Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
735/16.6T8CVL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: SENTENÇA DE EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR DESERÇÃO
NEGLIGÊNCIA DA PARTE
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17.º; 20.º E 268.º, 4, DA CRP
ARTIGOS 3.º, 3; 6.º, 1; 7.º, 1; 8.º; 138.º; 139.º, 5; 149.º; 157.º, 6; 195.º, 1; 281.º, 1 E 613.º, 1 E 3, DO CPC
Sumário: I – O despacho em que se ordene à Secção que se alarme o processo por referência ao prazo previsto no art 281º/1 CPC, tendo em conta o art 139º/5 do CPC, ainda que quando foi proferido se mostrassem já esgotados os seis meses de que depende a extinção da instância por deserção, e, por isso, o possa ter sido por lapso, pode, não obstante, ter-se como apto a inculcar nas partes que no prazo geral de 10 dias subsequente ao da sua notificação, lhes seria ainda possível impulsionarem o processo.
II – Assim, a circunstância de na pendência desse prazo ter sido proferida sentença de extinção da instância por deserção, violou os princípios da tutela jurisdicional efectiva, do processo justo e equitativo, da confiança, da cooperação e da adequada gestão processual.

III – A sentença de extinção da instância por deserção tem natureza constitutiva e não deve ser proferida, sob pena de nulidade, sem que num juízo prudencial se confira à parte ou partes oneradas com o impulso processual, a possibilidade de se pronunciarem pela negligência nesse impulso, a qual, podendo presumir-se objectivamente do processo, cumpre certificar.

IV – Trata-se de uma exigência do principio do contraditório, tal como este principio resulta do art 3º/3 do CPC.

Decisão Texto Integral:

           Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

           I – AA e mulher, BB, interpuseram, em 10/6/2016, açcão comum, sob a forma de processo sumário, contra  CC e mulher, DD, e EE, filho de ambos, pedindo a condenação dos RR., a:

            - A reconhecerem o Direito de propriedade dos autores sobre as águas;

           - Sejam condenados a reporem a situação anterior, ou seja, nascente, poço, mina e furo, conforme status quo, como jazia até 2015.

           - Que as águas saiam da nascente e sigam o seu curso, mormente para o poço e parte para a regueira funda, devendo os réus faz rem o rego com os níveis anteriores, a fim de reporem tal qual como estava, a fim do autor poder regar a custo zero. E através do poço.

            - A água do poço seja canalizada para o tanque dos autores com tubagens e canos no subsolo, pelo terreno dos réus, tal como sempre esteve, junto à estrada.

           - A água do furo seja reconhecido o direito de acesso ao mesmo, pelos autores, a fim de limpar, verificar e afins

          - Que não venham a impedir a passagem para acompanhar a limpeza da nascente, poço, mina e furo, pressão, no terreno dos réus e regueira

            - Condenar os réus à abertura do direto ao rego, que segue em linha reta da nascente e perpendicular a esta nascente, na divisão dos prédios dos autores, de modo a que os autores possam beneficiar da água da nascente em quantidade suficiente.

            - Seja declarado e reconhecido o direito dos autores às águas, enquanto direito de propriedade, para rega e livre irrigação dos prédios dos autores, até eles conduzidos,1- através do poço e tubos subterrâneos, desde o poço ao tanque, onde é represada para sua

utilização posterior nos ditos prédios através do furo e canos e  cabos elétricos,

           -Serem os réus condenados a reconhecer a Passagem destes cabos e canos no terreno dos réus, como sempre ocorreu, como direito que assiste aos autores.

           - Sejam condenados a pagar aos autores, indemnização pelos prejuízos que lhes causaram, nomeadamente o valor dos 1800 euros, referentes às tubagens supramencionadas, bem como outros prejuízos, pretéritos e vindouros, cujo montante será apurado e a liquidar em execução de sentença.

           - Condenar a respeitar o direito dos autores sobre as águas, referidas e descritas e absterem-se da prática de quaisquer atos que lesem esses direitos ou de qualquer modo impeçam o seu pleno exercício de utilização e disposição livre das águas.

           - Seja declarado e reconhecido o direito dos autores à propriedade das águas exploradas e captadas no terreno dos réus que existiu há mais de 40 anos, 50 e 100 anos, ou seja água do poço, mina, nascente, furos para rega e irrigação dos prédios dos autores. Sendo que um dos tubos é conduzido até ao terreno dos autores, através de um tubo subterrâneo, até ao tanque, onde é represada para sua utilização posterior nos ditos terrenos.

            - Sejam condenados a reconhecerem e respeitarem os respetivos direitos dos autores sobre tais prédios e águas supra referidas e descritas e que impeçam o seu pleno direito à água, já que os autores não têm suficiente para irrigar o seu terreno, sem incómodos ou dispêndios financeiros dos autores.

            - Condenar a realizarem as obras tidas por necessárias para que o aludido poço seja respeitado, por forma a permitir fácil e rápido acesso por parte dos autores, tal como estava anteriormente.

            - Condenados a manter e erguer o presão, destruído, da agua da mina, que era possível a custo zero para as regas,

           - Condenar os réus à execução das obras no telhado, nomeadamente fazer a chaminé dos réus ou telhar o telhado dos réus, a fim de evitar danos colaterais aos autores, nomeadamente destelhar consequentemente o telhado dos autores fruto das intempéries, que se encontram iminentes os danos

            - Reconhecer o direito a manter os dias de rega como até este momento: dias pares para o autor e impar para o réu. Assim havendo respeito, a quem rega nesse dia, o outro abstêm-se da rega.

            Os RR. contestaram,  pondo em causa o valor da acção que os AA. lhe atribuíram  - 30 .000,01  € - arguindo a excepção de ilegitimidade passiva, por um lado, por o R. EE não ter legitimidade para a acção e, por outro,  por se verificar preterição de litisconsórcio, devendo o Município ... ter sido igualmente demandado – uma vez que, parte significativa do terreno onde os AA. pretendem exercer direitos, foi expropriado e pertence a esse Município - mais entendendo não ser o tribunal demandado competente.   No  mais impugnaram os factos invocados pelos  AA. e, a final, reconvieram, pedindo a condenação dos AA. a reconhecerem a incorporação do seu furo, implantado no terreno dos Reconvintes, na propriedade destes, mediante o pagamento por estes aos reconvindos do valor que o furo teve à data da incorporação e com o procedimento da acção quanto à propriedade das águas, devem ser condenados a indemnizarem os reconvintes a titulo de enriquecimento sem causa, pagando-lhes o valor que se vier a fixar por prova pericial  que requereram, e que corresponde a metade dos 9435 m 2 que os AA. têm a mais que os RR. após a divisão da propriedade que adquiriram em “partes iguais” .

            Os AA. replicaram, respondendo às excepções, pugnando pela sua não verificação e responderam à reconvenção, entendendo-a  improcedente.

             Considerando o incidente do valor da acção, foi determinada a realização de um arbitramento.

            Este, teve lugar, tendo vindo a ser fixado à acção o valor  de  €108.800,00..

            E, em função desse valor, foi declarado incompetente em razão da matéria o Juízo Local Cível em que a acção fora interposta e competente o Juízo Central Cível ..., para onde o processo foi remetido.

           Após o que os RR. vieram sustentar conterem os autos elementos suficientes para que se declarasse o tribunal materialmente incompetente, ao que os AA. se opuseram.

           Solicitadas informações ao Município ... a respeito da havida expropriação, tentada sem êxito a conciliação das partes, alegados pelos AA. factos que entenderam como supervenientes, veio a ser proferido despacho convidando os AA. a fazerem intervir nos autos aquele  Município, ao que os mesmos acederam.

           Admitida a intervenção principal em causa, veio o referido Município fazer seus os articulados dos RR /Reconvintes.

            Ouvidas as partes a respeito da incompetência do Tribunal em razão da matéria, o Município pronunciou-se no sentido da incompetência, e os AA. no sentido da competência.

           Em 4/5/2018 foi proferida decisão a julgar materialmente incompetente o Tribunal Judicial, absolvendo os RR. da instância.

           Os AA. apelaram da decisão e os RR. contra-alegaram, defendendo-a.     

           O Tribunal da Relação negou provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

           Interposto recurso para o STJ, o recurso foi remetido para o Tribunal de Conflitos, o qual, por acórdão de 23/1/2020  considerou competente a jurisdição comum, em concreto, o Juízo Central Cível ....

            Veio a ter lugar audiência prévia em que se entendeu ser o R. EE parte legitima, sendo enunciado o objecto do litigio e os temas da prova.

           Os RR. requereram a realização de perícia, a qual veio a ter lugar, vindo a ser prestados esclarecimentos relativamente ao respectivo relatório.

            Por requerimento de 21/2/2023, vieram os AA. referir que:

           «Tendo apenas hoje conhecimento de que faleceu o R CC  pelo que se requer a respectiva habilitação de herdeiros, nos termos e para os efeitos consignados na lei, porquanto sucedem-se os herdeiros na presente acção como réus – Data de falecimento – ../../2022.

           Por requerimento de 2/3/2023, veio a R. DD, «informar do falecimento de CC, juntando – ao abrigo da colaboração e celeridade processual – escritura de habilitação de herdeiros».

            Em 9/3/2023 foi proferido despacho do seguinte teor:

           «Referência n.º 3165628 – em face da comunicação do óbito do Réu CC, antes de mais, determina-se a notificação das partes para juntar certidão do assento de óbito desse mesmo Réu (artigos 1.º, n.º 1, al. p), 4.º e 211.º do Código do Registo Civil). Prazo: 10 dias.»

            A R. DD, por requerimento de 10/3/2023, veio juntar o referido assento de óbito.

