Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
631/09.3TBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CRIME
INÍCIO
CONTAGEM DOS PRAZOS
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 498º, NºS 1 E 3 DO C. CIVIL.
Sumário: I – O alargamento do prazo prescricional previsto no nº 3 do art.º 498º do C. Civil não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime, nem da existência de uma condenação penal, não impedindo o arquivamento do seu inquérito, só por si, a dedução do pedido de indemnização em acção cível formulado com base em factos que poderão preencher um tipo legal de crime cujo prazo prescricional seja superior ao prazo de 3 anos previsto no n.º 1 do art.º 498º do C. Civil.

II - O alongamento do prazo de prescrição constante do n.º 3 do artigo 498º do C. Civil não exige que naquele caso concreto tenha existido um processo crime em que se tenha apurado a prática de um crime, bastando a verificação que os factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no art.º 498º, n.º 1, do C. Civil.

III - Assim, mesmo arquivado o processo-crime, podem os lesados intentar a acção cível para além do prazo de 3 anos, previsto no referido n.º 1 do art.º 498º, desde que aleguem e provem nessa mesma acção que o facto ilícito invocado constitui crime, cujo prazo prescricional é superior.

IV - Tendo sido instaurado inquérito crime, o qual concluiu pelo arquivamento do processo criminal, deve considerar-se que aquele prazo de prescrição só iniciou a sua contagem com o conhecimento dessa decisão pelos lesados, conforme tem sido afirmado unanimemente pela jurisprudência, por aplicação do critério definido no art.º 306º, n.º 1, do C. Civil.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Autor, em 13.4.2009, intentou a presente acção com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 86.148,00, acrescida de juros legais vincendos desde a data da propositura da acção até efectivo pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alega a ocorrência, em 13.4.2004, de um acidente de viação do qual resultou a morte de M…, seu filho de sete anos de idade, e em que foram intervenientes um veículo ligeiro de mercadorias segurado da Ré e um velocípede sem motor sua propriedade, e os danos que do mesmo advieram quer para a vítima quer para si próprio.
Descrevendo o acidente imputa a culpa exclusiva da sua produção ao condutor do veículo segurado na Ré.
Citada a Ré em 13.4.2009, apresentou contestação, excepcionando, além do mais, a ilegitimidade do Autor para a presente acção desacompanhado da mãe do menor vítima do acidente e a prescrição do direito à indemnização, alegando:
- Na sequência do acidente em causa foi instaurado inquérito que veio a ser arquivado em Fevereiro de 2005;
- Da decisão de arquivamento tiveram conhecimento os pais do menor falecido e o condutor do veículo segurado na Ré.
- O Autor conformou-se com o arquivamento.
- A partir do arquivamento do inquérito recomeçou a correr o prazo de prescrição que, sendo de 3 anos, terminou em Março de 2008, e deixou de haver qualquer fundamento para a extensão desse prazo para um prazo superior.

O Autor pronunciou-se sobre as excepções, deduzindo incidente de intervenção principal provocada da mãe do menor e alegando quanto à prescrição:
- na data em que a Ré foi citada ainda não tinha decorrido o prazo de prescrição;
- o facto ilícito gerador da responsabilidade da Ré constitui crime punível com pena de prisão até 3 anos, pelo que, sendo o prazo em causa de 5 anos não ocorreu a prescrição.
Admitida que foi a intervenção principal provocada de C…, veio esta oferecer o seu articulado, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe o montante de € 77.000,00 acrescido de juros legais vincendos desde a data da propositura da acção até efectivo pagamento.
A Ré contestou o pedido formulado pela interveniente nos mesmos termos em que o havia feito para o Autor.
A Ré pronunciou-se sobre as excepções deduzidas, concluindo pela sua improcedência.
No despacho saneador foi proferida quanto à excepção da prescrição do direito à indemnização decisão que, julgando a mesma procedente, absolveu a Ré dos pedidos formulados.
Inconformados os Autores interpuseram recursos, apresentando as seguintes conclusões:
...
A Ré apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
1. Do objecto do recurso
Tendo presente que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, cumpre apreciar a seguinte questão:
Não se encontra prescrito o direito que os Autores pretendem exercer através desta acção?
2. Dos factos
Os factos provados são os seguintes:

