Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL SILVA | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO VEÍCULO EM FIM DE VIDA | ||
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Data do Acordão: | 03/12/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DE ALCOBAÇA (3.º JUÍZO) | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | DECRETO-LEI N.º 196//2003, DE 23.08 (ALTERADO, SUCESSIVAMENTE, PELOS DECRETOS-LEI N.ºS 178/2006, DE 05-09; 64/2008, DE 08-04; 98/2010, DE 11-08; 73/2011, DE 17-06; E 1/2012, DE 11-01) | ||
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Sumário: | Nos termos e para os fins regulados no Decreto-Lei n.º 196//2003, de 23.08 (alterado, sucessivamente, pelos Decretos-Lei n.ºs 178/2006, de 05-09; 64/2008, de 08-04; 98/2010, de 11-08; 73/2011, de 17-06; e 1/2012, de 11-01), que estabelece o regime jurídico para a gestão de veículos, veículos em fim de vida e seus componentes e materiais, VFV é todo aquele relativamente ao qual deixa de se verificar a utilização para o fim a que se destina, ou seja, quando já não dispõe de condições para a circulação, seja por acidente, avaria, mau estado ou outro motivo. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1. Na sequência de auto de notícia que lhe foi instaurado por contra-ordenação ambiental, veio a arguida A..., L.da, a ser condenada: Inconformada, a arguida interpôs recurso de tal decisão, invocando não se dedicar ao desmantelamento de VFV, desconhecer a necessidade de licença para o tratamento de peças automóveis e ter já efectuado obras de requalificação das suas instalações. Realizada audiência de discussão e julgamento, a M.mª Juíza julgou o recurso parcialmente procedente e manteve a condenação da sociedade arguida pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos artigos 20º, nº1 e 24º, nº1 al. d) do Decreto-lei nº 196/2003 de 23 de Agosto, 12º da Lei 50/2006 de 29.8 e 18º do DL 433/82 de 27.10, desta feita na coima de €19.250,00. 2. Ainda inconformada, recorre agora a arguida para esta Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES: «1 - A arguida dedica-se, entre outras actividades, à actividade de manutenção e reparação de veículos automóveis; 2 - Dispondo de autorização para o exercício de tal actividade a qual necessariamente compreende a actividade de desmontar, retirar e substituir peças de e em veículos automóveis; 3 - Na data da fiscalização efectuada, se encontravam nas instalações da arguida aquilo que os agentes autuantes classificaram como sendo “veículos em fim de vida” os quais se encontravam com os vidros, pára-choques e outros componentes plásticos; 4 - Resulta do disposto no art. 20º nº 1 do referido diploma que “as operações 5 - Dispõe a alínea t) do art. 2° do Decreto-Lei 196/2003, de 23 de Agosto, que por VFV se entende “um veículo que constitui um resíduo de acordo com a definição constante da alínea u) do artigo 3° do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro”; 6 - Do teor da referida alínea u) do art. 3° do DL 178/2006, concluiremos que será de considerar um resíduo “qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a obrigação de se desfazer, nomeadamente os identificados na Lista Europeia de Resíduos”; 7 - Atentando no ponto 16.01.04 da mencionada Lista Europeia de Resíduos, refere o mesmo que são considerados como tal os veículos em fim de vida; 8 - Concluindo-se assim por uma clara inexistência de uma definição concreta, objectiva e clara do que se deva entender por VFV, restando apenas a possibilidade de recurso ao critério subjectivo decorrente da citada alínea u) do art. 3° do DL 178/2006; 9 - Assim, será um VFV aquele do qual o detentor se desfaz ou tem intenção de desfazer; 10 - O conceito de VFV redunda numa ideia de subjectividade: se VFV será aquele do qual o detentor se desfaz ou tem intenção de desfazer, é a este que cabe definir quando o faz ou quando surge no seu espírito a intenção de o fazer, desta forma definindo o momento temporal em que determinado veículo deixa de ser potencialmente utilizável para passar a ser considerado um VFV; 11 - “É com a sua qualificação como veículo em fim de vida que se inicia a responsabilidade do seu proprietário ou detentor para lhe dar encaminhamento para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento” — Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/10/2012, Proc. 361/12.9TBLSA.C1, in www.dqsi.pt, pelo que, antes de tal qualificação, inexiste qualquer obrigação sobre o detentor ou proprietário; 12 - Não contempla o Decreto-Lei 196/2003, no n.º 2 do art. 14.