Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1005/21.3T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
BURLA
PREJUÍZO
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU - J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 217º, N.º 1, E 218º, N.º 2, AL. A), DO CÓDIGO PENAL; 311º, N.º 2, AL. A), E N.º 3, AL. D), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
Não resultando da acusação nem o ardil da arguida nem que os pagamentos foram realizados por meio de erro (ou aproveitamento do erro) do denunciante, impõe-se a rejeição liminar da acusação, por da mesma não constarem todos os elementos constitutivos do tipo legal de burla.
Decisão Texto Integral:

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Acordam, em conferência, na 5.º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I–RELATÓRIO

Nos autos de processo comum a correr os seus termos sob o n.º   1005/21...., no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu (Juízo Central Criminal de Viseu), foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.º 2 al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal, rejeitando a acusação pelo Ministério Público, contra a arguida AA, por manifestamente infundada.

Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

«I- A acusação foi deduzida com base no disposto no art.º 283º, nº3 do Código de Processo Penal, que enumera os itens que tal peça processual deve conter, a saber:

- a identificação do arguido;

- a narração dos factos;

- as disposições legais aplicáveis;

- o rol das testemunhas;

- a indicação de outras provas a produzir e ainda a data e a assinatura do seu autor.

II- Na acusação assim deduzida, foi descrita a factualidade que encerra o tipo objectivo do ilícito imputado à arguida e foram descritos os factos que consubstanciam o elemento subjectivo do tipo do crime, pelo que se entende que a acusação reúne os elementos exigidos pelo art.º 283º, nº3, b) do Código de Processo Penal.

III- De acordo com o disposto no artº 217º do Código Penal, e tal como vem sendo entendido pela jurisprudência, são elementos típicos do crime de burla:

1) - a obtenção para o agente ou terceiro de um enriquecimento (este definido segundo o conceito de enriquecimento sem causa, do art.º 473º, do Código Civil);

2) - que o agente para obtenção de um enriquecimento ilegítimo, astuciosamente induza em erro ou engano outrem;

3) - que, através desses meios, determine o ofendido à prática de actos causadores de prejuízos patrimoniais.

A premissa mencionada no ponto 2) é aquela que apresenta maiores dificuldades na obtenção de prova, já que, a convicção a formular quanto à conduta manifestada pelo arguido, há-de fundar-se em factos objectivos constantes dos autos, não bastando um qualquer erro ou engano sobre os factos para que se encontre preenchido o crime de burla, é preciso que este engano tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente.

IV- Neste ponto, há a referir que mesmo que se entenda que, não consta do texto acusatório que o erro sob o qual o ofendido se determinou foi provocado astuciosamente pela arguida, verifica-se, que a arguida se aproveitou astuciosamente dele, já que, sabendo que não podia vender o imóvel e sabedora de que o ofendido estava convicto de que ela (arguida) pretendia e ia vender-lhe o imóvel, nada fez para desfazer o engano, continuando a receber o dinheiro que este lhe dava a título de pagamento parcial, incentivando-o a dar-lhe mais dinheiro, apesar de saber que não iria realizar a compra e venda.

V- Consta da acusação que a arguida fez um acordo de regularização de divida através do qual a arguida e seus pais se declaravam devedores ao denunciante de 600.000,00€, (seiscentos mil euros) aditando a tal acordo uma cláusula penal no montante de 10.000,00€(dez mil euros) em caso de incumprimento, mantendo-o assim no erro de que lhe iria vender o imóvel, nomeadamente, …. decidiram entre todos os intervenientes que o denunciante iria receber mensalmente, a quantia de 1.600,00€ (mil e seiscentos euros) referente ao valor das rendas mensais do Lar, o que o tranquilizou e lhe criou expectativas desses recebimentos, apesar da arguida saber que não lho poderia vender, pelo menos nos próximos tempos, por não o ter na sua disposição e não lhe ser permitido legalmente vender-lho.

VI- Foram carreados para a acusação factos concretos, integradores da actuação da arguida, dos quais ressalta o tipo de comportamento ardiloso, que indicia a prática do crime que lhe é imputado, verificando-se que esta agiu com dolo, com vontade e consciência do cometimento de um crime, sustentando os factos descritos na acusação a ocorrência de um erro, astuciosamente mantido pela arguida.