3. O direito aplicável
A decisão recorrida, entendendo que o prazo prescricional aplicável ao caso era de 3 anos – art.º 498º, n.º 1, do C. Civil –, julgou procedente a excepção invocada pela Ré, absolvendo-a do pedido.
No recurso os Autores, visando a revogação desta decisão, defendem que o prazo prescricional aplicável é de 5 anos e não de 3 anos, uma vez que, tendo do acidente resultado lesões corporais que determinaram a morte do seu filho, é aplicável o disposto no art.º 498º, n.º 3, do C. Civil, sendo de 5 anos o prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal.
A fundamentação da decisão recorrida, no que respeita ao tempo do prazo prescricional aplicável ao caso, reside unicamente no facto do inquérito crime ter sido arquivado e, como daquela decisão consta:
Com efeito, salvo melhor opinião, entendemos ser aplicável ao caso o prazo de prescrição de 3 anos, conforme preceituado no artigo 498º, nº 1 do Código Civil – e não o de 5 anos previsto no nº 3 do mesmo preceito legal, já que os factos em causa não integram a prática de crime – conforme decorre do despacho de arquivamento proferido em sede de inquérito [e com o qual se conformaram as partes.
O Código Civil de 1966 resolveu generalizar a toda a responsabilidade civil extracontratual um prazo curto de prescrição, o que já vinha acontecendo casuistica­mente na vigência do Código de Seabra, nomeadamente nos acidentes de viação.
O art.º 498º, n.º1, do C. Civil, estabeleceu o prazo de três anos como o prazo de prescrição do direito à indemnização em consequência de acto ilícito.
As razões determinantes da fixação deste prazo radicam na diminuição dos riscos da prova testemunhal a utilizar muito depois do facto ter ocorrido, pois essa prova produzida muito tempo depois da ocorrência do facto danoso revelar-se-ia pouco fiável.
Entendeu-se também que quando o facto ilícito constituir um crime com um prazo de prescrição mais longo, permitindo que a discussão dos factos ocorra em data posterior, nada justificaria que análoga possibilidade se não oferecesse à apreciação da responsabilidade civil [1],  pelo que se estabeleceu no n.º 3 do art.º 498º do C. Civil:
Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
No caso que nos ocupa interessa, antes do mais, apurar se do facto do inquérito crime ter sido arquivado se pode concluir que os factos alegados como justificadores do direito à indemnização peticionada não integram crime.
O alargamento do prazo prescricional previsto no n.º 3 do art.º 498º do C. não está dependente de, previamente, ter corrido processo crime, nem da existência de uma condenação penal, não impedindo o arquivamento do seu inquérito, só por si, a dedução do pedido de indemnização em acção cível formulado com base em factos que poderão preencher um tipo legal de crime cujo prazo prescricional seja superior ao prazo de 3 anos previsto no n.º 1 do art.º 498º do C. Civil. [2]
O alongamento do prazo de prescrição constante do n.º 3 do artigo 498.º do C. Civil não exige que naquele caso concreto tenha existido um processo crime em que se tenha apurado a prática de um crime, bastando a verificação que os factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no art.º 498º, n.º 1, do C. Civil.
Assim, mesmo arquivado o processo-crime, podem os lesados intentar a acção cível para além do prazo de 3 anos, previsto no referido n.º 1 do art.º 498º, desde que aleguem e provem nessa mesma acção que o facto ilícito invocado constitui crime, cujo prazo prescricional é superior, uma vez que o alongamento do prazo prescricional radica na especial qualidade do ilícito e não na circunstância de se demonstrar, em sede penal, o respectivo crime, sendo suficiente para a dedução da acção cível que o facto ilícito constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento penal esteja sujeito a um prazo mais longo que o previsto para aquela, não estando subordinada à condição de simultaneamente correr procedimento criminal contra o lesante, pelos mesmos factos [3].
A lei não atribui qualquer relevância ao conteúdo da decisão, quer seja de acusação ou de arquivamento, do Ministério Público enquanto titular da acção penal para efeitos de contagem do prazo de prescrição do direito à indemnização em acção cível.
No caso dos autos os factos alegados pelos Autores, a provarem-se, determinam a prática pelo segurado da Ré de um crime de homicídio por negligência, previsto no art.º 137º, n.º 1, do C. Penal, e punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Nos termos do art.º 118º, n.º 1, c), do mesmo diploma, o prazo de prescri­ção do procedimento criminal deste tipo legal é de cinco anos.
Vejamos, determinado que está que o prazo de prescrição aplicável é de 5 anos, relativamente aos factos alegados pelos Autores, se é possível concluir que o mesmo já decorreu.
Tendo sido instaurado inquérito crime, o qual concluiu pelo arquivamento do processo criminal, deve considerar-se que aquele prazo de prescrição só iniciou a sua contagem com o conhecimento dessa decisão pelos lesados, conforme tem sido afirmado unanimemente pela jurisprudência, por aplicação do critério definido no art.º 306º, n.º 1, do C. Civil [4].
Assim, tendo os Autores sido notificados do despacho de arquivamento do inquérito em 11.3.2005, podem os lesados intentar a acção cível para além do prazo de 3 anos, previsto no referido n.º 1 do art.º 498º, desde que aleguem e provem nessa mesma acção que o facto ilícito invocado constitui crime, cujo prazo prescricional é superior, uma vez que o alongamento do de prescrição do seu direito à indemnização iniciou-se nessa data, pelo que, provando-se os factos integradores da conduta do segurado da Ré alegados pelos Autores, o mesmo só se esgotaria em 11.3.2010.
Considerando que a acção foi intentada em 13.4.2009 e a Ré citada nessa mesma data, o prazo prescricional de 5 anos ainda não havia decorrido, sendo, deste modo, prematuro o julgamento da excepção em causa, uma vez que o seu conhecimento depende do apuramento de factos que ainda são controvertidos, devendo por isso ser revogada a decisão recorrida.
Assim, ao ter-se decidido no despacho saneador pela procedência da excepção da prescrição, decidiu-se prematura­mente, devendo o processo prosseguir para apuramento dos factos integrantes da causa de pedir invocados pelos Autores e impugnados pela Ré.
Por estas razões deve ser revogada a decisão proferida, determinando-se o prosseguimento da acção.
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento da acção.
Custas do recurso pela Ré.
Coimbra, 28 de Janeiro de 2014.


