Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | EMÍDIO FRANCISCO SANTOS | ||
Descritores: | IMPEDIMENTO DO JUIZ RENOVAÇÃO DA PRODUÇÃO DE PROVA TUTELA DA PERSONALIDADE DIREITO AO REPOUSO DIREITO AO SOSSEGO DIREITO AO EXERCÍCIO DE ACTIVIDADE ECONÓMICA COLISÃO DE DIREITOS RESTRIÇÃO DE DIREITOS PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE LICENCIAMENTO ADMINISTRATIVO | ||
Data do Acordão: | 10/26/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE COIMBRA DO TRIBUNAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 70.º, 335.º DO CÓDIGO CIVIL. ARTIGOS 116.º, 195.º, 662º, N.º 2, ALÍNEA A), 878.º, DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL | ||
Sumário: | I) A omissão da declaração de impedimento por parte do juiz que deveria assim declarar-se gera nulidade secundária e não nulidade da sentença. II) A omissão referida em I) não constitui fundamento de renovação da prova no Tribunal da Relação. III) No caso de colisão entre o direito ao repouso e ao sossego, por um lado, e o direito ao exercício de actividade económica, por outro lado, este último deve ser restringido nos termos e extensão necessários à preservação do núcleo essencial do primeiro. IV) A restrição referida em III) deve operar-se com respeito pelo princípio da proporcionalidade, a significar que as providências restritivas devem ser: i) adequadas ao fim em vista; ii) indispensáveis em relação a esse fim e as que menos prejudicam os cidadãos envolvidos ou a colectividade; iii) racionais, medindo-se essa racionalidade em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens. V) O licenciamento administrativo de exploração de uma determinada actividade económica num determinado estabelecimento não constitui impedimento à restrição referida em III. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A ... , residente na ...., instaurou a presente acção especial de tutela da personalidade contra B... , Ldª, com sede na ...., C... , residente na ...., e D... , residente na ...., pedindo, no que diz respeito à primeira ré: Em relação ao terceiro réu, a autora pediu que ele fosse proibido de celebrar com a 1ª, ou quaisquer outros, arrendamento para fins não habitacionais, ou qualquer outro contrato sobre a fracção em causa, que tivesse por objecto qualquer actividade a desenvolver entre as 22 horas e as 8 da manhã. Para o efeito alegou, em síntese: A ré B... , Lda contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. O réu C... contestou por excepção e por impugnação. Em sede de excepção alegou: Para o caso de assim se não entender, pediu se julgasse a acção improcedente. Pediu ainda a condenação da autora como litigante de má-fé, no pagamento de multa e indemnização. Para o efeito alegou que a autora fazia um uso manifestamente reprovável dos meios processuais. O réu D... , que apresentou contestação em audiência, alegou que o processo era nulo em relação a si por não ter factos que sustentassem o pedido contra ele deduzido. Na audiência, a Meritíssima juíza do tribunal a quo julgou improcedente a alegação de que, em relação ao 3.º réu, a petição não tinha causa de pedir e afirmou a legitimidade de tal réu a acção. Determinou a realização de uma perícia antes de ser inquirida a prova testemunhal. Decisão provisória: Em 1 de Abril de 2019, a autora requereu a aplicação de uma medida provisória. Na data designada par a inquirição das testemunhas, 17 de Maio de 2019, a requerida alegou que, estando em causa o pedido de uma medida provisória de restrição de horário e tendo sido o Município de Coimbra a entidade administrativa competente que atribuiu o respectivo horário/licenciamento, esta matéria era da exclusiva competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, pelo que requeria se declarasse materialmente incompetente o tribunal a quo e se ordenasse, nesta parte, a remessa do autos ao referido tribunal Administrativo, tudo conforme o disposto nos artigos 576º, nº2, 577º, a) e 578º, todos do Código de Processo Civil. A requerente respondeu, pedindo se indeferisse a pretensão da requerida. O tribunal a quo julgou improcedente a excepção de incompetência material arguida pela requerida e afirmou que o tribunal a quo era competente para julgar tanto a acção principal como para decidir da medida provisória requerida. Por decisão proferida em 12-02-2021, o tribunal a quo declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, relativamente aos pedidos formulados nas alíneas c) e d) e e) da petição inicial, em virtude de a autora ter informado que a ré havia satisfeito os pedidos formulados em tais alíneas. O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da perícia e a produção da restante prova foi proferida sentença que decidiu: O recurso A primeira ré não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo: (…)
