Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
891/21.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL
NATUREZA SANCIONATÓRIA
EXCESSIVIDADE MANIFESTA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 810.º, N.º 1, E 812.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A cláusula inserta num contrato de compra e venda de títulos de biocombustíveis (TdB´s), ”em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado (…), a adquirente pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento” tem natureza sancionatória, destinada a castigar o não pagamento no prazo fixado, independentemente do direito ao recebimento do preço (parte) em falta.
II – A parte que pretenda a redução da cláusula penal terá de efetuar a alegação e prova dos factos que revelem a respetiva excessividade manifesta.

III – Limitando-se a devedora a formular expressões conclusivas e/ou com natureza jurídica sem carrear qualquer facto que permita aferir da excessividade da cláusula penal, o tribunal não pode apoiar a redução em fundamentos que não foram invocados – i) que o não pagamento dos TdB´s não acarreta prejuízos acrescidos ao seu preço de comercialização; ii) que o prejuízo máximo para a ré era a da multa pela entidade reguladora, quando, no que a este último respeita.

IV – Ainda que assim não se entendesse, esses fundamentos mostram-se irrelevantes para efeito da redução da cláusula penal, porquanto, no que atine ao último, se faz apelo a um “prejuízo máximo” que não resulta dos factos provados e, quanto ao primeiro, porque ignora que o incumprimento não se situa na desvalorização ou desaparecimento dos TdB´s, mas quanto ao pagamento do preço acordado para a sua venda, a envolver montantes tão significativos, cuja falta de pagamento tempestivo pode colocar em crise a situação de caixa ou financeira de qualquer empresa.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 891/21.1T8LRA.C1

Juízo Central Cível de Leiria – Juiz …

_________________________________

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

A..., SA, com sede em .... Lote ..., Porto ..., ..., ... (C.P. ... ...), matriculada na Conservatória do Registo Comercial ..., com o número único de registo e de pessoa coletiva ...03,

intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra

B..., LDA., com sede em Zona Industrial ..., Rua ..., ..., da união de freguesiasde ..., concelho ..., ... ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de registo e de pessoa coletiva ...27,

pedindo, a título do incumprimento dos contratos de compra e venda que referenciou, a condenação da Ré a pagar à A

a) com referência ao contrato celebrado em 30/04/2020, identificado nos artigos 4.º a 20.º desta p.i., do valor de € 236.528,16, correspondente ao valor da cláusula penal, bem como nos respetivos juros de mora, calculados sobre o referido valor, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 25/09/2020 e até integral pagamento, e que à data de 10/03/2021, ascendem ao valor de € 4.302,87 (quatro mil trezentos e dois euros e oitenta e sete cêntimos); e,

b) com referência ao contrato celebrado em 31/07/2020 e identificado nos artigos 21.º desta p.i

1. do valor de € 75.952,00 (setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros), correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da p.i. (€ 455.712,00) e o valor pago em outubro de 2020 (€ 379.760,00) referido no artigo 43.º, bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento, que à data de 10/03/2021 ascendem ao valor de € 1.107,03 (mil cento e sete euros e três cêntimos);

2. do valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros) referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento e que, à data de 10/03/2021, ascendem ao valor de € 4.994,10 (quatro mil novecentos e noventa e quatro euros e dez cêntimos)”.


*

A Ré contestou defendendo, no que ainda subsiste para apreciação, nada dever à A., mostrando-se as cláusulas penais inseridas nos contratos em causa, como manifestamente abusivas, exageradas e desproporcionadas face ao equilíbrio da relação entre as partes, contendo em si uma desproporção sensível, evidente e substancial da pena relativamente ao risco/dano a ressarcir.

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Saneado o processo e realizado o julgamento, foi proferida sentença contendo o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a ação e condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 10.713,69 (dez mil setecentos e treze euros e sessenta e nove cêntimos) a título de cláusula penal pelo incumprimento dos contratos dos autos, e absolvo a ré dos restantes pedidos contra si formulados”.