           Foi proferido despacho em 20/3/2023 (Refª 35659785) do seguinte teor:

             «Em face do óbito do Réu CC (cfr. assento de óbito n.º ...51 do ano de 2022, referência n.º 3175866), ao abrigo do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, al. a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, declara-se suspensa a instância até que se mostre(m) habilitado(s) o(s) respetivo(s) herdeiro(s), sem prejuízo da deserção da instância (artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Notifique.»

            Este despacho foi notificado às partes no dia 21/3.

            Em 16/05/2023, o A. apresentou requerimento com o seguinte conteúdo:

           «AA, vem aos presentes autos, na sequência do douto despacho precedente do M. Juiz, solicitar o impulso processual que compete aos réus.

           Efetivamente, o processo carece de celeridade, urge pôr epílogo ao mesmo em tempo útil, volvido este hiato temporal».

 

            Em 22/5/2023 foi proferido o seguinte despacho:

            «Vi os requerimentos de 16-05-2023 e 23-03-2023.

            Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada.

            Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho.

            Alarme os autos em conformidade e por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

            Após conclua».

            O A., em 28/8/2023, apresentou requerimento com o seguinte teor:

           «AA, vem aos presentes autos, na sequência dos requerimentos precedentes, solicitar reverencialmente a V. Exa. o respetivo impulso processual, pois o pagamento foi efetuado. O processo carece de ser tramitado. Caso o réu não tenha pago, solicita a respetiva cominação legal.»

            Tendo o processo sido concluso em 25/9/2023, foi proferido despacho nessa data, do seguinte teor:

            «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada.

            Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho.

            Alarme os autos em conformidade e por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

            Após conclua de imediato».

            O despacho em causa não chegou a ser notificado.

            Foi de novo aberta conclusão, agora em 27/9/2023, e proferido despacho em 28/9/2023 do seguinte teor:

            «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada.

            Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho, tendo sido determinada a suspensão da instância por despacho datado de 20/03/2023.

            Alarme os autos em conformidade, por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (tendo em conta o artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil)».

            As partes foram notificadas em 28/9/2023.

            O processo foi concluso em 10/10/2023 e, nessa mesma data, foi  proferida sentença, nos seguintes termos:

            «Nos termos conjugados dos artigos decide-se julgar extinta a presente instância, por deserção, nos termos conjugados dos artigos 277.º, al. c) e 281.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil; condenar os Autores nas custas do processo artigos 527.º, n.º 1 e 2, e 607.º, n.º 6, do Código de Processo Civil. Registe e notifique. Valor da acção: € 108.800,00 – vide despacho de fls.90 a fls.91-v. (referência n.º 28716982). Dê baixa na estatística.

            II - É do assim decidido que os AA. apelam, tendo concluído as respectivas alegações nos seguintes termos:

             A) Vem o presente recurso de apelação interposto da sentença proferida pelo Tribunal da Comarca ... – Juízo Central Cível – Juiz ..., a qual julgou extinta a instância, por deserção, e condenou os Recorrentes nas custas do processo.

             B) A sentença sob recurso merece censura, na medida em que, salvo melhor opinião, foi inoportunamente proferida, apresenta vícios geradores da respetiva nulidade, pelo que deverá ser declarada nula, os presentes autos prosseguirem os seus termos.

             C) Os Recorrentes entendem ainda que a Sentença Recorrida viola os princípios gerais do direito, em particular: o princípio da tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, da confiança, do contraditório, da boa-fé, da gestão processual, economia processual e cooperação.

            D) O Tribunal de 1.ª instância entendeu que estavam verificados os pressupostos para a deserção da instância, por Sentença de 10.10.2023 declarou a extinção da instância. Ora, tal não acontece, Porquanto vejamos,

            E) Da violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do processo justo e equitativo:         F) Nos termos do artigo 281.º, n.º 1 do CPC «considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses».

            G) A sentença de deserção tem alcance constitutivo, pelo que enquanto não for proferida, é lícito às partes promover utilmente o seguimento do processo.

             H) De acordo com a Sentença Recorrida, os mandatários das partes presumiram-se notificados do despacho que declarou a suspensão da instância no dia 24.03.2023.

            I) Todavia, nesse dia 28.09.2023, depois de terem decorridos mais de 6 meses desde a suspensão da instância, o Tribunal a quo profere despacho, com o seguinte teor: «Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho, tendo sido determinada a suspensão da instância por despacho datado de 20-03-2023. Alarme os autos em conformidade, por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (tendo em conta o artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).»

             J) O principal efeito deste Despacho é o de permitir às partes, no prazo geral previsto no artigo 149.º do CPC, apresentar o incidente de habilitação de herdeiros. K) Prazo esse concedido em benefício das partes. Pois, há uma nulidade, as decisões proferidas sobre as nulidades do artº 195º/1 do CPC, após sentença, admitem recurso quando contendem com princípios da igualdade e do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com admissibilidades de meios probatórios. A nulidade existe, e põe em causa princípios estruturantes e fundamentais do processo ou um direito fundamental, e contende com o direito a um processo equitativo; emanação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, do princípio da transparência e da lealdade processual indissociável de um processo justo e equitativo.

            L) Se não fosse esse o efeito do Despacho, tal Despacho seria inútil.

            M) Tendo o Despacho de 28.09.2023 sido notificado às partes no dia 02.10.2023, os Recorrentes teriam a possibilidade de apresentar o incidente de habilitação de herdeiros até ao dia 17.10.2023, nos termos dos artigos 149.º, 139.º e 248.º do CPC.

            N) O Despacho de 28.09.2023, ao ter sido proferido depois de findo o prazo de 6 meses desde a suspensão do processo, cria a expetativa de que o incidente de habilitação de herdeiros pode ser praticado até ao termo do prazo de 10 dias previsto pela lei processual para o exercício de qualquer contraditório pelas partes.

            O) Todavia, a Sentença Recorrida de 10.10.2023 veio declarar extinta a instância por deserção, impedindo os Recorrentes de apresentar o incidente, para prosseguir a sua tramitação normal.

           P) Assim, estamos perante duas decisões contraditórias do Tribunal.

           Q) Esta contradição entre os dois atos do mesmo tribunal, configura uma violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do processo justo e equitativo.

            R) A este propósito, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.05.2016, proferido no processo n.º 1185713.2T2AVR.P1.S1: «O fair trial e/ou dueprocess, integra vários vectores, sendo que o principal é enformado pela confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual, não podendo os interessados sofrer quaisquer limitações, exclusão de posições ou direitos processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar».

           S) Com efeito, os Recorrentes confiaram na decisão de 28.09.2023, que lhes concedeu a possibilidade de apresentarem o incidente de habilitação de herdeiros até ao dia 17.10.2023.

            T) Ao não ser assim, estar-se-ia a violar frontalmente o princípio do acesso ao direito consagrado no artigo 20.º, n.º 1 da CRP, impedindo aos Recorrentes de continuar os trâmites normais do processo.

             U) Pelo que, o princípio do processo justo e equitativo e a tutela da jurisdicional efetiva não pode ser desrespeitado, sob pena de o sistema de justiça perder a dimensão substancial que o deve caracterizar e pôr em causa a sua verdadeira função, que é a realização da Justiça.

            V) Da violação do princípio da confiança:

            W) Para mais, a contradição de decisões constitui uma violação do princípio da confiança.

            X) O princípio da confiança constitui uma emanação do princípio da segurança jurídica, do princípio da transparência e lealdade processual, indissociáveis de um processo justo e equitativo.

           Y) O princípio da confiança impõe-se por razões de prestígio das instituições judiciárias, de coerência das decisões que são proferidas, e pela estabilidade e certeza das relações jurídicas.

           Z) In casu, o Tribunal Recorrido violou o seu despacho de 28.09.2023.

            AA) Violou a ordem concatenada, o Tribunal Recorrido, salvo melhor opinião.

           BB) A inobservância pelo Tribunal a quo dos efeitos do Despacho de 28.09.2023, impediu as partes de poderem apresentar o incidente de habilitação de herdeiros, e tal constitui a prática de um ato indevido – não previsível pelas partes.

            CC) Assim, a Sentença Recorrida, ao ser contrária ao despacho anterior, constitui uma decisão surpresa.

            DD) A decisão-surpresa tem sido definida como a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever.

            EE) Com a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçandose, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

           FF) A inobservância pelo Tribunal a quo dos efeitos do Despacho de 28.09.2023, impediu as partes de poderem apresentar o incidente de habilitação de herdeiros, e tal constitui a prática de um ato indevido.

            GG) No caso dos autos temos que a decisão recorrida não era expectável, uma vez que o Tribunal a quo não a podia ter praticado.

             HH) O Tribunal Recorrido apenas poderia declarar a instância extinta por deserção, depois do término do prazo geral do artigo 149.º do CPC, ou seja, depois do dia 17.10.2023, de modo a cumprir o seu despacho anterior de 28.09.2023.

           II) Destarte, este Venerando Tribunal, salvo melhor opinião, apenas poderá concluir que a Sentença Recorrida datada de 10.10.2023, representa uma decisão-surpresa, não previsível pelas partes.

             JJ) Da violação do princípio do contraditório

             KK) Nesta medida, a Sentença Recorrida ao não ter esperado pelo termo do prazo de 10 dias, viola o princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC.

            LL) Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.

            MM) cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa.

            NN) A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que adjetivo.

            OO) O Tribunal a quo criou, na parte, a expetativa de que o incidente de habilitação de herdeiros podia ser praticado até ao termo do prazo do contraditório – no dia 17.10.2023.

            PP) Contudo, omitiu a possibilidade à parte da observância do seu direito ao contraditório.

           QQ) Nestes termos, tendo o douto Tribunal proferido uma decisão depois da omissão de um ato obrigatório, a decisão é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer.

