Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
101/21.1T8PCV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: REGISTO PREDIAL
IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES DO CONSERVADOR
RECURSO HIERÁRQUICO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 02/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENACOVA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 144.º, 145.º, 156.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL
ARTIGOS 3.º, N.º 3, E 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), AMBOS DO CPC
Sumário: I - A decisão proferida em sede de recurso hierárquico que, apesar de revogar a decisão objecto desse recurso, aprecia questão nova e determina uma diferente qualificação do acto de registo, é passível de impugnação judicial ao abrigo do artigo 145.º do Código do Registo Predial.

II - O princípio do contraditório, afirmado no artigo 3.°, n.º 3, do Código de Processo Civil, é aplicável em sede de recurso hierárquico das decisões do conservador.

III – É nula a decisão proferida em sede de recurso hierárquico sem observância do princípio do contraditório, podendo tal vício ser invocado na impugnação judicial deduzida contra tal decisão.

Decisão Texto Integral:






Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra


RELATÓRIO[1]

Foram remetidos a juízo pela Conservatória do Registo Predial de ..., os autos de impugnação judicial interposta pela Exmª Notária do Cartório Notarial de ..., da decisão da respetiva Conservadora de recusa dos registos de aquisição do direito de propriedade a que correspondem as apresentações nºs 1934 e 1935, ambas de 2020/01/27, respeitantes, respetivamente, ao prédios descritos sob o números 12.894 e 12.895, ambos da freguesia e concelho de ..., na sequência da decisão proferida pela Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, que homologou o parecer do respetivo Conselho Consultivo, no âmbito dos recursos hierárquicos interpostos pela referida Notária dos despachos, datados de 2020/04/27, da mesma Conservadora, que lavrou tais registos como provisórios por dúvidas.

*


Os registos de aquisição supra referidos foram solicitados pela Exmª Srª Notária AA, em cumprimento do disposto no nº 1 do artigo 8º-B do Código do Registo Predial, tendo a Exmª Srª Conservadora do Registo Predial de ..., lavrado os registos de aquisição do direito de propriedade sobre os prédios a que respeitam as descrições 12894 e 12895, da freguesia e concelho de ..., provisórios por dúvidas, por entender exigível a inscrição prévia dos imóveis em nome de todos os comproprietários, o que não ocorria com um dos comproprietários.

*

 


Por despachos de sustentação de 13 de julho de 2020 a Exmª Srª Conservadora do Registo Predial de ... manteve as qualificações dadas aos registos, e remeteu o processo ao Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, IP.

*


Obtido parecer do Conselho Consultivo, veio a Presidente do Conselho Diretivo do IRN, IP homologar este parecer, decidindo que:

“1- O registo definitivo de aquisição, com base em divisão de coisa comum, de prédio descrito e com inscrição em vigor apenas quanto à quota-parte de ½ basta-se com a intervenção do titular inscrito (art. 34º/4) e a apresentação do documento comprovativo do direito do comproprietário não inscrito (art. 34º/2), não se mostrando, por isso, exigível a inscrição prévia em nome de todos os comproprietários.

2- Não é legalmente admissível o negócio jurídico no qual se proceda à divisão de dois prédios em compropriedade, mediante adjudicação de um prédio a cada um dos comproprietários, como se de um só direito, versando sobre uma pluralidade de coisas, se tratasse.”


*


A impugnante insurgiu-se contra a decisão de recusa dos registos, na sequência da decisão proferida pela Presidente do INPI, com dois fundamentos:

1º Por violação da proibição da reformatio in pejus e do direito do contraditório;

2º Pela inverificação da nulidade da escritura de divisão de coisa comum.


*

O Ministério Público emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso em apreço e, assim, pela manutenção da decisão proferida pelo IRN, aderindo aos fundamentos expostos nessa mesma decisão e por entender que se tratava de questão de conhecimento oficioso.

*

Foi após proferida decisão pelo Tribunal a quo que julgounula e sem efeito a decisão da Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC, aplicável ex vi artigo 156º do Código do Registo Predial, e determina-se a devolução dos autos à Conservatória do Registo Predial de ..., que os deverá remeter ao IRN, para concessão expressa do contraditório em relação à concreta questão da validade do negócio jurídico a que respeita a escritura de divisão de coisa comum referida no ponto 3 dos factos assentes.”