                                                                  *

A A. interpôs recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:”

A. O presente recurso é limitado à parte em que o Tribunal a quo absolveu a ré do pagamento do valor de € 75.952,00 (setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros), correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da petição inicial (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00), bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento, e do valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros) referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento e que, à data de 10/03/2021;

B. O Tribunal a quo errou ao considerar que nos presentes autos “… importa apurar se a ré é devedora à autora das quantias que reclama, sendo que tais quantias referem-se quer à falta de pagamento, de falta de pagamento atempado, e do pagamento de cláusula penal acordada para o incumprimento.”;

C. Em relação ao contrato de compra e venda de Títulos de Biocombustíveis, celebrado em 31/07/2020, o que estava pedido era a condenação da autora no pagamento do remanescente da cláusula penal e no pagamento da segunda prestação do preço que se tinha vencido em 20/08/2020;

D. A cláusula penal prevista no contrato celebrado em 31/07/2023, além de livremente acordada pelos outorgantes do contrato de compra e venda, foi expressamente aceite pela ré aquando do incumprimento e resolução do contrato, e por ela cumprida ainda que de forma parcial, tal como ficou provado – facto provado n.º 15;

E. Tendo as partes acordado na imputação do pagamento ocorrido em 28/10/2020 no pagamento da cláusula penal – facto provado n.º 16 -, não podia o Tribunal a quo vir alterar essa mesma imputação em sentido contrário ao que havia sido acordado, quando tal não havia sido pedido, dizendo que naquela data a ré havia pago a segunda prestação do preço;

F. O Tribunal a quo faz, assim, uma errada interpretação dos factos, havendo contradição entre os factos dados como provados e a decisão proferida;

G. O tribunal a quo faz uma errada aplicação do direito aos factos dados como provados, nomeadamente quanto ao regime da liberdade contratual, previsto no artigo 405.º do C.C. e o regime da imputação do cumprimento, previsto nos artigos 783.º a 785.º do C.C”.

Rematou pedindo a revogação da decisão recorrida e a substituição por outra que julgue procedente o pedido de condenação da recorrida no pagamento de

a) € 75.952,00 (setenta e cinco mil novecentos e cinquenta e dois euros), correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da petição inicial (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00), bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento, e

b) € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros) referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento e que, à data de 10/03/2021”.

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A Ré não respondeu.
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 Dispensados os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção prévia dos contributos e dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II-Objeto do recurso
Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).
No caso, face às conclusões avançadas, a única questão a apreciar e decidir, é a de saber se, relativamente ao contrato celebrado em 31.07.2020, são devidos à A. as quantias de
- € 75.952,00, correspondente à diferença do valor da cláusula penal identificada no artigo 38.º da petição inicial (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00), bem como respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dívidas comerciais, desde 28/10/2020 e até integral pagamento,
- € 379.760,00 referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado, e melhor identificado nos artigos 25º, acrescido dos respetivos juros de mora calculados, à taxa legalmente fixada para as dividas comerciais, desde 10/11/2020 e até integral pagamento.
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III-Fundamentação

Com vista à incursão na questão objeto de recurso, importa, antes de mais, transpor a factualidade que na decisão recorrida foi dada como provada, e que é a seguinte:

<<1. A A no exercício da sua atividade dedica-se, entre outras, a produção e comercialização de biocombustíveis e a R, no exercício da sua atividade dedica-se, entre outros, à comercialização de petróleo bruto e seus derivados.

2. No âmbito das suas atividades A e R, no ano de 2020, celebraram dois contratos de compra e venda de Títulos de Biocombustíveis, mediante os quais a R comprou à A, e esta vendeu, Título de Biocombustíveis que daqui em diante apenas serão designados por TdB’s.

3. Em 30/04/2020, A e R celebraram um contrato de compra e venda de TdB’s, mediante o qual a A vendeu à R, pelo preço total de € 2.093.600,00 (dois milhões, noventa e três mil e seiscentos euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, 2.617 (dois mil seiscentos e dezassete) Tdb’s.