            RR) Da violação do princípio da boa-fé: SS) Adicionalmente, o processo em apreço é um processo bastante longo, com 7 anos, vários apensos, recursos, Providencias cautelares, perícias.

            TT) Trata-se de um processo em que a audiência prévia já decorreu há mais de 2 anos e a instrução encontra-se na fase final, foram recentemente concluídas as perícias requeridas.

            UU) Por essa razão, seria uma questão de poucos meses até o Tribunal marcar a data de julgamento, previsivelmente ainda este ano, se o processo corresse os seus trâmites normais.

            VV) A par de “a prova” se encontrar devidamente carreada, peritagens efetuadas, incidentes e processos colaterais apensos, este é um processo bastante complexo.

            WW) Neste sentido, a contradição de decisões interliga-se com a violação do princípio da boa-fé, mais um vício que padece a Sentença Recorrida.

           XX) Porquanto, a Sentença Recorrida configura uma clara violação do princípio da boa-fé, na vertente de violação da proibição de venire contra factum proprium.

           YY) Há venire contra factum proprium quando uma parte manifesta a intenção de não praticar determinado ato e depois o pratica. É o assumir de comportamentos contraditórios que violam as regras da boa-fé.

            ZZ) Neste sentido, o comportamento contraditório fundamento do abuso de direito, na modalidade - venire contra factum proprium, tem os seguintes pressupostos: (f) A existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; (g) A imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; (h) A boa-fé do lesado (confiante); (i) A existência de relação de confiança, resultante duma atividade com base no factum proprium; (j) Que da contradição resulte dano para o confiante.

            AAA) No caso dos autos, verifica-se isto: o Tribunal Recorrido proferiu despacho em 28.09.2023 criando a expetativa de que as partes poderiam apresentar o incidente de habilitação de herdeiros do Recorrido, até 17.10.2023, nos termos do artigo 149.º do CPC; contudo, em 10.10.2023 profere Sentença a declarar extinta a instância por deserção.

           BBB) Ora, uma pessoa normal, colocada na posição dos Recorrentes, objetivamente confiou que, tinha prazo até 17.10.2023, ou pelo menos, até 12.10.2023, para impulsionar o processo;

            CCC)Em resumo, os Recorrentes fundadamente confiaram, que o Tribunal está a conceder prazo, até ao termo do prazo do artigo 149.º do CPC; é inadmissível e, sem dúvida, contrária à boa-fé a conduta assumida pelo Tribunal Recorrido, (sentença em 10/10/2023), na exata medida em que trai a confiança gerada nos Recorrentes pelo seu comportamento anterior, confiança essa objetivamente reforçada pelo Despacho de 28.09.2023.

           DDD) Além do mais, a Sentença Recorrida também viola o princípio da boa-fé, na vertente de violação do princípio da proibição do tu quoque.

            EEE) In casu, o Tribunal a quo atua ilicitamente, incumprindo o seu Despacho de 28.09.2023, por declarar extinta a instância por deserção por Sentença de 10.10.2023 antes de decorrido o prazo concedido para os Recorrentes apresentarem o incidente processual; pelo que, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas desta atuação, proferindo sentença, por ser ilícita.

           FFF) O Juiz a quo, por ter incumprido o seu Despacho de 28.09.2023, violou o princípio da confiança, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o processo justo e equitativo, por conseguinte, não pode aproveitar-se do facto de as partes ainda não terem apresentado o incidente.

            GGG) Nestes termos, há abuso de direto, expresso na fórmula «tu quoque», dado que com ofensa clamorosa do sentido jurídico dominante, o Tribunal Recorrido desrespeita os princípios gerais do direito processual e profere uma decisão surpresa, aproveitando-se do facto de os Recorrentes ainda não terem apresentado o incidente, quando em tempo.

            HHH) Da violação do princípio da cooperação, do princípio do dever de gestão processual e do princípio da economia processual:

            III) De mais a mais, perante a violação pelo Tribunal a quo do Despacho de 28.09.2023, e atento às circunstâncias do caso concreto, a Sentença Recorrida é também violadora do princípio da cooperação, do princípio do dever de gestão processual e do princípio da economia processual.

            JJJ) Do ponto de vista do tribunal, o princípio da cooperação impõe deveres de prevenção ou de advertência, deveres de esclarecimento, deveres de auxílio das partes e deveres de consulta das partes.

            KKK) Considerando a gravidade dos efeitos da deserção da instância e visando o processo civil dar prevalência, tanto quanto possível, a decisões finais de mérito sobre decisões meramente processuais, o juiz deveria ter atuado em conformidade com o princípio da cooperação entre as partes, evitando decisões contraditórias e incoerentes, que apenas visam prejudicar o processo e impedir a resolução final do litígio.

             LLL) Um processo tão longo, quase em vias de terminar, e o Tribunal Recorrido decide atuar contra o direito e extinguir a instância.

            MMM)Impunha-se ao Juiz a quo, cumprir com a sua decisão de 28.09.2023 e esperar até ao dia 17.10.2023 para proferir, porventura, a decisão de extinção da instância. NNN) A imposição de transparência nos atos de comunicação entre o tribunal e as partes, são manifestações do dever de cooperação e são garantias das partes perante as omissões e erros do tribunal.

           OOO) Ao não ter agido dessa forma, coartou o direito das partes de apresentarem o incidente de habilitação de herdeiros, violando os princípios gerais do direito processual civil e da boa-fé.

            PPP)O Juiz, ao desconsiderar o dever de gestão processual, de adequação formal do processo e de cooperação, pratica um ato processual indevido, e tal integra uma nulidade processual, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

            QQQ) Perante o exposto, a inobservância dos deveres impostos pela boa-fé, pelos princípios da cooperação, gestão processual e economia processual, nos moldes que ficaram descritos, constitui uma grave violação do Tribunal Recorrido, com impacto e influência na decisão proferida, impondo-se, por conseguinte, a anulação da decisão da 1ª instância.

           RRR) Da violação do dever de audição prévia para avaliar a negligência da parte

           SSS)Por fim, importa ainda referir que é entendimento da doutrina e da jurisprudência que o Tribunal a quo, no despacho que julga deserta a instância, tem de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que terá de efetuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efetivamente, da negligência destas.

             TTT) Na sentença recorrida o Tribunal justifica a negligência com base na seguinte argumentação: «Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse».

            UUU) Contudo, para considerar a instância extinta por deserção nos termos e para os efeitos dos artigos 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea a) do CPC, não pode verificar de uma forma genérica, abstrata e imprecisa a existência de deserção operada pelo decurso do tempo.

            VVV) Com efeito, considerando que a negligência da parte tem de ser aferida em cada caso, concreto, o Tribunal deve ouvir a parte antes de decretar a deserção da instância (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18.04.2023, proferido no âmbito do Processo n.º 298/20.8T8LSB.L1-7 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.05.2020, proferido no âmbito do Processo n.º 3820/17.3T8SNT.L1-6). Ou aquilatar se há vontade em que autor continue no processo, face aos elementos concretos nos autos.

           WWW) Deste modo, tendo o juiz não uma função corretiva, mas de cooperação, deve este conceder o direito de audiência prévia às partes, antes de proferir decisão a julgar a instância extinta, por terem decorrido mais de seis meses sobre a suspensão da instância sem impulso dos autos imputável às partes, de forma clara e percetível, de modo que a parte perceba o ónus que sobre ela recaí a não adoção do comportamento devido.

           PPP) No caso em apreço, o Tribunal a quo não procura perceber os motivos pelos quais os Recorrentes vêm pedir ao Tribunal para serem os réus a impulsionar o processo.

            QQQ) O Juiz, ao desconsiderar o dever de gestão processual, de adequação formal do processo e de cooperação, omite um ato processual obrigatório, e tal integra uma nulidade processual porque o Tribunal deixa de praticar um ato que não pode omitir, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.

            RRR) O tribunal, antes de exarar o despacho/decisão a julgar extinta a instância por deserção, deverá, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas.

            SSS) In casu, o Tribunal Recorrido não observou tal diligência obrigatória, limitando-se a aplicar a responsabilidade automática das partes, sem um juízo de ponderação do caso concreto, como impõem os princípios gerais do CPC.

            TTT) Destarte, tendo o Tribunal o dever de ouvir a Recorrente ao abrigo do princípio do contraditório, antes de proferir a decisão que julga a instância deserta, a qual deverá ser devidamente fundamentada, o que, igualmente, não se verificou no caso em apreço!

           UUU) Tal nulidade de decisão ocorre pois por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d) do CPC): o tribunal conhece de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não pode conhecer, sendo que a mesma só poderia ter sido evitada se, antes da decisão de deserção, tivesse ouvido as partes. O M. Juiz, a quo, violou a ordem concatenada no processo.

           VVV) Tudo sopesado, é convicção dos Recorrentes que o Tribunal a quo, na Sentença sob recurso, é violadora do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, pelo que deverá a mesma ser anulada por este Venerando Tribunal, por nulidade, conforme supra tecido.

           Nestes ermos, e com o douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS, em que se requer que seja declarado procedente o presente recurso e que seja declarada nula a Sentença proferida pelo Tribunal Recorrido, por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, ou revogada por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, do processo justo e equitativo, principio da transparência e da lealdade processual, da confiança, do princípio da boa fé, e dos princípios da cooperação entre as partes, gestão processual e economia processual, Principio do contraditório; Dando-se continuidade ao processo com o incidente de habilitação de herdeiros.

            A R. DD e o R. EE, por requerimentos separados, ofereceram contra-alegações, que concluíram nos seguintes termos:

           I – O princípio da colaboração não derroga o princípio da autorresponsabilidade das partes, que se mantém vigente.

