi facultada, juntando isso tudo, eu não tenho a certeza absoluta, mas admito como altamente provável que a causa da morte tenha sido essa e não a pancada na cabeça.   

E, da conjugação de todos os elementos, concluiu em síntese:

- nenhuma das lesões que … apresentava na cabeça foi causa determinante da sua morte;

algumas das costelas fraturadas que o corpo apresentava foram muito provavelmente causadas pela massagem cardíaca de reanimação efetuada, mas não provocaram a morte …;

a massagem cardíaca de reanimação efetuada não é susceptível de provocar a morte de …;

os vestígios de refluxo no corpo de … não são aptos a obstruir as vias respiratórias e a causar a morte do mesmo (o conteúdo gástrico já digerido não causa asfixia);

• a compressão torácica não deixa necessariamente vestígios externos no corpo, se for efetuada sobre a roupa e longitudinalmente em relação ao corpo (apresentando, ainda assim, o corpo de … uma discreta equimose na face anterior do hemitórax direito – exame do hábito externo);

o corpo de … apresentava um achado característico de asfixia – sufusões hemorrágicas nos pulmões.

Neste enquadramento factual, quer dos achados da autópsia -  sufusões hemorrágicas nos pulmões – quer da conduta do arguido descrita pelas testemunhas, a única conclusão que se pode extrair é a de que foi a compressão torácica exercida pelo arguido no corpo de AA causa direta e necessária da morte do mesmo, declarada no local.

3.5.  Ponto de facto provado n.º 7

Sustenta o Recorrente que não foi produzida qualquer prova testemunhal de que o arguido desferiu com força e com o tubo metálico, um golpe na cabeça de …, o que se confirma no texto da Motivação do Acórdão recorrido.

Porém, a ausência de testemunhas que tenham visto o arguido dar com o tubo na cabeça da vitima não é fundamento bastante para se alterar o facto para não provado.

Como se sabe, a realidade de um facto pode ser demonstrado através de prova directa e indirecta, na qual as presunções assume especial relevo, sempre dentro dos limites dos princípios da presunção e de livre apreciação da prova.

Para encontrar o equilíbrio entre a prova indirecta e a presunção de inocência do arguido, a doutrina e jurisprudência tem procurado critérios que superam os direitos em conflito, de entre os quais, Carlos Climent Durán (citado elo Desemb. Belmiro Andrade, e-book, Da prova indirecta ou por indícios: 4. A valoração da prova no âmbito da criminalidade económico-financeira, pag.87):

Para este autor, há que distinguir o conceito vulgar de presunção e o conceito normativo.

A presunção abstracta é constituída por uma norma ou regra de presunção, susceptível da prova em contrário, que pode ter sido estabelecida pela lei ou por decisão judicial, apoiando-se, em ambos os casos, em alguma máxima da experiência. Apresenta uma estrutura em que os factos básicos estão conexionados através de um juízo de probabilidade, que por sua vez se apoia na experiência, de maneira tal que a prova de um envolve a prova de outro. Enquanto a presunção concreta supõe a projecção da presunção abstracta sobre o caso ajuizado ou, se se preferir, a subsunção do caso concreto dentro da presunção abstracta, uma vez que se tenha praticado ou podido praticar a correspondente contraprova e se tenha comprovado judicialmente a existência de uma ligação racional entre os indícios e o facto presumido, com descarte de qualquer outro possível facto presumido. Em rigor já não cabe falar de facto presumido, mas antes de facto provado. O seu fundamento já não assenta no juízo de probabilidade, mas antes no juízo de certeza (certeza moral), como qualquer outro meio probatório ao qual a presunção se parifica. (…) Toda a presunção consiste, dizendo em poucas palavras, em obter a prova de um determinado facto (facto presumido) partindo de um outro ou outros factos básicos (indícios) que se provam através de qualquer meio probatório e que estão estreitamente ligados com o facto presumido, de maneira tal que se pode afirmar que, provado o facto ou factos básicos, também resulta provado o facto consequência ou facto presumido».