Nos termos do número um da cláusula terceira, o preço seria pago em três prestações, sendo a primeira, no valor de € 500.000,00 (quinhentos mil euros), paga no dia da assinatura do contrato, a segunda, no valor de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), seria paga no prazo de 20 dias após a assinatura do contrato, ou seja até 20 de maio de 2020, e, a terceira prestação, no valor de € 1.075.128,00 (um milhão, setenta e cinco mil e cento e vinte e oito euros), seria paga no prazo de 45 dias após a assinatura do contrato, ou seja até ao 14 de Junho de 2020.

4. Autora e ré fixaram no número dois da cláusula segunda do contrato que “Em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado nas alíneas b) e c) supra, a B... pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento para além dos 20 e dos 45 respetivamente.”.

5. Apesar das diversas interpelações feitas pela A à R, quer por contacto telefónico quer por mail, para que procedesse ao pagamento das prestações nas datas acordadas a R não pagou a terceira prestação em 14 de junho de 2020, mas apenas em 26/06/2020.

6. A A, em 25/09/2020, emitiu a competente fatura – fatura n.º ...87, no valor de € 236.528,16 (duzentos e trinta e seis mil quinhentos e vinte e oito euros e dezasseis cêntimos), que enviou à R., que a recebeu e não reclamou ou devolveu.

7. Em 31 de Julho de 2020, A e R celebraram um novo contrato de compra e venda de TdB’s, através do qual, pelo preço total 512.000,00 (quinhentos e doze mil euros), acrescido de IVA à taxa legal de 23%, a A vendeu à R 800 (oitocentos) TdB’s,

8. Em 31/07/2020, a autora emitiu a competente fatura em nome da R, no valor total de 629.760,00 (seiscentos e vinte e nove mil setecentos e sessenta euros).

9. Os 800 (oitocentos) TdB foram entregues à R no dia da assinatura do contrato.

10. Nos termos do número um da cláusula terceira do identificado contrato, o preço deveria ser pago em duas prestações, a primeira em 04/08/2020, no valor de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), e a segunda no valor de € 379.760,00 (trezentos e setenta e nove mil setecentos e sessenta euros), deveria ser paga no prazo de 20 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja até ao dia 20/08/2020.

11. A primeira prestação do pagamento do preço no valor de € 250.000,00 foi paga pela R em 04/08/2020, tendo a A emitido o competente Recibo

12. Em 20/08/2020, a ré não pagou a segunda prestação, no valor de € 379.760,00.

13. Em 26 de outubro de 2020, como a R não havia, ainda, feito a transferência do valor correspondente à segunda prestação do pagamento do preço do contrato assinado em 31 de julho de 2020, a autora, como se verificava já um atraso superior a 60 dias desde a data de vencimento da segunda prestação, procedeu à denúncia do acordo de venda de TdB’s.

Nos termos da qual, e nos termos do número quatro da clausula terceira do contrato, interpelou também a R para proceder à entrega dos TdB’s correspondentes ao valor em falta, ou seja para proceder à devolução de 482 (quatrocentos e oitenta e dois) TdB’s,

Já que, considerando que cada TdB tinha o custo de € 640,00, mais IVA, ou seja € 787,20 (setecentos e oitenta e sete euros e vinte cêntimos), e encontrava-se em divida o valor de € 379.760,00, este valor corresponde, de forma arredondada, a 482 TdB’s.

Interpelou, também, a R para nos termos do número dois da mesma cláusula proceder ao pagamento do valor de € 455.712,00 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil setecentos e doze euros), correspondente ao valor da cláusula penal, calculada nos termos ali previstos,

14. A carta a denunciar o contrato, atrás identificada, foi enviada pela A à R não só por carta registada com aviso de receção como também por mail enviado em 27/10/2020.

