Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1097/12.6TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: RESOLUÇÃO DO CONTRATO
MODIFICAÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
REQUISITOS
Data do Acordão: 05/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 437º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal, e que (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio.

II - A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes.

Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

                1. RELATÓRIO

                P…, Lda., com sede na Avª …, intentou, em 02.07.2012, acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra F…, representado pela sociedade gestora denominada F…, S.A., com sede no …, pedindo que se declare a resolução do contrato promessa celebrado em 07.11.2005 e que se condene o Réu a pagar-lhe as quantias de € 187.510,00 e € 149.940,00, num total de € 337.450,00, acrescidas de juros de mora, à taxa supletiva para as operações comerciais, vencidos desde 07.11.2005 (que a Autora contabiliza, aquando da apresentação da petição, em € 207.132,44) e vincendos até efectivo e integral pagamento.

                Alegou, para tanto, factualidade que, em seu entender, integra alteração anormal das circunstâncias, fundamentadora da resolução, nos termos do artº 437º do Código Civil, do contrato promessa de compra e venda que, como promitente compradora, celebrou, em 07/11/2005, com o R., promitente vendedor.

O Réu contestou, pugnando pela falta de fundamento da acção e alegando factos tendentes a concluir pela sua improcedência.

A Autora replicou.

Realizou-se uma audiência preliminar, no âmbito da qual se decidiu pela inadmissibilidade da réplica e se procedeu ao saneamento e à condensação da acção.

Feita a instrução, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto.

O Réu apresentou alegações de direito.

Foi depois, em 11/09/2013, proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.

Inconformada, a A. interpôs recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

O recorrida respondeu, pugnando pela manutenção do julgado.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

                Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. Proc. Civil aplicável[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as seguintes questões:

                a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

                b) Nulidade da sentença;

                c) Existência (ou não) de alteração anormal das circunstâncias justificadora da resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado pelas partes.

                2. FUNDAMENTAÇÃO

                2.1. De facto

                2.1.1. Alteração da decisão sobre a matéria de facto

***

2.1.2. Factualidade assente

1. Por negócio celebrado em 07.11.2005 e assinado pelas partes, sob a epígrafe “contrato de promessa de compra e venda” constam entre outros os seguintes dizeres:

Promitente vendedor: F… adiante designado como primeiro contraente e

Promitente Compradora: P…, Lda neste acto representada pelo seu sócio gerente Sr…., adiante designada por segunda contraente,

Foi ajustado e reciprocamente aceite o contrato promessa de compra e venda constantes das cláusulas seguintes:

Primeira: 1.1.O F… é o proprietário e legitimo possuidor de uma urbanização denominada Quinta da P…, sita na freguesia de Santo António dos Olivais, em Coimbra, a qual foi aprovada pela emissão de alvará de loteamento n.º …, em 25.11.2002, pela Câmara Municipal de Coimbra, cujos parâmetros urbanísticos são do pleno conhecimento da segunda Outorgante; (…) 1.2. À segunda outorgante foi dado e tomou conhecimento de que o supra referido Alvará de Loteamento sofreu uma rectificação emitida pela Câmara Municipal de Coimbra em 12.08.2005, pela qual os lotes 6.5 e 6.6. passarão a ter os seguintes parâmetros urbanísticos: O lote 6.5. demarcado a vermelho na planta em anexo (anexo I) destinado à habitação tem a área de 997 m2, área bruta de construção acima da cota da soleira – 2.206,00 m2, n.º de pisos – 1 cv + 5p; n.º de fogos-15; n.º de estacionamentos privados: 18; o Lote 6.6. demarcado a vermelho na planta em anexo (anexo I), destinado a habitação, tem a área de 1.091,00 m2, área bruta de construção a cima da cota de soleira – 1.764,00 m2; n.º de pisos – 1 cv+4p; n.º de fogos-12; n.º de estacionamentos privados – 25; (…)