º, qualquer prazo, fazendo uma mera alusão à responsabilidade que incumbe ao detentor ou proprietário de VFV (considerados efectivamente como tal) pelo seu encaminhamento e respectivos custos para um centro de recepção ou para um operador de desmantelamento; 13 - Nada se sabendo sobre a concreta qualificação dos veículos encontrados na sede da arguida como VFV nem, tão pouco, sobre o lapso de tempo durante o qual 14 - Não poderá o Tribunal a quo concluir pela realização de operações de tratamento de VFV pela simples constatação de que a arguida efectuava a remoção de vidros, componentes plásticos e pára-choques dos veículos, porquanto sempre subsistiria a dúvida sobre se tais veículos seriam ou não de considerar VFV; 15 - Não resultando provada uma inequívoca classificação dos veículos encontrados na sede da arguida como VFV, dada a imprecisão e a subjectividade subjacente a esta designação, outra conclusão não restaria senão a de absolver a arguida da prática da contra-ordenação que lhe vinha imputada; 16 - Não se determinando com precisão que tais veículos fossem efectivamente qualificáveis como VFV, não poderá ser imputada à arguida a prática de “operações de tratamento de VFV” sem licenciamento para o efeito; 17 - Na sua motivação, não indica o Tribunal a quo fundamentos fácticos e/ou de direito suficientes a uma inequívoca classificação dos referidos veículos como VFV, pelo que, e fazendo apelo do basilar princípio “in dubio pro reo” bem como da impossibilidade fáctica de considerar os veículos em causa como VFV, haveria que absolver a arguida da prática da contra-ordenação que lhe vinha imputada. 18 - Sem conceder: o Tribunal a quo concluiu que a contra-ordenação “foi efectivamente praticada pela arguida, a título de negligência”, considerando ainda como provado que “a arguida procurou posteriormente à fiscalização, dotar as suas instalações das infra-estruturas necessárias ao adequado cumprimento da lei”; 19 - O RGCO, no n.º 1 do seu art. 51.º, estabelece que “quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”; 20 - A referência à culpa do agente, plasmada no citado preceito legal, “tem como objectivo aludir aos casos em que o grau de culpa seja reduzido, nomeadamente aqueles em que há actuação por negligência” (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.04.2012, Proc. 430/11.2TBMLD.C1, in www.dqsi.pt) 21 - Demonstrada que ficou a prática da contra-ordenação em crise a título de negligência, mercê de um provado erro sobre a ilicitude, e que, salvo melhor entendimento, perante os factos provados estamos perante uma infracção de reduzida gravidade, são estes aspectos que deverão ser tidos como determinantes, não obstante a qualificação que decorre do DL 196/2006; 22 - Considerando que estamos perante uma empresa que não tem quaisquer antecedentes contra-ordenacionais e que não resulta dos autos qualquer quantificação quanto ao benefício económico potenciado pela conduta infractora, entendemos ser adequada à situação descrita uma admoestação em substituição da coima aplicada.
3. O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) em 1ª instância respondeu pugnando pela improcedência do recurso, e CONCLUINDO que: «1. A Recorrente praticou a contra-ordenação por que vem condenada. 2. A sentença recorrida deve ser mantida na íntegra.».
4. Já neste Tribunal da Relação, o Ex.mº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no mesmo sentido, por adesão à argumentação expendida em 1ª instância. Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP), a arguida nada disse. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO 5. OS FACTOS [[1]] São os seguintes os factos considerados na douta sentença: «1. No dia 10 de Agosto de 2010, às 11:40, foi efectuada uma acção de fiscalização pelo Destacamento Territorial de Santarém da GNR à sede da arguida A..., Lda. 2. O objecto social da arguida é o comércio, importação e exportação de peças, veículos e máquinas comerciais, industriais e respectivos acessórios, bem como o transporte dessas mercadorias, manutenção e reparação automóvel. 3. Na data da fiscalização encontravam-se nas instalações da arguida armazenados veículos em fim de vida, em solo permeável, os quais se encontravam com os vidros, pára-choques e outros componentes plásticos. 4. A arguida dedicava-se ao desmantelamento de VFV, os quais ainda tinham, pelo menos, vidros, pára-choques e outros componentes plásticos. 5. A arguida solicitou licenciamento para realização de operações de gestão de resíduos de VFV, o qual obteve parecer favorável da CCDRLVT. 6. A arguida não tinha licença para proceder à actividade referida em 4. 7. A arguida não sabia que devia ter licença para desenvolver a actividade referida em 4. e desconhecia os requisitos técnicos que deveriam estar reunidos para o desenvolvimento da mesma. 8. A arguida não agiu com o cuidado que devia e de que era capaz ao não se informar sobre a necessidade de obter licença e de quais os requisitos técnicos que deveria reunir para a realização de tais actividades. 9. A arguida emprega três pessoas. 10. Não lhe são conhecidos antecedentes contra-ordenacionais.».