***

           

Notificada da decisão, veio a Presidente do INRI interpor recurso, do qual constam as seguintes conclusões:


I. A impugnação judicial não deveria ter sido admitida pelo Tribunal, mas sim rejeitada, por inadmissibilidade legal, pelo que, ao admiti-la, violou o Tribunal o disposto no artigo 145.° do Código do Registo Predial.
II. Com efeito, em face do disposto no artigo 145.°, a impugnação judicial subsequente é admitida após a notificação da decisão do presidente do Conselho Diretivo do I.R.N. que tiver julgado improcedente o recurso hierárquico e só pode visar a modificação da decisão tomada pelo conservador - nunca aquela decisão de improcedência hierárquica.
III. O recurso hierárquico previsto nos arts. 140,° e ss. do Código do Registo Predial não é um processo de partes, que assente num litígio que oponha o Conservador recorrido ao recorrente, uma vez que tanto o Conservador recorrido como o superior hierárquico (Presidente do Conselho Diretivo do IRN), nas posições e pronúncias que aí defendam e emitam, atuam desprovidos de qualquer interesse próprio ou pessoal e unicamente movidos pelo dever funcional de não permitirem senão a feitura de registos válidos, em nome da segurança do comércio jurídico imobiliário.
IV. Consequentemente, por não ser um processo de partes, não se aplica ao processo de recurso hierárquico das decisões do conservador o princípio do contraditório que, como princípio geral, se acha consagrado no art. 3.°/3 do Código de Processo Civil.
V. Consequentemente, não violará o princípio do contraditório, nem sofrerá de nulidade alguma por excesso de pronúncia (art. 615.º/1, d) do Código de Processo Civil), a decisão proferida no recurso hierárquico que, a fim de evitar a feitura de registo nulo (art. 16.° do Código do Registo Predial), recuse o seu provimento com base em razões não suscitadas na decisão (do conservador) objeto de recurso.
VI. Assim como a decisão proferida no recurso hierárquico, também a sentença proferida na impugnação judicial da decisão registral deve conhecer oficiosamente das questões não suscitadas na fundamentação dessa decisão registral, se a omissão de pronúncia sobre essas questões puder conduzir à feitura de registos nulos.
VII.  Na decisão recorrida foi violada a norma do artigo 145.º do Código do Registo Predial e mal aplicadas as normas dos arts. 3.°/3 e 615.º/1 do Código de Processo Civil.

Nos termos expostos, e nos demais que V. Exas. doutamente suprirão, o presente recurso deverá ser julgado procedente e simplesmente revogada a douta sentença recorrida, na medida em que versa exclusivamente sobre a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, de que não podia conhecer.

Ou

Caso se entenda que a sentença a proferir no âmbito da impugnação judicial prevista no artigo 145.° do Código do Registo Predial pode versar exclusivamente sobre a decisão de indeferimento do recurso hierárquico, deve o presente recurso ser julgado procedente e substituída a decisão recorrida por outra que considere o recurso hierárquico improcedente, com fundamento nas deficiências do título não conhecidas no despacho de qualificação e na sentença, devidamente identificadas na decisão hierárquica proferida no recurso com que se instruiu a impugnação judicial, visto que, de contrário, se permitirá a feitura de um registo nulo.


***


FUNDAMENTAÇÂO DE FACTO

O Tribunal a quo fixou a seguinte matéria de facto, relevante para a decisão a proferir:

1-Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 12894... o prédio urbano composto de casa de habitação com 3 pisos, situado na localidade de ..., da freguesia e concelho de ..., com a área total e coberta de 94,37 m2, a confrontar a norte com herdeiros de BB, a sul com estrada, a nascente com CC e a poente com DD, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1255.

2- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 12895/... o prédio urbano composto de casa de habitação com 2 pisos, situado na localidade de ..., da freguesia e concelho de ..., com a área total de 185 m2, sendo a área coberta de 97 m2 e a área descoberta de 88 m2, a confrontar a norte com herdeiros de BB, a sul com estrada, a nascente com CC e a poente com DD, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1256;

3- Na escritura de doação, partilha e divisão de coisa comum, outorgada no Cartório Notarial ..., a cargo da Notária AA, a 28/11/2019, EE, casado com FF no regime de comunhão de adquiridos, e GG e marido HH, casados sob o regime de comunhão geral, declararam: “Que são donos e legítimos possuidores, na proporção de metade para cada, dos seguintes prédios sitos na freguesia e concelho de ...:

UM - PRÉDIO URBANO composto de casa de habitação com 3 pisos, com a superfície coberta de noventa e quatro vírgula trinta e sete metros quadrados, a confrontar a norte com herdeiros de BB, de sul com estrada, de nascente com CC e de poente com DD, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1255, com o valor patrimonial de 10.652,38€;

DOIS - PRÉDIO URBANO composto de casa de habitação com 2 pisos, com a superfície coberta de noventa e sete metros quadrados e descoberta de oitenta e oito metros quadrados, a confrontar a norte com herdeiros de BB, de sul com estrada, de nascente com CC e de poente com DD, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1256, com o valor patrimonial de 7.855,46€,

Que os referidos prédios, aos quais atribuem o valor de dez mil seiscentos e cinquenta e dois euros e trinta e nove cêntimos cada, provêm do artigo matricial urbano 449 da mesma freguesia de ... e não se encontram descritos na Conservatória do Registo Predial ... (…).

Que a metade que pertence ao primeiro outorgante veio à sua posse por escritura de partilha lavrada hoje a folhas que imediatamente estas antecedem e metade que pertence aos segundos outorgantes faz parte das heranças abertas por óbito de II e JJ, de quem a segunda outorgante mulher foi declarada sua única herdeira conforme consta da escritura de habilitações lavrada a folhas cento e vinte e oito e seguintes do Livro número Trinta e Três – C do extinto Cartório Notarial Público de ....

Que não lhes sendo conveniente permanecer nesta indivisão põem termo à compropriedade, adjudicando o prédio número um ao primeiro outorgante marido EE e o prédio número dois aos segundos outorgantes GG e marido HH. Que tendo em conta os valores atribuídos e tendo em conta a quota parte de cada, levam ambos o mesmo valor de dez mil seiscentos e cinquenta e dois euros e trinta e nove cêntimos, pelo que não há lugar a tornas, dando por efetuada a presente divisão.”

4-Na mesma escritura, FF, esposa do primeiro outorgante, prestou-lhe o necessário consentimento para a prática desse ato.

5- A aquisição definitiva de ½ do direito de propriedade sobre os supra descritos prédios está feita a favor de EE, casado com FF no regime de comunhão de adquiridos, através da Ap. ...23 de 2020/01/27, tendo como causa aquisitiva a partilha da herança de KK.

6- Na mesma data (2020/01/27), o referido EE requereu o registo definitivo a seu favor da aquisição do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio referido em primeiro lugar, tendo como causa de aquisição a divisão de coisa comum feita na referida escritura, tendo tal registo sido feito provisório por dúvidas através da apresentação ...34 de 2020/01/27.

7-Nessa mesma data (2020/01/27), os referidos GG e marido HH requereram o registo definitivo a seu favor da aquisição do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio referido em segundo lugar, tendo como causa de aquisição a divisão de coisa comum feita na referida escritura, tendo tal registo sido feito provisório por dúvidas través da apresentação ...35 de 2020/01/27.

8- O registo de aquisição requisitado sob a Ap. ...34, de 2020/01/27, respeitante à descrição 12894 da freguesia e concelho de ..., foi lavrado como provisório por dúvidas, por despacho da Srª Conservadora do Registo Predial de ... de 2020/04/27, pelo seguinte motivo: “Invocando-se no título a existência de uma compropriedade sobre o prédio apenas está registada a aquisição de uma metade indivisa faltando efectuar o registo da restante metade. Artigos 68º, 70º e 34º, nº 4, todos do Código do Registo Predial.”

9- O registo de aquisição requisitado sob a Ap. ...35, de 2020/01/27, respeitante à descrição 12895 da freguesia e concelho de ... foi lavrado como provisório por dúvidas, por despacho da Srª Conservadora do Registo Predial de ... de 2020/04/27, pelo seguinte motivo: “Invocando-se no título a existência de uma compropriedade sobre o prédio apenas está registada a aquisição de uma metade indivisa faltando efectuar o registo da restante metade. Artigos 68º, 70º e 34º, nº 4, todos do Código do Registo Predial”;

10. Por despachos de 13 de julho de 2020 a Exmª Srª Conservadora do Registo Predial de ... manteve as qualificações dadas aos registos, pelas razões apontadas nos seus despachos de 27 de abril de 2020, e remeteu o processo ao Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, IP;