15. A R, através do seu representante Sr. AA, aceitando o seu incumprimento, solicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato,

16. Assim, e respondendo à proposta que lhe havia sido apresentada pelo referido Sr. AA, a A, através do seu colaborador BB, em 27/10/2020, envia um mail à R dizendo que “… aceitaremos dar mais 10 dias uteis de prazo para pagamento no pressuposto de que é feita hoje a transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€…” (doc. n.º 7, folha 3),

Tendo a R, em 28 de outubro de 2020, através da sua colaboradora CC, enviado um mail em que envia o comprovativo da transferência e dizendo “Segue nosso pagamento conforme acordado” e clarifica que os 10 dias uteis para pagamento do remanescente “… terminam a 10 Novembro.”

17. Apesar do que havia sido acordado com a A, a R inscreveu no descritivo da transferência do valor de € 379.760,00, “...”,

18. A A logo que reparou no “lapso” ocorrido, pois que havia sido acordado que o pagamento seria para pagar parte da cláusula penal, através do referido BB enviou 28/10/2021, um mail à R com essa mesma referência

19. A R. encontrava-se com algumas dificuldades económicas, mas tentou sempre continuar com o negócio e cumprir com as suas obrigações.

20. A R. em 23 de Dezembro de 2020, apresentou-se a um Processo Especial de revitalização, o qual corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Leria - Juízo ..., no Processo n.º 4261/20...., tendo sido proferida sentença homologatória do plano em a 04-06-2021, transitada em julgado a 05-07-2021>>.

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Perante a factualidade dada como provada, é inequívoco terem as partes celebrado dois contratos de compra e venda de títulos de biocombustíveis (TdB´s), ou seja, de certificados representativos de uma tonelada equivalente de petróleo (tep) de biocombustível destinado ao mercado nacional, os quais são emitidos pela ENSE, EPE e transacionáveis nos termos legalmente previstos (cfr. art. 40.º e 41.º do Decreto-Lei n.º 84/2022, de 9 de dezembro).
Ao presente recurso interessa apenas o contrato celebrado em 31.07.2020, respeitante a 800 TdB´s.
Nos termos acordados entre as parte, o preço respeitante a esse contrato, o preço (€ 512.000, acrescido de IVA) devia ser pago em 2 prestações: € 250.000 até 04.08.2020 e € 379.760 no prazo de 20 dias a contar da data da assinatura do contrato, ou seja até ao dia 20/08/2020.
Ficou estabelecido nesse contrato que “em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado (…), a B... pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento” (cfr. cláusulas 3.ª, n.º 2).
A segunda prestação, que, recorde-se, devia ter sido paga até 20.08.2020, não o foi, o que motivou a A. a, por comunicação de 26.10.2020, “denunciar” o contrato.
Denuncia essa com apoio na cláusula 3.ª, n.º 4 e que prevê “após o decurso de 60 dias após o término do prazo de pagamento, sem que o valor total se encontre pago, o incumprimento da B... confere ainda à A... o direito de denunciar unilateralmente o contrato e reaver os TdB´s correspondentes ao valor em dívida”.

A A. arrogava-se então de ser credora dos montantes de € 379.760 (correspondente à prestação em falta) e de € 455.712 (valor da cláusula penal), tendo ainda interpelado a Ré para restituir 482 TdB´s [preço em falta (€ 379.760) a dividir pelo valor de cada TdB (787,20, IVA incluído)].

A este posicionamento da A. respondeu a Ré solicitando à A. que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s mediante o pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato[2].

Ou seja, a Ré aceitou de forma inequívoca pagar os valores reclamados pela A. (€ 835.472,60 - preço e cláusula penal), desde que mantivesse os 482 TdB´s.

A A. aceitou essa contraproposta, na condição de, no próprio dia, ser efetuada pela Ré a “transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€”[3].

A A. cumpriu essa condição transferindo para a Ré o aludido montante de € 379.760, vinculando-se ainda a efetuar o pagamento do remanescente no prazo de 10 dias que “terminam a 10 Novembro”.