Factos provados: Não se provou: * Nulidade da sentença recorrida Discriminados os factos julgados provados e não provados, a questão de direito que se impõe conhecer de seguida, do ponto de vista da sua precedência lógica, é a da nulidade da sentença. A recorrente imputa à sentença várias causas de nulidade. Em primeiro lugar acusa-a se ser nula com a alegação: Em segundo lugar, acusa a sentença de nula com a alegação de que o tribunal a quo devia ter investigado o apoio judiciário concedido à autora e julgado a impugnação da concessão do apoio judiciário antes do prosseguimento dos autos. Em terceiro lugar, acusa a sentença de ser nula com a alegação de que o tribunal a quo reconheceu um direito vazio de qualquer concretização. Em quarto lugar, acusa a sentença de ser nula com a alegação de que não fundamentou a decisão que condenou a ré no pagamento de sanção pecuniária compulsória. Apreciação do tribunal: A arguição de nulidade da sentença com fundamento no alegado impedimento da Meritíssima juíza do tribunal a quo é de indeferir. Em primeiro lugar, as causas de nulidade da sentença estão previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC e entre eles não figura o caso de sentença proferida por juiz em relação ao qual se verifique uma situação de impedimento, ainda não declarado, como sucede no caso. Em segundo lugar, caso existisse, na realidade, algum caso de impedimento previsto no n.º 1 do artigo 115.º do CPC, estava vedado à ora recorrente requerer a declaração de impedimento nesta fase do processo, pois resulta da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 116.º do CPC que as partes apenas podem requerer a declaração de impedimento até à sentença, o que a recorrente não fez. Em terceiro lugar, caso a recorrente quisesse invocar a omissão de declaração de impedimento por parte da Meritíssima juíza do tribunal a quo (1.ª parte do n.º 1 do artigo 116.º do CPC), o que ela estaria a arguir era uma nulidade sujeita ao regime do artigo 195.º do CPC, a qual teria de ser invocada perante tribunal a quo. Citam-se em abono desta interpretaç0ão Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, página 145, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, páginas 237 e 238). Em quarto lugar, a circunstância de a Meritíssima juíza que julgou a causa e proferiu a decisão recorrida não ter sido a mesma que interveio na sessão da audiência que teve lugar em 22-09-2019 não configura violação do princípio da plenitude da assistência do juiz, a que se refere o artigo 605.º do CPC. Na verdade, seguindo o que se escreveu acerca deste princípio no acórdão do STJ de 15-05-2008, proferido no processo n.º 08B1205, publicado em www.dgsi.pt., o princípio em causa visa garantir o correcto julgamento da matéria de facto e os actos praticados tidos em visto pelo preceito atrás citado são os de produção de prova sem valor tabelado por lei, ou seja, os sujeitos às regras da imediação e ao princípio da livre apreciação da prova. Sendo esta a finalidade do princípio da plenitude da assistência do juiz, a razão estaria do lado da recorrente se, na sessão da audiência de 22-09-2019, tivesse sido produzida prova sujeito às regras da imediação e ao princípio a livre apreciação da prova, o que não sucedeu. Como o atesta de modo inequívoco a respectiva acta, em tal sessão não houve lugar à produção de prova. Em consequência, o princípio em causa não impedia que a audiência fosse retomada com a produção de prova presidida por um juiz diferente daquele que interveio na sessão de 22-09-2019. Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade com fundamento em impedimento da Meritíssima juíza do tribunal a quo e na violação do princípio da plenitude da assistência do juiz. A arguição de nulidade com a alegação de que o tribunal a quo devia investigar o apoio judiciário concedido à autora e devia ter julgado a impugnação da concessão do apoio judiciário antes do prosseguimento dos autos, também é de indeferir. Ao arguir a nulidade com a alegação exposta, a recorrente argumenta como se o tribunal a quo tivesse o dever de investigar o apoio judiciário concedido à autora, bem como o dever de julgar a oposição à concessão do apoio judiciário deduzida pela recorrente e tivesse omitido o cumprimento destes deveres. Esta argumentação não tem qualquer apoio na lei. Em primeiro lugar, a decisão sobre a concessão de apoio judiciário compete ao dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência da autora (n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho). É a ele que compete realizar as diligências com vista à concessão do apoio judiciário. Em segundo lugar, uma vez concedido o apoio judiciário pela segurança social, a “investigação” a que alude a recorrente, com o fim de retirar tal benefício a quem foi concedido, não cabe ao tribunal. Resulta do n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, que o cancelamento da protecção jurídica cabe aos serviços da segurança social, oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, da Ordem dos Advogados da parte contrária, do patrono nomeado ou do agente de execução atribuído. A arguição de nulidade da sentença com a alegação de que não constavam da sentença quaisquer fundamentos de facto que caracterizam o alegado direito superior da autora, também é de indeferir. Segundo a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC é nula a sentença quando o juiz não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Na interpretação deste preceito, a jurisprudência afirma de modo constante que a sentença só incorre nesta causa de nulidade quando o juiz omite, por completo as razões de facto ou de direito da decisão e que fora do alcance da norma estão os casos de fundamentação errada ou insuficiente. Interpretado com este sentido e alcance, a razão estaria do lado da recorrente se a sentença tivesse omitido por completo as razões de facto e/ou de direito da decisão, o que claramente não sucede. A arguição de nulidade da sentença com a alegação de que não fundamentou a decisão que a condenou no pagamento da sanção pecuniária compulsória no valor diário de 250 euros também é de indeferir. Interpretado a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC com o sentido e alcance expostos acima, a razão estaria do lado da recorrente se a sentença tivesse omitido por completo as razões de facto e/ou de direito da decisão de condenar a recorrente numa sanção pecuniária compulsória de € 250 euros, o que claramente não sucede, como o atesta o seguinte trecho da decisão recorrida: “A autora pede, ainda, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória, no montante de € 250,00 por cada dia de incumprimento de qualquer das condenações determinadas. Dispõe o artigo 879º, nº 4, do C.P.C. que “Se o pedido for julgado procedente, o tribunal determina o comportamento concreto a que o requerido fica sujeito e, sendo caso disso, o prazo para o cumprimento, bem como a sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso”. No caso concreto, reconhece-se a pretensão da autora “como forma de acautelar o seu direito nos termos em que aqui vai reconhecido” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra supra citado) e, com recurso à equidade, fixa-se no montante de € 250,00 diários, “valor este que se tem por suficiente para servir de dissuador de futuros incumprimentos por parte da Ré” (cfr. referido Acórdão)” Pelo exposto, improcede a arguição de nulidade. * Revogação e substituição da sentença por decisão a julgar improcedente a acção e, em consequência, a absolver a recorrente do pedido Os segmentos da sentença que são visados pela pretensão ora em apreciação são os que condenaram a ora recorrente no seguinte: A sentença decretou as medias enunciadas nos números 1 e 2 ao abrigo do disposto no artigo 878.º e artigo 879.º, n.º 4, ambos do CPC, por considerar que os factos provados mostravam que eram produzidos, no estabelecimento da ré, ruídos que perturbavam o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso da autora. Direito que gozava da tutela do n.