VII- Conclui-se pois, que da acusação rejeitada constam todos os elementos exigidos pelo art.º283º, nº3, b) do Código de Processo Penal, bem como o tipo subjectivo do ilícito imputado à arguida, pelo que, o despacho recorrido, aplicou erroneamente o disposto no art.º311º, nº2, a) e nº3, d) do Código de Processo Penal, por referência ao art.º 283º, nº3, b) do mesmo diploma.

Nesta conformidade deverão Vossas Excelências revogar o despacho recorrido ordenando a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida contra a arguida AA, pela prática em autoria material de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artº 217º, nº1, e artº218º, nº2, a) Código Penal».

Notificado, respondeu a arguida pugnando pela improcedência do recurso.

Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto.

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

ÂMBITO DO RECURSO

Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.

Encontra-se, ainda, o tribunal obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como sejam, as nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos art.º s 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

No caso dos autos é questão a de decidir a de saber se na acusação se encontram descritos os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado.


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Despacho recorrido (transcrito na parte ora relevante)

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«O Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos art. os 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2 al. a) do Código Penal.

Nos termos da acusação;

a) O denunciante BB foi abordado, em Maio de 2009 pelo solicitador CC, que lhe propôs a compra de um prédio urbano onde estava implantado um Lar em funcionamento, pelo preço de € 355.000,00;

b) Tendo o denunciante sido informado que o prédio em causa pertencia à arguida e seu marido, os quais estavam divorciados, pelo que o negócio só poderia ser formalizado após a partilha dos bens do casal, a ocorrer brevemente, o que aquele aceitou;

c) Ficou combinado que o denunciante entregaria ao solicitador CC várias tranches de dinheiro, que aquele entregaria à arguida, até perfazer o preço da compra;

d) Assim, entre 07/05/2019 e 17/11/2019, o denunciante entregou ao solicitador CC diversos montantes em numerário dentro de um envelope totalizando € 355.500,00, para que este entregasse à arguida, o que este fez.

e) Depois de entregue todo o dinheiro do preço à arguida, o denunciante começou a questionar o solicitador CC sobre a formalização do negócio, ao que este informou que a transferência da propriedade estaria para breve, levando-o a assinar um acordo de regularização de dívida, através do qual a arguida e seus pais se declaravam devedores ao denunciante de € 600.000,00, aditando uma cláusula penal no montante de € 10.000,00 em caso de incumprimento;

f) Em Fevereiro de 2020, em virtude de o contrato não estar ainda formalizado, decidiram todos os intervenientes que o denunciante iria receber mensalmente a quantia de € 1.600,00 referente ao valor das rendas mensais do lar, o que o tranquilizou e criou expectativas desses recebimentos;

g) No início do ano de 2021, em virtude de a arguida ainda não o teor contactado ou marcado a escritura, o denunciante concluiu que foi enganado, já que não mais a conseguiu contactar, o mesmo sucedendo ao solicitador CC;

h) A arguida conseguiu convencer o denunciante que tinha o imóvel para vender, o qual estaria arrendado por € 1.600,00/mês, solicitando-lhe o pagamento do valor da venda no total de € 355.000,00;

i) Apesar de o denunciante ter feito aquilo que a arguida consigo combinou, não logrou ser proprietário e senhorio do imóvel até esta data, pelo facto de a arguida não o ter na sua disponibilidade, e não lho vender, o que ela bem sabia.

j) A arguida, enquanto casada em comunhão de bens, foi proprietária do imóvel em causa, porém, após o divórcio, deixou de ter poderes de disposição sobre tal imóvel, até porque o mesmo estava onerado com uma hipoteca à Banco 1... registada em 09/07/2010, pelo que nem tinha poderes para o vender, tendo-se disponibilizado a vendê-lo com a intenção de enganar terceiros que pretendessem comprá-lo, determinando o denunciante a entregar-lhe o preço acordado para a venda;

k) Agiu a arguida de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de determinar o ofendido a entregar-lhe a quantia de € 355.000,00, que este lhe entregou na convicção de que estava a pagar o prédio urbano em causa, obtendo assim do queixoso a quantia monetária referida, a que sabia não ter direito, em prejuízo deste, o que quis e representou;

l) A arguida apropriou-se dos € 355.000,00 que lhe foram entregues pelo denunciante, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.


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Ora, em face dos factos acima descritos, cumpre apreciar e decidir se os mesmos são ou não susceptíveis de integrar o crime em causa.

Afigura-se-me que que não.

Efectivamente, nos termos do n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal comete o crime de burla, “Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais, (…)”.

Decorre do da formulação penal de crime de burla, que são os seguintes os seus pressupostos:

Elementos objectivos:

- o emprego de astúcia pelo agente: a astúcia traduz-se, na sua essência, na utilização de uma manobra fraudulenta, uma vez que “astúcia” significa “manha” ou “ardil”.

- o erro ou engano da vítima: como facto puramente cognoscitivo não requer uma certeza da vítima quanto à falsa figuração da realidade. Mesmo que a vítima tenha dúvidas, haverá erro ou engano se ela decidir praticar os actos que produzem o prejuízo patrimonial.

- a prática de actos de disposição pela vítima: trata-se de um elemento autónomo em relação ao erro ou engano, por um lado, e, por outro, relativamente ao prejuízo patrimonial.

Esta autonomia fundamenta-se na constatação de que a vítima induzida em erro ou engano pode não praticar acto algum, e mesmo que o pratique pode, devido a um factor imprevisto, não se verificar qualquer prejuízo patrimonial.

Actualmente, o normativo jurídico-penal não se refere a actos de execução, donde se conclui que este elemento pode ser integrado por qualquer acto de disposição ou de administração de carácter patrimonial – da vítima ou de outra pessoa – apto a causar um prejuízo.

- o prejuízo patrimonial (da vítima ou de terceiro): o prejuízo patrimonial deve ser entendido em função do conceito jurídico-económico, o qual define o património como soma de valores económicos juridicamente protegidos.

O acto de disposição ou de administração patrimonial deve ser causal em relação ao prejuízo patrimonial, traduzindo-se numa deminutio patrimonii.

- nexo de causalidade:

Em sede de imputação objectiva do resultado à conduta do agente, a burla configura-se como um crime complexo, pois implica a existência de um duplo nexo de causalidade.

Deste modo, entre os elementos astúcia, erro ou engano, prática de actos de disposição ou de administração, é necessário que existam sucessivas relações de causa e efeito. Assim, é necessário que da astúcia resulte o erro ou o engano; que do erro ou engano resulte a prática de actos de disposição ou de administração patrimonial.

Elementos subjectivos:

- o dolo: como título de imputação subjectiva, é definido como conhecimento e vontade de realização do facto típico. Assim, o dolo deve abarcar todos os elementos objectivos do tipo acima referenciados: a actividade astuciosa; a indução da vítima em erro ou engano, a determinação desta a praticar determinados actos, o prejuízo patrimonial e o duplo nexo de causalidade.

- elemento subjectivo específico: a intenção de enriquecimento ilegítimo não se inclui no âmbito do dolo. Não é dolo, no sentido do artigo 14.º do Código Penal, mas sim um elemento subjectivo específico do tipo, que acresce ao dolo e não tem qualquer correspondência ao nível dos elementos objectivos do tipo.

O crime de burla é qualificado nos termos do art. 218.º, n.º 2 a. b) do Código Penal, quando o prejuízo patrimonial causado for de valor consideravelmente elevado.

Concretizando este conceito, estabelece-se no art. 202.º al. b) do mesmo código que se considera valor consideravelmente elevado, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, ou seja, € 20.400,00.

Passando à análise concreta dos factos levados à acusação, afigura-se-me, desde logo, que os factos descritos não sustentam a ocorrência de um erro, nem que o mesmo tenha sido astuciosamente provocado pela arguida.

Efectivamente, o que resulta da acusação, é que o denunciante foi abordado pelo solicitador CC, sem que se refira, em momento algum, que o foi a pedido ou em conluio com a arguida, ou que tenha sido esta a instruir aquele sobre o que dizer/propor ao denunciante.

Mais se constata (al b) do elenco supra), que o denunciante desde o início foi informado de que o prédio pertencia à arguida e seu marido, os quais estavam divorciados, pelo que o negócio só poderia ser formalizado após a partilha dos bens do casal, o que aquele aceitou.

Mais adiante na acusação, invoca-se – como descrito em h) e j) supra – que a arguida foi proprietária do imóvel e que convenceu o denunciante de que tinha o imóvel para vender.

Contudo, em momento algum se refere que a arguida não pretendia vendê-lo, ou melhor, que nunca pretendeu fazê-lo, ou sequer que tenham sido entretanto efectuadas partilhas sem que o imóvel lhe tivesse ficado atribuído.

É que, na verdade, a arguida só perderia definitivamente a capacidade de dispor do bem se, efectuadas as partilhas, o mesmo tivesse ficado na propriedade do ex-marido ou de terceiros (no âmbito de eventual venda). Até lá, a arguida manter-se-ia (a crer na versão dos factos levada à acusação) como titular de uma quota indivisa do referido imóvel, com a expectativa de o mesmo lhe vir a ser adjudicado e de dele poder dispor. Acresce que também o facto de o imóvel estar onerado com hipoteca não retiraria à arguida a capacidade de dispor do bem, caso o mesmo lhe fosse adjudicado.

Daí que, não se referindo na acusação se foram feitas as partilhas, nem quando, não é possível afirmar-se a existência de um erro induzido astuciosamente pela arguida, e muito menos que o tenha sido em momento prévio ao acto de disposição por parte do denunciante.

E se não é possível extrair da acusação factos que sustentem a existência de uma situação de erro prévia ao acto de disposição, nem sequer é possível afirmar-se que foi por causa desse erro que o arguido aceitou proceder aos pagamentos ocorridos entre Maio e Novembro de 2019.

Para que tal se verificasse, necessário se tornaria que resultasse da acusação que a arguida nunca quis constituir-se como proprietária do imóvel na sequência da partilha e que convenceu o denunciante do contrário para se apoderar dos montantes em numerário que aquele lhe entregou.

Mas nada na acusação permite sustentá-lo ou – como se disse – afirmar que a arguida sabia ter perdido, em definitivo (por força da partilha), qualquer direito sobre o imóvel, e ainda assim negociou a sua venda com o denunciante ou aceitou receber os pagamentos por este efectuados.

De igual forma, embora se refira na acusação que a arguida conseguiu convencer o denunciante de que o imóvel estava arrendado, em momento algum se refere que tal não correspondesse à verdade, ou seja, que não existisse qualquer contrato de arrendamento ou que a renda não fosse de € 1.600,00. Assim como também não se refere que nunca o denunciante recebeu tais quantias.

Finalmente, não se vê como afirmar – em face dos factos levados à acusação – que a arguida agiu com o intuito de obter enriquecimento ilegítimo à custa do património do denunciante, ou que agiu com o propósito de se apoderar dos € 355.000,00 a que sabia não ter direito, em prejuízo do ofendido.

É que resulta também dos factos descritos na acusação (cfr. ponto e) dos factos supra elencados), que a arguida e seus pais assinaram uma declaração de dívida ao demandante, no valor de € 600.000,00, acrescida de uma cláusula penal de € 10.000,00.

Ora, não resultando da acusação que esta declaração não tivesse substracto (ou por ser falsa, ou porque a arguida e seus pais não dispunham de património para responder por essa dívida), o que se verifica é que, em abstracto, o denunciante estaria na posse de um título executivo que o habilitaria a cobrar coercivamente a referida dívida. O que não só não se traduziria num enriquecimento, como antes corresponderia a um prejuízo para a ofendida, visto que os montantes recebidos ficavam muito aquém do valor global de € 600.000,00 da dívida confessada.

Convém salientar que o atraso na concretização da venda pode traduzir uma mera situação de mora ou incumprimento contratual. Contudo, tal não basta para configurar a prática de um crime de burla.

E não resultando da acusação que fosse falsa a informação inicialmente prestada (que, aliás, só o terá sido pelo solicitador, sem indicação de que o fosse por iniciativa/incentivo da arguida) no sentido de que ainda não havia sido formalizada a partilha dos bens do casal, não pode ter-se por preenchida a situação de erro que integra o tipo penal da burla.

Nos termos do art. 311.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo Penal, a acusação será rejeitada, quando for manifestamente infundada, entendendo-se como tal, nos termos do n.º 3 al. d) do mesmo normativo, aquela em que os factos não constituam crime.

É o caso dos autos, pois que os factos levados à acusação não permitem sustentar a verificação de um erro; que tenha sido astuciosamente provocado pela arguida e causal do acto de disposição; e que a arguida tenha agido com a intenção de se apropriar das quantias entregues pelo ofendido, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo à custa do património do demandante.

Nessa medida, mais não resta do que concluir que os factos descritos no libelo acusatório não sustentam a verificação dos elementos objectivo e subjectivo do crime de burla qualificada ou de qualquer outro tipo penal passível de ser imputado à arguida.

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art. 311.º, n.º 2 al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal, rejeito a acusação deduzida em 26/06/2023 (ref.ª 93343113) pelo Ministério Público, contra a arguida AA, por manifestamente infundada» (fim de citação).


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            Dada a sua relevância para a questão a apreciar e decidir, passamos a citar a descrição factual que se pode ler na acusação rejeitada:

«1) Em data não apurada da primeira semana de Maio de 2019, BB foi abordado por CC, Solicitador, que lhe propôs a compra do prédio urbano, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...01, sito na Estrada ..., ..., em ..., ..., onde estava implantado um Lar em funcionamento, sendo a venda pelo montante de 355.000,00€ (trezentos e cinquenta e cinco mil euros).

2)  O denunciante foi informado que o prédio em causa pertenceria à arguida e ao marido, os quais estavam divorciados, pelo que o negócio só poderia ser formalizado após a partilha de bens do casal, o que iria ocorrer brevemente, pelo que aceitou.

3) Como o Solicitador CC se comprometeu a colaborar, combinaram que o denunciante entregaria a este, várias tranches de dinheiro que ele depois entregaria à arguida, até perfazer o montante total acordado da venda.

4) Assim, no dia 7 de Maio de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao Solicitador CC, 44.500,00€ (quarenta e quatro mil e quinhentos euros) , no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

5)  No dia 3 de Maio de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 22.500,00€ (vinte e dois mil e quinhentos euros), no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

6) No dia 31 de Maio de 2019 a arguida AA assinou uma Declaração de Recebimento de Reforço de Sinal, no montante de 23.500,00€ (vinte e três mil e quinhentos euros), referente à aquisição de um imóvel na Estrada ..., ..., em ..., ..., descrito na Conservatória sob o nº ...79.

7) No dia 3 de Junho de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 23.500,00€, (vinte e três mil e quinhentos euros), no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

8)  No dia 13 de Junho de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 40.000,00€, (quarenta mil euros), no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

9) No dia 28 de Junho de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 20.000,00€,(vinte mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

10) No dia 5 de Julho de 2019 a arguida AA assinou uma Declaração de Recebimento de Reforço de Sinal, no montante de 60.000,00€, (sessenta mil euros) referente à aquisição de um imóvel na Estrada ..., ..., em ..., ..., descrito na Conservatória sob o nº ...79.

11)  No dia 26 de Setembro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 30.000,00€,(trinta mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

12)  No dia 11 de Outubro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 30.000,00€,(trinta mil euros), no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

13) No dia 29 de Outubro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 50.000,00€,(cinquenta mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

14) No dia 5 de Novembro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 10.000,00€,(dez mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

15) No dia 12 de Novembro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 18.000,00€,(dezoito mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

16) No dia 17 de Novembro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 37.000,00€,(trinta e sete mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

17) No dia 17 de Novembro de 2019, na sua loja de flores no Largo ..., em ..., o denunciante entregou ao CC, 30.000,00€,(trinta mil euros) no interior de um envelope para que este o entregasse à arguida, que na data trabalhava no Centro de Saúde ..., em ...; o que este fez.

18) Depois de ter entregue todo o dinheiro do preço do prédio urbano à arguida, o denunciante começou a questionar o Solicitador CC sobre a formalização do negócio e se havia datas para realização da escritura pública, tendo este lhe informado que a transferência da propriedade iria realizar-se brevemente, tranquilizando-o e levando-o a assinar em 19 de Novembro de 2020, um acordo de regularização de divida através do qual a arguida e seus pais se declaravam devedores ao denunciante de 600.000,00€, (seiscentos mil euros) aditando a tal acordo uma cláusula penal no montante de 10.000,00€(dez mil euros) em caso de incumprimento. O acordo foi assinado pelo denunciante, pela arguida e pelos pais desta, sendo as assinaturas reconhecidas pelo Solicitador CC.

19) Já em Fevereiro do ano de 2020, em virtude do contrato ainda não estar formalizado, decidiram entre todos os intervenientes que o denunciante iria receber mensalmente, a quantia de 1.600,00€ (mil e seiscentos euros) referente ao valor das rendas mensais do Lar, o que o tranquilizou e lhe criou expectativas desses recebimentos.

20) No inicio do ano de 2021, em virtude de a arguida ainda não o ter contactado ou marcado a escritura, o denunciante concluiu que foi enganado, já que não mais a conseguiu contactar, o mesmo acontecendo ao Solicitador CC.

21) A arguida conseguiu convencer o denunciante de que tinha o imóvel para vender o qual estaria arrendado por 1.600,00€ ao mês, solicitando-lhe o pagamento do valor da venda, concretamente de 355.000,00€ (trezentos e cinquenta e cinco, mil euros).

22) Apesar de o queixoso ter feito aquilo que a arguida consigo combinou, não logrou ser proprietário e senhorio do imóvel até esta data, pelo facto de a arguida não o ter na sua disponibilidade e não lho poder vender, o que ela bem sabia.

23)  A arguida enquanto casada em comunhão de bens foi proprietária do prédio urbano em causa, porém, após divórcio, deixou de ter poderes para praticar actos de disposição sobre ele, até porque o mesmo, na data de celebração do negócio, estava onerado com uma hipoteca à Banco 1..., registada em 9-07-2010 na inscrição AP. ...98, pelo que nem tinha poderes ou disponibilidade para o vender, tendo-se disponibilizado a vendê-lo com a intenção de enganar terceiros que pretendessem comprá-lo, determinando o denunciante a entregar-lhe a quantia pela qual contratou a venda.

24) A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente com o propósito de determinar o ofendido a entregar-lhe a quantia de 355.000,00€ (trezentos e cinquenta e cinco mil euros), que este lhe entregou na convicção de que estava a pagar o prédio urbano em causa, obtendo assim do queixoso a quantia monetária referida a que sabia não ter direito, em prejuízo deste, o que quis e representou.

25) A arguida apropriou-se dos 355.000,00€ que lhe foram entregues pelo ofendido, conforme havia previamente planeado.

26) A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» (fim de citação).


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III. Apreciando e decidido

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Insurge-se o recorrente Ministério Público contra o despacho que rejeitou a acusação por falta dos elementos objetivos e subjetivos do crime burla qualificada, p.p., nos termos dos art.ºs artº 217º, nº1, e artº218º, nº2, a) Código Penal imputado à arguida.

Em síntese, alega o recorrente, em síntese, que resulta da acusação que:

1- A arguida aproveitou-se astuciosamente do erro do ofendido, pois embora sabedora que não podia vender o imóvel e ciente de que o ofendido estava convicto de que ela (arguida) pretendia e ia vender-lhe o imóvel, nada fez para desfazer o engano;

2- Continuando a receber o dinheiro que este lhe dava a título de pagamento parcial, incentivando-o a dar-lhe mais dinheiro;

3- Mantendo o erro de que iria vender o imóvel através de um acordo de regularização de divida e de um acordo de recebimento pelo denunciante da quantia mensal de 1.600,00€ referente ao valor das rendas, assim o tranquilizando e criando-lhe expectativas desses recebimentos;

4- Apesar de a arguida saber que não poderia vender o imóvel, pelo menos nos tempos mais próximos, por não o ter na sua disposição nem lhe ser legalmente permitido.

Conclui o recorrente, que da acusação rejeitada constam todos os elementos exigidos pelo art.º 283 º, n º 3, b) do Código de Processo Penal, bem como o tipo subjetivo do ilícito imputado à arguida, pelo que, o despacho recorrido, aplicou erroneamente o disposto no art.º 311º, n º 2, a) e nº3, d) do Código de Processo Penal, por referência ao art.º 283º, nº3, b) do mesmo diploma, devendo ser revogado e substituído por outro que receba a acusação deduzida contra a arguida pela prática em autoria material de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo art.º 217º nº 1, e art.º 218º nº 2 al. a) Código Penal.

É assim questão a de decidir a de saber se na acusação se encontram descritos os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado.

Vejamos.

Pratica o crime de burla, nos termos do n.º 1 do art.º 217.º do Código Penal:

«1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial» (…)».

Por sua vez, estatui o artigo 218º, nº 2 al. a) do mesmo Código que a pena é de prisão de dois a oito anos se o prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado, sendo que, nos termos da al. b) do art.º 202.º do aludido diploma entende-se por valor consideravelmente elevado: aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.

São elementos objetivos do crime de burla:

- O emprego astúcia pelo agente - a manha ou ardil do agente do agente, que, através de sagacidade ou penetração psicológica, antecipa a reação da vítima e escolhe os meios adequados para o instrumentalizar;

- O erro ou engano da vítima - a falsa (ou nenhuma) representação da realidade da vítima a resultante da conduta enganosa do agente;

- A prática de atos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida -  é no erro ou engano do burlado que reside a causa da prática dos atos de consentimento ou da aquiescência da vítima;

- O prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos - consumando-se o crime de burla quando o lesado abra mão da coisa ou do valor, sem que a partir daí se possa controlar o seu destino.

A consumação da burla passa por um duplo nexo de imputação objetiva entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e depois entre estes últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial - Cf. M. Almeida Costa, no “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2022, p. 364

Na correspondente aferição, a que subjazem os pressupostos da teoria da adequação (art.º 10.º n.º 1 do Código Penal), leva em consideração as circunstâncias do caso, nas quais se incluem as próprias caraterísticas do burlado - Cf. M. Almeida Costa, p. 365.

Ao nível do tipo subjetivo, trata-se de um crime doloso: o agente atua com o conhecimento e a vontade referidos a todos os elementos do tipo objetivo (dolo do tipo, nos termos do art.º 14.º do Código Penal), com a consciência da censurabilidade da sua conduta (dolo da culpa), com a intenção de obter um acréscimo do seu património ou de terceiro (sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento: definido segundo um conceito de enriquecimento sem causa).

Encontramo-nos, portanto, perante um crime:

- De participação da vítima - em que a saída dos valores da esfera de disponibilidade de facto do titular legítimo decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo - Cf. Maria Fernanda Palma/Rui Carlos Pereira, “O crime de burla no Código Penal de 1982-95”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV (1994), p. 321 e ss;

- De dano - que se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro - Cf. A. M. Almeida Costa, obra citada, p. 345

- De execução vinculada - pressupondo o duplo nexo de imputação objetiva, entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do seu património, e entre estes últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial - Cf. A. M. Almeida Costa, obra citada, p.  364,

- De resultado cortado ou incompleto - embora se exija, ao nível do tipo subjetivo a intenção de o agente obter (para si ou para outrem) um enriquecimento ilegítimo, a consumação não depende da concretização de tal enriquecimento, bastando que ao nível do tipo objetivo se observe o empobrecimento da vítima - Cf. A. M. Almeida Costa, obra citada, p.  346.

O crime de burla pode ser praticado:

- Por ação - podendo ser realizado não apenas por declarações expressas, como também por atos concludentes, mediante os quais o agente assegura ou aprofunda o erro do ofendido, - Cf. M. Almeida Costa, ob. cit., pág. 374-379.

ou;

- Por omissão, em que o agente omitindo um dever jurídico que pessoalmente o obriga a evitar o resultado, não pratica qualquer ato positivo limitando-se aproveitar o erro em que o sujeito passivo já incorre (art.º 10.º n.º 2 do Código Penal) - Cf. M. Almeida Costa, ob. cit., pág. 380.

Conforme decorre do acórdão do STJ de 18.06.2008, de 18/06/2008, relatado por Maia Costa, disponível em www.dgsi.pt. a realização de um contrato ou a participação em momentos essenciais do mesmo traz consigo o significado concludente de que o indivíduo se encontra na disposição de o cumprir, pelo que, faltando desde o início aquela vontade, obviamente não revelada, o que nos pode surgir é uma burla por atos concludentes, leia-se, uma burla por ação.

Logicamente, a verificação do aproveitamento do erro:

- Pressupõe existência de um erro prévio, ou seja, que a vítima já se encontre numa falsa representação da realidade;

- Não pode ser posterior ao empobrecimento da vítima (uma vez que nos encontramos perante um crime de dano e de resultado).

Dito isto.

Lendo a acusação, podemos identificar dois momentos:

- O período temporal entre 07.05.2019 e 17.11.2019, durante o qual o denunciante pagou à arguida das tranches em dinheiro, num total de € 355 000, correspondentes ao preço da venda (a realizar) de um imóvel;

- O período temporal posterior (em que, não tendo ainda sido realizada a venda), a arguida e seus pais reconheceram a dívida de € 600 000,00 e aditaram uma cláusula penal de € 10 000,00, em caso e incumprimento, e, (depois em fevereiro de 2020), em que todos os intervenientes acordaram que o denunciante passaria a receber mensalmente € 1600,00 (correspondentes a rendas).

Analisando a narrativa da acusação que respeita àquele primeiro momento verificamos que:

- Nas negociações que precederam as entregas monetárias intervieram um solicitador e o denunciante;

- Em momento algum se refere que o solicitador atuou a pedido, em conluio ou sob instruções da arguida.