            II – Proferido despacho a declarar suspensa a instância por óbito de um dos réus, há negligência para efeitos de deserção  da instância se os AA. deixam decorrer o prazo de deserção sem nada requerer.

             III – Nessas circunstâncias, não cabe ao Tribunal qualquer ónus de insistir com a parte relapsa convidando-a a praticar o ato omitido ou pedindo-lhe explicações sobre a omissão.

           IV – Os factos a considerar para o conhecimento do recurso emergem do circunstancialismo processual a que acima se fez referência.  

            IV – Do confronto das conclusões das alegações com a decisão recorrida, resulta constituir objecto do recurso saber se a sentença de deserção da instância é nula por excesso de pronúncia, em função da violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do processo justo e equitativo, do principio da confiança, da boa fé, da cooperação, gestão processual e economia processual e  do dever de audição prévia para avaliar a negligência da parte.

            Antes de mais, importa reproduzir na integra a sentença objecto de recurso, pese embora a sua extensão.

            «O processo civil, processo por natureza de partes, entregue à sua disposição, arreiga-se num conjunto de princípios inquebrantáveis, designadamente o do dispositivo, o da controvérsia, e o da auto-responsabilidade das partes (Dispositionsmaxime, Verhandlungsmaxime e Beibringungsgrundsatz). Isto é, às partes não cabe apenas determinar o início do processo e recolher o material (factos e provas) e apresentá-lo, mas também têm responsabilidades para consigo mesmas, «de produzirem certos resultados e de evitarem determinadas desvantagens, isto é, como autorresponsabilidade» (JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil, Coimbra Editora, 2013, p. 181). As partes, que condicionam o jogo do processo, estão sujeitas a um conjunto de ónus, responsabilidades e preclusões, sendo o mais relevante ónus, e com interesse para o presente caso, o de impulsionar o processo.

Dispõe o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que «[s]em prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses». Tal artigo plasma a necessidade de as partes impulsionarem o processo e de não o votarem a uma exânime realidade judiciária (a este propósito, conforme bem refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016, Processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, e depois de deixar bem destacado que no novo Código de Processo Civil não eliminou o princípio da auto-responsabilização das partes, a «omissão continuada da atividade da parte, quando a esta cabe um ónus especial de impulso processual subsequente, tem efeitos cominatórios, que podem consistir, designadamente, na deserção da instância», cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de Janeiro de 2015 (processo n.º 990/14.6T8BRG.G1).

            Vejamos.

            Por um lado, o presente processo foi declarado suspenso a 20-03-2023, por falecimento de uma das partes, no caso, o Réu CC, ocorrido a 23-11-2022.

            A suspensão da instância, na verdade, foi apenas declarada, mas a sua verificação deu-se anteriormente, com a junção ao processo de documento que comprove o falecimento de qualquer das partes (artigo 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), no caso a 10-03-2022, havendo inclusivamente retrotracção de determinados efeitos à data em que ocorreu o falecimento (artigo 270.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, consonante, por isso, com a afirmação do artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil. «a instância suspende-se quando falecer alguma das partes», e Acórdão do TRG, 28-01-2016, Proc. 2821/03.3TBGMR-C,G1, disponível em www.dgsi.pt).

            O despacho que veio a declarar a suspensão da instância teve apenas função meramente declaratória da situação que já se verificava, sendo a suspensão uma realidade determinada ope legis (artigo 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e declarada ope judicis.

           Por outro lado, há que considerar que o falecimento da parte, que impõe a imediata suspensão da instância, não obsta ao decurso do prazo de deserção, «pois não se verifica qualquer relação teleológica entre as normas do nº 1 do artigo 281º e o nº 2 do artigo 275º, ambos do CPC de 2013, que imponha uma operatividade articulada entre si», (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11-09-2015, Proc. 01312/05.2BEBRG, disponível em www.dgsi.pt).

            A partir do momento em que a parte toma consciência da suspensão da instância [que será a partir do momento em que toma conhecimento do falecimento da parte], e a mesma decorre da lei como observámos, sobre a mesma começa a incorrer o ónus de remoção da causa da suspensão, que no caso seria a prática do acto processual expectável: «[d]onde, suspensa a instância em consequência de morte ou extinção de um dos litigantes, as partes têm o dever de diligenciar pela remoção das causas da suspensão ou de informar no processo a ocorrência de atinente impedimento» (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 11-09-2015, Proc. 01312/05.2BEBRG, disponível em www.dgsi.pt), uma vez que a inércia das partes na promoção da habilitação de herdeiros é determinante para a não verificação da cessação da suspensão (Acórdão do TRG, 12-09-2019, Proc. 6748/17.3T8VNF.G1)

            Para a verificação da figura da deserção, concorrem dois elementos: a falta de impulso processual há mais de 6 (seis) meses, e que a mesma se deva à negligência das partes.

             Esta [a deserção], ao contrário da suspensão da instância, não se verifica ope legis, «por decurso de prazo, mas através da prolação de despacho constitutivo que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo para impulso e a negligência da parte em promover os termos da acção».

            E, nesse seguimento, resta verificar se, de facto, existiu o decurso de prazo de 6 meses sem impulso das partes (oneradas com o impulso) e se essa falta de impulso se ficou a dever a negligência da parte onerada.

            Assim, cumpre marcar o marco inicial de onde se deverá contar o início do encargo do impulso processual.

            As partes foram notificadas a 21-03-2023 do despacho que declarou a suspensão da instância e da necessidade de impulsionar o processo, sob pena da deserção da instância.

            Já antes havia sido junta certidão de assento de óbito do Réu a 10-03-2023, pelo que sempre esta data teria importância na aferição do prazo a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

           Os Ilustres Mandatários das partes presumiram-se notificados do despacho que declarou a suspensão da instância no dia 24-03-2023, atento o disposto no artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

            E já em momento prévio, os Ilustres Mandatários das partes estariam conscientes de que, por um lado, havia falecido uma das partes, e que, por outro, por determinação legal, tal acontecimento determinava a suspensão da instância.

            Querer depender a auto-responsabilidade das partes de um despacho judicial que declare a suspensão da instância (e que ainda tenha de notificar as partes de que devem impulsionar o processo sob pena de deserção) seria desvirtuar o, ainda, princípio vector do processo civil (dispositivo em sentido amplo, abrangendo o princípio da auto-responsabilidade das partes), isto é, o princípio pelo qual as partes devem observar um conjunto de encargos, sob pena de se verem confrontadas com situações processuais desfavoráveis: a ideia «de que o juiz ainda antes do decurso do prazo de deserção deve convocar as partes à intervenção processual, quando existe um marco processual notificado à parte e que não deixa a mínima dúvida de que a ela compete o impulso processual relevante para evitar a deserção, seria subversivo do princípio da autorresponsabilização das partes, já aludido, e de um princípio de proactividade e de cooperação que estas devem observar, como vimos».

          Assim, o primeiro marco temporal com relevância para a deserção é aquele em que a parte toma conhecimento de que deve praticar o acto processual que leva à cessação da suspensão (operada por lei), momento esse que se inicia com a consciência de que no processo ingressou documento comprovativo do falecimento da parte.

           Como refere PAULO RAMOS DE FARIA («O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa», Julgar, 2015, p. 7), «[o] prazo conta-se do dia (dies a quo) em que a parte tomou conhecimento do estado do processo (ou que tenha tido obrigação de dele conhecer) que implica a paragem deste e torna necessário o seu impulso, não sendo exigido pela lei, para que o prazo se inicie, que o juiz o declare expressamente ou que o demandante seja notificado do seu início (com a receção dessa notificação)»

           Contudo, ainda que assim não se entenda e se atenda ao prazo iniciado a partir da notificação do despacho que declarou a suspensão da instância, a partir do dia 25-03-2023 (artigo 279.º, alínea b), do Código Civil), os Autores deveriam ter impulsionado o processo no sentido de obstar à continuação da suspensão.

           Por outro lado, importa reter que o prazo de deserção da instância se fixa agora em seis meses e um dia, prazo este que não se suspende durante as férias judiciais (artigo 138.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, tendo as férias judiciais decorrido de 22 de Dezembro a 3 de Janeiro).

            Assim, desde 25-03-2023 decorreram mais de 6 meses.

           Durante o arco temporal referido, nenhum dos sujeitos processuais promoveu a competente habilitação da parte falecida, como, outrossim, não requereu qualquer prorrogação de prazo ou diligência a tanto dirigida.

           Conforme se refere no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2016, Processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, «a deserção não se verifica automaticamente pelo decurso do prazo. Pelo contrário, demanda também uma decisão judicial e um juízo acerca da existência de negligência da parte. Simplesmente, a negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência», pois que, como mais à frente refere, «(…)à parte onerada com o impulso processual é que incumbe (aliás à semelhança do que sucede no caso paralelo do justo impedimento, art. 140º do CPCivil), e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo. E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência», de tal sorte que finaliza nestes termos: «Ao interessado no prosseguimento do processo cabe deduzir o incidente de habilitação (…). E das duas uma: ou deduz esse incidente, porque nele tem interesse, ou não deduz, optando por manter o processo suspenso. A escolha é da parte mas acarta as respectivas consequências. Se a parte não quer impulsionar o processo, se a parte deixa decorrer o prazo da suspensão sem que deduza o incidente obrigatório para o prosseguimento do processo - que se pode chamar a isto senão negligência em impulsionar os autos? (…) Como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, se «a habilitação não tiver lugar, por não ser requerida ou ser julgada improcedente, observa-se o art.º 281-1 (deserção da instância)» (Cód. Proc. Civil Anotado, vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 681).».