º 1 do artigo 70.º do Código Civil, bem como de outros diplomas, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 25.º) e da Constituição da República Portuguesa (artigos 25.º, 64.º e 66.º, n.º 1). A recorrente contesta a sentença com os seguintes argumentos: Remata as conclusões imputando à sentença a violação ou desconsideração do disposto nos seguintes artigos: Apreciação do tribunal: Antes de mais cumpre dizer que carece de sentido a imputação à sentença da violação dos artigos 334.º e 473.º do Código Civil, do artigo 672.º do CPC, e dos artigos 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas que tenham constituído fundamento jurídico do que foi decidido e o disposto em tais artigos não serviu de fundamento à decisão impugnada. Em relação aos restantes artigos (artigo 878.º do CPC, artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e artigos 25.º, 64.º e 66.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa), não obstante dizer que o tribunal fez errada interpretação deles, a recorrente não discorda da afirmação feita na sentença que o direito ao repouso é um direito da pessoa que goza de protecção tanto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, como na Constituição da República Portuguesa, como no Código Civil, como o atesta o teor da 41.ª conclusão, onde afirma: “Indiscutivelmente o direito ao repouso é hoje amplamente protegido quer ao nível da Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 25.), quer na Constituição da República Portuguesa (art.ºs 25.º, 64.º e 66.º, n.º 1) e art. 70.º do Código Civil”. Como não discorda de que, quando haja uma actuação ilícita que ofenda os direitos da pessoa humana, deve ser decretada, nos termos do artigo 878.º do CPC, a providência concretamente adequada e evitar a consumação de qualquer ameaça ou a fazer cessar os efeitos da ofensa já cometida, como o atesta o teor da 36.º, 37.º, 38.º e 39.º conclusões. A recorrente imputa à sentença à violação dos preceitos por ela aplicados porque entende que não estavam verificados os pressupostos para o efeito. Concretamente: Em primeiro lugar nega a existência da ofensa ao direito da autora ou a ameaça de ofensa. E nega a existência com a alegação de que não se verificou, nem verifica o facto ofensivo, consistente na existência de ruídos perturbadores do repouso e sossego da autora; Em segundo lugar nega o carácter ilícito de tal ofensa. Recorreu aos seguintes argumentos: Pese embora o respeito que nos merece, a argumentação não vale contra a sentença. Em primeiro lugar, a negação da ofensa ao direito da autora ao repouso, ao sono e à tranquilidade parte de um pressuposto não verificado, que é o de que a exploração do bar não provoca ruídos audíveis na fracção da autora que a incomodem. Com efeito, resulta dos pontos números 29 a 56 que a exploração do bar produz ruído, que esse ruído é audível na fracção onde habita a autora, nomeadamente na sala e no quarto, e que a autora não consegue descansar, desde a abertura do bar, até às 5 horas da manhã, passando várias noites sem dormir, sendo que, quando adormece, acorda constantemente, nervosa e ansiosa. Em segundo lugar, embora esteja provado que o estabelecimento da ré tem alvará de licença de utilização n.º 34/91, concedido por despacho de 30.12.91, com lotação de 57 lugares sentados, com o seguinte horário de funcionamento: a) de domingo a quinta, entre as 21h30m e as 04h00; b) sextas e sábados entre as 21h30 e as o4h30; c) esplanada até às 2 horas, e sem encerramentos semanais ou para férias, excepto nos dias 24 e 31 de Dezembro; que a autora sabia da existência do bar antes de adquirir a fracção autónoma onde reside; e que, em 9 de Maio de 2018, foi efectuada pela ADAI um ensaio acústico para avaliar o efeito prático das obras realizadas o qual concluiu que os resultados obtidos configuram a satisfação dos requisitos regulamentares, estes factos não têm o efeito que lhe dá a recorrente, ou seja, não excluem a ilicitude da ofensa ao direito da autora ao repouso, ao sono e á tranquilidade. Em primeiro lugar, a remissão que a recorrente faz implicitamente para o regime da venda dos bens onerados (artigo 905.º do CC) ou para a venda de coisas defeituosas (artigo 913.