Segunda: Pelo presente contrato o primeiro contraente promete vender à segunda contraente e esta promete comprar, os lotes de terreno mencionados na cláusula anterior;

Terceira:

3.1.O preço da venda do Lote 6.5. é de €937.550,00 (novecentos e trinta e sete mil, quinhentos e cinquenta euros) a ser pago pela segunda contraente ao primeiro contraente, nos seguintes prazos e condições:

3.2. A quantia de €187.510,00 (cento e oitenta e sete mil quinhentos e dez euros) com a assinatura do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento, do qual se dá através deste contrato a respectiva quitação;

3.3. A parte restante do preço, ou seja, a quantia de €750.040,00 (setecentos e cinquenta mil e quarenta euros) a liquidar na data da outorga da escritura pública;

3.4. O preço de venda do Lote 6.6. é de €749.700,00 (setecentos e quarenta e nove mil e setecentos euros) a ser pago pela segunda contraente ao primeiro contraente nos seguintes prazos e condições:

3.5. A quantia de €149.940,00 (cento e quarenta e nove mil novecentos e quarenta euros), com a assinatura do presente contrato, a título de sinal e princípio de pagamento do qual se dá através deste contrato a respectiva quitação;

3.6. A parte restante do preço, ou seja, a quantia de €599.760 (quinhentos e noventa e nove mil setecentos e sessenta euros) a liquidar na data da outorga da escritura pública;

3.7. Qualquer pagamento por cheque produz efeitos contratuais é subordinado à cláusula “salvo boa cobrança”;

Quarta: 4.1. A escritura pública de compra e venda dos referidos lotes será celebrada até 31 de Março de 2006 e após a notificação da Câmara Municipal de Coimbra da aprovação dos projectos de licenciamento e as licenças se encontrarem a pagamento; 4.2. Se por dificuldades burocráticas e ou documentais a rectificação do Alvará do Loteamento identificado na cláusula 1.2. não for registado no prazo supra referido de 120 dias após a assinatura do presente CPCV, o prazo para a marcação da escritura pública de compra e venda poderá ser prorrogado por mais 120 dias; 4.3. A marcação da escritura de compra e venda competirá ao primeiro contraente, o qual deverá avisar a segunda contraente da data, hora e local da escritura com antecedência mínima de 15 (quinze) dias. 4.4. A segunda contraente deverá, nos dez dias posteriores à expedição da comunicação para a escritura referida, fornecer ao primeiro contraente toda a documentação necessária, nomeadamente, conhecimento do IMT, documentação de isenção, certidões de registo comercial ou de identificação de quem outorgara na escritura (…);

Nona: 9.1. Nada foi convencionado entre as partes contraentes, directa ou indirectamente relacionado com a matéria do presente contrato, para além do que fica escrito nas suas cláusulas; 9.2. Quaisquer alterações a este contrato só serão válidas desde que convencionadas por escrito com menção expressa de cada uma das cláusulas eliminadas e da redacção que passa a ter cada uma das aditadas ou modificadas.” (Alínea A) dos factos assentes).

2. A autora intentou acção judicial no Tribunal da Marinha Grande, que correu termos sob o n.º …, peticionando o sinal prestado em dobro, acção essa que veio a ser julgada improcedente entendendo-se que, não havendo mora, não poderia a Autora ter lançado mão da interpelação admonitória assim se absolvendo o Réu do pedido, tendo tal transitado em julgado em 17.01.2012. Em tal acção foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia 7 de Novembro de 2005, Autora e Réu, celebraram um contrato promessa de compra e venda, mediante o qual o réu prometeu vender e a autora prometeu comprar dois lotes de terreno designados, respectivamente, por Lote 6.5 e Lote 6.6., de uma urbanização denominada Quinta da P…, sita na freguesia de Santo António dos Olivais, em Coimbra, aprovada pela emissão do Alvará de Loteamento n.º …, em 25.11.2002, pela Câmara Municipal de Coimbra, rectificado em 12.08.2005 pela mesma entidade, com os seguintes parâmetros urbanísticos:

- o lote 6.5., destinado a habitação com a área de 977,00m2, área bruta de construção acima da cota da soleira de 2.206,00m2, composto de uma cave e cinco pisos, com 15 fogos e 18 estacionamentos privados;

- o lote 6.6., destinado à habitação, com a área de 1.901,00 m2, área bruta de construção acima da cota de soleira de 1.794,00 m2, composto de uma cave e quatro pisos com 12 fogos e 25 estacionamentos privados;

2. No referido contrato, a Autora declarou ter pleno conhecimento dos parâmetros urbanísticos constantes do Alvará de Loteamento n.º 495, e que tal Alvará sofreu uma rectificação emitida pela Câmara Municipal de Coimbra em 12.08.2005;

3. A Autora declarou ainda, no dito contrato, ter conhecimento e aceitar que a rectificação ao Alvará de Loteamento referida em 2 não foi registada na competente Conservatória de Registo Predial de Coimbra;

4. Declararam ainda, autora e réu, que a área de construção constante do dito contrato manter-se-á a mesma, no entanto, se houver alteração para mais ou para menos o valor final será acertado de acordo com o preço por m2, sendo que o número de fogos poderá sofrer algumas alterações;

5. O preço acordado para a venda do Lote 6.5. foi de €937.550,00, a ser pago pela autora ao réu da seguinte forma: €187.510,00 no acto da assinatura do contrato de promessa e a título de sinal e princípio de pagamento: €750.040,00 na data da celebração da escritura de compra e venda;

6. O preço acordado para a venda do Lote 6.6. foi de €749.700,00 a ser pago pela autora ao réu da seguinte forma: €149.940,00 no acto da assinatura do contrato promessa e a título de sinal e princípio de pagamento; €559.760,00 na data da celebração da escritura de compra e venda;

7. Em realização do combinado, a autora, na data da assinatura do contrato, entregou ao réu, as quantias de €187.510,00 e de €149.940,00, das quais este deu imediata quitação;

8. Nos termos do contrato promessa outorgado, a escritura pública dos referidos lotes seria celebrada até 31.03.2006, após a notificação da Câmara Municipal de Coimbra da aprovação dos projectos de licenciamento e as licenças se encontrarem a pagamento, podendo o prazo ser prorrogado por mais 120 dias se, por dificuldades burocráticas e/ou documentais a rectificação do Alvará de Loteamento de 12.08.2005 não fosse registada no prazo de 120 dias após a assinatura do contrato promessa de compra e venda;

9. O Réu vinculou-se a marcar a escritura de compra e venda, avisando a Autora da data, hora e local da realização da mesma, com a antecedência mínima de 15 dias em relação àquela data comprometendo-se esta a fornecer àquela, nos dez dias posteriores à expedição da comunicação para a escritura, toda a documentação necessária, nomeadamente conhecimento de IMT, documentação de isenção, certidões de registo comercial ou de identificação de quem outorgará na escritura;

10. O Réu incumbiu a “A …, S.A.” de elaborar os projectos de loteamento, as obras de urbanização, os projectos de construção dos edifícios a erigir nos lotes e de diligenciar pela sua aprovação junto da administração;

11. O Réu foi alertado pela A…, SA que, de acordo com o PDM de Coimbra, não eram consideradas áreas brutas de construção, as áreas de estacionamento em cave, entendida esta como espaço enterrado desde que obedeça cumulativamente, entre o mais, aos seguintes requisitos: nos alçados virados para espaço público a cota da lage de cobertura não exceda 90 cm em relação ao terreno adjacente;

12. Em consequência do facto 11 não era possível licenciar os projectos de construção relativos aos lotes 6.5. e 6.6. uma vez que não obedeciam a tal condição;

13. Desde 2005 o Réu promoveu reuniões com técnicos e responsáveis da Câmara Municipal tendo em vista sustentar a possibilidade de construir nos lotes 6.5 e 6.6 as áreas brutas de construção previstas nos respectivos projectos;

