Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
91/12.1TAFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: INSTRUÇÃO CRIMINAL
REQUERIMENTO
FORMALIDADES
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, Nº 3, B) E C), 287º, N.º S 2 E 3, DO CPP
Sumário: 1. - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público em procedimento por crime público ou semi-público, deve estruturar-se como uma verdadeira acusação, implícita e alternativa, contendo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) e c), do C. Processo Penal, a narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, desta forma definindo o objeto da instrução;

2. - A omissão da narração dos factos no requerimento determina a sua rejeição, nos termos do art. 287º, nº 3, do C. Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução por falta de objeto;

3. - Tendo o requerimento instrutório do assistente omitido por completo a narração dos factos pelos quais deveriam os arguidos ser pronunciados e sujeitos a julgamento, não merece censura o despacho recorrido que o rejeitou.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
 
I. RELATÓRIO


No Processo nº 91/12.1TAFIG que corre termos no Tribunal Judicial da comarca da Figueira da Foz, no qual é ofendido A... , foi proferido pelo Digno Magistrado do Ministério Público, em 7 de Setembro de 2012, despacho de arquivamento dos autos.

O ofendido requereu em 11 de Janeiro de 2013 a sua constituição como assistente e a abertura da instrução.
Por despacho de 15 de Fevereiro de 2013 foi o ofendido A... admitido a intervir nos autos como assistente.

Remetidos os autos a juízo, a Mma. Juíza do 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca da Figueira da Foz, por despacho de 13 de Março de 2013, rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente.
  
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Inconformado com a decisão, recorre o assistente, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1 – O despacho recorrido fez uma interpretação restritiva das normas contante do artigo 287" n° 2 do CPP, sustentando que o requerimento de abertura de instrução deve conter todos os requisitos exigidos para a dedução da acusação.
2 – Ao contrário do referido no douto despacho recorrido, o requerimento de abertura de instrução menciona o nome completo dos arguidos (artigo XXXII), referindo ademais vários aspectos que conduzem ao seu reconhecimento inequívoco (vide artigo V, VI,VII, III, XVI).
3 – Tais indicações são bastantes para proceder à identificação dos arguidos, já que dos autos consta a sua identificação completa, tendo sido contra aqueles que correu inquérito e que, como tal, foram constituídos arguidos.
4 – Uma acusação, e por conseguinte, um requerimento para abertura da instrução do assistente, só deve ser rejeitado, nos termos do art. 311, nºs 2 al. a) e 3 al. a), quando nele não constam as indicações estabelecidas na al. a), do nº 3 do art. 283, isto é, a norma apenas impõe que tais indicações sejam conducentes à identificação do arguidos e não que a mesma seja exaustiva.
5 – O requerimento de abertura de instrução interposto pelo recorrente cumpre os requisitos previstos no artº 283 nº 3 al. b) já que os factos descritos e a sua narração (constantes dos artigos V a XXI daquela peça processual), estão em perfeito respeito e concordância com o disposto no nº 2 do artigo 287 do CPP, os quais contêm factos e razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
6 – É certo que o recorrente não referiu o elemento subjectivo através de fórmula estandardizada mas também é certo que não deixou de referir que o comportamento dos arguidos foi intencional e ilícito (vide art. I), com o propósito de ilegitimamente provocar um dano no corpo do assistente (parte final do artº XXVIII).
7 – Não só o recorrente descreveu os factos, como alegou quais as disposições violadas, sendo perfeitamente inteligível o entendimento de quais os factos que estão em causa, e a razão pela qual o recorrente entende dever haver acusação, pelo que o requerimento de abertura de instrução deveria ter sido admitido.
8 – Nos termos da parte final do art. 287º nº 2 do CPP, o requerimento de abertura da instrução deve conter a indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo.
9 – O recorrente cumpriu tal normativo ao requerer a acareação entre a testemunha B... e os arguidos, já que julgou que o testemunho daquele foi totalmente desvalorizado para a decisão de acusar ou não.
10 – Assim, perece-nos não existir motivo para a rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
11 – A douta decisão recorrida violou o disposto nos artigos 283 e 287º do C.P.P.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso proceder e, consequentemente, ser o douto despacho recorrido substituído por outro que ordene a admissão do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, assim se fazendo a usual JUSTIÇA!
(…)”.
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            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido, alegando que o requerimento de abertura de instrução não obedece aos requisitos legais por não conter a narração sintética dos factos criminalmente relevantes, as circunstâncias de tempo e de lugar que permitiriam imputar os crimes aos arguidos, e concluiu pelo não provimento do recurso.
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Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, acompanhando a argumentação do Ministério Público junto da 1ª instância, e concluiu pelo não provimento do recurso.
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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
           
