Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
687/10.6TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: PROPRIEDADE
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
IMPUGNAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.342, 343 CC, 4, 28, 193 E 508 CPC
Sumário: 1. Pedindo a autora a declaração judicial do seu direito de compropriedade sobre coisa comum, verifica-se a necessidade de litisconsórcio necessário passivo, na medida em que a ausência de qualquer dos consortes inviabiliza a produção do “efeito útil normal” da decisão a proferir, nos termos do n.º 2 do artigo 28.º do CPC.

2. Revela-se pacífico o entendimento de que acção de impugnação de escritura de justificação notarial tem natureza de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 2, a. a), do CPC), por visar apenas a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura.

3. Daí decorre que sobre os réus (justificantes) recai o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos integradores da aquisição do direito de propriedade, de que se arrogaram na escritura de justificação (art. 343.º, n.º 1, do CC).

4. Confrontada com a escritura de justificação notarial, a autora podia validamente seguir um dos dois caminhos: i) optar por se limitar a pedir a declaração de inexistência do direito dos réus (justificantes), configurando a acção como de simples apreciação negativa e transferindo para os réus o ónus de alegação e prova do direito justificado; ii) ou pedir, pela positiva, a declaração do seu direito, passando a assumir todos os ónus de alegação e prova dos respectivos pressupostos.

5. Optando a autora por requerer ao tribunal a declaração positiva - condenação dos réus (justificantes) no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o bem imóvel objecto da escritura de justificação -, a acção não assume a natureza de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 1 a) do CPC), deixando de recair sobre os réus o ónus de alegação e prova do direito que invocam (art. 343/1 CC), o qual, nos termos gerais passa a recair sobre a autora (art. 342/1 CC).

6. Formulada a pretensão nos termos referidos, os réus podem limitar-se à impugnação dos factos alegados pela autora.

7. No entanto, um vez judicialmente declarado o direito de propriedade da autora, o mesmo será incompatível com a declaração constante da escritura de justificação, obstando assim validamente à eficácia desta.

8. O poder atribuído ao juiz pelo art.508 nº3 do CPC não é um poder vinculado, pelo que a omissão do despacho de aperfeiçoamento não configura qualquer nulidade processual.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
Invocando a qualidade de representante da “herança jacente” de M (…), veio G (…) intentar a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra E (…) e mulher D (…), pedindo: i) que se declare “que o prédio identificado no art. 1º da p.i. é propriedade, na proporção de uma quarta parte, da herança jacente aberta por óbito de M (…)”; ii) que sejam “os réus condenados a restituírem à herança os prédios identificados no art. 1º da p.i.” (sic) e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte da autora de tal prédio de que ela é comproprietária; iii) que não seja passada certidão da escritura de justificação de 19 de Fevereiro, nos termos do art. 101º do CNotariado; iv) que sejam os réus condenados a título de indemnização por danos morais, na quantia de € 2.000,00, bem como a pagarem a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, por danos patrimoniais.
Como fundamento da sua pretensão, alegou a autora em síntese: a) que a herança que representa é comproprietária do prédio identificado no artigo 1.º da petição; que o referido prédio foi propriedade plena de (…) e mulher (…), tendo sido por óbito desta, ocorrido em 6/10/1960, adjudicado na forma seguinte: 1/6 a (…) casado com (…), 2/6 a (…), casado com (…) e 1/2 a (…), casada com (…); que (…) vendeu a sua parte (1/2) aos seus dois irmãos – G (…) (autora) e (…), em partes iguais, ou seja, 1/4 do referido prédio a cada um; que por sua vez (…) vendeu a sua parte (1/4 do prédio referido) ao réu E (…); que em 12.06.1991 faleceu o marido da autora – M (…), deixando como únicos herdeiros, para além da esposa (autora), os filhos (…); que os réus fizeram escritura de justificação notarial na qual declararam ter adquirido por usucapião um prédio rústico, omisso na matriz; que os réus apenas possuem uma quarta parte do prédio identificado no art. 1º da p.i., inscrito na matriz sob o nº X..., nunca tendo possuído qualquer prédio rústico em propriedade plena; que, consultado o processo administrativo que deu origem à inscrição do prédio omisso nº ..., se constata que o levantamento topográfico junto corresponde à quarta parte que os réus adquiriram a (…) e mulher; que os factos consignados na escritura de justificação não correspondem à verdade, tanto mais que os réus nunca ocuparam à área que consta da escritura de justificação.
Finalmente, refere a autora que da ofensa ao direito de compropriedade resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais que merecem a tutela do direito, porque a actuação dos réus lhe provocou a angústia, mau estar, nervosismo, insónias e incómodos, requerendo que a título de danos morais sejam os réus condenados a pagarem-lhe o montante de €2.000,00, bem como despesas judiciais e extrajudiciais que não consegue quantificar, mas que liquidará em execução de sentença.
Citados, os réus vieram impugnar os factos invocados pela autora, confirmando, todavia, a celebração da escritura de justificação.
A autora veio apresentar resposta à contestação referindo que os réus invocam factos que constituem matéria de excepção e requerendo a sua condenação como litigantes de má fé.
Foi proferida sentença, na qual, depois de se considerar processualmente inadmissível o articulado resposta apresentado pela autora, com excepção da parte em que é requerida a condenação dos réus como litigantes de má fé, se decidiu:

«[…] Nestes termos, face à assinalada existência de contradição do pedido e da causa de pedir também no que toca a este segmento a petição é inepta.

Por outro lado, no que toca aos pedidos de indemnização deduzidos, uma vez que os mesmos eram dependência dos pedidos principais supra assinalados, é patente que o respectivo conhecimento fica prejudicado, atenta a ineptidão da p.i. no que toca às pretensões deduzidas pela autora a título principal.

Aliás, o mesmo se diga no que diz respeito ao pedido de condenação dos réus como litigantes de má fé.

Efectivamente, face à decisão proferida considerando a p.i. inepta, evidente se torna que fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação dos réus como litigantes de má fé, tanto mais que uma eventual má interpretação do que foi alegado pela autora apenas a esta última poderá ser imputada.

Decisão:

Pelo exposto, de acordo com os preceitos normativos citados, declara-se a nulidade de todo o processado e, em consequência, absolvem-se os réus da instância (cfr. arts. 288º, al. b), 493º, 1 e 2, 494º, al. e)??? e 495º do CPCivil).»
Não se conformando, a autora interpôs recurso de apelação, no qual formula as seguintes conclusões:

1- O Tribunal “a quo” considerou que a petição inicial é inepta, pelo seguinte: […][1].

2- Ora, a douta sentença, que absolveu os RR. da instância, salvo o devido respeito, que é muito, deriva fundamentalmente de:

- uma contradição insanável na fundamentação da sentença;

- de um erro na aplicação do direito e na determinação do direito aplicável;

- da nulidade da sentença, por omissão de actos que deviam ter sido praticados e que influíam na decisão da causa, designadamente omissão do convite ao aperfeiçoamento da p.i., que gera nulidade prevista no art. 201º, n.º 1 do CPC, nulidade esta que ora se invoca para os devidos e legais efeitos;

- da fundamentação da douta sentença resulta a violação dos princípios jurídicos: Princípio da igualdade das partes; Princípio da adequação formal e Principio da Cooperação, consagrados respectivamente nos art. 3º - A, art. 265º- A e art. 266 todos do CPC; e

- da fundamentação da douta sentença resulta a violação dos Princípios constitucionais do direito de defesa e o Princípio da igualdade, consagrados respectivamente nos art. 20º e 13 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que ora se invoca para os devidos e legais efeitos.

3- O Tribunal “a quo”, optou por proferir SENTENÇA, logo no despacho saneador, julgar a p.i. inepta, declarar a nulidade de todo o processado e, em consequência, absolveu os réus da instância (cfr. arts. 288º, al.b), 493º, 1 e 2, 494, al. e) ??? e 495º do CPCivil), sem ter convidado a A. a suprir as deficiências do pedido e da causa de pedir, ao assim proceder comete a nulidade prevista no art. 201º, n.º 1 do CPC, nulidade esta que se invoca para os devidos e legais efeitos, bem como viola o princípio da adequação formal, consagrado no art. 265º- A do CPC e o Princípio da cooperação consagrado no art. 266º do CPC, violações essas que aqui se invocam para os devidos e legais efeitos e que gera nulidade da sentença.

4- O tribunal “a quo”entendeu que a A. deduziu o seu pedido de “modo deficiente e obscuro”in página 8, in fine da douta sentença, e por esse facto julgou a p.i. inepta, declarando a nulidade de todo o processo e, em consequência absolveu os réus da instância, sem ter convidado a A. a suprir essas deficiências e imprecisões. Ao assim proceder o tribunal “a quo” cometeu a nulidade prevista no art. 201º, n.º 1 do CPC, nulidade esta que ora se invoca para todos os devidos e legais efeitos. Neste sentido vai a jurisprudência, a saber: AC. RP de 06/05/2010- processo n.º 81/07.6TBARC.P1 – 3ª secção, in www.trp.pt/jurisprudência/cível; Acs. Da RP de 16.06.98, 03.05.01 e 24.05.01, da RC de 19.05.05 e RL de 06.11.03 todos em www.dgsi.pt; Acs do STJ de 16.12.58 e de 10.04.86, BMJ 82º - 406 e 356º- 285, respectivamente.

5- Assistiria razão, ao meritíssimo juiz que proferiu a douta sentença, se efectivamente não existisse pedido, ou não existisse causa de pedir, mas no caso ora sub Júdice e como bem resulta da sentença, acima transcrita nos números 1 e 2 que aqui se reproduz nessa parte para os devidos e legais efeitos, que o pedido da A. é “deficiente e obscuro” existe pedido e existe causa de pedir, logo o Tribunal “a quo” não podia julgar a p.i. inepta, sem primeiro ter convidado a A. a suprir as deficiências e as obscuridades.

6- O que não veio a acontecer, razão pela qual se vem sindicar a decisão pela qual a acção foi julgada totalmente improcedente, tendo o Tribunal “a quo” declarado a nulidade de todo o processado, absolvendo os réus da instância.

7- Ora, salvo o devido respeito, não andou bem o Tribunal “a quo”, na medida em que devia ter convidado a A. a suprir as deficiências e obscuridades do pedido e da causa de pedir, em vez de ter julgado a p.i. inepta, declarando a nulidade de todo o processado e consequentemente absolvido os RR. da instância, razão pela qual deverá o Tribunal “ad quem”, proferir um acórdão que anule a decisão ora sindicada, por ter cometido a nulidade prevista no art. 201º, n.º 1 do CPC e simultaneamente ordene o convite ao aperfeiçoamento da p.i., pela A. afim de suprir as deficiências do pedido e da causa de pedir.

8- Por outro lado no caso ora sub Júdice existe uma contradição insanável na fundamentação da sentença, contradição esta que ora se invoca para os devidos e legais efeitos, na medida em que o Tribunal “a quo ”considerou na douta sentença e passa-se a citar: “Ora, os réus, na contestação, muito provavelmente atento o modo deficiente e obscuro como a autora deduziu o seu pedido, não cumpriram o ónus de alegar factos conducentes à aquisição por usucapião, pelo que também nunca lograriam fazer prova daquilo que consta da escritura de justificação.”

9- Todavia, e salvo o devido respeito que é muito, a meritíssima juiz de direito percebeu bem a acção – impugnação de uma escritura de justificação. Assim, se o Tribunal “ a quo ” percebeu a causa de pedir e o pedido, isto é percebeu o âmbito da acção, não pode dizer que os RR. “muito provavelmente” não perceberam e por isso é que “não cumpriram o ónus de alegar factos conducentes à aquisição por usucapião, pelo que nunca lograriam fazer prova daquilo que consta da escritura de justificação. Assim, face ao supra exposto, dúvidas na restam de que efectivamente existe na fundamentação da sentença, ora sub Júdice , uma contradição insanável, contradição esta que ora se invoca para os devidos e legais efeitos.

10- Pois, os RR. na contestação têm de deduzir toda a sua defesa e em momento algum eles (RR.) alegam que a p.i. é inepta, por ser ininteligível, obscura, deficiente, que os impeça de compreender o alcance e âmbito da acção - Princípio da preclusão das partes, que tem acolhimento no art. 489º, n.º 1 do CPC.