Ou seja, a ser válida e não passível de alteração a cláusula penal, na estrita observância da vontade das partes, assiste à A. o direito ao recebimento dos montantes de:

- € 75.952, correspondente à diferença do valor da cláusula penal (€ 455.712,00) e o valor pago em 28 de outubro de 2020 (€ 379.760,00),

- € 379.760 referente à segunda prestação do pagamento do preço acordado.

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Como acima se referiu, as partes estabeleceram no contrato que ”em caso de incumprimento do prazo de pagamento estipulado (…), a B... pagará, a título de cláusula penal, uma penalidade de 2,0% sobre o valor em dívida por cada dia de atraso no pagamento” (cfr. cláusula 3.ª, n.º 2).

O Sr. Juiz, depois de assumir estarmos em presença de uma cláusula penal com caráter compulsório, e ser passível da redução a que se refere o art. 812.º do Código Civil, procedeu a essa redução para 10% ao ano com a seguinte fundamentação:

Neste aspeto há que referir que ao tomar contacto pela primeira vez com este processo pensei que os TdB´s seriam de uma raridade extraordinária que justificasse uma cláusula penal tão imensamente avultada: 2% ao dia. Realizado o julgamento fiquei com a convicção contrária. Os TdB´s nada têm de extraordinário e o que os torna valiosos na sua comercialização respeita à necessidade dos comercializadores de combustível terem que demonstrar junto das entidades reguladoras a incorporação de determinada percentagem de biocombustíveis. Tais biocombustíveis são adquiridos, e/ou os títulos (os TdB´s) aos fabricantes ou importadores. Uma vez que o cumprimento das obrigações referidas junto das entidades reguladores acorre a datas fixas, os comercializadores, no caso a ré, têm que adquirir os TdB´s em falta para preencherem a suas quotas com respeito ao combustível vendido. Como é natural, quanto mais próximo da data limite mais difícil é obter os TdB´s e maior o seu custo. Desta pequena, mas entendemos necessária exposição, resulta que o não pagamento dos TdB´s à autora, ou a sua não devolução não acarreta prejuízos acrescidos ao seu preço de comercialização. Ou seja, os TdB´s não desvalorizam ou se evaporam…

O prejuízo máximo para a ré era a da multa pela entidade reguladora (e que as testemunhas reputaram em 2000 por TdB em falta).

Posto isto, não conseguimos – e admitimos que o defeito seja nosso – aceitar como legítima uma cláusula penal como a fixada. Consideramos, pois, que tal cláusula é manifestamente excessiva, impondo-se, nos termos do disposto no art. 812.º, n. 1, do CC, a sua redução, de acordo com a equidade. Assim, atendendo ao valor dos juros moratórios legais para as operações comerciais e sem esquecer que as partes quiseram estabelecer uma penalidade pelo incumprimento, entendemos equitativa a redução da cláusula penal para 10% ao ano. A qual é já suficientemente penalizadora para a ré”.


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De acordo com o disposto no art. 810.º, n.º 1 do Código Civil, as partes podem fixar por acordo o montante exigível a título de indemnização do credor: é o que se chama cláusula penal.

Está em causa uma estipulação negocial que tem por objeto a fixação, em termos antecipados, das consequências do inadimplemento obrigacional imputável ao devedor (em qualquer das suas modalidades típicas, a saber, o incumprimento definitivo, o cumprimento defeituoso e a mora ou retardamento da prestação. A cláusula penal opera, neste sentido, no caso de ser violado culposamente o vínculo obrigacional e independentemente do tipo de dever inobservado (principal, secundário ou lateral)” – Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, Direito das Obrigações, 1.ª edição, págs. 1159 e 1160.

 É comumente reconhecido[4] que a cláusula penal pode ter, consoante a intenção das partes, uma função indemnizatória ou uma função sancionatória ou compulsória; no primeiro caso antecipa a indemnização devida em caso de incumprimento, independentemente da extensão dos danos, no segundo tem a finalidade de constranger o devedor ao cumprimento, agravando o efeito do incumprimento (cumulando o seu valor com a execução específica ou com a indemnização devida pelo incumprimento).