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


            Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
            Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, é a de saber se o requerimento de abertura de instrução padece de deficiência que determine a sua rejeição. 

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            Para tanto, importa ter presente o teor do despacho recorrido, que é o seguinte:
            “ (…).
I
                A..., assistente,
Veio requerer a abertura da instrução relativamente ao despacho de arquivamento do Ministério Público de fls. 86 a 92 dos autos, fundamentado na inexistência de elementos que permitam concluir pela verificação do ilícito típico de ou de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento, nos termos do artigo 27?O n.? 1 do Código Processo Penal,
Pretendendo a pronúncia do arguido pelos factos que alega a f1s.11 O a 112 dos autos e que qualifica como um crime de ofensas à integridade física simples e de um crime de abuso de poder.
II
Da existência de questões prévias, nulidades ou excepções que obstem ao conhecimento do mérito da instrução:
De acordo com o disposto no art. 287° do CPP, sob a epígrafe "Requerimento para abertura da instrução":
"1 – A abertura da instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.°, n.º 3, alíneas b) e c).
Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 – O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução ( ... )" – sublinhado nosso.

Por sua vez, o art. 308° do CPP, sob a epígrafe "Despacho de pronúncia ou não pronúncia" dispõe:
"1 – Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2 – É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto no artigo 283°, nºs 2, 3 e 4, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior. (…)".

O art. 283° do CPP sob a epígrafe "Acusação pelo Ministério Público" dispõe: " (…)
3 – A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) …
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)" – sublinhado nosso.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o art. 303° do mesmo diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n° 3 desse artigo que um alteração substancial do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Destes preceitos resulta que o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente é mais do que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento, uma vez que para esta existe a reclamação hierárquica, ou um meio de requerer actos de instrução ou novos meios de prova. Na verdade, o objecto da instrução requerida pelo assistente é fixado pelo respectivo requerimento de abertura. Como tal, pese embora não esteja sujeito a formalidades especiais, deve, não obstante, conter, em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar. O requerimento de instrução deve ainda conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Se o requerimento de abertura de instrução não contiver tais elementos de fundamentação, para além de ser nulo, nos termos do art. 283° n.º 3 do CPP, fica a instrução sem objecto. Não sendo a fase de instrução um novo inquérito é essencial que contenha um objecto delimitado, em relação ao que consta da acusação ou do despacho de arquivamento.
A omissão no requerimento do assistente da identificação do arguido ou da narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao mesmo de uma pena ou de uma medida de segurança ou das disposições legais aplicáveis é motivo de rejeição da acusação por inadmissibilidade legal (art. 287° n.º 3 do CPP).
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, num número significativo de decisões, que a admissão do requerimento para abertura da instrução que não contenha a identificação do arguido, ainda que por remissão para o local do processo onde ela conste, a narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, implica a prática de actos inúteis em violação do art. 137º do CPC, aplicável por força do art. 4° do CPP.