Como assim é, não encontra descrita na acusação uma qualquer conduta da arguida a evidenciar que esta astuciosamente (ou não) por meio de erro (ou não) determinou o denunciado a pagar-lhe tais montantes.

Ainda relativamente a este primeiro momento (e como se escreve no despacho em crise), resulta da leitura da acusação que logo no início das negociações e anteriormente a quaisquer entregas em dinheiro, o denunciado «foi informado de que o prédio pertencia à arguida e seu marido, os quais estavam divorciados, pelo que o negócio só poderia ser formalizado após a partilha dos bens do casal, o que aquele aceitou».

E, como se lê no despacho em crise, nada na acusação permite afirmar que «fosse falsa a informação inicialmente prestada (que, aliás, só o terá sido pelo solicitador, sem indicação de que o fosse por iniciativa/incentivo da arguida) no sentido de que ainda não havia sido formalizada a partilha dos bens do casal».

É certo que, de acordo com a acusação, a arguida recebeu as tranches de dinheiro correspondentes ao preço da venda do imóvel.

No entanto, nas circunstâncias descritas, não pode concluir-se que:

- A arguida omitiu um qualquer dever de informação, uma vez que não ocorre o incumprimento do dever de informar quem já se encontra (como é o caso) informado;

- O recebimento do dinheiro fosse um ato concludente de que a venda poderia e iria ser realizada (sem que houvesse sido realizada a partilha);

- Ocorreu uma situação adequada a provocar erro no ofendido suscetível de o induzir (com essa falsa representação da realidade) à entrega das tranches em dinheiro.

Não se deteta, portanto, uma qualquer situação de erro que tenha sido provocada pela arguida, ou que por ela possa ser aproveitada.

Acresce, e agora já no que respeita ao segundo momento, que, da leitura da acusação. não se evidencia que os acordos realizados (de assunção de dívida a favor do denunciado no valor de € 600 000,00 acrescida da estipulação de cláusula penal no montante de € 10 000,00 em caso de incumprimento e de o denunciante passar a receber rendas mensais):

- Resultem de manha ou ardil da arguida, designadamente por omitir informações sobre a titularidade do prédio, uma vez que, relembre-se, o denunciado se encontrava, desde o início das negociações ciente de que o imóvel que pretendia comprar «pertencia à arguida e ao seu ex-marido», e que a venda só iria ser «formalizada após a partilha dos bens»;

- Sejam idóneos e tenham efetivamente causado prejuízo patrimonial ao denunciado (ou a terceiro) e visem o enriquecimento (ilegítimo ou não) da arguida (ou de terceiro).

Verifica-se, ainda que os elementos subjetivos imputados à arguida suscetíveis de preencherem o tipo doloso não se referem a estes acordos (mas apenas à entrega dos € 355 000), pelo que nunca se poderia entender que o crime de burla teria sido cometido nesta segunda fase.

Aliás, tendo presente a descrição da acusação, os únicos atos suscetíveis de empobrecerem o denunciado seriam as entregas em dinheiro, sendo certo que estas ocorreram no primeiro momento e precederam os acordos.

Portanto, a consumação do crime (que é de dano e de resultado) só poderia ter ocorrido no primeiro momento (ou seja) com a entrega; da última das tranches em dinheiro.

Acontece que, na acusação, e relativamente ao primeiro momento, não se evidencia nem o ardil da arguida a determinar nem que os pagamentos foram realizados por meio de erro (ou aproveitamento do erro) do denunciante.

E, quanto ao segundo momento, não decorre da acusação, nem o engano, nem o aproveitamento de erro denunciante, nem quaisquer atos que o tenham prejudicado (ou a terceiros), nem tão-pouco a atuação dolosa da arguida.

Nesta conformidade, teremos de concluir que os factos alegados no libelo acusatório não integram a totalidade dos elementos constitutivos da tipicidade do crime de burla previsto e punido pelo artº 217º, nº1, e artº218º, nº2, a) Código Penal, (ou de qualquer outro que nos ocorra), o que constitui fundamento da sua rejeição liminar, nos termos do art.º 311º nºs 2 al. a) e 3 al. d) do Código de Processo Penal, por referência ao art.º 283º, nº3, b) deste diploma legal.


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IV. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo o despacho recorrido.

Sem custas.


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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra, 6 de março de 2024

Alexandra Guiné (relatora)

Cristina Branco (1.ª adjunta)

Alcina Ribeiro (2.ª adjunta)