No caso, não parecem restar dúvidas que com a convenção em apreço as partes pretenderam estabelecer uma cláusula penal moratória, com natureza sancionatória, com vista ao pagamento pontual do preço; ou seja, destinada a castigar a Ré pelo não pagamento no prazo fixado, independentemente do direito da A. ao recebimento do preço (parte) em falta[5].

 Contudo, relativamente a essa cláusula penal, como já se disse, o tribunal, recorrido, invocando o disposto no art. 812.º, n.º 1 do Código Civil, procedeu à sua redução, por a considerar manifestamente excessiva (no seguimento do pedido efetuado pela Ré na contestação - art. 35.º dessa peça processual).

Fê-lo, com dois argumentos:

- o não pagamento dos TdB´s à autora, ou a sua não devolução não acarreta prejuízos acrescidos ao seu preço de comercialização. Ou seja, os TdB´s não desvalorizam ou se evaporam…

- o prejuízo máximo para a ré era a da multa pela entidade reguladora (e que as testemunhas reputaram em 2000 por TdB em falta).

Salvaguardado o devido respeito, estes argumentos, sendo os únicos que este tribunal pode sindicar, não se apresentam convincentes.

Antes de mais porque se faz apelo a um “prejuízo máximo” que não resulta dos factos provados (terá sido afirmado pelas testemunhas, mas não consta do elenco dos factos provados).

Ainda que assim não fosse, o dano de € 2.000 por TdB implicaria, relativamente ao contrato sob apreciação, o montante de € 964.000 (482x2000), muito superior ao valor ao reclamado na cláusula penal acionada.

Por outro lado, olvidou-se que o incumprimento não se situa quanto aos TdB´s (sua desvalorização ou desaparecimento), mas quanto ao pagamento do preço acordado para a sua venda, a envolver montantes tão significativos, cuja falta de pagamento tempestivo pode colocar em crise a situação de caixa ou financeira de qualquer empresa (o que eventualmente justificará a dimensão da penalização).

Por outro lado, é entendimento maioritário[6] que a parte que pretenda a redução da cláusula penal terá de efetuar a alegação e prova dos factos que revelem a sua excessividade manifesta (v.g. Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, págs. 735 a 737, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., pág. 81, Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 275, e na jurisprudência os acórdãos do STJ de 12.09.2013, de 18.01.2018, e de 19.06.2018; da Relação de Guimarães de 04.06.2020 e da Relação do Porto de 3.03.2016, de 5.05.2016, de 26.10.2017 e de 23-01-2020, todos disponíveis in www.dgsi.pt.).   

Ora, a este propósito, a Ré limitou-se a formular expressões conclusivas e/ou com natureza jurídica (cfr. arts. Arts. 35 a 41.º e 56.º da contestação), sem carrear qualquer facto que permita concluir no sentido proposto, o que sempre impediria o tribunal de apoiar a decisão nos argumentos que serviram de suporte à redução operada.

Do exposto se deve concluir no sentido da procedência do recurso nesta parte, com a revogação da decisão no segmento em que procedeu à redução da cláusula penal relativa ao incumprimento do contrato de 31.07.2020.

Assim, a título de cláusula penal, é devido o montante global de €455.712 (e não de € 7.179,02 concedido na sentença, pelo incumprimento do contrato de 31.07.2020.

                                                      *

Resta para apreciação a questão dos juros moratórios reclamados “sobre o montante de € 75.952,00 desde 28/10/2020 e até integral pagamento, e sobre o montante de € 379.760,00 desde 10/11/2020 e até integral pagamento”).

Na decisão recorrida, para negar o direito da A. ao recebimento dos juros, considerou-se que visando “a cláusula penal uma compulsão ao cumprimento, (…) o pagamento efetuado pela ré deve ser imputado ao cumprimento da obrigação e não da cláusula penal”.