            Ora, tecidas estas considerações, a primeira constatação a colocar em destaque é a de que as partes tomaram conhecimento da causa da suspensão da instância, foram posteriormente notificadas da declaração dessa mesma suspensão, sabendo, de antemão, que estavam oneradas com a dedução da competente habilitação da parte falecida, e tudo sem prejuízo do decurso do prazo de deserção da instância.

            Já, por seu turno, a segunda evidência a realçar é a de que, no referido arco temporal de 06 (seis) meses, nenhum dos sujeitos processuais promoveu a competente habilitação da parte falecida, como, outrossim, não requereu qualquer diligência que instrumentalmente a tanto se destinasse ou prorrogação de prazo.

            Daí que, não tendo nenhuma das partes, no aludido prazo de seis meses, promovido a habilitação da parte falecida, apresentado qualquer justificação para tal omissão, nem, ademais, solicitado a cooperação do tribunal para a remoção de obstáculos que, razoavelmente, os impedisse de impulsionar a acção, comunicando que necessitaria de prorrogação de algum prazo, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência, tal como exigido pelo o artigo 281.º, do Código de Processo Civil.

            No mais, como bem refere PAULO RAMOS DE FARIA, «a circunstância de a lei estabelecer que determinado facto deve ser judicialmente declarado, isto é, julgado verificado, não converte este julgamento na causa dos efeitos que, na verdade, são produzidos pelo facto declarado. Ou seja, concretizando na deserção da instância, o julgamento desta, isto é, o seu reconhecimento não é, óbvia e logicamente, um seu pressuposto. Os pressupostos da deserção são a paragem do processo, por inércia das partes, e o decurso do tempo; o seu efeito (não o efeito do seu julgamento) é a extinção da instância (art. 277.º, al. c)).

           O julgamento da deserção traduz-se no reconhecimento judicial da verificação do seu primeiro requisito – paragem do processo por inércia das partes – por seis meses e um dia. É aqui que ocorre a deserção; é aqui que os seus pressupostos constitutivos se reúnem. O juízo exigido pela norma contida no n.º 4 do art. 281.º é, neste sentido, meramente declarativo. O facto jurídico processual extintivo da instância não é interpretado (praticado) pelo juiz, ao contrário do que ocorre com o julgamento (art. 277.º, al. a)), resultando tal extinção, sim, diretamente da deserção declarada pelo tribunal – isto é, da deserção julgada verificada, por verificados estarem os seus pressupostos de facto.

            Confrontando os enunciados das als. a) e c) do art. 277.º, nota-se que a lei não estabelece que a instância se extingue por força do julgamento da deserção, embora ele seja necessário para que esta tenha repercussões processuais. Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância. A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato. Dizemos “potencialmente” pois, sendo a lei clara na exigência do reconhecimento judicial da deserção, esta só terá efeitos no processo se o tribunal a declarar. A declaração da ocorrência deste facto jurídico involuntário tem, pois, efeitos constitutivos ex tunc sobre o processo, reportando-se à data da ocorrência do facto jurídico extintivo, isto é, da deserção declarada. O conhecimento oficioso da deserção é coerente com esta conclusão, revelando tal oficiosidade que não está na disponibilidade das partes aceitar a sobrevivência da instância (réu) ou, por paridade, praticar atos após a ocorrência da deserção (autor)» [Revista JULGAR online1 , O julgamento da deserção da instância declarativa, págs. 13 a 15].

            A negligência, nesta sede, é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está apoditicamente constituída uma situação de desinteresse.

            Ou seja, a situação de desinteresse/negligência nestes autos prende-se com a já referida circunstância de se aguardar desde 25-03-2023 impulso das partes (nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), e com a cominação do disposto no artigo 281.º do Código de Processo Civil (nos termos do artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

            À parte onerada com o impulso processual é que incumbe, e ainda como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo (isto é, antes de se esgotar o prazo da deserção) informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo.

           E é em função desta atividade da parte que o tribunal poderá formular um juízo de não negligência.

            O que sucede neste caso.

           Pelo que se imporá julgar verificada a deserção desta instância e, em consequência, a extinção da instância, nos termos dos artigos 277.º, al. c), e 281.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Civil.»

            Os apelantes impugnam esta -  bem fundamentada - decisão  em função da violação dos acima referidos princípios do processo civil , entendendo que a violação dos mesmos torna a sentença de extinção da instância por deserção nula por excesso de pronúncia, nos termos da al d) do nº 1 do art 615º CPC.

           Importa ter em consideração, que, à excepção da apontada violação da audição prévia das partes antes da prolação da sentença, a acusada violação dos demais princípios-  diga-se de passagem que numa visão algo caleidoscópica de uma mesma realidade - se dirige à circunstância do Exmo Juiz a quo ter proferido a sentença cuja validade está em causa antes de perfeito o prazo de 10 dias a que alude o art 149º/1 CPC, sobre o antecedente despacho de  28/9/2023.

           Antes de prosseguir, atente-se melhor na sequência processual que veio a culminar na sentença de deserção da instância, constituindo ponto de partida da mesma o despacho de suspensão da instância, proferido a 20/3/2023, em que se refere:

             «Em face do óbito do Réu CC (cfr. assento de óbito n.º ...51 do ano de 2022, referência n.º 3175866), ao abrigo do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, al. a), 270.º, n.º 1, e 276.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, declara-se suspensa a instância até que se mostre(m) habilitado(s) o(s) respetivo(s) herdeiro(s), sem prejuízo da deserção da instância (artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Notifique.»

           Operada a notificação das partes nesse mesmo dia, presumem-se, pois, as mesmas notificados do despacho em causa, em 24/3/2023.

             Quase dois meses depois, mais propriamente em 16/05/2023, o A. apresentou requerimento em que refere vir «na sequência do douto despacho precedente do M. Juiz, solicitar o impulso processual que compete aos réus. Efetivamente, o processo carece de celeridade, urge pôr epílogo ao mesmo em tempo útil, volvido este hiato temporal

            Requerimento que implicou -  aberta conclusão em 22/5/2023  - despacho dessa mesma  data, do seguinte teor: «Vi os requerimentos de 16-05-2023 e 23-03-2023. Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada. Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho. Alarme os autos em conformidade e por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Após conclua.»

            Em 28/8/2023 o A. apresentou requerimento em que refere que, «na sequência dos requerimentos precedentes, vem solicitar reverencialmente a V. Exa. o respetivo impulso processual, pois o pagamento foi efetuado. O processo carece de ser tramitado. Caso o réu não tenha pago, solicita a respetiva cominação legal»

           Aberta conclusão em 25/9/2023, o Tribunal recorrido proferiu despacho na mesma data, com o seguinte teor: 

            «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada.

            Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho.

            Alarme os autos em conformidade e por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

            Após conclua de imediato.

            O despacho em causa não chegou a ser notificado.

            Foi aberta conclusão logo em 27/9/2023, e proferido despacho em 28/9/2023, com o seguinte conteúdo:

            «Nada a ordenar nem a notificar às partes face à suspensão determinada.

            Aguardem os autos nos termos determinados no anterior despacho, tendo sido determinada a suspensão da instância por despacho datado de 20/03/2023.

            Alarme os autos em conformidade, por referência ao prazo previsto no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (tendo em conta o artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).»

            As partes foram notificadas em 28/9/2023.

            O processo foi concluso em 10/10/2023 e, nessa mesma data, foi proferida a sentença da extinção da instância por deserção.

           

            Desde o momento em que o prazo  de seis meses a que alude o nº 1 do art 281º – prazo esse  processual e estabelecido na lei -  não se suspende durante as férias judiciais, visto a sua duração ser igual a seis meses – cfr o nº 1 do art 138º [1]-  o prazo em causa terminou em 24/9/2023motivo, decerto, pelo qual, a Secção abriu conclusão em  25/9 (referência 36284860) ainda que sem qualquer cota a mencionar a referida circunstância[2].

            Sucede que, ao invés do Exmo Juiz a quo ter julgado deserta a instância em função do decurso desse prazo  - seis meses e um dia -  procedimento esse, que, em função do teor da sentença de extinção da instância por deserção que veio a proferir subsequentemente, se vê que tinha como adequado,  proferiu despacho com o conteúdo acima referido.

           Entendem os apelados que o fez por lapso, por não se ter apercebido que o prazo de seis meses já decorrera.

            E, é, de facto, a melhor justificação para esse procedimento – em face, lá está, do subjacente ponto de vista do juiz que decorre da subsequente prolação da  sentença objecto do presente recurso – sendo que, para esse entendimento – o de que terá agido por lapso - não poderá deixar de concorrer  a referência  que aí  faz ao nº 5 do art 139º, que, como se sabe, permite a prática do acto fora do justo impedimento dentro dos três primeiros dias subsequentes ao termo do prazo, observados que sejam certos condicionalismos.   Quer dizer, o Exmo Juiz ter-se-á equivocado na contagem do prazo para a deserção da instância, certamente, pensando, quando proferiu o despacho em causa, que aquele prazo, ainda que com recurso aos mencionados no  nº 5 do art 139º, permitiria  ainda a junção do requerimento de habilitação de modo a atempadamente ser  impulsionado o processo.

            Desde o momento em que o despacho em causa, proferido por lapso, ou não, foi notificado às partes, ficou imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz  – art 613º 1 e 3  - e, por isso, o que está em questão é saber, se, potenciando o mesmo o entendimento atrás referido, e visto que não enunciou o prazo a die para o efeito,  os AA. poderiam, a coberto do mesmo,  apresentar o requerimento de habilitação nos 10 dias subsequentes ao da sua notificação, em função do prazo genérico a que se reporta o art  149º CPC, de tal modo que a prolação da sentença de extinção da instância no decurso desse prazo  se tenha de  entender como violação dos acima referidos princípios basilares do processo civil.