º do CC), ao alegar que a autora sabia que estava a adquirir um prédio onerado com a pré-existência da ré, regime no qual não assiste ao comprador o direito de anular a venda no caso de saber que o direito estava sujeito a um ónus ou era defeituoso, não colhe. Na verdade, o bar não constitui qualquer ónus do direito de propriedade da autora sobre a facção nem qualquer vício desta. O que seria susceptível de excluir a ilicitude da ofensa ao direito da autora seria o consentimento desta (n.º 1 do artigo 340.º do Código Civil). Ora o facto de a autora saber que por baixo da fracção que comprou existia um bar não faz presumir que tenha consentido na ofensa ao direito ao repouso, ou sequer que tenha aceitado todos os riscos de viver por cima de um bar, uma vez que não está provado que a autora sabia que os ruídos eram audíveis na fracção que iria adquirir e que não lhe permitiam descansar durante o período de funcionamento do bar. Em segundo lugar, o facto de a autora deduzir a presente acção não configura só por si um exercício ilegítimo do seu direito ao descanso e ao repouso. Seria ilegítimo se o comportamento anterior da autora apontasse inequivocamente no sentido de que aceitaria os ruídos e que, com base nesta disposição, a ré, ora recorrente, tivesse depositado confiança neste comportamento da autora, o que claramente não sucedeu no caso dos autos. Em terceiro lugar, a circunstância de o bar se encontrar licenciado há 30 anos, também não exclui a ilicitude da ofensa do direito ao repouso e à tranquilidade da autora, como decidiu a sentença sob recurso. Cita-se em abono desta interpretação, além do acórdão mencionado na sentença (acórdão proferido em 29-06-2017, no processo n.º 117/13.1TBMLG.G1.S1.) os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 29-11-2012, no processo n.º 1116/05.2TBEPS.G1, o acórdão proferido em 8/04/2010, no processo n.º 1715/03.7TBEPS.G1.S1. acórdão proferido em 10-09-2019, no processo n.º 27564/16.T8LSB.L1, e acórdão proferido em 7-11-2019, no processo 1386/15.8T8PVZ.P1.S1, todos publicados em www.dgsi-pt. É certo que a exploração do bar, com o respectivo alvará, faz com que o ruído que é ouvido na fracção da autora seja produzido no exercício de um direito, o direito à exploração de uma actividade económica. Embora o Código Civil não contenha um preceito a afirmar que não é ilícito um facto praticado no exercício de um direito, como sucede, por exemplo, com a alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal, resulta também do artigo 335.º do Código Civil que, em princípio, o facto praticado no exercício de um direito não é ilícito. Sucede que o exercício de qualquer direito deve fazer-se, como o indica o artigo 1305.º do Código Civil, a propósito do direito da propriedade, “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ele impostas”. Ora um limite imposto é o de que no exercício de um direito o seu titular não deve ofender os direitos de terceiros. Por outro lado, a concessão do alvará de licença de utilização por parte da entidade administrativa não constitui licença para utilizar o estabelecimento com prejuízo para os direitos de terceiros, designadamente lesando os direitos de personalidade dos vizinhos do estabelecimento. Por último a circunstância de, em 9 de Maio de 2018 ter sido efectuado pela ADAI um ensaio acústico para aferir do efeito das obras o qual concluiu que os resultados obtidos configuram a satisfação dos respectivos requisitos regulamentares, também não exclui a ilicitude da ofensa ao direito da autora. Na verdade, apesar da conclusão da medição, está provado que o ruído produzido no bar continuou a ser audível em casa da autora impedindo-a de descansar e de dormir durante o período de funcionamento do bar. Está provada a ofensa ilícita ao direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono. Pelo exposto, é de manter a sentença quando afirmou que os factos provados permitiam concluir que o direito da autora ao direito ao repouso e ao descanso estava a ser lesado desde o 5 de Janeiro de 2018, com prejuízo para o seu estado de saúde. * Repetição do julgamento ou a abertura da audiência perante a Relação, repetindo a produção de prova No caso de não proceder o pedido anterior, a recorrente pediu a repetição do