A este respeito podem ler-se, entre outros, os seguintes acórdãos:
Acórdão do SJT de 12.03.2009, em www.dgsi.pt.:
I – A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento.
II – A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução.
III – Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 137.° CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4.° do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal.
IV – Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311.°, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420.°, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.
V – Dado o paralelismo entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente, deve aquilatar-se da possibilidade de aplicação ao requerimento para abertura da instrução do disposto no art. 311.°, que considera manifestamente infundada a acusação: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.
VI – Se o requerimento para abertura de instrução requerida pelo assistente não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta, a instrução será inexequível e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis.
VII – De igual modo, se, pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, estaremos face a uma fase instrutória inútil, por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia.
VIII – No conceito de "inadmissibilidade legal da instrução", haverá, assim, que incluir, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.
Acórdão do STJ de 07.05.2008, em www.dgsi.pt.:
I – No caso de ter sido proferido despacho de arquivamento, o requerimento de abertura de instrução determinará o objecto desta, definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como os da decisão de pronúncia.
II – Atento o paralelismo que se estabelece entre a acusação e o requerimento para abertura de instrução deduzido pelo assistente na sequência de um despacho de arquivamento, sendo que tal requerimento contém substancialmente uma acusação, deverá o mesmo conter a narração dos factos e indicar as provas a produzir ou a requerer, tal como para a acusação o impõe o art. 283.°, n.º 3, ais. b) e d), do CPP.
III – Na verdade, substanciando o requerimento de abertura de instrução uma manifestação de discordância em relação a um despacho de arquivamento, e sendo o essencial da fase de instrução o controlo da acusação – quer tenha sido deduzida pelo MP quer pelo assistente –, a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação), terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real.
IV – A exigência de rigor na delimitação do objecto do processo – note-se que a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao MP no momento em que acusa –, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
V – É, pois, de rejeitar, por inadmissibilidade legal, «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, a pôr em crise a sua credibilidade e a evidenciar contradições, e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (cf. Ac. deste STJ de 22-03-2006, Proc. n.º 357/05 – 3.ª).
VI – No caso em apreciação, verificando-se que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente não se apresenta estruturado como uma acusação, da qual conste a narração, ainda que sumária, dos factos e a indicação dos ilícitos criminais que o assistente imputa a cada um dos denunciados, e pelos quais entende deverem os mesmos ser pronunciados, antes se mostrando delineado como um recurso do despacho de arquivamento elaborado pelo MP, mostra-se correcta a decisão recorrida de rejeitar a instrução. Com efeito, a omissão dos elementos de facto, a inobservância dos requisitos de uma acusação, em que no fundo e estruturalmente se deve converter o requerimento, conduzindo à não formulação e delimitação do thema probandum, fazem com que a suposta acusação, pura e simplesmente, falte, não exista, ficando a instrução sem objecto.
VII – Por outro lado, é entendimento deste STJ, conforme acórdão de fixação de jurisprudência n.° 7/2005, de 12-05-2005 (Proc. n.° 430/2004 – 3.ª), publicado no DR n.º 212, Série I-A, de 04-11-2005, que não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.°, n.º 2, do CPP, quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Acórdão do STJ de 18.06.2008 em www.dgsi.pt.:
I – No dizer da lei – art. 286.°, n. ° 1, do CPP –, «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
II – Segundo se extrai do n.º 2 do artigo seguinte, o requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. Quando o requerente da instrução é o assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o próprio, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido produzida, fundada nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do princípio do contraditório –, de acordo com os arts. 308.° e 309,°, ambos desse diploma.
Como escreve Germano Marques da Silva em "Do Processo penal preliminar" pág. 254 "O Juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser o objecto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui, substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP), que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial".

Assim, o requerimento para abertura da instrução formulado pelo assistente na sequência do despacho de arquivamento do MP equivale a uma acusação e tal como esta, define e limita o objecto do processo, que deve manter-se o mesmo até ao trânsito em julgado da decisão. A demarcação do objecto do processo, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.2002, na CJ, em www.colectaneajurisprudencia.com. baseia-se em duas ordens de fundamentos – "um inerente ao objecto imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e outro, implícito a uma finalidade mediata, mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do tribunal que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constitui uma garantia de defesa do arguido, possibilitando a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório".

Importa, agora, apurar se o requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente obedece aos requisitos legais.
Tal requerimento é formado artigos em que o assistente impugna os fundamentos do despacho de arquivamento do inquérito, formula juízos de valor e requer diligências de prova.

