Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | MARIA JOSÉ MATOS | ||
| Descritores: | LIBERDADE CONDICIONAL INDEFERIMENTO DA CONCESSÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL RENOVAÇÃO DA INSTÂNCIA FREQUÊNCIA DE PROGRAMAS ESPECÍFICOS PARA AQUISIÇÃO OU REFORÇO DE COMPETÊNCIAS | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3 | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 47.º E 180.º DO CÓDIGO DE EXECUÇÃO DE PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE/CEPMPL | ||
| Sumário: | I - O instituto da liberdade condicional visa a criação de um hiato de transição, desde a fase da execução da pena de prisão e a liberdade definitiva, de molde a permitir ao condenado a sua integração gradual na comunidade, sujeita a deveres, de molde a obter, fortalecendo, o seu sentido de orientação social e normativo, naturalmente fragilizado pela reclusão
II - No caso de indeferimento da concessão da liberdade condicional a renovação da instância ocorre de 12 em 12 meses, sem prejuízo das situações determinadas pela libertação “ope legis” aos 5/6 da pena, nos casos em que tal regime seja aplicável e haja autorização do condenado. III - A decisão quanto à natureza do programa e frequência relativas aos programas específicos que permitam a aquisição ou o reforço de competências pessoais e sociais compete aos serviços responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena e pelos serviços de vigilância e segurança, por serem os vocacionados para a apreciação das competências especificas que importa modelar em face dos programas disponíveis, no âmbito do plano de individual de readaptação, e que é feita considerando todo o manancial contido no processo individual do recluso. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra
RELATÓRIO Nos autos de Liberdade Condicional … foi decidido não conceder ao condenado … a liberdade condicional.
Inconformado com o teor de tal decisão o arguido … interpôs o presente recurso, que se apresenta motivado e alinha as seguintes conclusões:
I. O presente Recurso versa sobre a Sentença proferida nos autos à margem identificados, a decisão recorrida negou a concessão de liberdade condicional ao recorrente AA, mantendo o cumprimento integral da pena de prisão. II. Tal decisão baseou-se sobretudo na gravidade dos crimes praticados, na reincidência após anterior liberdade condicional, na alegada insuficiente interiorização da censurabilidade da conduta, na ausência de percurso prisional consolidado e na necessidade de prevenção especial. III. O Tribunal a quo interpretou e aplicou de forma restritiva e excessiva os requisitos da liberdade condicional, confundindo este instituto com uma medida de clemência ou prémio excecional. … VI. A gravidade abstrata dos crimes e a invocação da reincidência não podem, por si só, justificar a recusa da liberdade condicional, sob pena de se transformar o instituto numa sanção inatingível para determinados reclusos. VII. O juízo de prognose exigido pelo art. 61.º, n.º 2, do Código Penal deve ser individualizado e fundado em elementos concretos, não em presunções gerais e negativas. VIII. O Tribunal desconsiderou factos provados relevantes e positivos: IX. o recorrente mantém bom comportamento prisional, sem qualquer infração disciplinar; X. encontra-se integrado em atividades laborais (trabalha como faxina) e formativas (curso de francês); XI. possui suporte familiar sólido, com contacto regular de irmãos, filhas, mãe e sobrinhos; XII. dispõe de proposta laboral em meio livre; XIII. não existe qualquer rejeição comunitária. XIV. Estes elementos são indicadores claros de reinserção social e deveriam ter sido devidamente valorados. XV. A decisão recorrida violou os fins das penas, previstos nos artigos 40.º e 42.º do Código Penal, que apontam para a proteção de bens jurídicos e para a reintegração do agente na sociedade. XVI. Ao privilegiar exclusivamente considerações de prevenção especial negativa, o Tribunal afastou-se da função constitucional da pena, esvaziando o instituto da liberdade condicional da sua verdadeira finalidade. XVII. O argumento de que a reincidência anterior inviabiliza nova liberdade condicional não tem respaldo legal, nem jurisprudencial, constituindo violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. XVIII. O Tribunal ignorou ainda a evolução positiva do recorrente durante a execução da pena, reconhecida na própria decisão, limitando-se a enfatizar aspetos passados e descontextualizados. XIX. O indeferimento assentou em pareceres técnicos frágeis e insuficientemente fundamentados, emitidos sem contacto adequado com o recluso: … XXIV. Não é admissível que pareceres técnicos, elaborados sem conhecimento direto da realidade do recluso, possam fundamentar decisão de tão relevante alcance. XXV. A decisão recorrida revela, assim, contradição lógica: por um lado reconhece apoio familiar, integração laboral e ausência de rejeição comunitária; por outro conclui não estarem identificados elementos reveladores de mudança de vida. XXVI. Esta contradição constitui erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal. …
Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, …
O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra emitiu Parecer …
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.
A decisão recorrida é do seguinte teor:
I.- RELATÓRIO:
Os presentes autos de liberdade condicional [artigos 155.º e 173.º e seguintes do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade] dizem respeito ao recluso
…, com referência ao marco dos dois terços da pena
…
O Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
Não são conhecidas outras penas de prisão a cumprir nem autos à ordem dos quais interesse a prisão preventiva.
… * II. – FUNDAMENTAÇÃO de FACTO: Matéria de facto Provada: … * Factos não provados: … * III.- Motivação da matéria de facto: … * IV. - FUNDAMENTOS FÁCTICO-CONCLUSIVOS E JURÍDICOS: …
…
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DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente …, a questão que se apresenta a decidir é, pois, a seguinte:
. Impugnação da decisão, por erro de interpretação e aplicação do artigo 61º, nº 2, alínea a) do Código Penal “ex vi” nº 3 do artigo 61º do mesmo diploma legal.
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DECISÃO
Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.
Apreciando a lide recursiva apresentada pelo arguido … concluímos que a sua impugnação à decisão recorrida se prende com a interpretação relativamente ao preenchimento dos requisitos materiais levada a preceito pelo Tribunal recorrido, na medida que veio defender que o mesmo se baseou sobretudo na gravidade dos crimes praticados, na reincidência após a liberdade condicional, na alegada insuficiente interiorização da censurabilidade da conduta, na ausência de percurso profissional consolidado e na prevenção especial. Ademais alude a que a decisão recorrida exigiu um requisito não previsto na lei: a prévia submissão do recluso a medidas de flexibilização da pena, condição inexistente no artigo 61º do Código Penal. Outrossim alude a que o Tribunal recorrido desconsiderou factos provados relevantes e positivos, como: . O recorrente mantém bom comportamento prisional, sem qualquer infracção disciplinar; . Encontra-se integrado em actividades laborais (trabalha como faxina) e formativas (curso de francês); . Possui suporte familiar sólido, com contacto regular de irmãos, filhas, mãe e sobrinhos; . Dispõe de proposta laboral em meio livre; . Não existe qualquer rejeição comunitária. Razão por que entende que a decisão recorrida violou ao fins das penas, previstos nos artigos 40º e 42º do Código Penal, que apontam para a protecção de bens jurídicos e para a reintegração do agente na sociedade. Acentua, ainda, que o indeferimento assentou em pareceres técnicos frágeis e insuficientemente fundamentados, emitidos sem contacto adequado com o recluso. …
Conheçamos
A decisão recorrida foi prolatada em profícuo respeito do artigo 173º da Lei nº 115/2009 de 12/10 e em decorrência do cumprimento de todo o formalismo legalmente aplicável com vista à eventual colocação em liberdade condicional do ora recorrente ….
No seguimento da instrução desse procedimento o Tribunal recorrido veio a considerar demonstrados, com relevo para a decisão, os seguintes factos:
1. O recluso … cumpre o de remanescente de 3 anos e 1 meses de prisão, à ordem do processo n.º 797/08.... em consequência da revogação da liberdade condicional concedida entre 03.12.2018 e 03.01.2022 [cumprida entre 07.09.2021 e 07.10.2024] pela prática de crime de homicídio e crime de detenção de arma proibida da pena inicial única de 13 anos de prisão – cumprida e extinta; e a pena de 4 anos e 4 meses de prisão, à ordem do processo n.º 347/19...., do Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 5, pela prática, como reincidente, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelos artigos 75.º, nº 1, 143.º e 144.º, alíneas a) e b), do Código Penal – em execução. 2. A condenação neste último processo assentou, em suma, na seguinte factualidade: … Por motivos não concretamente apurados, os dois arguidos decidiram dirigir-se até àquele estabelecimento, sabendo que BB … ali se encontrava. 5) Depois de ali chegarem por volta da 01h00 do dia 9 de Abril de 2019, o arguido …, ao ver o irmão BB, dirigiu-se a ele aos gritos, chamando-o para junto de si e do irmão …. 6) Nessa altura, CC …, que momentos antes havia estado na casa de banho do estabelecimento, abeirou-se dos arguidos para tentar pôr cobro à exaltação existente, tendo, depois de uma troca de palavras, saído para o exterior do estabelecimento comercial. 7) Quando CC … já se encontrava no exterior do estabelecimento, eclodiu uma contenda entre ele e o arguido …, no decurso do qual este atingiu aquele com socos no rosto. … Em consequência directa e necessária dos socos com que foi atingido, CC …: a) sofreu rotura traumática do seu globo ocular esquerdo, com extrusão de úvea (pela ferida escloral) e descolamento total da retina, bem como a fractura do pavimento da órbita esquerda e, ainda, laceração cutânea na região malar esquerda; b) foi sujeito a 3 intervenções cirúrgicas (em 9-04, em 17-04 e em 22-04); c) esteve internado durante os 14 dias iniciais, período durante o qual teve afectação total da sua capacidade de trabalho geral e profissional; d) nos 46 dias subsequentes a esses primeiros 14 dias, manteve afectação total da sua capacidade de trabalho profissional e afectação acentuada da sua capacidade de trabalho geral; e) após, continuou com a sua capacidade de trabalho geral e profissional afectada (ainda que com níveis de gravidade progressivamente decrescentes) até 26-11-2019, data da consolidação médico-legal das lesões, face à estabilização das sequelas funcionais resultantes das mesmas; f) ficou, sob o ponto de vista funcional, com uma hipovisão grave à esquerda de carácter permanente, resultante da perda total da visão do olho esquerdo; g) ficou com uma assimetria notória da região orbitária a distância social, com ptose da pálpebra superior do olho esquerdo, ligeira diminuição do volume do globo ocular à esquerda, íris com pontos de sutura na sua periferia (de tonalidade heterogénea, com zonas esbranquiçadas e opacificadas) e pupila indiscernível, sequelas desfigurantes da face com carácter permanente. 3. A pena foi liquidada nos seguintes termos: … 4. Do certificado de registo criminal do recluso constam outras condenações: a) condenação em 2005 numa pena de multa pela prática, em 11-01-2004, de um crime de condução sem habilitação legal b) condenação em 2006 numa pena de multa pela prática, em 13-08-2004, de um crime de posse de substâncias explosivas ou análogas e armas; c) condenação em 2006 numa pena de prisão, substituída por multa, pela prática, em 18-09-2005, de um crime de condução sem habilitação legal; d) condenação em 2006 numa pena de multa pela prática, em 13-04-2004, de um crime de detenção ilegal de arma; e) condenação, por acórdão proferido no Processo Comum Colectivo nº797/08.... do então denominado 2º Juízo da Comarca de Paços de Ferreira (actual Juízo Central Criminal de Penafiel - J4) e que transitou em julgado em 15.07.2009, numa pena única de 13 anos de prisão pela prática, em 23-08- 2008, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº1, al. c) da Lei nº 5/2006, de 23.02, e de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do C.Penal; esteve preso preventivamente à ordem do processo nº797/08.... acima referido desde 16.10.2008 até 15.07.2009, data em que continuou à ordem desse processo, agora em cumprimento de pena, situação que se manteve até 10.11.2009. em 10.11.2009, e até 29.01.2010, passou a estar preso à ordem do processo com o nº158/04...., do 1º Juízo de Competência Especializada Criminal de Gondomar, para cumprimento de 80 dias de prisão subsidiária, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma. De 29.01.2010 até 03.12.2018, o arguido AA passou outra vez a estar preso ininterruptamente à ordem do processo nº797/08...., tendo sido colocado em liberdade condicional por decisão de 3.12.2018, transitada em julgado em 3.01.2019. 5. O arguido já cumpriu pena de prisão anteriormente. 6. Não consta a existência de processos pendentes nem outras penas autónomas a cumprir pelo recluso. Comportamento prisional/registo cadastral: 7. O recluso tem mantido um comportamento adequado em meio prisional sem registo de infracções disciplinares. 8. O recluso encontra-se integrado desde Março de 2025 como faxina e a frequentar o ensino de Francês. 9. Recebe visitas regulares de familiares. 10. O recluso encontra-se em regime comum e não beneficiou de medidas de flexibilização da pena. Situação económico-social e familiar: … Vida anterior do recluso e caracterização pessoal: … Vejamos
Ressuma de todo o regime legal que o instituto da Liberdade Condicional é um incidente da execução da pena de prisão, e não já uma qualquer medida coativa de socialização[3], cujo regime se acha fixado no artigo 61º da lei substantiva penal. É, pois, ao invés de uma medida de clemência ou recompensa, um instituto que visa a promoção da reintegração social dos delinquentes condenados a penas de prisão de média e longa duração, tendo subjacente o combate ao efeito criminógeno que hoje é indissociável das penas privativas de liberdade[4].
Vale tudo por dizer, assim, que este instituto visa, pois, a criação de um hiato de transição, desde a fase da execução da pena de prisão e a liberdade definitiva, de molde a permitir ao condenado a sua integração gradual na comunidade, sujeita a deveres, de molde a obter, fortalecendo, o seu sentido de orientação social e normativo, naturalmente fragilizado pela reclusão.
Do regime legal vertido no artigo 61º do Código Penal verificamos a existência de duas modalidades da liberdade condicional: - A facultativa, cuja concessão determina a reunião dos requisitos formais e materiais a que dão corpo os nºs 1, 2 e 3 da versada norma; - A obrigatória, cuja concessão, para além do evidente consentimento do condenado, depende, também, da verificação do requisito formal aflorado no nº 4 da versada norma legal.
Volvendo ao caso dos autos importa, desde já, adiantar que estamos perante um incidente de liberdade condicional facultativa.
Verificadas as exigências formais incluídas no nº 1 e 2 da referida norma do artigo 61º do Código Penal há que considerá-las preenchidas, posto que, para além de ter dado o seu consentimento, o ora recorrente cumpriu já 2/3 da pena privativa de liberdade no dia 30 de Junho de 2025.
Importa, pois, averiguar se se acha verificado o pressuposto material a que alude a alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, qual seja se “for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.”
Ao introduzir a nova redacção ao aludido artigo 61º face à vigência do D.L. nº 48/95 de 15 de Março, o legislador aproximou-se da lição do Professor Figueiredo Dias[5] que, desde há muito, pugnava que, quanto ao critério material, a exigência legal não deveria balizar a prognose apenas no bom comportamento do condenado, considerado na sua estrita observância e cumprimento dos regulamentos prisionais mas, sim, deveria ser considerada toda a evolução da conduta do condenado durante a fase de reclusão, como um forte indicio de uma eficaz ressocialização e de uma futura conduta responsável e conforme ao direito, uma vez devolvido à liberdade.
Leitura esta que o Tribunal recorrido levou a efeito, de forma avisada e pertinente, dando nota, por um lado, do passado criminal do condenado, o seu comportamento no decurso da execução da pena bem como da sua personalidade e o respectivo desenvolvimento no decurso do período de reclusão. Mas, ainda como salienta aquele Tribunal, há significativas exigências de prevenção especial.
Há que atentar, em primeiro lugar, às concretas circunstâncias que determinaram a aplicação da pena, isto é, a natureza do crime cometido, as circunstâncias do respectivo cometimento e as condições pessoais que influíram na aplicabilidade da pena.
Como é sabido o recorrente … cumpriu o remanescente de 3 anos e 1 meses de prisão, à ordem do processo n.º 797/08.... em consequência da revogação da liberdade condicional concedida entre 03.12.2018 e 03.01.2022 [cumprida entre 07.09.2021 e 07.10.2024] pela prática de crime de homicídio e crime de detenção de arma proibida da pena inicial única de 13 anos de prisão – cumprida e extinta; e a pena de 4 anos e 4 meses de prisão, à ordem do processo n.º 347/19...., do Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 5, pela prática, como reincidente, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelos artigos 75.º, nº 1, 143.º e 144.º, alíneas a) e b), do Código Penal – em execução. No que concerne ao ilícito de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelos artigos 75.º, nº 1, 143.º e 144.º, alíneas a) e b), do Código Penal ficou apurado que: … Por motivos não concretamente apurados, os dois arguidos decidiram dirigir-se até àquele estabelecimento, sabendo que BB …ali se encontrava. . Depois de ali chegarem por volta da 01h00 do dia 9 de Abril de 2019, o arguido …, ao ver o irmão BB, dirigiu-se a ele aos gritos, chamando-o para junto de si e do irmão …. . Nessa altura, CC …, que momentos antes havia estado na casa de banho do estabelecimento, abeirou-se dos arguidos para tentar pôr cobro à exaltação existente, tendo, depois de uma troca de palavras, saído para o exterior do estabelecimento comercial. . Quando CC …já se encontrava no exterior do estabelecimento, eclodiu uma contenda entre ele e o arguido …, no decurso do qual este atingiu aquele com socos no rosto. … Em consequência directa e necessária dos socos com que foi atingido, CC …: a) sofreu rotura traumática do seu globo ocular esquerdo, com extrusão de úvea (pela ferida escloral) e descolamento total da retina, bem como a fractura do pavimento da órbita esquerda e, ainda, laceração cutânea na região malar esquerda; b) foi sujeito a 3 intervenções cirúrgicas (em 9-04, em 17-04 e em 22-04); c) esteve internado durante os 14 dias iniciais, período durante o qual teve afectação total da sua capacidade de trabalho geral e profissional; d) nos 46 dias subsequentes a esses primeiros 14 dias, manteve afectação total da sua capacidade de trabalho profissional e afectação acentuada da sua capacidade de trabalho geral; e) após, continuou com a sua capacidade de trabalho geral e profissional afectada (ainda que com níveis de gravidade progressivamente decrescentes) até 26-11-2019, data da consolidação médico-legal das lesões, face à estabilização das sequelas funcionais resultantes das mesmas; f) ficou, sob o ponto de vista funcional, com uma hipovisão grave à esquerda de carácter permanente, resultante da perda total da visão do olho esquerdo; g) ficou com uma assimetria notória da região orbitária a distância social, com ptose da pálpebra superior do olho esquerdo, ligeira diminuição do volume do globo ocular à esquerda, íris com pontos de sutura na sua periferia (de tonalidade heterogénea, com zonas esbranquiçadas e opacificadas) e pupila indiscernível, sequelas desfigurantes da face com carácter permanente.
É lídimo, pois, que o recorrente cometeu factos penalmente relevantes, atentatórios de bens pessoais, como sejam a vida e a integridade física, bens jurídicos eleitos pelo nosso ordenamento jurídico como dos mais valiosos e, assim, merecedores de tutela constitucional, penal e civil. Ademais o segundo dos crimes foi praticado quando se encontrava em liberdade condicional, mostrando, pois o recorrente, incapacidade para se adaptar às regras socialmente impostas e, bem assim, que as condenações anteriormente sofridas, tal como a reclusão, não foram capazes de se assumirem como suficiente advertência para que se voltasse a cometer novos ilícitos criminais.
Outrossim repassa da factualidade provada que no certificado de registo criminal do ora recorrente … constam estas condenações: . condenação em 2005 numa pena de multa pela prática, em 11/01/2004, de um crime de condução sem habilitação legal; . condenação em 2006 numa pena de multa pela prática, em 13/08/2004, de um crime de posse de substâncias explosivas ou análogas e armas; . condenação em 2006 numa pena de prisão, substituída por multa, pela prática, em 18/09/2005, de um crime de condução sem habilitação legal; . condenação em 2006 numa pena de multa pela prática, em 13/04/2004, de um crime de detenção ilegal de arma; . condenação, por acórdão proferido no Processo Comum Colectivo nº 797/08.... do então denominado 2º Juízo da Comarca de Paços de Ferreira (actual Juízo Central Criminal de Penafiel - J4) e que transitou em julgado em 15/07/2009, numa pena única de 13 anos de prisão pela prática, em 23/08/2008, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº1, al. c) da Lei nº 5/2006, de 23.02, e de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º do C.Penal Processo à ordem do qual esteve preso preventivamente desde 16/10/2008 até 15/07/2009, data em que continuou à ordem desse processo, agora em cumprimento de pena, situação que se manteve até 10/11/2009. Em 10/11/2009, e até 29/01/2010, passou a estar preso à ordem do processo com o nº 158/04...., do 1º Juízo de Competência Especializada Criminal de Gondomar, para cumprimento de 80 dias de prisão subsidiária, pela prática de um crime de detenção ilegal de arma. De 29/01/2010 até 03/12/2018, o recorrente AA passou outra vez a estar preso ininterruptamente à ordem do processo nº 797/08...., tendo sido colocado em liberdade condicional por decisão de 03/12/2018, transitada em julgado em 03/01/2019.
Tais antecedentes criminais divisam já um reforço de atenção, na medida em que sinalizam um padrão comportamental refractário ao cumprimento das regras socialmente impostas, nesta medida, um sinal de alerta da potencialidade da prática de futuros crimes.
Todavia apresenta-se como eixo fulcral a análise dos padrões comportamentais do ora recorrente que indiciem um adequado/inadequado processo de preparação para a vida em meio livre, no sentido de apurar se, no momento da concessão da liberdade condicional, o recluso indicia uma personalidade conforme ao direito vigente e merecedora de atribuição de liberdade por ser permitida a prognose favorável de que, em meio livre, não cometerá ilícitos criminais.
Do espólio factual ressuma, a este propósito, que:
. O recluso tem mantido um comportamento adequado em meio prisional sem registo de infracções disciplinares. . O recluso encontra-se integrado desde Março de 2025 como faxina e a frequentar o ensino de Francês. . Recebe visitas regulares de familiares. . O recluso encontra-se em regime comum e não beneficiou de medidas de flexibilização da pena. . O recluso … pretende presentemente, em meio livre, residir com a sua mãe, a qual vive sozinha em moradia tipologia 2, propriedade da sua irmã (emigrada em França), que reúne adequadas condições de habitabilidade. . O condenado dispõe do apoio da sua mãe, irmã, filha e restante família alargada. . No meio comunitário de origem não são percebidos sentimentos de rejeição. . Em liberdade perspectiva reabrir o café que é propriedade da sua irmã junto à habitação ou trabalhar junto da sua irmã, emigrada em França (...), que se disponibiliza a recebê-lo e a enquadrá-lo profissionalmente num dos estabelecimentos comerciais, na área da restauração que explora. . A mãe do condenado e a irmã manifestam total disponibilidade para garantir a sua subsistência até que este se consiga autonomizar pela via do trabalho. . O recluso admite a prática dos factos ilícitos que motivaram a sua condenação, ainda que ao abordar a sua situação jurídico-penal assuma ainda uma postura de vitimização, tendencialmente autocentrada e com dificuldades em reconhecer o impacto na(s) vítima(s), focando em si próprio, os principais danos resultantes de estar privado de liberdade. . Demonstra ainda fragilidades emocionais, com comportamentos impulsivos e inconsequentes, evidenciando irresponsabilidade e imaturidade, assim como ambivalência de juízo crítico. . Na abordagem ao impacto do seu comportamento criminal, o condenado teve dificuldades de interiorização da censurabilidade da sua conduta, e embora paulatinamente reconheça a sua participação nos factos por que cumpre pena de prisão, mas revela reduzida capacidade de avaliação crítica. . Percepciona-se um discurso pouco espontâneo e aparentemente direccionado à desejabilidade, transparecendo ténue empatia relativamente à vítima. Tal, aponta para uma interiorização deficitária das consequências da sua actuação.
No que concerne ao percurso institucional do ora recorrente este é de sinal positivo. …
Diverso é o juízo a formular no que atina à evolução do seu juízo critico relativo à conduta pregressa e à interiorização da censurabilidade dessa mesma conduta. Se é certo que o ora recorrente não regateia a autoria dos factos que importaram a respectiva condenação na pena privativa de liberdade que actualmente cumpre, não é menos verdade que tem um discurso auto-centrado e uma postura de vitimização, reveladora da dificuldade achada em reconhecer as consequências terceiras das condutas que perpetrou, patenteando, assim, irresponsabilidade para gerir as decorrências das decisões que perfilhou, tanto quanto imaturidade para entender aquelas consequências. Ademais fica patente a dificuldade de interiorização da censura da conduta que empreendeu, na medida em que está severamente reduzida a sua capacidade para avaliar criticamente o seu comportamento.
Fica patenteado da leitura conjugada do artigo 61º, alínea a) do Código Penal com o artigo 42º, nº 1 do mesmo diploma que a aplicação da pena privativa de liberdade tem por finalidade, além de preventiva, a de forjar a reeducação, reinserção e reintegração do condenado em meio livre, motivo pelo qual toda a sua execução tem que ser moldada nesse sentido. Dúvidas não prespassam que o ora recorrente AA sinaliza, já, uma evolução positiva naquele tríplice objectivo. Para além do cumprimento das regras normativas do estabelecimento prisional no decurso da execução da pena de prisão, o ora recorrente tem mostrado saber utilizar o período de reclusão para aprofundar as suas competências pessoais e profissionais que facilitarão a sua inserção, quer social como profissional, em meio livre. Dispõe, ainda, de apoio familiar, quer da sua família de origem, como alargada, uma vertente fundamental para o êxito da sua inserção em meio livre, que lhe permite, mesmo, forjar um plano de inserção profissional.
Todavia, não obstante já ter iniciado a reflexão crítica sobre acerca do comportamento criminoso assumido – na medida em que assume a respectiva prática, o seu aprofundamento e enraizamento é indispensável para que a mencionada tríplice finalidade seja cabalmente cumprida. As premências das necessidades de prevenção especial de reincidência demandam o aprofundamento da capacidade critica pelo ora recorrente relativamente à sua conduta pregressa (no sentido de se responsabilizar conscientemente face às condutas perpetradas como às consequências delas decorrentes) como da análise das regras e valores pelos quais importará alinhar a sua conduta futura. Certo é, ainda, que é esdrúxulo que se desligue de um discurso vitimizador e auto-centrado para àquele outro que se vincule à reflexão sobre as vítimas e as consequências para aquelas decorrentes dos comportamentos por si assumidos, tudo de molde a fortalecer a sua maturidade e responsabilidade pessoais no sentido do seu comprometimento com os valores socialmente erigidos como válidos.
Ademais, como bem salientou o Tribunal recorrido, o ora recorrente deve continuar a “adoptar uma atitude investida na aquisição de competências sociais e ocupacionais no Estabelecimento Prisional, integrando actividades e/ou programas ocupacionais estruturados (apenas desde Março de 2025 que se encontra integrado laboralmente) e tornem meritório desde logo o gozo de medidas de flexibilização da pena. Do mesmo modo, tendo em conta as fragilidades apontadas vislumbra-se de primordial interesse a frequência do recluso em programas psicoeducacionais como os de promoção do pensamento pró-social a promover pelo Estabelecimento Prisional.” Juízo prudencial que indica as coordenadas para que o ora recorrente venha a lograr atingir aquela tríplice finalidade e, não como aquele antepõe, uma qualquer exigência da obrigatoriedade previa da flexibilização da pena para a concessão da liberdade condicional.
Aqui chegados impõe-se concluir que não se mostra preenchido o requisito material a que dá corpo a alínea a) do nº 2 do artigo 61º da lei substantiva penal, no sentido de que é não possível formular a prognose favorável de que, uma vez em liberdade, o ora recorrente AA conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Razão por que nenhuma censura merece o Tribunal recorrido, que procedeu com rigor e proficiência à apreciação da prova, ficando, pois, descartado o vicio a que alude a alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código do Processo Penal. Bem interpretando, ainda, dispositivo ao artigo 61º, nº 2, alínea a) da lei penal substantiva.
Como se cifrou num aresto deste Tribunal[6] “a liberdade condicional deve ser concedida quando o julgador conclua que o condenado reúne condições que, razoavelmente, criam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, assumirá uma conduta conforme às regras da comunidade, e deve ser negada quando conclua que não reúne tais condições, quer porque o juízo contrário se revela carecido de razoabilidade, quer porque se revela temerário (…)”
A este propósito explicita Joaquim Boavida[7] que “É sabido que na fase de julgamento, a dúvida sobre a realidade de um facto é resolvida a favor do arguido, em decorrência do princípio in dubio pro reo. Na fase de execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação. A lei exige, na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, para que o condenado seja colocado em liberdade, que seja possível concluir por um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro sem reincidência, ou seja, exige um juízo positivo e só nesse caso a medida será aplicada. Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o caráter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada.”
O arguido … ultima a sua lide recursal peticionando, a título subsidiário, caso não obtenha provimento o seu pedido de concessão de liberdade condicional, que seja ordenada a realização de avaliação complementar pela DGRSP ou programa de competências sociais, com reapreciação imediata, e não apenas em 2026.
Conheçamos
Fica estipulado no artigo 180º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, sob a epigrafe “Renovação da Instância”, que:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 61.º do Código Penal, nos casos em que a liberdade condicional não tenha sido concedida e a prisão haja de prosseguir por mais de um ano, a instância renova-se de 12 em 12 meses a contar da data em que foi proferida a anterior decisão. 2 - Tratando-se de pena relativamente indeterminada, até se mostrar cumprida a pena que concretamente caberia ao crime cometido, a instância renova-se: a) Decorrido um ano sobre a não concessão da liberdade condicional; b) Decorridos dois anos sobre o início da continuação do cumprimento da pena quando a liberdade condicional for revogada. Se a liberdade condicional não for concedida, a instância renova-se decorrido cada período ulterior de um ano. 3 - São aplicáveis à renovação da instância, com as devidas adaptações, as regras previstas nos artigos anteriores.
Daqui ressuma, sem mais, que no caso de indeferimento da concessão da liberdade condicional a renovação da instância ocorre de 12 em 12 meses, sem natural prejuízo das situações determinadas pela libertação “ope legis” determinada aos 5/6 da pena, nos casos em que tal regime seja aplicável e haja autorização do condenado.
Já quanto à sua integração em programas de competências sociais a mesma vê-se prevenida nos termos estabelecidos no artigo 47º, nº 1 do citado diploma, quando estabelece que “A execução das penas e medidas privativas da liberdade integra a frequência de programas específicos que permitam a aquisição ou o reforço de competências pessoais e sociais, de modo a promover a convivência ordenada no estabelecimento prisional e a favorecer a adopção de comportamentos socialmente responsáveis.” Tal decisão, quanto à natureza do programa e respectiva frequência, é lavrada no seio da apreciação de todo o manancial contido no processo individual do recluso que se acha instruído, para além do mais, para essa finalidade, conforme ressalvado no artigo 18º, nº 3 do Código de Execução de Penas e Medidas de Segurança. Decisão essa que compete aos serviços responsáveis pelo acompanhamento da execução da pena e pelos serviços de vigilância e segurança por serem os que se acham vocacionados para a apreciação das competências especificas que importa modelar em face dos programas disponíveis, no âmbito do plano de individual de readaptação, no seio qual o recluso deve manifestar aquela sua vontade e adesão, conforme o disposto no artigo 69º, nº 4 do Regulamento Geral dos Estabelecimentos Prisionais.
Vale tudo por dizer, assim, que não poderá, igualmente, proceder o pedido subsidiário.
Destarte, considerados os fundamentos de facto e de direito aduzidos, importará ditar a improcedência da lide recursal apresentada pelo arguido …
* DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido … e, em consequência, mantêm integralmente a decisão recorrida. … O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, sendo assinado electronicamente pelas signatárias, nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2 e 3 do Código do Processo Penal.
Coimbra, 20 de Novembro de 2025 Maria José dos Santos de Matos Maria José Guerra Cândida Martinho
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