14. A Câmara Municipal informou o Réu que só com a alteração do Alvará de loteamento poderiam ser aprovados os projectos de construção dos lotes 6.5 e 6.6;

15. Em virtude do referido em 14, o Réu solicitou à Câmara Municipal de Coimbra uma alteração ao alvará de loteamento (referido em 16), fazendo acrescer áreas de solos aos lotes 6.5 e 6.6., de forma a viabilizar a aprovação dos respectivos projectos de construção;

16. Por ofício datado de 24.04.2009, a Câmara Municipal de Coimbra informou o réu que por deliberação camarário de 15.12.2008 foi deferido o pedido de alteração ao Alvará de Loteamento n.º …, tendo sido aprovado um conjunto de permutas, de entre as quais de terrenos destinados a incorporar áreas nos lotes 6.5 e 6.6;

17. A autora tem conhecimento dos factos descritos de 10 a 15, tendo acompanhado todo o processo aí descrito;

18. Em 12 de Fevereiro de 2009, a autora requereu junto dos Juízos Cíveis de Lisboa a notificação judicial avulsa do réu para, no prazo de oito dias, marcar a escritura pública, indicando com a antecedência de 15 dias o dia, hora e local em que a mesma se realizará, sob pena de, não o fazendo, dar o contrato por definitivamente não cumprido, por culpa exclusiva da ré e de, em todo o caso, perder o interesse que tinha na prestação;

19. O Réu foi notificado no dia 05 de Março de 2009;

20. O Réu não procedeu à marcação da escritura pública;

21. Na sequência da notificação mencionada em 18, o réu comunicou à autora, por carta, que não se mostravam reunidos os pressupostos ajustados para a celebração da escritura pública de compra e venda;

22. No dia 20 de Março de 2009, representantes da “A…, S.A.” do Réu e da Autora reuniram-se em Coimbra, tendo esta última sido aí informada da evolução do processo e da impossibilidade de celebração das escrituras dos lotes;

23. Na reunião referida em 22., o réu dispôs-se a vender à autora outros lotes do empreendimento alguns dos quais com características construtivas semelhantes;

24. Foi proposto à Autora que caso adquirisse outros lotes, o sinal referente aos lotes 6.5. e 6.6 seria imputado no preço daqueles;

25. Em data posterior à citada reunião, a autora informou o réu não estar interessada na substituição dos lotes preferindo aguardar o licenciamento dos lotes 6.5. e 6.6 (Alínea B) dos factos assentes).

3. De carta datada de 11.04.2012, enviada pela Ré à Autora e por esta recebida, constam, entre outros, os seguintes dizeres: “ (…) 1. Por acórdão de 29.11.2011, já transitado em julgado, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou definitivamente improcedente a acção proposta por essa empresa na qual era pedida a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado em 7 de Novembro de 2005 relativo a dois lotes de terreno, designados, respectivamente, por Lote 6.5. e Lote 6.6. da Urbanização da Quinta da P…, em Coimbra e era reclamado o pagamento do sinal em dobro pelo F…; 2. Julgada improcedente a acção, resta a essa empresa cumprir o contrato, celebrando as escrituras e pagando os preços em dívida. Sucede que, decorridos vários meses sobre o desfecho do referido processo judicial não estabeleceram V. Excias como seria de esperar qualquer contacto formal no sentido de cumprir as V. Obrigações contratuais e legais; 3. Nessa conformidade, vimos pela presente solicitar que nos indiquem o prazo necessariamente breve, em que pretendem outorgar a escritura pública de compra e venda (…)” (Alínea C) dos factos assentes).