6. O MÉRITO DO RECURSO O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[2]] AS QUESTÕES SUSCITADAS:
6.1. QUALIFICAÇÃO DE “VEÍCULOS EM FINAL DE VIDA” Sob as conclusões 1ª a 17ª argumenta a Recorrente sobre a (in)definição do que sejam veículos em fim de vida, para daí extrapolar que não teria resultado “provada uma inequívoca classificação dos veículos encontrados na sede da arguida como VFV, dada a imprecisão e a subjectividade subjacente a esta designação, outra conclusão não restaria senão a de absolver a arguida da prática da contra-ordenação que lhe vinha imputada;”. Como decorre do art. 75º nº 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações (de futuro, apenas RGCO) __ aqui aplicável por força do art. 2º da Lei nº 50/2006, de 29.08 (com as alterações introduzidas pela Lei nº 89/2009, de 31.08), que estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais __, os Tribunais da Relação apenas conhecem da matéria de direito. Certo, também, que a Recorrente não recorre da matéria de facto ou, pelo menos, não observa as regras impostas pelo art. 410º ou art. 412º do Código de Processo Penal (de futuro, apenas CPP). Ora, resulta expressamente da matéria de facto fixada em 1ª instância que se encontravam nas instalações da arguida “veículos em fim de vida, em solo permeável, os quais se encontravam com os vidros, pára-choques e outros componentes plásticos”. Tanto bastaria para considerar a questão resolvida.
No entanto, sempre se poderá adiantar inexistir qualquer “subjectividade” na definição do que seja um veículo em fim de vida. O Decreto-Lei nº 196/2003, de 23.08 (alterado, sucessivamente, pelos Decretos-Lei nº 178/2006, de 05.09, nº 64/2008, de 08.04, nº 98/2010, de 11.08, nº 73/2011, de 17.06 e nº 1/2012, de 11.01) estabelece o regime jurídico para a gestão de veículos, veículos em fim de vida e seus componentes e materiais (cf. art. 1º nº 1). E, desde logo refere no nº 2 do seu art. 1º que, esse regime de gestão, “é aplicável independentemente do modo como o veículo tenha sido mantido ou reparado e de estar equipado com componentes fornecidos pelo fabricante ou com outros componentes, como peças sobressalentes ou de substituição”. A título de definição, refere que veículo em fim de vida é um veículo que constitui um resíduo de acordo com a definição constante da alínea u) do art. 3º do Decreto-Lei nº 178/2006, de 05.09 (também ele alterado pela Lei n.º 64 -A/2008, de 31.12, e pelos Decretos -Lei n.º 183/2009, de 10.08 e o nº 73/2011, de 17.06), que estabelece o regime geral relativo à prevenção, produção e gestão de resíduos. Ora, a alínea u) deste diploma definia, ao tempo da prática dos factos imputados à Recorrente [[3]], «Resíduos» qualquer substância ou objecto de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer, nomeadamente os identificados na Lista Europeia de Resíduos (...). Daqui resulta que um “veículo em fim de vida” é todo aquele relativamente ao qual deixa de se verificar a utilização para o fim a que se destina. É o que ocorre quando os veículos deixam de apresentar condições para a circulação, seja por acidente, avaria, mau estado ou outro motivo. Face aos termos da definição, é certo que “o fim de vida” de um veículo pode resultar da simples vontade do respectivo proprietário. Contudo, tal não transforma a definição em “subjectiva”. O que entra no ramo da “subjectividade” serão as razões que impelem o proprietário a desfazer-se do veículo. Porém, assumida essa resolução de vontade, o proprietário desfaz-se dele, abandonando-o [[4]] ou entregando-o num centro de recolha - actos estes que são já dados objectivos, o veículo entra a partir daí na classificação de fim de vida. Por isso, também, que, ao proprietário são cometidas sanções pelo simples abandono na