Importa antes de mais assinalar que do que se trata não é cumular a indemnização pelo incumprimento do contrato com a cláusula penal (a este propósito Calvão da Silva, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, págs. 258/259), mas a indemnização pelo incumprimento do pagamento da própria cláusula penal, sendo que quanto a esta, tratando-se de obrigação pecuniária, a lei presume (iuris et iure) que há sempre danos pela mora (art. 806.º, n.º 1 do Cód. Civil).

Ora, independentemente da imputação do pagamento de € 379.760 no valor da cláusula penal (€ 455.712), tendo ficado expressamente convencionado entre as partes, na sequência da comunicada denúncia, que a Ré podia efetuar o pagamento do remanescente em dívida (€ 455,712), até ao dia 10.11.2020[7], não tendo ocorrido esse pagamento, consequentemente, são devidos juros a partir dessa data (e não já desde 28.10.2020 sobre a quantia de € 75.952)[8].

Procede, assim, embora parcialmente, o recurso interposto.


Sumário[9]:
(…).

                                                                    *

IV - DECISÃO.

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, consequentemente, para além da condenação da Ré a pagar à A. a quantia de € 3.534,67 (três mil quinhentos e trinta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), a título de cláusula penal devida pelo incumprimento do contrato celebrado em 30.04.2020 (já anteriormente decidida), revoga-se a decisão recorrida na parte objeto de impugnação, condenando-se também a Ré a pagar à A., pelo incumprimento do contrato de 31.07.2020, a quantia global de € 455.712 (quatrocentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e doze euros), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, às sucessivas taxa de juros comerciais aplicáveis, contados desde 10.11.2020.

                                                                      *

Custas pela recorrida, mostrando-se irrelevante, para efeitos do recurso, o decaimento da recorrente na parte respeitante aos juros entre 28.10.2020 e 10.11.2020 sobre o montante de € 75.952 (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2 do CPC).

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Coimbra, 13 de dezembro de 2023


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(Paulo Correia)

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(Helena Maria Carvalho Gomes Melo)

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(Arlindo Oliveira)



[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Helena Maria Carvalho Gomes Melo e Arlindo Oliveira

[2] - Cfr. facto 15 “A R, através do seu representante Sr. AA, aceitando o seu incumprimento, solicitou à A que lhe permitisse ficar com os 482 TdB’s e que procederia ao pagamento da cláusula penal e da 2ª prestação do contrato”.

[3] - Cfr. facto provado 16 -  “Assim, e respondendo à proposta que lhe havia sido apresentada pelo referido Sr. AA, a A, através do seu colaborador BB, em 27/10/2020, envia um mail à R dizendo que “… aceitaremos dar mais 10 dias uteis de prazo para pagamento no pressuposto de que é feita hoje a transferência de 379.760€ e de que esse valor será usado, primeiramente, para abater ao montante associado à cláusula penal, que se cifra no valor de 455.712€…” e “só com a confirmação de que transferiram hoje com a confirmação de receção do valor nas nossas contas amanhã é que daremos por suspenso o envio da nota de denúncia do contrato e respetiva devolução de TdB`s à ENSE (doc. n.º 7, folha 3).
[4] - Por todos o acórdão do STJ de 28.03.2017
[5] - Por não ter sido peticionado qualquer valor a esse propósito, abstemo-nos de apreciar a questão de saber se, para além da cláusula penal, assistia à A. o direito ao recebimento cumulativo da indemnização geral (no caso, correspondente aos juros de mora relativos ao período de incumprimento sobre a parte do preço em falta - art. 806.º do Código Civil).
[6] - Cfr. Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág. 1175.

[7]- De acordo com os factos provados “Tendo a R, em 28 de outubro de 2020, através da sua colaboradora CC, enviado um mail em que envia o comprovativo da transferência e dizendo “Segue nosso pagamento conforme acordado” e clarifica que os 10 dias uteis para pagamento do remanescente “… terminam a 10 Novembro”.
[8] - Como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2020 (processo 1059/19.2T8OVR.P1), também a “A mora no pagamento da cláusula compulsória confere ao credor o direito a juros moratórios, nos termos dos arts. 804.º e 806.º CC”.
[9] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).