4. De carta datada de 17.04.2012, enviada pela Autora à Ré e por esta recebida, constam, entre outros, os seguintes dizeres: “Reportamo-nos à V. Comunicação (…) datada de 11 do corrente (…). Sucede que, ao invés do que V. Excias. pretendem, não resta a esta empresa cumprir o contrato. Na verdade, o Tribunal da Marinha Grande, sancionado pelo Tribunal da Relação de Coimbra julgou definitivamente, apenas, a questão do incumprimento culposo do contrato por parte de V. Excias, e a consequente devolução do sinal em dobro. O Tribunal não se debruçou sobre quaisquer outras questões. Ora pretendemos suscitar a questão da alteração das circunstâncias que fundamentam a nossa decisão a contratar nos termos do disposto no art. 437.º e ss. do Código Civil. Na verdade, aguardámos quatro anos pelo cumprimento do contrato. Por causas que nos são completamente alheias, a partir do ano de 2009 o mercado imobiliário foi acometido de uma grave crise que se tem vindo a aprofundar. Hoje em dia, o mercado imobiliário está moribundo, quer pela ausência de crédito bancário à construção e à aquisição de casa própria, que por via da enorme crise que se abateu sobre todos os sectores da vida económica nacional. Nestes termos, somos pela presente a notifica-los que nesta data resolvemos o contrato por alteração fundamental das circunstâncias. Termos em que, nesta fase, solicitamos a devolução de todas as quantias entregues a título de sinal, em singelo, no montante de €337.450.” (Alínea D) dos factos assentes).

5. A Autora previa encetar e concluir a construção dos apartamentos objecto do contrato referido em A) dos factos assentes até cerca de um ano e meio após a realização da prometida escritura pública e, bem assim, vendê-los (resposta ao facto nº 3 da base instrutória).

6. No último trimestre de 2005 verificava-se uma forte expansão das vendas na área da construção civil na cidade de Coimbra (resposta ao facto nº 4 da base instrutória).

7. O rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos ocorreu em 2008 e, a partir de então, o mercado imobiliário entrou em crise, traduzido em acesso ao crédito mais difícil e mais caro; queda do sector bancário; recurso, por parte de entidades bancárias, ao denominado Fundo de Recapitalização da Banca; aumento da dívida pública dos países periféricos da zona euro (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), com aumentos dos juros que implicaram que a Troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) procedesse ao resgate financeiro de alguns desses países, com subida de impostos e redução da despesa pública e da actividade económica e com consequente redução do consumo e aumento do desemprego; aumento da emigração portuguesa; aumento das insolvências; redução de salários; incumprimentos, por muitas famílias portuguesas, dos contratos de crédito para aquisição de casa; diminuição da procura de casas para aquisição (resposta ao facto nº 5 da base instrutória).

8. A Ré, desde a sua constituição em 1987 teve um rendimento médio anual líquido e efectivo de 8,18% (resposta ao facto nº 8 da base instrutória).

9[2]. O contexto referido em 7. era, à data da celebração do mesmo, totalmente imprevisível para as partes do negócio referido em 1..

10[3]. Tal contexto não se alterará a curto ou médio prazo.

                2.2. De direito

                2.2.1. Nulidade da sentença

                A recorrente defende que a sentença recorrida é nula, nos termos do artº 615º, nº 1, al. d)[4],

                Tal nulidade decorreria do facto de, no entender da recorrente, o tribunal “a quo”, no que tange às respostas aos quesitos 2º e 3º, não ter respondido ao que era perguntado [cfr. conclusões B), C) e H)].

                De acordo com a al. d) do nº 1 do artº 615º, que deve ser conjugada com o artº 608º, nº 2, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

                É manifesto, como do que ficou dito no item 2.1.1. deste acórdão resulta, não só que o tribunal “a quo” respondeu aos dois quesitos referidos – o que, desde logo, afastaria a pretensa omissão de pronúncia – como também que respondeu em termos que não merecem qualquer censura, tendo as respostas sido mantidas inalteradas.

                Nega-se, pois, razão à recorrente quanto a esta questão.

                2.2.2. Alteração das circunstâncias

                Nos termos do artº 437º, nº 1 do Cód. Civil, “se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.”