***
Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
José Avelino


[1] Vaz Serra, em Prescrição do direito de indemnização, no B.M.J. n.º 87, pág. 57-58, e Antunes Varela, in Direito das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 651, 9ª edição, Almedina.

[2] Neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos:
do S. T. J.:
de 23.10.2012, relatado por Moreira Alves,
 e de 29.10.2002, relatado por Afonso Correia,
do T. R. P. de 6.1.2011, relatado por Maria Catarina,
do T. R. G. de 15.3.2012, relatado por Maria Luísa Ramos,
do T. R. E. de 27.9.2007, relatado por Manuel Marques, todos acessíveis em www.dgsi.pt .

[3] Ac. do T. R. C. de 26.6.2007, relatado por Jorge Arcanjo

[4] Ac. do S.T.J.:
          de 22.1.2004, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XII, tomo 1, pág. 36, relatado por Ferreira de Almeida.
          de 4.11.2008, na C.J. (Ac. do S.T.J.), Ano XVI, tomo 3, pág. 109, relatado por Paulo Sá.
de 13.10.2009, em www.dgsi.pt, relatado por Salazar Casanova, em
  Ac. do T. R. L. de 24.5.2011, em www.dgsi.pt, relatado por Luís Lameiras,
  Ac. do T. R. C.:
de 2.3.2011, relatado por Fonte Ramos,
de 3.5.2011, relatado por Arlindo Oliveira
de 9.1.2012, relatado por Beça Pereira, todos acessíveis em www.dgsi.pt .