Porém, o requerimento de abertura da instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde ela consta.
Ora, de acordo com o disposto no art. 311º n.º 3, al. a) do CPP, a acusação considera-se manifestamente infundada e, como tal, deverá ser rejeitada, quando não contenha a identificação do arguido.
Somos assim do entendimento, na esteira do já exposto, que, valendo o requerimento de abertura de instrução como acusação, por ter sido requerida pelo assistente e, não contendo a identificação do arguido, a mesma é inexequível.
 
Por outro lado, o requerimento de abertura da instrução não contém a narração sintética dos factos (objectivos) criminalmente relevantes, as circunstâncias de tempo, lugar e a motivação na sua prática.

De referir ainda que o requerimento de abertura de instrução é omisso, na descrição factual, quanto ao elemento subjectivo – o dolo – em qualquer uma das diversas vertentes do dolo – directo, necessário e eventual – ou negligência – consciente ou inconsciente. E tal requisito é essencial para a punibilidade do comportamento do arguido.
Na esteira do exposto, a assistente deve pautar o requerimento de abertura de instrução às mesmas regras da acusação pública, por força do disposto no art. 287º n.º 3 do CPP, não podendo estar à espera que alguém supra as suas deficiências. Sendo que, por força do AUJ n.º 7/2005, não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
Com tudo isto não se quer dizer que o elemento subjectivo deva obedecer a uma fórmula estandardizada.
Quer-se apenas dizer que o assistente tem que descrever se o arguido agiu, vg. com o propósito de o ofender na sua integridade física e psíquica, bem como esclarecer se o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
Essa factualidade é essencial que conste da descrição, indispensável para que possa haver uma condenação pelo crime que é imputado ao arguido.

Sem prescindir: o assistente não indica quaisquer provas (as quais não se devem confundir com os actos instrutórios que o assistente pretenda que sejam levados a cabo) que possam vir a ser utilizadas em sede de julgamento (para prova dos factos invocados).
Ora, pode ler-se no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27 de Janeiro de 2011, em CJ. www.colectaneajurisprudencia.com. que "(…) é que muita doutrina e a maior parte da jurisprudência entendem integrar o conceito de inadmissibilidade legal as situações em que o requerimento de abertura da instrução não respeita o disposto no n° 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal. E assim se tem entendido porque a descrição dos factos que integram o tipo legal de crime imputado, quer o tipo objectivo, quer o tipo subjectivo, é fundamental dada a circunstância de vigorar entre nós, em pleno. o princípio da legalidade. Portanto, quando o requerimento de abertura de instrução seja omisso em elementos essenciais a consequência será a de rejeição por inadmissibilidade legal. Tenha-se presente que o Juiz não se pode substituir ao assistente e colocar, por sua própria iniciativa, os factos em falta, essenciais para a imputação de crime. Se assim procedesse não só violaria os princípios da igualdade, imparcialidade e independência, mas também extravasaria os seus poderes de cognição, limitados pelo conteúdo do requerimento de abertura de instrução. (…) Pode, pois, concluir-se que o requerimento de abertura de instrução deve ter a estrutura de uma acusação, devendo ser dirigido contra uma identificada pessoa ou entidade, e conter os elementos objectivos e subjectivos face aos quais se possa concluir que o arguido cometeu um ilícito penal, sob pena de rejeição por inadmissibilidade legal, de harmonia com o disposto no artigo 287°, n° 3, do Código de Processo Penal."

De todo o exposto resulta que o requerimento de abertura de instrução em apreço não contém a factualidade necessária para, em sede de audiência de julgamento, possibilitar a condenação do arguido.
Trata-se de uma deficiência do requerimento de abertura de instrução que dá lugar à rejeição da mesma.
III
                Pelo exposto, rejeito, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente.
                Custas a cargo do assistente que se fixa em 2UC.
            (…)”.
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*
1. A instrução, fase intermédia e facultativa do processo penal, tem por objecto a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1, do C. Processo Penal). No caso sub judice, tendo sido requerida pelo assistente, a instrução visou a comprovação judicial da decisão que ordenou o arquivamento do inquérito por procedimento não dependente de acusação particular.
Esta comprovação judicial resulta da conjugação e ponderação dos meios de prova produzidos – em sede de inquérito e na própria instrução – em ordem a ajuizar-se da existência ou não, de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança sendo, a final, formalmente explicitada na decisão instrutória. Assim, dispõe o art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal – código a que pertencem todas as disposições legais citadas sem menção de origem – que, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. Por outro lado, consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (nº 2 do art. 283º, aplicável pela remissão do nº 2 do art. 308º).