julgamento ou a abertura da audiência perante a Relação, com repetição da prova produzida e a produção de nova prova, concretamente a realização de nova perícia após a remoção do extrator e /ou inspecção ao local, bem como, a par de oficiosamente promover à identificação dos demais condóminos queixosos; anteriores proprietários promovendo as respectivas inquirições; a junção aos autos do original do livro de actas. A recorrente deduz estes dois pedidos com a alegação de que a Meritíssima juíza do tribunal a quo estava impedida de julgar a causa. E segundo a recorrente estava impedida de o fazer em virtude não ter sido parcial tanto na sessão que teve lugar em 17 de Maio de 2019, como na que teve lugar em 9 de Abril de 2021. A pretensão da recorrente é de julgar improcedente. Em primeiro lugar, a recorrente labora no pressuposto de que a Meritíssima juíza do tribunal a quo estava impedida de julgar a causa quando não existia declaração a julgá-la impedida. Com efeito, resulta do n.º 1 do artigo 116.º, do CPC que o juiz pode ser declarado impedido de julgar uma causa mediante declaração do próprio juiz ou a requerimento das partes, até à sentença e, no caso, nem a Meritíssima juíza se declarou impedida nem a ré, ora requereu se declarasse o impedimento dela. Em segundo lugar, e como resulta do exposto acima, a circunstância de o juiz não se declarar impedido, devendo fazê-lo, configura nulidade sujeita ao regime do artigo 195.º, a arguir perante o tribunal a quo, o que não foi feito. Em terceiro lugar, não tem apoio em nenhum preceito do Código de Processo Civil a pretensão de, no caso de a causa ser julgada por juiz impedido, há lugar à abertura da audiência na Relação, com a repetição da prova produzida em 1.ª instância e a produção e nova prova. Em matéria de produção da prova na Relação, resulta das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC que a Relação tem o poder/dever de ordenar a renovação da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento e ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova, não estando em causa no recurso nenhuma dests hipóteses. Pelo exposto, improcede a pretensão ora em análise. * Para o caso de este tribunal julgar improcedente a pretensão anterior, a recorrente pediu a revogação e a substituição da sentença recorrida por decisão que caracterizasse cabalmente o direito invocado pela autora e o conciliasse adequada e proporcionalmente com o direito económico dela, ré, compreendendo, no limite, a redução da actividade dela entre as 3 horas e as 7 horas e 15 minutos, permitindo que esta laborasse efectivamente um mínimo de 5 horas diárias, acrescida dos 30 minutos para abertura e encerramento. As decisões visadas por este segmento do recurso são as que impuseram à ré o encerramento do bar às 24 horas e o encerramento dele uma vez por semana. A proibição do funcionamento do estabelecimento para além das 24 horas, assentou nos seguintes factos: Teve na sua base a seguinte ponderação: assegurar, por um lado, o direito ao descanso e à saúde da autora e, comprimir, por outro lado, em termos razoáveis o direito de a ré manter em funcionamento o seu estabelecimento. Quanto à imposição do encerramento do estabelecimento um dia por semana, ela foi justificada com a circunstância de resultar dos factos provados que era habitual os utentes do espaço permanecerem no exterior do estabelecimento durante o seu período de funcionamento e para além do mesmo, conversando em voz alta, berrando e gritando, nomeadamente nas madrugadas de Primavera e Verão, quando se encontrava a esplanada aberta e que, por vezes, os utentes do estabelecimento faziam-se transportar em veículos automóveis, cujo movimento de chegada e partida produzia ruídos de motores, incluindo buzinas, movimentos esses, por vezes acompanhados de vozes em tom alto, risos e gargalhadas e ainda que entre a hora da abertura do estabelecimento, cerca das 20h30, e as 24 horas, horário durante o qual a autora costumava descansar na sala, a autora não conseguia ouvir a sua televisão sem lhe aumentar o volume de som para o máximo, nem ter uma conversa naquele local ou ao telefone sem ser perturbada com os ruídos vindos do estabelecimento. A recorrente pede a alteração destas decisões com os seguintes fundamentos: Apreciação do tribunal: Antes de mais, cabe dizer que é exacta a alegação da recorrente de que as providências decretadas pelo tribunal ao abrigo do n.º 2 do artigo 70.º do Código Civil e dos artigos 878.º e 879.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil, tendo em vista a defesa do direito ao repouso e à tranquilidade da autora estavam sujeitas ao princípio da proporcionalidade. Com efeito, ao dispor que a pessoa ameaçada ou ofendida na sua personalidade física ou moral, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa, o n.º 2 do artigo 70.º (bem como o artigo 878.º e o n.º 4 do artigo 879.º, ambos do CPC) exclui a providência que for desproporcionada em relação ao benefício a obter, concretamente a defesa da personalidade. Socorrendo-nos das palavras de Pedro Pais Vasconcelos, “…ao decretar as providências, o juiz não deve exceder o que for suficiente e deve actuar com moderação, de modo a lesar ou perturbar o menos possível terceiros. Há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária” (Direito de Personalidade, Almedina, página 127). E o princípio da proporcionalidade é de observar, ainda que no caso se deva afirmar que o direito de a autora repousar, de dormir e de estar tranquilamente na casa que escolheu para a sua habitação prevalece sobre o direito de a ré, que é uma sociedade comercial, desenvolver o seu objecto social. Com efeito, e socorrendo-nos agora das palavras de Rabindranath Capelo de Sousa “… mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto de interesses” [O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, página 549]. Diga-se que a interpretação do n.º 2 do artigo 70.º do CC e do artigo 878.º do CPC no sentido de que as providências decretadas ao abrigo de tais preceitos estão sujeitas ao princípio da proporcionalidade é afirmada de modo constante pela jurisprudência do STJ. Citam-se a título de exemplo o acórdão proferido em 29-11-2016, no processo n.º 7613/093TBCSC:L1.S1 e o proferido em 7-11-2019, no processo n.º 1386/15.8T8PVZ.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt. Seguindo o que foi decidido no primeiro dos acórdãos citados, o controlo da proporcionalidade passa por testar os seguintes aspectos das providências decretadas i) a adequação delas ao fim em vista; ii) a sua indispensabilidade em relação a esse fim (devendo ser, ainda, a que menos prejudica os cidadãos envolvidos ou a colectividade); iii) a sua racionalidade, medida em função do balanço entre as respectivas vantagens e desvantagens. Fazendo o teste de proporcionalidade às medidas decretadas pelo tribunal com recurso aos critérios acabados de expor, é de afirmar que não vale contra a sentença recorrida a alegação de que as providências decretadas não são proporcionadas em relação ao que benefício que se espera obter delas, concretamente a defesa do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade da autora. Vejamos. Em primeiro lugar, a acusação de que as providências são desproporcionadas assentam em factos que ou não estão provados ou que não são exactos. Assim: Em segundo lugar, é certo que as providências impõem à ré, ora recorrente, uma redução significativa da sua actividade. Porém, esta redução só seria de considerar desproporcionada em relação ao fim que com ela se quer obter – a preservação do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade da autora, na sua própria casa de habitação, entre as 00horas e as 8 horas – se não fosse adequada para o alcançar, se não fosse indispensável a tal fim ou se não fosse razoável. Ora: Pelo exposto, julga-se improcedente a pretensão da recorrente. * (…) * Decisão: 1. Julga-se procedente a reforma da sentença quanto a custas e em consequência completa-se o segmento da sentença quanto a custas nos seguintes termos: “Custas da acção pela autora e ré B... , Ldª, na proporção de, respectivamente, 35% e 65%”; 2. Julga-se improcedente a parte restante do recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Responsabilidade quanto a custas: Considerando o n.º 1 do artigo 27.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a ré ter ficado vencida no recurso, condenam-se as mesmas nas custas do recurso. Coimbra, 26 de Outubro de 2021
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