via pública dum veículo que já não pretende mais usar: art. 5º nº 3 e art. 24º nº 2 al. a) do Decreto-Lei nº 196/2003, de 23.08. [[5]] Os veículos encontrados nas instalações da arguida entram manifestamente na classificação de resíduos, bastando para tal olhar as fotografias dos mesmos, que se encontram juntas aos autos, mostrando-se incapazes de circularem pelos seus próprios meios pelas mais variadas razões. Segundo o auto de notícia (e ao longo de todo o processo, aliás), a arguida não alegou que tivesse esses veículos para os reparar, como uma qualquer oficina. Ao invés, ficou provado que se dedicava ao desmantelamento de veículos. Improcede, portanto, a questão suscitada. Considera a arguida (conclusões 18ª a 22ª) que lhe deveria ser antes aplicada a medida de admoestação, invocando o art. 51º nº 1 do RGCO, que dispõe: “quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”. Resulta, portanto, do preceito a necessidade da verificação de dois requisitos: É certo que a actuação da arguida foi considerada a título de negligência, o que permite a consideração de uma culpa leve. Mas já o mesmo não ocorre quanto à gravidade da infracção, pois no caso em concreto, a lei qualifica condutas como a da arguida de muito grave: art. 24º nº 1 al. d) do Decreto-Lei nº 196/2003, de 23.08. Existe consenso na doutrina e na jurisprudência de que a admoestação não é aplicável quanto a infracções que o legislador reputa de muito graves. Assim, Simas Santos e Lopes de Sousa, «Por outro lado, se houver uma qualificação legal de contra-ordenações em função da sua gravidade, deverão considerar-se de reduzida gravidade nos casos em que a lei as qualifique como leves ou simples (...).» [[6]] «A aplicação da sanção de admoestação apenas é admissível quanto a contra-ordenações qualificadas como «leves» ou «simples». [[7]] No caso, infracção cometida pela arguida é classificada de muito grave, pelo que não pode ser considerada a pena de admoestação.
III. DECISÃO 7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo-se integralmente a sentença recorrida. Custas a cargo da Recorrente.
Coimbra, 12 de Março de 2014
(Isabel Silva - relatora)
( Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)
[[1]] São os factos constantes da decisão proferida pela primeira instância e que __ por não impugnados e por não se verificar qualquer uma das circunstâncias referidas nas diversas alíneas do art. 431º do CPP __, aqui cumpre manter. [[3]] Já depois dos factos aqui em análise, mediante a alteração introduzida pelo Decreto -Lei n.º 73/2011, de 17.06, a noção de resíduos passou a constar da alínea ee), que dispõe, simplesmente, “Resíduos” quaisquer substâncias ou objectos de que o detentor se desfaz ou tem a intenção ou a obrigação de se desfazer;. [[5]] Neste sentido, acórdão desta Relação, de 24.10.2012 (processo 361/12.9TBLSA.C1): 1.- Um veículo em fim de vida (VFV) é um resíduo. É com a sua qualificação como veículo em fim de via que se inicia a responsabilidade do seu proprietário ou detentor para lhe dar encaminhamento para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento; 2.- A violação do dever jurídico de encaminhar o VFV para um centro de receção ou para um operador de desmantelamento inicia-se com a omissão dessa ação e mantém-se enquanto persistir a antijuridicidade, que depende da vontade da arguida, independentemente da data em que passou a ser considerado resíduo ou lhe foi cancelada a respetiva matrícula. E, da Relação de Guimarães, acórdão de 03.12.2012 (processo 114/12.4TBCBT.G1): III – Comete uma contra-ordenação ambiental grave o proprietário de um veículo automóvel que o abandona na via pública, com intenção de se desfazer dele. [[7]] Acórdão da Relação de Évora, de 26.02.2013 (processo 228/12.0TBFAR.E1). |