           Questão, que, parece-nos, se mostrará pertinente, quer para quem tenha a sentença de extinção da instância por deserção como constitutiva ou como declarativa, pois, mesmo neste último caso, as partes não deixariam de poder beneficiar do referido prazo de 10 dias que o despacho em causa, intencionalmente ou não, lhes permitiria.

            Sempre se dirá que, se, é «o principio da segurança jurídica e da protecção da confiança  e o principio da transparência e da lealdade processual, indissociáveis de um processo justo e equitativo», que ditam a norma do nº  6 do 157º, como referido no Ac  Ac STJ 30.11.2017[3]  - que estatui que «os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial  não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes» – aqueles mesmos  princípios hão-de ditar que, notificado às partes um despacho proferido por lapso do juiz, por ele não reparado ou reparável, e a que nenhuma das partes reagiu por recurso ou reclamação -  do mesmo se tenham de extrair os correspondentes efeitos.

           Pelo que, em nada poderá chocar a que se entenda que a prolação da sentença de extinção da instância por deserção ainda no prazo 10 dias decorrente do despacho de  28/9/2023 implique violação do principio da tutela jurisdicional efectiva e do processo justo e equitativo e  violação do principio da confiança.

           O princípio da tutela jurisdicional efectiva encontra-se consagrado a nível constitucional nos artigos 20º e 268º/4 da CRP, tratando-se de um direito fundamental qualificado dos cidadãos, por estar integrado na categoria dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17º da CRP).

            O art 20º consagra o direito de acesso aos tribunais a todos para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo as normas que modelam este acesso obstaculizá-lo ao ponto de o tornar impossível. Enquanto decorrência da não obstaculização do direito de acesso aos tribunais, uma  decisão  emanada por um  tribunal deve obter plena concretização, satisfazendo cabalmente os interesses materiais de quem obteve vencimento. Como é salientado no Ac T Const. 604/2018[4],  «Do direito à tutela jurisdicional efetiva, em associação com a regra do processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da CRP), decorre um princípio de efetividade processual, segundo o qual o processo deve proporcionar às partes, quanto for possível, a realização concreta, real e efetiva do direito violado. O princípio da efetividade processual exige, pois, que a sequência de atos fixados na lei, com vista à obtenção de uma determinada providência judiciária, seja capaz de alcançar a solução concreta do conflito levantado entre as partes». Acrescentando: «Um dos parâmetros que o processo tem que satisfazer para merecer a qualificação de efetivo é o da funcionalidade material dos atos que o compõem. Quer dizer: a estruturação do conjunto de atos que formam o processo deve revelar-se funcionalmente adequada à realização da tutela jurisdicional dos direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos. O processo deve estar construído e organizado em ternos tais que se possa concluir que incide efetivamente sobre a pretensão deduzida pelo autor e que é suscetível de produzir um resultado útil e concreto».

            Ora, impedir às partes o acima referido efeito do despacho de 28/9/2023 – o de, nos 10 dias subsequentes ao da sua notificação,poderem vir impulsionar o processo com a junção do requerimento de  habilitação - em função da prolação da  sentença de deserção da instância antes de decorrido esse  prazo,  traduz-se na violação da tutela jurisdicional efectiva.  

           E, obviamente, contende com o principio da confiança, como condição indispensável à segurança dos cidadãos e à permanência e estabilidade da ordem jurídica.

De novo se recorre aqui ao acima referido Ac T Const., quando refere, a propósito do principio da confiança: «A garantia do processo equitativo comporta assim uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os atos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual. Com efeito, o processo surge como um imperativo de segurança jurídica ligado a duas exigências: a determinabilidade da lei e a previsibilidade do direito. O processo justo e equitativo é também aquele cuja regulação prevê que a sequência dos atos que formam o processo esteja pré-determinada ao pormenor pelo legislador, em termos de ser possível assegurar com previsibilidade que as partes são titulares de poderes, deveres, ónus e faculdades processuais e que o processo é destinado a finalizar com certo tipo de decisão final. Os dois elementos são indissociáveis: a previsibilidade das consequências da prática dos atos processuais pressupõe que as normas processuais sejam claras e suficientemente densas, atributos sem os quais ficará violado o princípio da segurança jurídica».

            Prosseguindo, ainda, com evidente relevo para o que se pretende acentuar: «Um processo equitativo é também um processo previsível. Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de atos a praticar, bem como as formalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da ação, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porém, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais. É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas ações, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir».

            Ora, a prolação da sentença de deserção da instância antes de decorrido o acima referido prazo, contende com as exigências da cognoscibilidade, calculabilidade e previsibilidade inferíveis do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança.

            Podendo ainda dizer-se que não concorre para a concretização de um processo justo e equitativo, desde logo, por encerrar uma decisão surpresa – não se mostrava expectável que viesse a ser proferida decisão de extinção de instância por deserção  antes do decurso do prazo de resposta ao anterior despacho proferido,  ferindo a prolação desta decisão, no contexto especifico dos autos a que se tem vindo a fazer referência, a exigência de um  fair trial . Efectivamente, e como é evidenciado no Ac STJ de 17/5/2016, «um julgamento justo é enformado pela confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual,, não podendo os interessados sofrer quaisquer  limitações, exclusão de posições  ou direitos processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar» .

           Já não se pode concordar com a apelante relativamente  à violação do princípio da boa fé, quer na vertente de venire contra factum proprium,  quer na de proibição do tu quoque, por partir de uma base insustentável num Estado de Direito – a de que um Juiz,  na prolação de decisões, correctas ou incorrectas, se possa equiparar a uma parte no processo, a um qualquer «agente» processual . O dever de boa fé processual é exigido  às partes no art 8º CPC e não ao juiz, relativamente a quem, se pressupõe .

           No entanto, as considerações que a latere das situadas no abuso de direito o apelante produz a respeito do que designa por violação do dever de boa fé por parte do juiz – e que situa na aparente indiferença com que se julgou extinto um processo que dura há cerca de sete anos, com vários incidentes processuais, como se dá conta no relatório deste acórdão – poderão inserir-se, do ponto de vista deste Tribunal, num exercício menos ponderado do dever de gestão processual, dever este, que, pese embora esteja à partida balizado pelo ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, segundo o  proémio do nº 1 do art 6º, deve compreender, sempre, por parte do juiz, uma preocupação que se mostre visível pela sobreposição da decisão de mérito sobre a de forma. 

           No mesmo sentido, conflui o principio do inquisitório, progressivamente acentuado em face do principio do dispositivo, como resulta hoje desse art 6º CPC, tornando o Juiz «parte activa na aquisição processual e recolha do material probatório tendo em vista o apuramento da verdade material»[5] corolário do mesmo cuidado activo para se alcançar a  decisão de mérito.

            Este espirito de sobreposição do fundo à forma, obviando, tanto quanto possível,  a que razões formais obstaculizem a que se alcance a definição dos direitos materiais -  e sendo certo que a deserção da instância inutiliza toda a actividade  processual desenvolvida até então [6] - perante um processo já tão longo e tão empenhadamente prosseguido pelos AA. na 1ª instância  e  nas demais  em que já se moveu, não poderia (á) deixar de implicar que se estranhe a inércia dos AA. na não dedução do incidente de habilitação, concorrendo, num 1º plano, para que se ponderassem(ponderem) as eventuais consequências de um despacho  susceptível de gerar o  entendimento de ser ainda possível deduzir a habilitação,  e num segundo,e decisivo plano, que não se deixassem de ouvir as partes, de sobremaneira os AA., antes de proferir sentença de extinção da instância.

            Lebre de Freitas [7], salientando «o imperativo constitucional de os tribunais assegurarem a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos, com primado da decisão de mérito na decisão dos conflitos de interesses privados – cfr. artigo 203.º, n.º 2, da CRP -» sublinha que «o direito de defesa postula o tempero da rigidez das preclusões e cominações decorrentes da revelia e que os princípios da preclusão e da autorresponsabilidade das partes são temperados por deveres de cooperação entre elas e o tribunal, para que o processo realize a sua função (de tutela dos direitos subjetivos e dos interesses legalmente protegidos) com brevidade e eficácia (art.º 7.º-1, CPC)».

           Aqui chegados, e já se viu que no sentido defendido pelos apelantes - da nulidade da sentença em função da inobservância, que a mesma absorveu, dos acima referidos princípios -  importa, não obstante, saber se tal sentença se teria que ter (também) como nula agora pela simples razão de não ter sido precedida da audição das partes a respeito da negligência, enquanto pressuposto da instituto da deserção.

           Como ponto de partida para a apreciação desta questão, dir-se-á que muita ou toda a controvérsia em redor desta forma de extinção da instância – e que é doutrinária e  jurisprudencialmente muita, como é sabido  – gravita em redor da questão de saber se   a sentença de extinção da instância por deserção tem efeito constitutivo  ou  declarativo.

           Com efeito, opinando-se pelo carácter meramente declarativo dessa sentença, natural é que se entenda que a deserção ocorre independentemente de qualquer declaração nesse sentido com a objectiva paragem do processo por seis meses e um dia por banda da parte ou partes a quem caiba o ónus de impulsionarem o processo sem que o hajam feito, e sem que nesse prazo hajam apresentado justificação para essa omissão  ou  requerido a  cooperação do tribunal para a remoção de obstáculos que, razoavelmente, lhes impeçam o vivificar da  acção. Natural é, decorrentemente, que o juízo sobre a negligência da parte ou partes a quem cabia o impulso do processo – e que o entendimento em apreço não descarta – tenha por objecto exclusivamente a chamada negligência processual ou aparente, isto é, a que resulte retratada ou espelhada objetivamente no processo, sem que se admita à parte ou partes, que justifiquem a posteriori aquela externa e consolidada  inacção.  