11. Na sequência de recurso hierárquico da decisão de qualificação do pedido de registo a que coube a apresentação ...34 de 27/01/2020 interposto pela Sr.ª Notária, onde, a final, peticionou pela feitura do pedido de registo em apreço como definitivo (“uma vez que o pedido de registo prévio fundado em sucessão a favor da Srª GG não era obrigatório nem necessário para a inscrição definitiva da aquisição”), a Presidente do Conselho Diretivo do IRN, IP homologou o parecer do respetivo Conselho, e decidiu:

“1- O registo definitivo de aquisição, com base em divisão de coisa comum, de prédio descrito e com inscrição em vigor apenas quanto à quota-parte de ½ basta-se com a intervenção do titular inscrito (art. 34º/4) e a apresentação do documento comprovativo do direito do comproprietário não inscrito (art. 34º/2), não se mostrando, por isso, exigível a inscrição prévia em nome de todos os comproprietários.

2- Não é legalmente admissível o negócio jurídico no qual se proceda à divisão de dois prédios em compropriedade, mediante adjudicação de um prédio a cada um dos comproprietários, como se de um só direito, versando sobre uma pluralidade de coisas, se tratasse.”


*



QUESTÕES A DECIDIR

Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo tribunal a quo em sede de impugnação judicial do despacho de Conservador de recusa da prática do acto de registo, nos termos e para os efeitos dos artºs 140, 141 nº4, 145 e 147 nº1 do Código de Registo Predial.

A este recurso, conforme decorre do disposto no artº 156 do Código de Registo Predial, deve ser aplicado, aos actos, processos e respectivos prazos, subsidiariamente, as disposições constantes do Código de Processo Civil.

Assim sendo, as conclusões do recurso apresentado pela recorrente, Presidente do INRI, de acordo com o disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, excepto em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Nestes termos, não pode este Tribunal conhecer de questões novas, que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[2], exceptuando-se aquelas que a lei manda conhecer oficiosamente.

Tendo em conta esta delimitação, as questões ora suscitadas no âmbito do recurso interposto consistem nas seguintes:

a) se foi violado o normativo previsto no artº 145 do CRP, por o apresentante do registo, na sua impugnação, visar a decisão proferida em sede de recurso hierárquico, pelo Presidente do INRI e não o despacho do Conservador que qualificou de forma diversa o registo peticionado;

b) se não é aplicável ao processo de recurso hierárquico das decisões do conservador, o princípio do contraditório que, como princípio geral, se acha consagrado no art. 3.°/3 do Código de Processo Civil, por o processo registral não ser um processo de partes e os respectivos intervenientes actuarem no exercício de funções públicas;

c) se deve ser proferida decisão que considere totalmente improcedente a impugnação, por ser manifestamente nulo o acto que se pretende registar;


*


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se a recorrente contra a decisão que admitiu e conheceu da impugnação judicial deduzida pela Srª Notária do Cartório Notarial de ..., ao abrigo do disposto nos artºs 141 nº4 e 145 do Código de Registo Predial, por considerar que o direito de impugnação judicial previsto neste último preceito, reporta-se ao acto de recusa de registo do Conservador e pressupõe que o recurso hierárquico interposto haja sido julgado improcedente.
Cumpre-nos assim decidir desta primeira questão, ou seja, se foi violado o normativo previsto no artº 145 do Código de Registo Predial, não se enquadrando neste preceito a impugnação da decisão final proferida em sede de recurso hierárquico.
A respeito dos meios de reacção contra o despacho do conservador que recuse o registo ou confira diversa qualificação ao registo pedido, dispõe o artº 140 nº1 do Código de Registo Predial que “A decisão de recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos pode ser impugnada mediante a interposição de recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registo”.
No que se reporta à legitimidade, quer para a interposição de recurso hierárquico, quer para a impugnação judicial deste despacho, o artº 141 nº4 do Código de Registo Predial, veio esclarecer que a legitimidade está reservada ao apresentante do registo, ou seja, ao requisitante do registo cuja qualificação se impugna (notário, advogado ou solicitador[3]) ou à pessoa que por ele tenha sido representada.[4]

Que o apresentante do registo, no caso em apreço o notário, tem legitimidade para a prática dos actos de recurso hierárquico ou impugnação judicial, decorre de norma expressa e assim era já maioritariamente entendido, no âmbito do regime anterior ao D.L. nº 125/2013, de 30 de Agosto[5], tendo em conta o dever funcional que lhe é cometido por via do artº 8-B nº1 do Código de Registo Predial.