Todavia, o presente recurso não tem por objecto a problemática da suficiência ou insuficiência dos indícios dos indícios mas antes, uma questão que lhe é prévia, qual seja, a de saber quais os requisitos essenciais do requerimento de abertura de instrução e a consequência da sua inobservância. Vejamos pois, quais são esses requisitos e qual a consequência da sua omissão.

1.1. Dispõe o art. 287º do C. Processo Penal, com a epígrafe, «Requerimento para abertura da instrução», no seu nº 2 e na parte que ora releva:
“ (…)
2 – O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (…)”.

Ainda que não esteja sujeito a formalidades especiais, todo e qualquer requerimento de abertura da instrução deve conter sempre, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância quanto à acusação ou não acusação.
No que especificamente respeita ao requerimento do assistente, a lei impõe ainda que dele constem as especificações previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 283º. E assim, do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente – que, como vimos, se destina a obter a comprovação judicial da decisão do Ministério Público em se abster de acusar em procedimento por crime público ou semi-público – deve obrigatoriamente conter, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, e ainda, a indicação das disposições legais aplicáveis

Neste segmento da narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, o requerimento de abertura de instrução do assistente, deve estruturar-se, substancialmente, como uma verdadeira acusação, implícita embora, como uma acusação alternativa à que, na perspectiva do requerente, foi mas não devia ter sido, omitida pelo Ministério Público.
E bem se compreende esta exigência. O objecto do processo é definido, brevitatis causa, pela acusação, pública ou privada, que nele tenha sido deduzida portanto, pelos concretos factos imputados ao arguido (cfr. art. 339º, nº 4). Com efeito, é a estrutura acusatória do processo penal e a salvaguarda das garantias de defesa do arguido que impõem a definição do thema decidendum e a sua tendencial imutabilidade. Ora, se o Ministério Público se absteve de acusar por crime público ou semi-público e o assistente pretende, ao requerer a instrução, que o arguido seja levado a julgamento, evidente se torna que será o respectivo requerimento a definir o objecto da instrução e portanto, a balizar não só o âmbito da investigação a levar a efeito pelo juiz de instrução como o da decisão instrutória. Com efeito, precisamente porque o juiz de instrução está sujeito à vinculação temática definida pelo requerimento de abertura de instrução, enquanto acusação alternativa, é que é nulo a decisão instrutória que pronuncie o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos naquele requerimento (art. 309º, nº 1).

Tem-se pois por assente que o requerimento de abertura de instrução do assistente se deve estruturar como uma acusação, dele devendo constar a narração, ainda que sintética, dos concretos factos imputados ao arguido.

1.2. E qual a consequência de o requerimento de abertura de instrução do assistente não ser substancialmente uma acusação, por ter omitido o quis, o quid, o ubi, o quibus auxiliis, o quomodo e o quando, definidores da exigível narração?
Nestes casos, haverá necessariamente que concluir que a instrução carece de objecto o que, independentemente de determinar ou não, a sua inexistência jurídica (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, 2ª Edição, pág. 151), conduz à sua inadmissibilidade legal (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, pág. 737).
E a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento (art. 287º, nº 3).

2. Aqui chegados, atentemos na forma como o assistente estruturou o seu requerimento instrutório.

Começaremos por dizer que não é absolutamente exacta a afirmação contida no despacho recorrido quanto a o requerimento de abertura de instrução não conter a identificação dos arguidos. Com efeito, no ponto XXXII do requerimento o assistente diz que «não podem os arguidos C..., D..., E... e F... deixarem de ser submetidos a julgamento para apurar as suas responsabilidades (…)». É evidente que nada mais escreveu o assistente designadamente, quanto a profissão, estado civil, naturalidade e data de nascimento, de cada um destes quatro cidadãos, quando tais elementos constam dos autos pois todos foram constituídos arguidos e identificados de forma plena, mas esta deficiência, apenas imputável ao requerente, não permite concluir pela falta de identificação do arguido mas apenas pela sua identificação incompleta.