           Ao contrário, entendendo-se que a sentença em causa tem natureza constitutiva, natural é que se exija que antes da afirmação jurisdicional da verificação da deserção, se ouçam as partes oneradas com a obrigação do impulso processual a respeito  da sua culpa latu sensu relativamente à objectivada omissão desse adequado impulso. 

            Vejamos, pois.

           

           No âmbito do CPC 39, em que as disposições relativas à deserção eram semelhantes, excepto nos prazos, às que vieram a ser estabelecidas no CPC de 61, Alberto dos Reis pronunciava-se abertamente no sentido do efeito constitutivo da sentença  de deserção [8], referindo:  «É efectivamente esta a doutrina que nos parece derivar  do art 296º [9], posto em correlação com o art 291º [10]. A deserção não se produz automaticamente, ope legis; depende de acto do juiz, produz-se ope judicis, visto que demanda uma sentença de declaração». Explicitando seguidamente: «Suponhamos então que, tendo passado o lapso de tempo marcado no art 296º, uma das partes dá impulso ao processo antes do juiz ter declarado a deserção; deverá o tribunal  considerar deserta a instância, não obstante o impulso referido, ou ficará, pelo contrário, inutilizado o efeito da inércia durante o período legalmente necessário para se operar a deserção? Entendemos que a inércia fica sem efeito  e que deve admitir-se o seguimento do processo »  (… ) «enquanto a instância não for declarada extinta, as partes podem dar impulso ao processo, pouco importando que tenha estado parado durante mais de seis anos». Rematando nos seguintes termos:  «A deserção não se produz de direito, posto que deva ser declarada oficiosamente; depende  de acto do juiz , produz-se ope judicis . A sentença de deserção tem, pois, alcance constitutivo . Enquanto não for proferida, é licito às partes promover utilmente o seguimento do processo. Deserção não existe enquanto o juiz não a declara no processo respectivo».

            As alterações ao instituto da deserção do CPC anterior para o presente,  não são de molde, bem pelo contrário, como se evidenciará,  a que se abandone esta concepção constitutiva da sentença de deserção .[11]

            No CPC anterior, o art 291º/1 considerava deserta a instância, «independentemente de qualquer decisão judicial», quando a mesma estivesse interrompida durante dois anos. Mas, precedentemente, em função do que dispunha no seu art  285º, exigia  para a interrupção que o processo estivesse parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou de algum incidente do qual dependesse o seu andamento. 

            Assim,  enquanto no regime pretérito constituía requisito para a deserção da instância um período de dois anos de  interrupção prévia da instância, que havia de ter sido antecedida de mais um  para que se verificasse a interrupção,  estando em causa três anos de inércia processual, hoje o legislador basta-se com seis meses dessa inércia, consequentemente, um período muito mais curto; enquanto no regime pretérito a deserção da instância estava mediada em função de um período longo de interrupção, hoje  passa-se imediatamente da mera situação de inércia para a extinção da instância.

           Embora tivesse sido controvertido no CPC anterior se a interrupção da instância dependia ou não de despacho judicial, era dominantemente entendido nos tribunais superiores [12] que o era, «pois as razões da paralisação deviam ser apreciadas pelo julgador», embora se entendesse  - segundo Lebre de Freitas, local citado - «bastar um despacho que mandasse aguardar o decurso do prazo da interrupção, por conter uma decisão implícita».

            Hoje, em  função «do drástico encurtamento do prazo global conducente á deserção» [13], nenhum sentido fazendo que se suprima este juízo, tão pouco fará que se o faça corresponder a um simples alerta para tal  consequência, ou que, em última análise, se entenda, que a sentença de deserção da instância se destina a declará-la.

            Mas, ainda que se entendesse o contrário do que até agora se vem defendendo – designadamente, que a sentença de extinção da instância por deserção tem carácter declarativo, e que, em última análise - com o que não se concorda, como acima se viu -  o despacho de 28/9/2023 em nada podia já afectar a mera declaração daquela extinção cujos pressupostos se mostravam reunidos  – sempre seria de se julgar nula esta sentença por não ter potenciado o diferenciado contraditório relativamente ao juízo de negligência que a deserção sempre implica.

           Não se desconhece a abundância de jurisprudência que na matéria em apreço tem por inútil dar especifico cumprimento a este contraditório, desde que as partes tenham sido devidamente alertadas para a consequência de que faltando o impulso processual que no concreto processo se impõe a consequência será a da extinção da instância.

            Entende-se, porém, que não há que confundir este “despacho de alerta”  - «um despacho judicial a alertar previamente a parte para o risco de ocorrência da deserção da instância» -  normalmente feito, quando o impulso processual que se impõe é o do requerimento de habilitação de herdeiros, no despacho de suspensão da instância, utilizando-se genericamente a expressão, «sem prejuízo do disposto no art  285º CPC»– com o despacho de audição prévia para avaliar a negligência da parte, aquilo que alguma jurisprudência designa por “juízo prudencial”[14]

           Sendo evidentemente indispensável um despacho judicial, mais ou menos desenvolvido ou explicito, que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância  se, no prazo da mesma, o processo não for devidamente impulsionado,  este despacho não dispensa aquele outro, proferido imediatamente antes da prolação da sentença de extinção da instância por deserção que permita às partes pronunciarem-se pelos pressupostos de que depende esse julgamento, designadamente, a negligência no que respeita à falta do necessário impulsionamento do processo, no cumprimento do disposto no art 3º/3 do  CPC  [15]

           A omissão de prévio e específico despacho de audição das partes sobre a situação de negligência não se se mostra compatível com o princípio da cooperação processual e com o dever de prevenção dele emergente.
             Tem sido este o entendimento recorrente de Teixeira de Sousa, como repetidamente o enunciou - nas anotações ao Ac STJ  8/3/2018 (Relatora, Rosa Tching)  no Blog do IPCC 15/11/2018 sob jurisprudência 2018 (115),  ao Ac  STJ de 4/2/2020 (relator, José Rainho),  Blog do IPPC de 02/10/2020, jurisprudência 2020 (65),  e ao Ac RL 7/5/2020 (Relatora Ana Azeredo  Coelho), Blog  do IPPC de 23/10/2020, jurisprudência 2020 (79).
           Anotações, aquelas primeiras, desfavoráveis, e no seguinte sentido, respectivamente: 
            «O decretamento da deserção da instância pressupõe que a omissão da parte no impulso processual é negligente (art.º 281/1 CPC). O mero decurso do tempo sem que o impulso processual seja realizado não faz presumir a negligência da parte, dado que esta não pode deixar de ser aferida pela omissão de um dever de diligência nesse impulso. Por isso, impõe-se a audição prévia da parte. Como é óbvio, nada obsta ao decretamento da deserção da instância se da explicação fornecida pela parte não resultar uma justificação convincente para a omissão do impulso processual»,
           «Salvo o devido respeito pela orientação doutrinária e jurisprudencial reflectida no acórdão, o disposto no art. 281.º, n.º 1 e 4, CPC impede qualquer automatismo entre a inércia da parte e a deserção da instância e não permite a interpretação de que a negligência está demonstrada por essa própria inércia. Se assim fosse, a referência à negligência da parte no art. 281.º, n.º 1, CPC seria tautológica, um ponto de partida interpretativo que o art. 9.º, n.º 3, CC proíbe.
            E favorável, no que respeita ao Ac R L 7/5/2020, explicitando:
            «A referência à negligência que consta do art. 281.º, n.º 1, CPC pressupõe um juízo valorativo do tribunal sobre a omissão da parte. Este juízo requer, por seu turno, o conhecimento de uma determinada factualidade, porque em direito não há juízos valorativos nem automáticos, nem em abstracto: qualquer juízo valorativo é feito tomando em consideração certos factos. É exactamente por isso que uma mesma ausência de impulso processual depois do falecimento de uma das partes pode ser negligente no caso X e não ser negligente no caso Y»
           No mesmo sentido apontam as considerações do citado Ac T Constitucional, apesar do juízo que nele estava em causa não incidir sobre este aspecto concreto:
           «O comportamento omissivo das partes tem que ser apreciado e valorado judicialmente. Na medida em que se torna necessário fazer essa avaliação, no sentido de saber se a paragem do processo resulta efetivamente de negligência da parte em promover o seu andamento, a verificação dos pressupostos da deserção ocorre ope judicis e não ope legis, como resulta expressamente do n.º 4 do artigo 281.º do CPC»
            E noutro passo: «(…) a gravidade da extinção da instância pela paragem prolongada do processo é atenuada, quer pela exigência de “negligência das partes”, quer pelo reconhecimento ope judicis da deserção (nºs 1 e 4 do artigo 281.º do CPC). Não é qualquer paralisação que causa a deserção, mas apenas a que resulta de um ato que só as partes estão em condições de praticar. A deserção não prescinde, pois, do nexo entre a paragem do processo e a não atuação do ónus de impulso processual que recai sobre as partes e da negligência destas no que a tal omissão respeita. Deste modo, as partes têm sempre a possibilidade de demonstrar no processo que a paragem se deve a causas estranhas à sua vontade, por resultar de facto de terceiro, do tribunal ou de força maior que as impede de praticar o ato em falta. Tal como ocorre no caso paralelo de justo impedimento (artigo 140.º do CPC), as partes oneradas com o impulso processual podem atempadamente informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando a situação de negligência. O comportamento omissivo das partes é apreciado e valorado por ato do juiz, pois a deserção não se produz automaticamente pelo decurso do prazo de seis meses; depende de declaração judicial que avalia se a paragem do processo resulta efetivamente de negligência das partes em promover o seu andamento e se estão preenchidos os demais pressupostos da deserção. Por isso, a existência de um impedimento à satisfação do ónus de impulso processual pode afastar o juízo de negligência sobre a conduta das partes».