No nosso caso, conhecem-se os seguintes factos:

- A vitima apresentava uma lesão na parte frontal da cabeça compatível com o tubo do aspirador  utlizado pelo arguido para pressionar o peito de …, uma vez que se trata de uma lesão oblíqua e mais ou menos linear (não curvilínea, não côncava); sendo pouco provável que as pedras gravilhas (invocadas pelo recorrente) tenham causado aquela lesão na cabeça, atendendo à dimensão, seis centímetros e meio e um pedra de gravilha e ao facto de não existirem outras lesões na cabeça.

Não existam outras lesões na referida região da cabeça, compatíveis com o embate da cabeça na gravilha (pedras) do chão;

-  A referida lesão sangrou abundantemente;

- As escoriações na região occipital da cabeça são compatíveis com o contacto da cabeça no solo (e não com queda ou embate da cabeça no solo);

O arguido reconhece que atingiu o corpo do … (não nas pernas como afirma, posto que estas não aparentavam quaisquer lesões);

Da conjugação desta factualidade – o arguido atingiu o corpo da vitima com o ferro, as testemunhas viram a vitima no chão com a cabeça a sangrar; a zona frontal da cabeça da vitima apresenta lesões compatíveis com o referido ferro (e já não com o bater da cabeça na gravilha do chão), não estava mais ninguém no local mais ninguém estava no local - não existe qualquer outra possibilidade que não seja a do arguido ter desferido com força o tubo na cabeça da vitima.

Daí que se mantenha este facto como provado, improcedendo a Conclusão Nona.

3.6. A intenção de matar (conclusões 22.º a 25.ª)

Como é jurisprudência pacífica, pertence ao âmbito da matéria de facto o apuramento da intenção de matar e a fixação dos elementos subjectivos do dolo.

Neste particular importa reter o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de março de 2009, (Proc. N.º07P1769, in www.dgsi.pt):

A intenção de matar constitui matéria de facto, em princípio imodificável, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.  [cf.. entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de maio de 1991, BMJ 407, 130; de 30 de maio de 1996, processo n.º 208/96, BMJ 457, 144; de 04 de julho 1996, CJSTJ 1996, tomo 2, página, 222; de 13 de novembro de 1996, processo n.º 48510-3ª, SASTJ, novembro 1996, n.º 5, página; de 18-12-1997, processo n.º 930/97-3ª, BMJ 472, 185; de 21 de janeiro de 1999, CJSTJ 1999, tomo 1, página. 201 e de 17 de outubro de 2007, processo n.º 3395/07-3ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, página  220].

Deduzindo-se a intenção de matar dos elementos materiais, conjugados com as regras da experiência comum, onde a presunção natural tem especial relevância (cf. Ac. da Relação do Porto de 6 de abril de 2001, Proc. N.º 0141381, in ww. dgsi.pt) temos de concluir existirem, de forma evidente e incontornável, tais elementos materiais no caso vertente.

Alega o Recorrente que imobilizou …, como meio de detenção em flagrante delito,  apenas queria segurá-lo até à chegada da GNR, já que tinha legitimidade para o deter em flagrante delito da prática do crime de violação do domicilio ou crime de introdução em lugar vedado ao público …

Todavia, a sua conduta não se mostra conforme tal propósito.

Está demonstrado que a vitima, …, depois terminada a relação amorosa que mantinha com a companheira, …, em finais de julho de 2022, saiu da casa onde residia com esta (num quarto arrendado ao arguido), que era também a do arguido, indo morar para outro local. 

Por volta da meia noite do dia 5 de agosto de 2022, … entrou dentro da propriedade do arguido.  Este, ouviu barulhos, espreitou da janela, viu a vitima de costas, na descida de sua casa, a dirigir-se para a rua. Porque já não era a primeira vez que tal sucedia (desde que saiu de casa, foram várias as vezes que o falecido se deslocou à casa do arguido, tendo, em algumas delas, espalhado brita na varanda da mesma), o arguido, pegou no tubo metálico do aspirador e foi a correr atrás de …, alcançando-se rapidamente, ante as dificuldades de locomoção deste, por coxear de uma perna.

E já na rua, envolveram-se, ambos em confronto físico, no decurso do qual o arguido desferiu, com força, com o referido tubo metálico, um golpe na cabeça de …, na sequência do que a vitima, caiu no chão, sangrando profusamente da zona da cabeça, tendo então o arguido aproveitado para se colocar em cima dele e, com o tubo metálico, pressionar-lhe o peito, até que deixou de se mexer, quedando-se inanimado.

Se a intenção do arguido era a de o segurar até á chegada da GNR, nenhuma razão existia, para que continuasse a fazer pressão sobre o peito de …, nos termos em que o fez.

Nenhuma pessoa deitada no chão, inanimada ou desmaiada, consegue levantar-se e fugir. 

Como salienta o Acórdão recorrido, era evidente para qualquer pessoa, e foi evidente para …, que a conduta do arguido era susceptível, como foi, de matar ….

Recorde-se que, logo que chegou ao local, disse ao arguido: ‘…, sai daí, estás a dar cabo do homem’, “Meu Deus do Céu sai de cima dele, ‘ele está desmaiado’, ‘não está a responder’.

Foi na sequência desta conduta, que … parou de respirar, tendo, num primeiro momento, desmaiado e depois falecido, conforme óbito declarado no local dos factos conjugado com o depoimento prestado pelas testemunhas presentes no local.

O arguido manteve-se em cima de …, quando este já não se mexia, tendo o corpo estremecido um pouco e dado um último suspiro após a saída do arguido de cima do mesmo.

É, pois, evidente que, caso o pretendesse, o arguido teria conseguido agarrar … pelos braços, sem exercer pressão sobre o peito do mesmo, até à chegada dos vizinhos ou da GNR (sendo que, nesse momento, … já sangrava abundantemente da cabeça), ou, em última instância, ausentar-se do local, regressando para o interior da sua habitação.

Porém, decidiu continuar a fazer pressão com o tubo no peito da vitima, mesmo depois de se ter apercebido que estava inanimada no solo (desmaiada) e, de ter sido advertido pela testemunha … para o estado de sufoco em que se encontrava …, bem sabendo que esta conduta era adequada a causar a morte, como causou.

Neste contexto factual, não estamos diante um confronto físico entre duas pessoas do qual resultou um golpe infeliz que causou a morte, mas de um acto de violência persistente até à morte, em que o arguido claramente se aproveitou da fragilidade da vitima, para a dominar e subjugar com a posição de superioridade (inclusivamente de tamanho, peso e força) que detinha sobre aquele, recusando-se a largar a vitima, mesmo quando já era visível que poderia estar morto.

Agiu o arguido com intenção de matar …

 

3.7. Conclusão

A prova produzida foi apreciada e valorada pelo Tribunal a quo  com total observância das regras de direito probatório e dos princípios constitucionais, dela emanando, sem margem para qualquer dúvida (muito menos, razoável), que o Recorrente praticou os factos nos termos enumerados com provados no Acórdão sindicado.

Por tudo o que se deixou dito, improcedem totalmente as Impugnação sobre a decisão  da matéria de facto, mantendo-se na íntegra o decidido na primeira instância.

4. Qualificação jurídico-penal

Defende o Recorrente que a matéria de facto dada como provada e a que se impõe dar como provada -  não teve intenção de matar, mas apenas de deter o arguido em flagrante delito para o entregar à GNR logo que esta chegasse e não previu que da compressão no peito viesse a resultar a morte – admitem a possibilidade de integrar o crime de homicídio por negligência previsto e punido no artigo 137.º, do Código Penal.

Esta questão, embora surja, como questão de direito, é uma questão de facto, posto que coloca em causa a conclusão do Colectivo relativamente à intenção com que actuou. Ora, como já se referiu (ponto 3.6), constitui matéria de facto, a determinação da intenção do agente, mais concretamente da intenção de matar, ou a fixação dos elementos subjectivos do dolo nos crimes em que este é elemento essencial.

Também, já concluímos que a conduta do arguido, na pressão que exerceu com o tubo no peito de … até este ficar inanimado no chão, só é compatível com a vontade directa de pôr fim à vida deste.

De acordo com o disposto no artigo 14.º, do Código Penal, o dolo pode revestir qualquer uma das suas formas, dolo directo, dolo necessário e dolo eventual.

Age com dolo directo, quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar (n.º 1).

Age com dolo necessário, quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime com consequência necessária da sua conduta (n.º 2).

«Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização», o denominado dolo eventual (n.º 3).

Caso não seja configurável o dolo, em qualquer uma destas formas, haverá que indagar se é possível um juízo de culpa a titulo de negligência, o que integra a previsão típica prevista no artigo 137.º, do Código Penal.

Se não houver dolo, nem negligência, o facto não será punível, como decorre do artigo 13.º, do Código Penal.

No caso em apreço, resultando provado que o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei; com o propósito concretizado de pôr termo à vida de …, bem sabendo que a sua actuação era idónea a provocar a morte de AA, como provocou,  -  atendendo ao objeto utilizado para golpear e comprimir o corpo daquele, e às zonas atingidas, onde se alojam órgãos vitais, privando-o de respirar mediante a compressão torácica exercida até que lhe adviesse a morte – actuou o arguido com dolo directo, afastando a punibilidade do homicídio por negligência.

Nenhuma censura, merece, pois, a condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio previsto e punido pelo artigo 131.º, do Código Penal.

5. Medida da Pena  

Insurge-se o Recorrente contra a medida da pena de 10 anos de prisão, por a considerar excessiva e desproporcional.

Vejamos

Na determinação da medida da pena, há que ponderar o critério global previsto no nº 1 do artigo 71º do Código Penal, segundo o qual, a determinação da medida da pena se fará em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, atendendo o Tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as previstas nas diversas alíneas do nº 2 do mesmo preceito legal, …

O crime de homicídio é punível com pena de prisão de 8 a 16 anos (artigo 131.º, do Código Penal).

Dentro desta moldura, há que ponderar:

No grau da ilicitude do facto traduzido no modo de execução, na gravidade das consequências e na violação dos deveres impostos, a acção do arguido, depois de ter visto da sua janela, AA dentro da sua propriedade. O arguido mune-se de um tubo metálico e vai no encalce da vitima (que já se dirigia para a via pública), o que conseguiu rapidamente, dada as dificuldades de locomoção deste, por coxear de uma perna.

No confronto físico em que ambos se envolveram, o arguido desferiu, com força, o referido tubo metálico, na cabeça de …, na sequência do qual caiu ao caiu no chão, sangrando profusamente da zona da cabeça. Ciente da sua superioridade e da fragilidade do estado da vitima, aproveitou, então, para se colocar em cima dele, pressionando-lhe o peito com o tubo metálico, assim se mantendo até que a vitima deixou de se mexer, só tendo largado, depois de terceiros terem insistido para o fazer.

Como consequência directa da sua conduta, a vitima sofreu as lesões melhor descritas nos factos provados, no ponto n.º 13.

No que respeito à culpa, agiu o arguido com dolo directo.

E, assim actuou, porque nos últimos dias (entre finais de julho e 5 de agosto de 2022), … lhe tinha invadido a propriedade, colocando, em algumas delas, brita na varanda, tendo horas antes da prática dos factos, enviado duas mensagens ao arguido, mostrando, na primeira que estava desiludido com as atitudes deste e na segunda que ela (a companheira) lhe dito tinha dito que o Recorrente estava “morto por lhe por os cornos”.

Nos dias 31 de julho e 1 de agosto de 2022… apresentou duas queixas crimes contra o arguido, que vieram a ser arquivadas. …

Além de que, não podemos deixar de considerar a necessidade de prevenir este tipo de delitos, não no sentido de fazer sentir ao arguido a culpa de todos os outros crimes, antes dando um sinal claro à comunidade de que o sistema penal reage com firmeza a actos criminosos desta natureza, que abalam o princípio geral de confiança na tranquilidade pública, satisfazendo a expectativa da comunidade numa vigorosa reafirmação da vigência das normas violadas.

Por isso, tendo em atenção todas estas circunstâncias e a moldura penal abstracta de 8 a 16 anos de prisão, não merece qualquer censura a  pena de 10 anos de prisão fixada pela primeira instância,   porque adequada e proporcional à culpa do Recorrente e necessária à satisfação das necessidades de reprovação e de reposição social do bem jurídico violado, a vida.

Também, aqui, sucumbe o Recurso.

IV. DECISÃO

Nestes termos, os Juízes, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, acordam em julgar não provido o Recurso interposto pelo arguido.

Custas pelo Recorrente nas custas do processo, com taxa de justiça que se fixa em 5 UCS, nos termos do artigo 513.º, n.o 1, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.

Notifique.

Coimbra, 22 de novembro de 2023