                Em anotação à disposição legal citada, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela:

“A resolução ou modificação do contrato é admitida em termos propositadamente genéricos, para que, em cada caso, o tribunal, atendendo à boa fé e à base do negócio, possa conceder ou não a resolução ou modificação.

Alude a lei, no entanto, aos seguintes requisitos:

a) Que haja alteração anormal das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar. É preciso que essas circunstâncias se tenham modificado. Nada tem, portanto, esta providência com a teoria do erro acerca das circunstâncias existentes à data do contrato. E, além disso, é necessário que a alteração seja anormal. Uma das circunstâncias relevantes pode ser a modificação do valor da moeda. A lei não exige, ao contrário do Código italiano, que a alteração seja imprevisível, mas o requisito da anormalidade conduzirá praticamente quase aos mesmos resultados.

b) Que a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual e não esteja coberta pelos riscos do negócio, como no caso de se tratar de um negócio por sua natureza aleatório.”

                Sobre os requisitos da resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias tem-se o Supremo Tribunal de Justiça pronunciado amiúdes vezes, sempre entendendo, como no recente acórdão de 10/10/2013[5], que a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal, e que (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio[6].

“A alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram o contrato pode resultar da alteração da legislação existente à data do negócio, como pode resultar de acontecimentos políticos ou da modificação repentina do sistema económico vigente. Essas situações são aquelas sobre as quais as partes não construíram quaisquer representações mentais (não pensaram nelas, pura e simplesmente), mas que são de qualquer modo imprescindíveis para que, através do contrato, se atinjam os fins visados pelas partes.”

“Ao terem-se por relevantes tais situações objectivas, que assim cabem no âmbito do art. 437.º, n.º 1, do CC, pretendeu o legislador possibilitar a correcção de situações que, a manterem-se, criariam relações flagrantemente injustas para uma das partes contratantes, dispensando-se a imprevisibilidade nos casos em que a boa fé obrigaria a outra parte a aceitar que o contrato ficasse dependente da manutenção da circunstância alterada”[7].

No caso dos autos não oferece dúvida que o objecto mediato[8] do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o R., como promitente vendedor, e a A., como promitente compradora, eram dois lotes de terreno para construção, onde seriam erigidos edifícios com mais de uma dezena de apartamentos cada, prevendo a A. encetar e concluir a construção – e vender os apartamentos – até cerca de um ano e meio após a realização da escritura pública de compra e venda.

                Tendo em conta a matéria de facto provada, nomeadamente que no último trimestre de 2005 se verificava uma forte expansão das vendas na área da construção civil na cidade de Coimbra, a A. tinha fundadas razões para crer que, permitindo o teor do contrato a expectativa de a escritura definitiva ser celebrada até fins de Março de 2006, os apartamentos estariam construídos e vendidos durante o ano de 2007.

Contudo, essa expectativa não se concretizou.

E, como se encontra provado, de forma totalmente imprevisível para as partes, em 2008 ocorreu o rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos e, a partir de então, o mercado imobiliário entrou em crise, traduzida em acesso ao crédito mais difícil e mais caro; queda do sector bancário; recurso, por parte de entidades bancárias, ao denominado Fundo de Recapitalização da Banca; aumento da dívida pública dos países periféricos da zona euro (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha), com aumentos dos juros que implicaram que a Troika (Comissão Europeia, BCE e FMI) procedesse ao resgate financeiro de alguns desses países, com subida de impostos e redução da despesa pública e da actividade económica e com consequente redução do consumo e aumento do desemprego; aumento da emigração portuguesa; aumento das insolvências; redução de salários; incumprimentos, por muitas famílias portuguesas, dos contratos de crédito para aquisição de casa; diminuição da procura de casas para aquisição.

                Nas actuais circunstâncias, assim imprevisível, anormal e relevantemente alteradas pela crise económico-financeira, a previsão da A., de encetar e concluir a construção dos apartamentos – e, sobretudo, de vendê-los – até cerca de um ano e meio após a realização da prometida escritura pública, deixou de ter fundamento.

                Sendo certo que a situação não se alterará a curto e médio prazo, a celebração da prometida escritura pública de compra e venda implicaria a disposição imediata, por parte da A., de uma quantia monetária muito elevada (€ 1.349.800,00) que, face às actuais expectativas económicas, dificilmente lhe estaria acessível e, sobretudo, dificilmente recuperaria.

                Não há quaisquer indícios de que a não realização da escritura pública de compra e venda nos prazos previstos no contrato promessa, bem como o protelamento da situação por tão grande período de tempo, seja da responsabilidade da A. que, inclusivamente, em Fevereiro de 2009, porventura ainda na ignorância da dimensão da crise, promoveu a notificação judicial avulsa do R. para ser dado cumprimento ao contrato promessa.

                Exigir, nestas circunstâncias e nesta data, que a A. cumpra o contrato promessa, com as obrigações que tal cumprimento comporta, parece-nos afectar gravemente os princípios da boa fé, sendo certo que não estamos perante um contrato aleatório, não podendo considerar-se coberta pelos riscos próprios do contrato a exigência de cumprimento.

                Mostram-se, pois, reunidos os requisitos da resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre a A. e o R., referido no ponto 1. do elenco da factualidade assente, por alteração anormal das circunstâncias que estiveram na base do negócio.

                Tal implica, de acordo com os artºs 439º, 433º e 289º do Cód. Civil, a restituição pelas partes de tudo o que tiver sido prestado, ou seja, no caso, a restituição pelo R. à A. das quantias de € 187.510,00 e € 149.940,00 por ela entregues a título de sinal e princípio de pagamento.

                Atento o disposto nos artºs 804º e 805º do Cód. Civil e 102º, § 3º do Cód. Comercial, sobre tais quantias incidirão juros de mora, à taxa supletiva para as operações comerciais, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

                Logram êxito, pois, na medida exposta, as conclusões da alegação da recorrente, o que importa a procedência da apelação, a revogação da sentença recorrida e a procedência da acção nos termos atrás indicados.

                Sumário:

                A resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias depende da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal, e que (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio.

                3. DECISÃO

                Face ao exposto, acorda-se em:

a) Julgar a apelação procedente;

b) Revogar a sentença recorrida;

c) Julgar a acção procedente e, consequentemente:

1 – Declarar a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado pelas partes em 07/10/2005, referido no ponto 1. do elenco da factualidade provada;

2 – Condenar o R. a restituir à A. as quantias de € 187.510,00 e € 149.940,00, num total de € 337.450,00, acrescidas de juros de mora, à taxa supletiva para as operações comerciais, vencidos desde a citação e vincendos até efectivo e integral pagamento;

3 – Absolver, no mais, o R. do pedido.

                As custas da acção são a cargo de A. e R. na proporção do decaimento.

                As da apelação são a cargo do recorrido.

Coimbra, 2014/05/13

Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

 Jorge Arcanjo


[1] Que é, face à data da sentença e ao disposto nos artºs 5º, nº 1 e 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, de 26/06, o aprovado por esta Lei. São dele todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] Aditado, mercê da alteração da resposta ao quesito 6º.
[3] Aditado, mercê da alteração da resposta ao quesito 7º.
[4] A recorrente refere o artº 668º, nº 1, al. d), disposição do CPC anterior, correspondente à do artº 615º, nº 1, al. d) do NCPC, cujo regime de recursos é, como oportunamente se referiu, o aplicável.
[5] Proc. 1387/11.5TBBCL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. também Acórdãos do STJ de 06/06/2013 (proc. 2960/09.7TBVIS.C1.S1), de 10/01/2013, (proc. 187/10.4TVLSB.L2.S1) e de 28/05/2009 (proc. 197/06.6TCFUN.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.
[7] Ac. STJ de 09/03/2010 (proc. 445/07.7TBAGD.C1.S1), consultável em www.dgsi.pt.
[8] O objecto imediato era a celebração do contrato prometido.