11- Pelo contrário, resulta dos autos elementos, documentos elaborados pelos RR. e juntos com a p.i. pela A., que não foram impugnados pelos RR, que nos levam a concluir sem qualquer dúvida que os RR. compreenderam a p.i. e interpretaram convenientemente a p.i., e só não invocaram factos de onde resulte que são donos do artigo rústico 12.302 e que o adquiriram por usucapião, porque efectivamente como resulta dos documentos juntos com a p.i., designadamente escritura de compra e venda de uma quarta parte a (…) e mulher do artigo matricial X... e do registo na Conservatória do registo Predial de ..., desta mesma aquisição, Cfr. Doc. 1, 2, 3, da p.i., cujo conteúdo aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos, documentos estes, que não foram impugnados pelos RR. e que se devem considerar como assentes, o prédio que compraram a (…) foi ¼ do Art. X..., pelo que têm titulo aquisitivo . compra e venda e não o adquiriram pela usucapião.

12- Relativamente ao extracto da escritura de Justificação, é um documento da sua autoria, pelo que não podiam ignorar, por ser um facto de conhecimento pessoal. Assim, os RR, e salvo o devido respeito, não alegaram ou invocaram a sua qualidade de donos exclusivos do prédio em causa, nem alegaram os factos conducentes à aquisição por usucapião do art. 12.302, porque estavam vedados por lei, porque era um facto do seu conhecimento pessoal e que não podiam ignorar - Art. 490, n.º 3 do CPC e conforme resulta dos Doc 1, 2, 3, conjugado com o doc. 5 e 6, 7, todos junto com a p.i e da certidão emitida pela Câmara Municipal de ... do processo de obras n.º 144/2006, junta aos autos em 28 de Agosto de 2010, documentos estes que aqui se reproduzem para os devidos e legais efeitos, e que não foram impugnados pelos RR. pelo que os factos constantes neste documentos devem se considerar por assentes, só assim se fará a costumada justiça.

13- Assim, resulta de forma inequívoca que os RR. interpretaram convenientemente a p.i., e por essa razão não invocaram a ineptidão da mesma.

14- Assim, face ao supra exposto, o tribunal “a quo” não podia ter aplicado o art. 193, n.º 1 e 2 do CPC, e julgando a p.i. inepta, declarando a nulidade de todo o processo e consequentemente ter absolvido os RR. da instância, antes pelo contrário devia ter aplicado o art. 193, nº 3 do CPC, na medida em que os RR. interpretaram convenientemente a p.i. e só não alegaram os factos que lhe competiam, por estarem impedidos por força da lei e dos princípios da boa Fé consagrados e aplicáveis no nosso sistema jurídico português.

15- Assim, e porque os RR. não cumpriram o ónus de alegarem factos constitutivos do direito de propriedade do prédio objecto da escritura de justificação e bem como não alegaram circunstâncias de facto que determinassem o inicio da posse e que caracterizassem a posse geradora da usucapião do prédio objecto da escritura de usucapião – art. 12.302, que nos presentes autos se impugna, de acordo com a regras do ónus da prova e repartição desse mesmo ónus da prova, devem ser os RR. condenados […][2].

16- O sentido em que o Tribunal “a quo” interpretou o silêncio do RR. é ilegal e inconstitucional, pois tal entendimento não tem acolhimento no nosso ordenamento jurídico, ao assim proceder o tribunal “a quo ”violou as disposições legais relativas á repartição do ónus da prova – Art. 343, 344 do Código civil, bem como viola o princípio constitucional da igualdade e da defesa, consagrados respectivamente no art. 13 e 20 da Constituição da república Portuguesa, inconstitucionalidade essa que ora se invoca para os devidos e legais efeitos.

17- No âmbito dos presentes autos, acresce ainda dizer o seguinte: Assim percebe-se e colhe-se da sentença: “Ora, é certo que se o fim visado pela autora com a presente acção fosse a impugnação da escritura de justificação – caso em que estaríamos perante uma acção de simples apreciação negativa – bastar-lhe-ia alegar que os réus não eram donos do dito prédio e que o não haviam adquirido por usucapião”. Não houvesse impedimento e naturalmente a autora o teria feito nesse molde e, porque não podia socorrer-se deste procedimento usual, alegou que o prédio com o registo matricial N.º Z..., que sustenta o processo da usucapião, não existe fisicamente. Também alegou que os réus eram donos, por escritura da compra/venda e registo matricial, do art. X..., e que o levantamento topográfico junto com o processo administrativo de obtenção do prédio omisso m.º 12.302 coincide com a ¼ que os RR. têm no art. X..., Há excepção da área. Pelo que não adquiriram o prédio (espaço físico) por usucapião.

18- A sentença é sustentada pelo preceituado no n.º 116º do C R Predial, conjugado com o disposto no n.º 1 e 2 do art. 89 do C Notariado que, se bem se entende, permite ao “adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito…”, obtê-lo. Ora, a autora alegou que os réus eram e são detentores de documento para prova do seu direito, (escritura de compra/venda e registo predial) DOc. 1, 2 e 3 juntos com a p.i. e cujo conteúdo aqui se reproduz para os devidos e legais efeitos. Assim, a entender-se como se entende, o preceituado no art. 116.º do CR Predial e o estabelecido no n.º 1 e n.º 2 do art. 89º do C. Notariado, não devem operar em prejuízo da autora e, salvo melhor opinião, aos réus não assistia o direito de deles fazer uso, ou seja: o tribunal não teve em consideração que os réus fizeram uso ilegal da excepção (usucapião) para modificar unilateralmente a situação jurídica do prédio de que são comproprietários. Ou seja, os RR. indevidamente utilizaram a escritura de usucapião, quando deviam ter feito uso da Acção especial de divisão de coisa comum prevista no artigo 1052 do CPC. […]

19- A douta sentença explana, ainda o seguinte: “Assim, o facto comprovado pelo registo da escritura de justificação é impugnável, nos termos gerais do artigo 8.º, n.º 1, do Código do Registo Predial, pelo que deve ser pedido o cancelamento do registo com a impugnação do facto justificado”.

Naturalmente que a autora o teria feito nos moldes descritos mas os réus não chegaram a fazer o registo, resultando um facto não comprovado pelo registo da escritura de justificação que impossibilita a autora de pedir o cancelamento desse com a impugnação do facto justificado. A autora requereu a impugnação das declarações constantes da escritura de justificação, pela via da afirmação e também requereu que não seja passada certidão da escritura de justificação, não podia pedir o cancelamento do registo, porque esse não se mostra efectuado pelos RR.

20- “Ora, os réus, na contestação, muito provavelmente atento o modo deficiente e obscuro como a autora deduziu o seu pedido, não cumpriram o ónus de alegar factos conducentes à aquisição por usucapião…” a) Os réus são parte interessada conhecedora factual da situação real e pretendem ter a posse plena do seu prédio, ou seja, os réus, na qualidade de comproprietários, sabiam que não tinham a posse plena, porque há mais de 20 anos eram detentores, não só da escritura de compra/venda a AM... de ¼ do prédio com o registo matricial n.º X..., mas também do respectivo registo na conservatória respectiva. Também sabiam que o levantamento topográfico apresentado na escritura de justificação era parte desse prédio n.º X... e tem área, que pretendem fazer sua, superior à correspondente à fracção de ¼ do art. X..., que adquiriram por escritura pública a (…) e mulher (…). Igualmente sabiam que, fisicamente, não existe o terreno do prédio com o registo matricial com o n.º Z..., que sustenta a escritura da usucapião que está na origem dos presentes autos. Pela escritura de justificação, mais de ¼ do prédio com o registo matricial n.º X... perde-se a seu favor (deles réus) e ainda continuam donos de ¼ da área sobrante desse prédio n.º X.... É pois natural que se remetessem ao silêncio, tanto mais que sabiam que as alegações poderiam ser usadas contra si, noutro processo. Abuso de confiança. b)- O incumprimento do ónus de alegar factos conducentes à aquisição por usucapião não pode ser justificado com meros pressupostos e a decisão de atendê-lo carece de suporte de facto e de direito, tanto mais que os réus não justificaram o seu silêncio e deviam tê-lo feito, pois na contestação os RR. têm de invocar toda a defesa. Art. 489 do CPC.

21- Por outro lado, sempre se dirá que a douta sentença consignou na sua fundamentação o seguinte “Assim, não pode deixar de se concluir que considerando esta acção como de impugnação da escritura de justificação a autora omitiu o pedido adequado a fazer valer tal pretensão”. Contudo a autora estava impedida de fazer o pedido nos moldes da fórmula padrão, pelo que o formulou da maneira possível e que reproduzisse a realidade fáctica.

22- “Por outro lado, tal nulidade não pode ser considerada sanada, na medida em que da contestação apresentada se conclui que os réus não interpretaram convenientemente a petição inicial,…”. Assim, conclui-se que os réus não interpretaram convenientemente a petição inicial e mais uma vez se decide, da mesma forma, que não é responsabilidade sua (deles réus) mas sim da autora, que poderia ter sido convidada a clarificar eventuais dúvidas ou formular pedido de modo menos “deficiente e obscuro”. No entanto, é necessário perceber a petição inicial para perceber que os réus não a perceberam.

23- O Tribunal “a quo ” considerou que “face à decisão proferida considerando a p.i. inepta, evidente se torna que fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação dos réus como litigantes de má fé, tanto mais que uma eventual má interpretação do que foi alegado pela autora apenas a esta última poderá ser imputada.”

24- A douta decisão do Tribunal “a quo”, andou mal quando considera que não pode pronunciar-se sobre o pedido de condenação como litigante de má fé, pois resulta dos autos prova documental […]

Nestes termos e nos melhores de Direito e Doutamente supridos, deverá o presente recurso merecer provimento, conforme conclusões supra e a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que:

a) Anule a decisão recorrida por ter cometido a nulidade prevista no art. 201º, n.º 1 do CPC e simultaneamente ordene ao tribunal recorrido o convite ao aperfeiçoamento da p.i., pela A. afim de suprir as deficiências do pedido e da causa de pedir. Ou

b) Anule a decisão recorrida por violação das regras de repartição do ónus da prova – art. 343 e 344 do Código civil, e por aplicação do art. 193, n.º 3 do CPC e em consequência serem os RR. condenados […][3]

c) condenar-se o RR. como litigantes de má fé […]
Os réus apresentaram contra-alegações, invocando, a título de “questão prévia”, a falta de conclusões no recurso da autora, nestes termos:
«1- A A. não formula quaisquer conclusões, no sentido e nos termos da lei, ou seja, não cumpriu o ónus imposto pelo artº 685º-A/1 e 2, do CPC..
2- Efectivamente, apesar de ter denominado o capítulo II como de “CONCLUSÔES”, o certo é que se limitou a fazer um “copy past” (copiar e colar) do texto que consta do capítulo “I – ALEGAÇÔES”, sem que tenha formulado quaisquer conclusões, como era sua obrigação.
3- Assim, face à evidente inexistência de conclusões, tem que ser indeferido o recurso interposto pela A. e, consequentemente, arquivados os autos - cfr. artº 685º-C, nº 2, alínea b) “in fine”, do CPC.»
Subsidiariamente, caso se entenda admissível o recurso, preconizam a manutenção do julgado.

II. Apreciação da questão prévia suscitada
Alegam os Apelados que a Apelante no seu recurso não formula conclusões, limitando-se a fazer “copy past” das alegações.
Com este fundamento, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 685.º - C, do CPC, requerem o indeferimento liminar do recurso.
Dispõe o n.º 1 do artigo 685.º-A do CPC: «O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão
Entre outros fundamentos, impõe a alínea c) do n.º 2 do artigo 685.º-A do CPC, o indeferimento do recurso, quando «não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não tenha conclusões
Nos termos do n.º 3 do artigo 685.º-A do CPC, os vícios formais das conclusões resumem-se a quatro situações: deficiência, obscuridade, complexidade e omissão de especificações.
Como refere Abrantes Geraldes[4], as conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 do artigo 685.º-A do CPC (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados.
O mesmo vício formal ocorre quando se transferem para o segmento apto a integrar as conclusões, argumentos e referências doutrinais ou jurisprudenciais que foram ou deveriam ter sido usados no segmento da motivação, ou ainda quando se mostre desrespeitada a regra que aponta para a necessidade de a cada conclusão corresponder uma proposição, evitando amalgamar diversas questões.
Na situação sub judice, não se verifica a falta de conclusões invocada pelos Apelados, prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 685.º-A do CPC, já que tal omissão teria que ser absoluta[5].
O que se verifica, salvo o devido respeito, é o incumprimento por parte da Apelante, do ditame enunciado no n.º 1 do artigo 685.º-A do CPC, traduzido na falta de síntese, que torna as alegações confusas, apesar de perceptíveis.
Com efeito, a Apelante não fez qualquer esforço de cumprimento da exigência legal de “forma sintética”, enunciada no n.º 1 do artigo 685.º - A do CPC, daí resultando a confusão de argumentos amontoados invocada pelos Apelados.
Considerando, no entanto, a já referida perceptibilidade[6], por razões de economia e celeridade processual abstemo-nos de convidar a Apelante a aperfeiçoar as suas conclusões, passando-se à fase de apreciação do mérito do recurso.
Improcede, face ao exposto, a pretendida rejeição do recurso.

III. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: saber se estão verificados os pressupostos da ineptidão da petição inicial.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante:
1] Invocando a qualidade de representante da “herança jacente” de M (…), G (…) intentou a presente acção, sob a forma de processo sumário, contra E (…) e mulher D (…), pedindo: i) que se declare “que o prédio identificado no art. 1º da p.i. é propriedade, na proporção de uma quarta parte, da herança jacente aberta por óbito de M (…)”; ii) que sejam “os réus condenados a restituírem à herança os prédios identificados no art. 1º da p.i.” (sic) e a absterem-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte da autora de tal prédio de que ela é comproprietária; iii) que não seja passada certidão da escritura de justificação de 19 de Fevereiro, nos termos do art. 101º do CNotariado; iv) que sejam os réus condenados a título de indemnização por danos morais, na quantia de € 2.000,00, bem como a pagarem a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, por danos patrimoniais.
2] Alegou a autora em síntese, como fundamento dos seus pedidos:
a) que a herança que representa é comproprietária do prédio identificado no artigo 1.º da petição;
b) que o referido prédio foi propriedade plena (…) e mulher (…) tendo sido por óbito desta, ocorrido em 6/10/1960, adjudicado na forma seguinte: 1/6 a (…), casado com (…), 2/6 a (…), casado com (…) e 1/2 a (…), casada com (…);
c) que (…) vendeu a sua parte (1/2) aos seus dois irmãos – G (…) (autora) e (…), em partes iguais, ou seja, 1/4 do referido prédio a cada um;
d) que por sua vez (…) vendeu a sua parte (1/4 do prédio referido) ao réu E (…);
e) que em 12.06.1991 faleceu o marido da autora – M (…), deixando como únicos herdeiros, para além da esposa (autora), os filhos (…);
f) que os réus fizeram escritura de justificação notarial na qual declararam ter adquirido por usucapião um prédio rústico, omisso na matriz;
g) que os réus apenas possuem uma quarta parte do prédio identificado no art. 1º da p.i., inscrito na matriz sob o nº X..., nunca tendo possuído qualquer prédio rústico em propriedade plena;
h) que, consultado o processo administrativo que deu origem à inscrição do prédio omisso nº ..., se constata que o levantamento topográfico junto corresponde à quarta parte que os réus adquiriram a (…) e mulher;
i) que os factos consignados na escritura de justificação não correspondem à verdade, tanto mais que os réus nunca ocuparam à área que consta da escritura de justificação.
3] Foi proferida sentença na qual se julgou inepta a petição, tendo sido em consequência os réus absolvidos da instância.

3. Fundamentos de direito
3.1. As causas de ineptidão da petição
3.1.1. A preterição do listisconsórcio necessário passivo
Esta questão (de conhecimento oficioso – artigo 495.º do CPC), que não foi abordada na sentença recorrida, impedia o conhecimento do mérito da acção (artigo 288/1 d) do CPC), e deveria ter sido objecto de despacho de convite ao aperfeiçoamento, tendo em vista o chamamento à lide dos restantes comproprietários, através do incidente de intervenção principal provocada, previsto nos artigos 325.º e seguintes do CPC.
Vejamos porquê.
Apesar de toda a petição se centrar na alegação de falsidade das declarações consignadas pelos réus na escritura de justificação notarial, a verdade é que, de forma um pouco surpreendente, a autora conclui com este pedido principal: que se declare «que o prédio identificado no art. 1º da p.i. é propriedade, na proporção de uma quarta parte, da herança jacente aberta por óbito de M (…).».
Ou seja, apesar de impugnar as declarações consignadas na escritura de justificação, a aurora não pede a declaração de invalidade do título em causa[7].
Em síntese, a autora (na qualidade de representante da herança jacente), alega que a referida herança é comproprietária de um prédio, na proporção de ¼ indiviso, que os réus são comproprietários do mesmo prédio, na mesma proporção (de ¼ indiviso), e que existem mais dois comproprietários (…) e (…).
Na versão que apresenta na petição, mais alega a autora que o “prédio” justificado notarialmente pelos réus, não é mais do que uma parcela de terreno correspondente à quarta parte do referido prédio, ou seja, ao “¼ indiviso” de que os réus são titulares.
E culmina com o pedido de declaração judicial de reconhecimento do seu direito (de comproprietária).
Ora, salvo o devido respeito, não se vislumbra como possa a decisão a proferir sobre tal pedido, produzir o seu “efeito útil normal”, se não forem intervenientes na acção todos os comproprietários.
Rege nesta matéria o artigo 28.º do Código de Processo Civil:

1. Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.

2. É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Como referem Lebre de Freitas e outros[8], a norma transcrita não visa impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas sim para evitar sentenças - ou outras providências - inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico.
Para os autores citados, a pedra de toque do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de, tido em conta o pedido formulado, compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, ou ainda, nas acções de simples apreciação de facto, apreciando a existência deste, sem a presença de todos os interessados, por o interesse em causa não comportar uma definição ou realização parcelar[9].
Antunes Varela[10] dá o seguinte exemplo, bem demonstrativo do conceito de “efeito útil normal”: «suponhamos que o imóvel cuja divisão é requerida na acção pertence a quatro comproprietários e que o autor demanda apenas um dos seus contitulares. A decisão que, em semelhantes circunstâncias, fixasse a parte concreta de cada um dos dois interessados no prédio comum não teria nenhum efeito útil, porquanto qualquer dos dois restantes comproprietários poderia requerer mais tarde nova divisão e esta não teria que respeitar a divisão anteriormente efectuada».
Na situação em apreço, não se afigura como poderia o tribunal declarar a compropriedade de ¼ indiviso do prédio em discussão, estando presentes na acção apenas os comproprietários que a autora alega serem titulares de metade indivisa desse prédio (¼ indiviso correspondente ao direito da autora e ¼ indiviso correspondente ao direito dos réus).
Nesse sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 24.10.2000[11], bem como o acórdão da relação de Évora, de 29.03.2007[12]
Decorre de todo o exposto a ilegitimidade passiva dos réus, por preterição do litisconsórcio necessário passivo[13].

3.1.2. A contradição entre a causa de pedir e o pedido
Alega a autora nos artigos 3.º, 4.º, 5.º e 6.º da sua petição:

«3.º Uma quarta parte indivisa do prédio identificado no artigo 1 da p.i. é propriedade de M (…), e consequentemente, de G (…), com quem se encontrava casado sob o regime da Comunhão Geral de Bens.

4.º Uma quarta parte do prédio identificado no artigo 1 da p.i. veio à posse, de M (…) e mulher G (…) em 10/01/1979, por compra à irmã da ora A(…) – (…),

5.º M (…) e mulher G (…), por si durante mais de 20, 30 anos estão na posse do prédio mencionado no art. 1 desta p.i., defendendo e conservando a propriedade, semeando-os, cultivando-os, plantando e conservando a vinha, colhendo as uvas, vindimando, plantando e cortando os pinheiros, extraindo resina, roçando mato, retirando todos os rendimentos inerentes à sua natureza, pagaram contribuições e impostos e avivaram estremas.

6.º E tudo ocorreu à vista de todos, dia a dia e ano a ano sempre sem intervalo algum e repetidamente, sem oposição fosse de quem fosse, sem violência desde o inicio e sempre depois, convictos de que com tais actos não lesavam direitos ou interesses de outrem e agindo como se proprietários fossem, ou seja convictos de que exerciam um direito de propriedade pleno e exclusivo sobre o prédio.»
No artigo 19.º, mais alega a autora que o antepossuidor da 4.ª parte indivisa do prédio (…), que depois alienou essa parte aos réus «somente possuiu naquele local uma quarta parte do prédio identificado no artigo 1.º».
Em suma, a autora alega: i) que comprou à irmã a quarta parte indivisa do prédio que identifica no artigo 1.º da petição; ii) que ela e o marido praticaram todos os actos de posse sobre o referido prédio (todo o prédio), durante mais de vinte anos, sem interrupção nem oposição, na convicção de serem donos; iii) e que o anterior comproprietário (que alienou o seu direito aos réus), “possuía” a sua quarta parte.
Isto para depois concluir pedindo que se declare «que o prédio identificado no art. 1º da p.i. é propriedade, na proporção de uma quarta parte, da herança jacente aberta por óbito de M (…).».
Diz-se na sentença:

Na verdade, a autora alega factos – se bem que de forma insuficiente, na medida em que nada alega de onde resulte a aquisição por usucapião da compropriedade do citado prédio em relação aos restantes comproprietários, incluindo os réus – tendentes a demonstrar a aquisição por usucapião e depois termina requerendo que se declare que a herança, que diz representar, é proprietária de uma quarta parte do prédio descrito no art. 1º da p.i. e devendo os réus ser condenados a restituírem à herança o dito prédio.
A contradição reside nisto: a autora alega a prática de actos materiais de posse sobre todo o prédio (corpus), com intenção de actuar como titular do direito real correspondente a esses actos (animus), alega também (de forma contraditória) a posse dos réus e antepossidores sobre “a quarta parte” desse prédio, e depois conclui com um pedido de reconhecimento do direito de propriedade (compropriedade) sobre apenas um quarto indiviso do mesmo prédio.
Como referem Lebre de Freitas e outros[14], tal como no caso do artigo 668/1 do CPC (oposição entre os fundamentos e a decisão), trata-se aqui da “contradição lógica”, distinta da “inconcludência jurídica”, isto é, da situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da acção.
Tal contradição constitui fundamento de ineptidão, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 193.º do Código de Processo Civil.

3.1.3. A aparente “desadequação” do pedido
Diz-se na sentença:

«Na hipótese dos autos os réus, através da realização de escritura de justificação, invocaram a sua qualidade de donos exclusivos do prédio em causa, justificando essa aquisição por usucapião e expondo os factos que a ela teriam levado.

Contudo, a autora, apesar da alegação dos factos constantes da p.i. parecer que pretendia impugnar as declarações constantes de tal escritura – se bem que o faz pela via da afirmação que tal prédio lhe pertence a ela e a outros, incluindo os réus, em compropriedade, e referindo que, por isso, não pode pertencer uma determinada parte aos réus como decorreria do teor do escritura de justificação – visando que a mesma fique sem qualquer efeito, ou seja, que pretendia atingir o direito invocado na escritura de justificação notarial, não chega a efectuar tal pedido limitando-se a requerer, no que toca a tal questão, que não seja passada certidão da escritura de justificação. […]

Isto é, na hipótese dos autos, se fosse esse, a final, o pedido deduzido pela autora depois de impugnar o conteúdo da escritura de justificação impenderia sobre os réus o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de propriedade, sob pena de a acção proceder.

Ora, os réus, na contestação, muito provavelmente atento o modo deficiente e obscuro como a autora deduziu o seu pedido, não cumpriram o ónus de alegar factos conducentes à aquisição por usucapião, pelo que também nunca lograriam fazer prova daquilo que consta da escritura de justificação.

Assim, não pode deixar de se concluir que considerando esta acção como de impugnação da escritura de justificação a autora omitiu o pedido adequado a fazer valer tal pretensão.

Por outro lado, tal nulidade não pode ser considerada sanada, na medida em que da contestação apresentada se conclui que os réus não interpretaram convenientemente a petição inicial, designadamente no que toca a uma eventual declaração de ineficácia da escritura de justificação notarial realizada. […]»
Nas suas conclusões 21.ª e 22.ª, a recorrente insurge-se contra o entendimento expresso na parte da fundamentação da sentença sob censura, que se transcreveu.
Vejamos.
Revela-se pacífico o entendimento de que acção de impugnação de escritura de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 2, a. a), do CPC), por visar apenas a declaração da inexistência do direito, no caso de propriedade, arrogado na escritura.[15]
Daí decorre que sobre os réus (justificantes) recai o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos integradores da aquisição do direito de propriedade, de que se arrogaram na escritura (art. 343.º, n.º 1, do CC).
In casu, a autora, ao invés da formulação do pedido pela negativa – no sentido de requerer a declaração judicial de inexistência do direito invocado pelos réus na escritura – optou por requerer ao tribunal a declaração positiva: condenação dos réus (justificantes) no reconhecimento do seu direito de propriedade (no caso, de compropriedade) sobre o bem imóvel objecto da escritura de justificação.
Ora, se a autora impugna a veracidade das declarações na sua petição e depois não conclui com um pedido conforme a essa alegação, no sentido de ser judicialmente declarado que os réus não são donos do prédio sobre cuja titularidade se arrogam, a acção não assume formalmente a natureza de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 1 a) do CPC).
E, não revestindo a acção tal natureza, sobre os réus deixa de incumbir o ónus de alegação e prova do direito que invocam (art. 343/1 CC), o qual, nos termos gerais passa a recair sobre a autora (art. 342/1 CC).
Nessa medida, perante a configuração da petição, particularmente, do pedido nela formulado, os réus podem limitar-se à impugnação dos factos alegados pela autora[16].
Entendemos, no entanto, contrariamente à solução preconizada na sentença recorrida, salvo o devido respeito, que é legítima a opção que a autora fez – invocação pela positiva do seu direito de propriedade incompatível com as declarações consignadas na escritura – apesar de se revelar um caminho bem mais difícil, na medida em que dessa opção resulta o agravamento do ónus de alegação e prova dos fundamentos do direito, libertando em consequência os réus desse ónus, que, em situações de normal procedimento, recaem sobre os justificantes quando o título é judicialmente impugnado.
Ou seja, a autora pode validamente seguir um dos dois caminhos: i) optar entre limitar-se a pedir a declaração de inexistência do direito dos réus, configurando a acção como de simples apreciação negativa e transferindo para os réus o ónus de alegação e prova do direito justificado; ii) ou pedir, pela positiva, a declaração do seu direito, passando a assumir todos os ónus de alegação e prova dos respectivos pressupostos.
Um vez judicialmente declarado o seu direito, o mesmo seria incompatível com a declaração constante da escritura de justificação, obstando assim validamente à eficácia desta.
Trata-se de um caminho mais longo, mais penoso, mas susceptível do mesmo resultado.
No entanto, o problema não reside na “desadequação” do pedido, mas sim nas incongruências já apontadas à causa de pedir, e na contradição entre esta e o pedido: invocação de actos de posse sobre a totalidade dum prédio; reconhecimento (contraditório com tal invocação), da posse dos réus sobre a quarta parte do mesmo prédio; e conclusão final com a pretensão de declaração do direito de propriedade sobre a quarta parte indivisa do mesmo prédio.
Mais: depois de alegar que os réus possuem uma quarta parte do prédio indiviso em causa, a autora conclui no segundo pedido: «Serem os réus condenados a restituírem à herança os prédios identificados no artigo 1.º da p.i.».
Com o devido respeito, ocorre questionar: a que prédios se refere a autora?
Ainda que o pedido fosse formulado no singular (no artigo 1.º da petição apenas se identifica um prédio), não faria sentido, porque o prédio identificado pela autora será o prédio indiviso do qual a autora alega ser proprietária na mesma proporção dos réus (1/4).
  
3.2. A omissão do despacho de aperfeiçoamento
Nas suas alegações, a autora sustenta que a M.ª Juíza deveria ter proferido despacho de aperfeiçoamento, ao invés de optar pela decisão de absolvição dos réus da instância.
Vejamos.
Dispõe o artigo 508.º do Código de Processo Civil, no seu n.º 2: «O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa
É a seguinte a redacção do n.º 3 do mesmo normativo: «Pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Maio de 1999[17], veio estabelecer uma distinção entre convite ao aperfeiçoamento vinculado e não vinculado, fazendo corresponder a nulidade apenas ao primeiro, critério que foi adoptado na doutrina e na jurisprudência, de forma consensual.
Refere-se no sumário do acórdão citado:
«[…]
II - O artigo 508.º do Código de Processo Civil consagra, logo após os articulados uma fase de despacho pré-saneador; através do qual se pretende impedir que o conhecimento do mérito da causa ou a justa composição do litígio sejam prejudicados por razões de pura forma, relacionados com a falta de requisitos externos dos articulados, com a falta de documentos que necessariamente devam instruir a acção, ou com a deficiente, insuficiente ou imprecisa articulação da matéria de facto.
III - O referido despacho pré-saneador desdobra-se em duas modalidades: a do despacho vinculado, através do qual o juiz está obrigado a convidar as partes a suprir irregularidades dos articulados (n.º 2 do artigo 508.º) e a dum despacho não vinculado, mediante o qual o juiz pode convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 3 artigo 508.º).
IV - A omissão do mencionado despacho, enquanto vinculado, constitui nulidade processual, se essa irregularidade puder influir no exame ou na decisão da causa; a omissão desse despacho, na medida em que não vinculado, não provoca qualquer nulidade.
[…]».
No mesmo sentido, escreve António Abrantes Geraldes[18]: «Diversamente do que decorre da análise dos pressupostos e efeitos do despacho de aperfeiçoamento vinculado, já a inércia do juiz, perante falhas de articulação da matéria de facto, não se reconduz a qualquer nulidade»[19].
Teixeira de Sonsa[20], justifica a distinção entre os n.º 2 e 3 do artigo 508.º do CPC, fundada na diferença entre os «deveres de cooperação que assentam numa previsão ‘fechada’, que não deixa ao tribunal qualquer margem de apreciação, quanto à sua verificação», e os que «decorrem de uma previsão ‘aberta’, que necessita de ser preenchida pelo tribunal de acordo com a sua ponderação supostos processuais, quando a sua verificação não seja clara».
Regressando à previsão legal do n.º 2 do artigo 508.º do CPC, concluímos que o despacho de aperfeiçoamento vinculado (e, nessa medida, susceptível de gerar nulidade processual por omissão) se reconduz às seguintes situações: «O juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa
Manifestamente, as irregularidades apontadas na parte antecedente do presente acórdão, não se revelam integráveis na previsão legal do despacho de aperfeiçoamento vinculado (artigo 508.º/2 do CPC), antes se integrando na previsão do despacho não vinculado (artigo 508.º/3 do CPC).
Nesse sentido, e a propósito de situação algo semelhante, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.11.2006[21], cujo sumário se transcreve parcialmente:

«[…] O poder que é atribuído ao juiz pelo disposto no art. 508.º, n.º 3, do CPC, ao contrário do atribuído pelo n.º 2 do mesmo artigo, não constitui um poder vinculado, mas simples faculdade, não se encontrando por isso o juiz obrigado a determinar se proceda ao convite referido nesse dispositivo. […] Logo, o juiz não tinha que convidar os réus a indicar outros factos em complemento dos indicados na contestação para suprir a insuficiente alegação fáctica relativa à aquisição, por via de usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio em causa. […]»
Decorre do exposto, salvo o devido respeito, a improcedência do recurso também nesta parte.

3.3. Em conclusão
Perante as irregularidades da petição apontadas, pese embora o facto de não coincidirem totalmente os fundamentos do presente acórdão, com os da sentença recorrida, entendemos que será de manter a decisão que julgou inepto o articulado da autora, face à alínea b) do n.º 2 do artigo 193.º do CPC.
Acresce que, como se fundamentou, se verifica a preterição de listisconsórcio necessário, por ausência na lide dos restantes comproprietários, o que sempre justificaria a absolvição dos réus da instância, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 288.º do CPC.

IIV. Decisão
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente o recurso, ao qual se nega provimento, mantendo em consequência a decisão recorrida.
Custas do recurso pela Apelante.
                                                         *

Carlos Querido ( Relator )
Pedro Martins
Virgílio Mateus


[1] Segue-se uma transcrição parcial da sentença.
[2] Segue-se a exaustiva transcrição do pedido formulado na petição
[3] Segue-se a exaustiva repetição do pedido formulado da petição
[4] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, 2.ª edição, pág. 128
[5] De acordo com Abrantes Geraldes (ob. cit., pág. 155), na omissão absoluta de conclusões não é sequer admissível despacho de aperfeiçoamento, face aos antecedentes históricos, resultantes da comparação entre o actual n.º 1 do artigo 685.º-A, com o que antes constava do artigo 690.º-A.
[6] Apesar de um pouco penosa, face à forma como a exposição de argumentos é feita.
[7] Com consequências que adiante desenvolveremos
[8] Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 58
[9] No mesmo sentido, vide Miguel Teixeira de Sousa - A legitimidade singular em processo declarativo, in BMJ nº 292, p. 105: «[…]a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor.»
[10] In Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 167
[11] Proferido no Processo n.º 0016931, acessível em http://www.dgsi.pt.
[12] Proferido no Processo n.º 740/06-3, acessível em http://www.dgsi.pt – refere-se no sumário do referido aresto: «Pretendendo alguns comproprietários de um prédio o reconhecimento do seu direito […], impõe-se que demandem todos os demais comproprietários sob pena de ilegitimidade, já que se está perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo. Com efeito o reconhecimento daquele direito em acção intentada, apenas contra uma das comproprietárias, não produz o seu efeito útil normal, já que, não estando os restantes comproprietários na causa, nunca seriam abrangidos pelo caso julgado material formado pela decisão que viesse a ser proferida.».
[13] Poderá questionar-se – e a recorrente fá-lo nas suas alegações a propósito de outra questão – se a M.ª Juíza do tribunal a quo não deveria ter providenciado nos termos do n.º 2 do artigo 265.º do CPC, pelo suprimento oficioso da omissão. Sobre tal questão tomaremos posição adiante. No entanto, desde já se refere a posição doutrinária de Carlos Lopes do Rego, sobre esta matéria. Em anotação à norma referida, refere o autor citado: «Implicará, deste modo, nulidade processual a injustificada omissão do procedimento imposto pelo n.º 2 deste artigo 265.º, sujeita - porque não aparece configurada como “nulidade principal” - ao regime-regra estatuído nos artigos 201.º, 203.º e 205.º: Daqui resulta que o cometimento ao juiz da incumbência de se certificar da possível existência de excepções dilatórias e de providenciar directamente pelo respectivo suprimento não dispensa a parte interessada do ónus de acompanhar diligentemente o processo, com vista a poder verificar tempestivamente se tal tarefa foi adequadamente realizada: assim, tratando-se de excepção que só podia ser conhecida até certo momento processual, se o juiz omitiu o poder-dever que este preceito lhe impõe e a parte interessada deixou de arguir imediatamente a nulidade, nos termos do artigo 205.º, é evidente que não poderá já suscitar tal questão em fase ulterior do processo.»

[14] Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 344
[15] Vejam-se, a título meramente exemplificativo, os acórdãos do STJ, de 11.11.2010 e de 14.11.2006, proferidos, respectivamente, nos Processos n.º 33/089TBVNG.P1.S1, e 06A3486, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt
[16] Foi exactamente essa a posição que assumiram, e pensamos que é esta a objecção suscitada na sentença recorrida, na parte que se transcreveu.
[17] Publicado no BMJ n.º 487, página 244.
[18] Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, página 80.
[19] Também no mesmo sentido, veja-se Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, 2004, página 432 e 433, advertindo, no entanto, que a omissão de prolação de um despacho de aperfeiçoamento “dito não vinculado” não poderá perspectivar-se como traduzindo o exercício de um poder discricionário.
[20] Citado por Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, 2.º Volume, página 78.
[21] Proferido no Processo n.º 06A3486, acessível em http://www.dgsi.pt