Quanto à narração dos factos, ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, há que dizer que ela não foi feita no requerimento.
Com efeito, nos pontos II, III, IV, X, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XXII, XXIII, XXIV, XXV, XXX, XXXI, XXXII, XXXIII e XXXIV, o assistente limita-se a tecer considerações sobre os fins do inquérito, sobre a prova em julgamento, sobre a suficiência dos indícios, sobre o que no despacho de arquivamento se disse quanto a tal suficiência e quanto a causas de justificação, sobre os esquecimentos dos arguidos e o que podia ter sido evitado e não foi, e sobre a inadequação da conduta dos arguidos.
Já nos pontos V, VI, VII, VIII e IX o assistente discorre sobre o depoimento da testemunha por si indicada, B..., que entende em contradição com as declarações dos arguidos, quanto à existência de sinais identificativos nas viaturas da GNR, nos pontos XI, XII e XIII afirma que o teor do auto de contra-ordenação contra si emitido aponta para uma versão cozinhada, nos pontos XX e XXI discorre sobre o uso desproporcionado da força e nos pontos XXVI, XXVII e XXVIII discorre sobre a inadequação das lesões sofridas a pancada dada no pilar do carro ao sair do mesmo de forma forçada.
Tudo isto pode e deve ser entendido como a exposição das razões de facto e de direito que levam o assistente a discordar do despacho de arquivamento. Mas não mais do que isso.
 
Na verdade, o que seguramente não consta do requerimento de abertura de instrução é o local e a hora a que terão ocorrido os factos que o assistente pretende sujeitar a julgamento.
E se sabemos que estão em causa quatro arguidos, não consta do requerimento, quer a qualidade em que terão intervindo nos autos, quer a concreta actuação que qualquer deles desenvolveu.
Também não consta do requerimento a concreta forma como o assistente entende que foi agredido – a murro, a pontapé, com um qualquer instrumento – nem por quem – por um arguido, por dois, por todos – e igualmente não se encontra descrito o nexo de causalidade adequada entre tal ou tais condutas e as lesões sofridas [referidas, como se viu, a outro propósito].     
Finalmente, estando em causa, nos termos do requerimento, um crime de ofensa à integridade física, previsto no art. 143º, nº 1, e um crime de abuso de poder, previsto no art. 382º, ambos do C. Penal, ambos crimes dolosos, ainda que no ponto I se leia «existirem sérios indícios de que os arguidos tenham, de forma intencional e ilícita, ofendido a integridade física do assistente e praticado um abuso de autoridade» é evidente que daqui se não pode concluir pela existência da descrição factual do elementos subjectivo de cada um dos tipos de ilícito em questão.

Desta forma, não tendo o assistente, no requerimento de abertura de instrução que apresentou, dado cumprimento ao disposto nos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b), do C. Processo Penal, omitindo por completo a narração dos concretos factos que imputava aos arguidos, bem andou a Mma. Juíza de instrução em rejeitar o requerimento, nos termos do nº 3 do citado art. 287, por inadmissibilidade legal da instrução.
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3. Em síntese conclusiva:
- O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público em procedimento por crime público ou semi-público, deve estruturar-se como uma verdadeira acusação, implícita e alternativa, contendo, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 287º, nº 2 e 283º, nº 3, b) e c), do C. Processo Penal, a narração dos factos e indicação das disposições legais aplicáveis, desta forma definindo o objecto da instrução;
- A omissão da narração dos factos no requerimento determina a sua rejeição, nos termos do art. 287º, nº 3, do C. Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução por falta de objecto;  
- Tendo o requerimento instrutório do assistente omitido por completo a narração dos factos pelos quais deveriam os arguidos ser pronunciados e sujeitos a julgamento, não merece censura o despacho recorrido que o rejeitou.
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            III. DECISÃO


            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.
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            Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício com que litiga, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCS. (art. 515º, nºs 1, b) do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 2 de Outubro de 2013


 (Heitor Vasques Osório - Relator)
 (Fernando Chaves)