             Pelo que se veio de ponderar, deve concluir-se, que não tendo sido precedida a sentença dos autos de prévio despacho a facultar o contraditório, omitiu-se um acto que a lei impõe (não podendo dizer-se  ser «caso de manifesta desnecessidade», para efeito da não aplicação do art 3º/3),  omissão essa, com óbvia influência na decisão da causa,  enquadrável por isso na previsão do artigo 195º/1 do CPC, e que, porque  se veio a revelar apenas na sentença, torna esta nula por excesso de pronúncia [16].

            Assim, há que anular a sentença que julgou extinta a instância por deserção e proceder na 1ª instância à notificação das partes para que se pronunciem sobre os pressupostos da deserção da instância.

            V – Pelo exposto, acorda este Tribunal em julgar procedente a apelação e anular a sentença recorrida, determinando que as partes sejam notificadas na 1ª instância para se pronunciarem sobre os pressupostos da deserção da instância.

            Custas pelos apelados.

                                               Coimbra, 6 de Fevereiro de 2024

                                               (Maria Teresa Albuquerque)

                                               (Henrique Antunes)

                                               (Falcão de Magalhães)

            (…)


                [1] -  Ver  anotação a este preceito por Lebre de Feitas /Isabel Alexandre, «Código de Processo Civil Anotado», I vol, 3ª ed, nota 2, p 263-

                [2] - Ao contrário do que era obrigatório no âmbito do CPC 39.

                [3] - Relator, Raul Borges
                [4] - Proferido em 14/11/2018, Relator, Lino Rodrigues Ribeiro
                [5] -  Ac STJ  9/11/2017, Távora Victor

       [6] - Embora sem prejuízo do direito de ação e do direito material ou substancial em litígio, podendo o  autor  propor nova ação sobre o mesmo objeto, constituindo, sob certo aspecto, a deserção da instância, uma forma do autor alcançar o que lhe está vedado pela impossibilidade de desistência  da instância sem a aquiescência do réu …
                [7] -  «Da nulidade da declaração de deserção da instância sem precedência de advertência á parte»,  Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2018, I-II , p 196
               [8]  - «Comentário…»,  vol II , p 439 
              [9] - «Considera-se extinta a instância  quando estiver interrompida durante 5 anos,, sem prejuízo do que vai disposto no artigo seguinte. Verificado o facto previsto neste artigo, deve a secretaria fazer o processo concluso, a fim de ser decretada extinta a instância».
               [10]  - «A instância interrompe-se quando o processo estiver parado por mais de um ano em consequência da inércia das partes».

               [11]  - Sustentam a natureza constitutiva da sentença de deserção, no actual CPC, por exemplo, as seguintes decisões jurisprudenciais:

               - Ac STJ 9/11/2017 (Távora Vitor), referindo, «a sentença de deserção da instância  tem carácter constitutivo  e ocorre ope judicis; enquanto  não for declarada a deserção e a consequente extinção da instância é licito às partes promover utilmente o andamento do processo»;

               - Ac R L 7/5/2020 e o recente Ac R C 27/6/2023, dizendo-se naquele (Relatora, Ana Azeredo Coelho); «No regime do CPC de 2013 a apreciação da negligência nas acções declarativas foi deslocada da suprimida interrupção da instância para a deserção. A deserção da instância não opera ope legis, por decurso de prazo, mas através da prolação de despacho constitutivo que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo para impulso e a negligência da parte em promover os termos da acção.»

                [12] - Como disso dá nota Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, «Código de Processo Civil anotado», p 557
                [13] - A expressão é de novo de Lebre de Freitas, local indicado
                [14] -Assim:
                - Ac R C 06/03/2018 (Pº 349/14.5T8LRA.C1, Pires Robalo: «A “negligência das partes”, segundo a citada previsão legal, pressupõe, quanto a nós, uma efectiva omissão da diligência normal em face das circunstâncias do caso concreto, não podendo, assim, vingar uma qualquer responsabilidade automática/objectiva susceptível de abranger a mera paralisação. Temos para nós, na esteira do entendimento consagrado nos Acs. R.L. de 09.09.2014 (Pº 211/09.3TBLNH-J.L1-7) e R.G. de 02.02.2015 (Pº 4178/12.1TBGDM.P1), que o tribunal, antes de exarar o despacho a julgar extinta a instância por deserção, deverá, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas” Referindo-se igualemnet aese juízo prudencial
               - Ac RG 18-12-2017 (Pº 3401/12.8TBGMR.G2, José Cravo: «Donde, não sendo automática a deserção da instância pelo decurso do prazo de seis meses, o julgador, antes de proferir o despacho a que alude o nº 4 do art.º 281º do novo CPC, deve, num juízo prudencial, ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável a comportamento negligente de alguma delas, ou de ambas»
               Sem fazer referência à expressão “juízo prudencial”, mas tendo presente a mesma realidade:
               - Ac STJ 22-05-2018 (Pº 3368/06.1TVLSB.L1.S1,  Henrique Araújo: «Deve ser anulada a decisão que decreta a deserção da instância, que, por inobservância do dever de consulta e do dever de prevenção das partes – cujo cumprimento se impunha face às circunstâncias concretas do processo –, integra violação do princípio da cooperação (art.º 7.º do CPC)». Referindo-se nesse mesmo acórdão ainda que por referência a anterior: «E uma das formas de o conseguir é através do contraditório prévio, que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, designadamente em relação a questões, como é o caso dos autos, em que as partes não tiveram prévia oportunidade de sobre elas se pronunciarem (artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Não significa isto, obviamente, que a falta de impulso processual não possa ser considerada, ela mesma, sinónimo de negligência das partes ou de alguma delas. Mas não basta presumi-lo. É necessário, como dissemos, certificá-lo»
              - Ac R C 14-06-2016 (Pº 4386/14.1T8CBR.C1, Falcão de Magalhães: «Não sendo automática a deserção da instância pelo decurso do prazo de seis meses, o tribunal, antes de proferir o despacho a que alude o nº 4 do art.º 281 do C.P.C., deve ouvir as partes de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável a comportamento negligente»;
               - Ac RL 09-09-2014 (Pº 211/09.3TBLNH-J.L1-7,Cristina Coelho: «Tendo em conta a profundidade da alteração dos institutos em causa, os efeitos graves da mesma resultantes (extinção da instância), e o evidente propósito do legislador em obstar que possa ocorrer grave prejuízo dos direitos das partes resultantes da aplicação do NCPC, bem como o facto de se ter de aquilatar do comportamento negligente da parte na omissão do impulso processual, não pode o tribunal proferir despacho a declarar a deserção da instância sem, previamente, dar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão».
                Em sentido contrário, entre outros:
                - Ac STJ 8/3/2018,  Rosa Tching;
                -  Ac STJ 4/2/2020 Josè Rainho;
               - Ac STJ de 20-04-2021 (Pº 27911/18.4T8LSB.L1.S1, Pedro Lima Gonçalves,: «No que respeita à audição antes de ser proferida a decisão a julgar extinta a instância por deserção, não se encontra qualquer disposição legal que determina essa audição, nem a mesma decorre do princípio do contraditório ou do princípio da cooperação e do dever de gestão processual.»
               - Ac STJ 02-06-2020 (Pº 139/15.8T8FAF-A.G1.S1, Fernando Samões: «Constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além destes, recai sobre a parte, em face da clareza do início do prazo de seis meses e das respectivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação, inexistindo fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para prévia audição das partes com vista a aquilatar da sua negligência»;
                - Ac STJ18-09-2018 (Pº 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1, Sousa Lameira: «Tendo, em 20-06-2016, sido proferido despacho, que foi notificado à recorrente, a declarar a instância suspensa (em virtude do óbito de uma das partes), “sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 5, do CPC” e tendo o processo estado parado até 23-01-2017, mostram-se preenchidos os pressupostos enunciados em I, dado que, sabendo a recorrente que a sua inércia conduziria à deserção da instância, a paragem do processo por período superior a seis meses decorreu de negligência sua. Nessas circunstâncias, não cabia ao tribunal ordenar o prosseguimento dos autos através de qualquer diligência, nem lhe era exigível determinar a notificação da recorrente antes de proferir o despacho a declarar extinta a instância»;
               - Ac STJ 07-2018 (Pº 5314/05.0TVLSB.L1.S2, Helder Almeida: «
A aferição da negligência da parte, enquanto pressupostos da deserção da instância, deve ser feita em face dos elementos que constam do processo, pelo que inexiste fundamento para a respectiva decisão ser precedida de audiência prévia das partes»;

                [15] - Despacho que poderá ter o seguinte teor, como se vê no Ac STJ 9/11/2017: «Visto que o presente processo se encontra a aguardar o impulso processual da A. há mais de 6 meses, e é intenção deste Tribunal, ao abrigo do disposto pelo art 281º/ do CPC, julgar deserta a presente instância, assim , ao abrigo do disposto no art 3º/3, notifique as parte para querendo sobre tal se pronunciarem»

               [16]- Cfr Teixeira de Sousa Blog do IPPC https://blogippc.blogspot.com/search?q=%22Nas+a%C3%A7%C3%B5es+que+hajam+de+prosseguir%22         No mesmo sentido, Abrantes  Geraldes, Ac STJ 236/2016, onde refere: «É usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir.Sendo esta a solução ajustada à generalidade das nulidades processuais, a mesma revela-se, contudo, inadequada quando nos confrontamos com situações em que é o próprio juiz que, ao proferir a decisão (in casu, o despacho saneador), omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a falta de convocação da audiência prévia a fim de assegurar o contraditório. Em tais circunstâncias, depara-se-nos uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica ao despacho saneador, de modo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso da decisão proferida em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC».