Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1707/20.1T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
ADVOGADA
RECUSA LEGÍTIMA A DEPOR
SIGILO PROFISSIONAL
DISPENSA DO DEVER DE SIGILO
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ARTIGO 92.º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS, ARTIGO 417.º, N.º 3, ALÍNEA C) E N.º 4) DO CPC, E ARTIGO 135.º, N.º 4, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.
Sumário: I – É legítima a recusa de uma advogada a depor como testemunha sobre os termos de uma partilha, designadamente sobre a existência de um pacto fiduciário subjacente a esse negócio, quando o seu conhecimento sobre a questão resultar do facto de ela, no exercício das suas funções, ter prestado serviços de apoio jurídico na realização daquele negócio.

II – Apesar de o depoimento da testemunha ser importante para o apuramento da verdade, não é de dispensar a advogada do dever de sigilo pois, no confronto entre os interesses particulares da acção e os relevantes interesses públicos que presidem ao sigilo profissional dos advogados, é de dar prevalência a estes últimos.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
O Autor intentou ação com processo comum contra os Réus, pedindo:
 1 – seja reconhecido o negócio fiduciário e seja ordenado o registo da compropriedade de 19/50 avos sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sobre o n.º ...80 da freguesia ... a favor da massa da herança de AA. Subsidiariamente, requer que seja a herança de BB, aqui representada pelos 3.º, 4.ª e 5.º RR., condenada a indemnizar a herança de AA, aqui representada pelo A. cabeça de casal, a título de enriquecimento sem causa, no valor de 24.000,00 €, acrescido dos juros legalmente aplicáveis, desde a citação.
2 – seja constituída servidão de utilização da água por destinação do pai de família do furo existente no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sobre o n.º ...80 da freguesia ... a favor do prédio omisso na Conservatória com os art.ºs matriciais 2315, 2315 e 3969 da união das freguesias ..., ... e ..., mais sendo os RR. condenados a repor a infra estrutura de passagem da água, ou a pagar os respetivos custos caso o trabalho seja executado a pedido do A., acrescido de juros legalmente aplicáveis.
Para fundamentar o primeiro pedido o Autor alegou, em breve síntese:
- O prédio objeto dos autos pertenceu aos seus pais, já falecidos AA e CC.
- O Autor tinha como única irmã BB, já falecida, que deixou como seus herdeiros os 3.º 4º e 5º Réus.
- Por óbito da mãe do Autor, em 2007 foram feitas partilhas entre os filhos e o pai, sendo intenção de todos compor os quinhões pela adjudicação de parte da Horta ... ao Autor – parcela A -  e o remanescente da Horta ... e a ... Pinhal ao pai do Autor - Parcela B do mesmo prédio.
- Não tendo o Autor dinheiro para pagar as tornas devidas à irmã, acordaram que essa parcela – A – ficaria para a irmã.
- Para a realização da partilha acordada o pai e a irmã do Autor solicitaram os serviços da advogada Dr.ª DD que iria fazer um destaque da Horta ... para separar a parcela A do resto.
- No dia da partilha esse destaque não tinha sido efetuado, ficando acordado entre todos que BB ficaria a titular do prédio todo até ao falecimento do pai, altura em que restituiria à herança a parcela B para efeitos de partilha, sem prejuízo de o fazer antes, caso, entretanto, a situação fosse regularizada.
- Os herdeiros de BB são os 3.º, 4º e 5º Réus que não aceitam integrar na herança a mencionada parcela B e venderam o prédio aos 1.º e 2.º Réus.

Os 3.º, 4.º e 5.º Réus impugnaram a factualidade alegada pelo Autor, concluindo pela improcedência da ação e a sua absolvição dos pedidos formulados, com a condenação do Autor, por litigância de má fé.

Os 2.º e 3.º Réus também impugnaram a versão do Autor, tendo concluído pela improcedência da ação e dedução subsidiária de pedido reconvencional.

O Autor apresentou réplica.

O pedido reconvencional foi admitido apenas parcialmente.

Na definição dos temas de prova foi incluída a existência do negócio fiduciário invocado pelo Autor.

A Dr.ª DD foi arrolada como testemunha, tendo no seu depoimento, na audiência de julgamento, referido ter sido mandatada pela falecida BB para efeitos de preparação de documentação e acompanhamento jurídico de escritura de partilha por óbito de CC, que foi outorgada a 10 de janeiro de 2007, e na qual esteve presente.
Inquirida sobre o alegado acordo verbal subjacente à partilha realizada entre o Autor, a sua irmã e o seu pai, a testemunha alegou que o seu mandato se limitou à preparação e acompanhamento da referida escritura de partilha e, invocando o sigilo profissional, recursou-se a depor sobre a existência do alegado negócio fiduciário.

Pelo tribunal foi proferido o seguinte despacho:
No decurso do seu depoimento, a testemunha DD, Advogada, recusou-se a responder a algumas questões que lhe foram colocadas pela Ilustre Mandatária do Autor, invocando, para tanto, o segredo profissional a que se encontra vinculada.
Tendo em conta que a citada testemunha afirmou ter sido contratada, na qualidade de Advogada, pela irmã do Autor, afigura-se inequívoca a legitimidade da escusa invocada pela testemunha, na medida em que o conhecimento dos factos sobre os quais foi questionada adviria do exercício da sua atividade profissional.
Ainda assim, na parte final do seu depoimento a mesma testemunha esclareceu que concluiu a prestação de serviço que lhe foi solicitada, o que significa que não ficou por executar qualquer atividade relacionada, nomeadamente, com o destaque de alguma parcela de terreno.
Por essa razão, afigura-se que não será expectável que a testemunha DD tenha conhecimento de outros factos relevantes para a decisão a proferir, motivo pelo qual decido não suscitar, oficiosamente, qualquer incidente destinado a obter o levantamento do segredo profissional invocado pela testemunha a que se aludiu, sem prejuízo, naturalmente, de alguma das partes poder requerer que tal incidente seja suscitado.

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O Autor suscitou, perante este tribunal, o incidente de levantamento de sigilo profissional daquela testemunha, formulando as seguintes conclusões:
A. A Testemunha depôs no âmbito dos presentes autos, alegando ter sido mandatada pela falecida BB para efeitos de preparação de documentação e acompanhamento de escritura de partilha por óbito de CC (vide doc. 7), que foi outorgada a 10 de janeiro de 2007, na qual esteve efectivamente presente.
B. Mais alegando também, ser amiga pessoal dos RR., que são os herdeiros de BB.
C. A montante, para efeitos de comprovação do alegado mandato, requer seja a Testemunha notificada para vir apresentar a respetiva procuração.
D. No âmbito do seu depoimento, a testemunha foi inquirida sobre se durante o tempo em que esteve presente na escritura de partilha, terá sido celebrado acordo verbal entre o A. EE, AA e a BB, segundo o qual BB obrigou-se a proceder às diligencias necessárias para que parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sobre o n.º ...80 da freguesia ... (vide doc. 1), passasse a pertencer a AA.
E. Inquirida sobre esta questão, a Testemunha escusou-se a responder, invocando estar sujeita a segredo profissional, nos termos do n. 3 do art.º 497.º do CPC e art.º 92.º do EOA.
F. A testemunha também alegou, em jeito de resposta, que a partir daquela data da partilha os seus serviços ficaram concluídos, o que levou o Tribunal a aceitar a sua escusa em depor.
G. Mas tal afirmação não significa que o acordo verbal seja inexistente, porque poderia ser cumprido por qualquer outro profissional, designadamente um arquiteto, se uma das possibilidades tiver sido, conforme alegado nos autos, proceder a um destaque.
H. O que nos parece, salvo melhor entendimento, é que ao ser verdade que a Testemunha nada mais ficou de fazer depois da partilha, então o seu alegado mandato nunca se poderá ter estendido à assistência no cumprimento do referido acordo verbal em causa.
I. Mais alegando que a partir daquela data, os seus serviços ficaram concluídos.
J. Ora, a ser verdade que a Testemunha nada mais ficou de fazer depois da partilha, significa que, o seu alegado mandato nunca se poderá ter estendido à assistência no cumprimento do referido acordo verbal em causa.
K. O que não significa que o acordo verbal seja inexistente, porque poderia ser cumprido por qualquer outro profissional, designadamente um arquiteto, se o plano inicial tiver sido, conforme alegado nos autos, proceder a um destaque.
L. E a testemunha terá alegado que o seu mandato se limitou à preparação e acompanhamento da referida escritura de partilha, pelo que, à contrário, não representou nenhum dos presentes na celebração do acordo verbal em causa.
M. E assim sendo, esta questão estava excluída do alegado mandato da Testemunha, razão pela qual nos parece, salvo melhor entendimento e com o devido respeito, que não deveria ficar sujeita ao segredo profissional.
N. Ainda que assim não se entenda, sempre nos parece que também não estaríamos perante matéria sujeita a sigilo profissional, por não preencher a previsão de nenhuma das alíneas do n. 1 do art.º 92.º do EOA.
O. Isto porque o acordo verbal em causa não terá sido confidenciado em segredo nem de forma individual por alguma das partes, tendo outrossim sido celebrado na presença de todos os interessados, diretamente entre estes, com o seu conhecimento e de acordo com as suas vontades, pelo que consideramos não ser aplicável a alínea a) do n. 1 do art.º 92.º do EOA.
P. Até porque não é aqui identificável nenhum segredo, nem foi alegado em momento algum que tenha existido algum segredo na celebração do acordo verbal em causa.
Q. E o que o AA. alega é no dia 10 de janeiro de 2007, aquando da partilha, foi definitiva e integralmente celebrado um acordo verbal entre os presentes, tendo todos tido conhecimento e aceite os respetivos termos, sem reservas, o que não se confunde com negociações malogradas, pelo que consideramos não ser aplicável a alínea f) do n. 1 do art.º 92.º do EOA.
R. Caso assim não se entenda, considerando-se que estamos perante informação sujeita a segredo profissional, sempre requer seja o mesmo levantado, por ser este depoimento essencial e insubstituível para a descoberta da verdade, tendo em conta que a Testemunha terá sido a única pessoa que terá presenciado o alegado acordo, celebrado entre o A. e outras duas pessoas que já faleceram.
S. Ou seja, as únicas pessoas vivas que presenciaram este acordo foram o A. e esta Testemunha, que se recusa responder à questão colocada, invocando o sigilo profissional e o facto de ser amiga pessoal dos RR.
T. E além de estar em causa património imobiliário no valor de 63.0000,00 €, que é muito dinheiro na perspetiva do AA. e da sua família, também está em causa a ligação emocional que o A. tem a este prédio, por ter pertencido aos seus pais, na localidade onde cresceu, e para onde quer retornar logo que se reforme, bem como a honra e respeito pela memória do seu pai e irmã.
U. Acordo este que só não foi formalizado por escrito porque havia uma boa relação de confiança entre pai e filhos, nunca se imaginando que a filha viria a adoecer pouco tempo depois, de doença que infelizmente a levou a falecer.
V. E o facto de a Testemunha se ter recusado a depor, tudo indica que alguma coisa ouviu sobre este acordo, porque caso contrário poderia apenas ter dito que nada foi falado a este respeito, o que em tudo beneficiaria os seus amigos RR., cujos interesses não se devem sobrepor ao interesse público da descoberta da verdade material.
W. Face ao exposto, nos termos do art.º 135.º, n. 4 do CPP, requer seja a Ordem dos Advogados notificada para se pronunciar sobre se, a montante, está a resposta à pergunta em causa abrangida pelo segredo profissional, e em caso afirmativo, sobre se, poderá ser admitido o respetivo levantamento, em benefício da descoberta da verdade material.
Face ao exposto, requer seja a Ordem dos Advogados notificada para se pronunciar e seja subsequentemente considerado procedente o presente incidente de levantamento de segredo profissional, notificando-se a testemunha para vir depor sobre a matéria em causa.

Este incidente foi autuado por apenso e remetido para este Tribunal da Relação para decisão, nos termos do art.º 135º do Código de Processo Penal, ex vi art.º 417º, n.º 4, do Código de Processo Penal.

Foi solicitado ao Presidente do Conselho Regional de ... da Ordem dos Advogados a emissão do parecer a que alude o art.º 135º, n.º 4 do C. P. Penal.
Tal parecer foi emitido no sentido de não quebra do sigilo profissional.

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I - Do objeto do incidente
O art.º 417º, n.º 3, c) e n.º 4, do Código de Processo Civil dispõem:
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
...
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Por sua vez, consta dos quatro primeiros números do art.º 135º do Código de Processo Penal:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
...
Dos n.º 2 e 3 deste último preceito resulta que compete ao tribunal da 1.ª instância verificar apenas a legitimidade da recusa em depor, ou seja ajuizar se os factos sobre os quais a testemunha se recusa a depor estão abrangidos por um dever de sigilo, e, no caso de concluir pela legitimidade da recusa, compete ao Tribunal da Relação, sendo suscitada, oficiosamente ou a requerimento de qualquer uma das partes, a quebra do sigilo, decidir, em segunda instância, sobre a legitimidade da recusa, e, em 1.ª instância, sobre a justificação de quebra do sigilo [1].
No presente caso, o tribunal da 1.ª instância concluiu pela legitimidade da recusa da testemunha DD depor sobre a existência de um negócio fiduciário, subjacente ao contrato de partilha outorgado entre o Autor, o seu pai e a sua irmã BB, uma vez que esses factos estavam cobertos pelo sigilo profissional, não tendo suscitado oficiosamente a quebra do sigilo, a qual foi, no entanto, requerida pelo Autor que, previamente, questionou a legitimidade da testemunha para invocar o dever de sigilo.
Cumpre, pois, a este Tribunal verificar a legitimidade da recusa e, na hipótese de uma resposta afirmativa, apreciar a existência de uma justificação para a quebra do dever de sigilo que a fundamentou.


II – Da legitimidade da recusa.
A testemunha DD recusou-se a depor sobre a existência de um negócio fiduciário, subjacente ao contrato de partilha outorgado entre o Autor, o seu pai e a sua irmã BB, alegado pelo Autor na petição inicial, invocando a sua qualidade de advogada da irmã do Autor, BB na preparação e acompanhamento da sua cliente na outorga daquele contrato de partilha.
O Autor alega que, não tendo aquela testemunha representado qualquer um dos outorgantes na celebração do referido negócio e não tendo o mesmo sido celebrado sob segredo, não se verifica nenhuma das situações previstas no art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Dispõem os n.º 1 e 2 deste preceito:
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
Conforme revela a utilização do termo “designadamente”, o elenco das situações de segredo profissional contante das alíneas do n.º 1, não é taxativa, verificando-se essa vinculação em todas as demais situações em que o advogado tem conhecimento dos factos por causa do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, não sendo necessário que sobre esses factos tenho existido um pacto de segredo.
O segredo profissional é um instrumento de proteção de três grandes objetivos:
- garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente;
- dignificar a função do advogado, enquanto agente ativo na administração da justiça;
- promover o papel essencial do advogado na composição extrajudicial dos conflitos [2].
Ora neste caso, constata-se que o conhecimento que a testemunha terá sobre os termos da partilha em causa, designadamente sobre a existência de um pacto fiduciário subjacente a esse negócio, resultou do facto dela ser a advogada de uma das suas outorgantes, tendo-lhe prestado serviços de apoio jurídico na realização daquele negócio, pelo que é inequívoca a sua vinculação ao segredo profissional, por força do disposto no corpo do art.º 92º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à revelação de factos que esclareçam os termos reais em que o contrato de partilha foi outorgado.
E conforme expressamente consta do n.º 2, do referido art.º 92º, não é necessária que a intervenção do advogado ocorra em representação do cliente para que a obrigação do segredo profissional exista, pelo que se confirma a decisão do tribunal da 1ª instância no sentido da legitimidade da recusa.

III – Da quebra do sigilo
Conforme tem sido afirmado pela jurisprudência dos nossos tribunais o sigilo profissional do advogado só deve ser quebrado, contra a sua vontade ou do seu cliente, em situações muito excecionais e quando estejam em causa interesses altamente relevantes que não possam ser satisfeitos por outra via.
O Autor justifica a quebra do sigilo pretendida pelo facto do depoimento desta testemunha ser essencial e insubstituível para a descoberta da verdade, tendo em conta que a Testemunha terá sido a única pessoa que terá presenciado o alegado acordo, celebrado entre o A. e outras duas pessoas que já faleceram ... além de estar em causa património imobiliário no valor de 63.0000,00 €, que é muito dinheiro na perspetiva do AA. e da sua família, estando também em causa a ligação emocional que o A. tem a este prédio, por ter pertencido aos seus pais, na localidade onde cresceu, e para onde quer retornar logo que se reforme, bem como a honra e respeito pela memória do seu pai e irmã.
O Conselho Regional da Ordem dos Advogados emitiu um parecer no sentido de não se proceder à quebra do sigilo profissional, pelas seguintes razões:
Considerando que nos presentes autos o que está em causa são interesses das partes, de natureza privada e não um qualquer interesse público, na ponderação de interesses que deve ser feita deverá prevalecer o interesse público decorrente do segredo profissional do advogado, mantendo-se o mesmo em detrimento dos interesses das partes ... Acresce que, o Advogado apenas pode depor a favor do seu cliente, incluindo-se, neste caso, face à prejudicialidade do mandato anterior e do objeto processual, os sucessores do cliente titular do segredo profissional, não sendo, em caso algum, permitido que o advogado titular do segredo profissional seja autorizado a depor contra o seu cliente.
Reconhece-se a posição privilegiada da testemunha DD relativamente à perceção dos factos sobre os quais se recusou a depor, tendo-se acentuado a importância do seu depoimento com o falecimento de alguns dos intervenientes nesse negócio, dos quais só resta o próprio Autor e o Réu FF, sem que, contudo, se possa confirmar que esse é o único meio de produção de prova possível sobre a existência do alegado acordo fiduciário, desde logo porque pode o Autor requerer, não só o depoimento de parte do Réu FF, como o seu próprio depoimento.
No entanto, apesar da inegável importância fulcral do depoimento da testemunha para o apuramento da verdade dos factos, tendo em consideração que nesta ação apenas estão em jogo interesses privados, revelar-se-ia flagrantemente desproporcionado sacrificar os relevantes interesses públicos que presidem ao sigilo profissional dos advogados, impedindo que um advogado se escuse a depor sobre matéria relativa ao exercício de seu mandato e que poderá ser prejudicial aos interesses dos herdeiros da sua cliente, entretanto falecida. A pretendida quebra do sigilo profissional afetaria insuportavelmente a confiança nas relações advogado-cliente, a qual é imprescindível ao exercício de uma advocacia que garanta um esclarecido acesso ao direito aos cidadãos.
Por estas razões deve ser indeferido o pedido de quebra do sigilo profissional que incide sobre a testemunha DD.

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Decisão
Pelo exposto, acorda-se em indeferir a requerida declaração de ilegitimidade de invocação do dever de sigilo pela testemunha DD, assim como a quebra desse dever.

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Custas do incidente pelo Autor.

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                                                                     13.9.2022
Sílvia Pires
Henrique Antunes
Mário Rodrigues da Silva




[1] Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Código de Processo Penal, pág. 378.
[2] Acórdão do S.T.J. de 5.5.2022, relatado por João Cura Mariano e acessível em www.dgsi.pt.