No que se reporta ao objecto da impugnação judicial, dispõe o artº 145 do Código de Registo Predial que, tendo sido interposto recurso hierárquico, no caso de este ter sido julgado improcedente, o interessado pode ainda impugnar judicialmente a decisão de qualificação do acto de registo. Interessado para efeitos deste preceito legal é ainda o apresentante do registo, que viu o recurso hierárquico por si interposto, julgado improcedente.

Nesta medida, a impugnação judicial é, em regra, como refere a recorrente, deduzida contra a decisão do Conservador e não contra o despacho do Presidente do Instituto que indeferiu o recurso, na medida em que, indeferido o recurso hierárquico, o que permanece é o acto de qualificação do registo do Conservador e é este que é objecto de impugnação judicial.[6]

Se assim ocorre em regra, nos casos em que o acto de qualificação do registo por parte do Conservador, objecto do despacho de que se recorreu hierarquicamente, foi revogado por decisão proferida nesse recurso hierárquico, mas esta decisão aprecia uma questão nova, não suscitada no recurso e sobre ela se pronuncia de forma desfavorável ao recorrente, então a decisão impugnável é esta e não o despacho do Conservador já revogado.

Ora, dos factos dados como assentes decorre que, obtido Parecer do Conselho Consultivo, a decisão final considerou não ser necessário para a efectivação do registo definitivo de aquisição, com base em divisão de coisa comum de prédio descrito e com inscrição em vigor apenas quanto à quota-parte de ½, a inscrição prévia em nome de todos os comproprietários. Era este o acto de qualificação do registo que fora impugnado por via de recurso hierárquico. Tendo este concreto despacho sido revogado por decisão da Presidente do INRI, os fundamentos invocados para a efectivação do registo como provisório por dúvidas, deixaram de subsistir e não podem ser objecto de impugnação judicial, pois que nesta parte o recurso foi procedente.

Decorrendo ainda dos factos provados que a mesma decisão apreciou questão nova e considerou existir uma nulidade manifesta do acto que se pretendia registar, o que determinava a recursa definitiva do registo, nos termos previstos no artº 69 nº1 alínea d) do Código de Registo Predial, é este o único acto de qualificação do registo que subsiste e pode ser objecto de impugnação.

É certo que, no processo registal não ocorre o trânsito em julgado de qualquer decisão, como ocorre em sede de processo civil, pelo que, em princípio não estaria vedado ao interessado na realização do registo, nova apresentação do acto (mas não beneficiando já da data do primeiro registo requerido e da protecção conferida pela eventual prioridade de registo).

Mas essa possibilidade que, em si se poderia revelar danosa e que conduziria afinal a nova recusa do acto, não obvia ao direito de impugnação judicial da nova decisão, expressamente consagrado no artº 145 do Código de Registo Predial.

A não ser assim entendido, seria o apresentante confrontado com uma nova decisão de qualificação do acto sujeito a registo, ou melhor com a recusa total do acto cujo registo se visava, até então provisório por dúvidas, que agrava a posição dos interessados na realização do registo, contra o qual não poderia reagir, quer por via do recurso hierárquico, quer por via da impugnação judicial, o que viola os preceitos contidos nos artºs 140 e 145 do Código de Registo Predial e o princípio da tutela jurisdicional efectiva prevista no artº 20 nº1 da Constituição.

Assim sendo, devem ser consideradas passíveis de impugnação judicial todas as decisões proferidas em desconformidade com o pedido formulado, desde que desfavoráveis ao interessado. A decisão em causa ao agravar a posição registal do interessado, pela recusa definitiva do registo é, assim, susceptível de impugnação judicial.

Improcede assim o primeiro fundamento de recurso, considerando-se integrado no artº 145 do Código do Registo Predial a possibilidade de impugnação da decisão do Presidente do INRI, em sede de recurso hierárquico, quando esta decisão, apesar de revogar a decisão objecto desse recurso, apreciar questão nova e determinar uma diferente qualificação do acto de registo, ou a recusa deste acto.

A segunda questão objecto deste recurso, incide sobre a natureza do processo de registo e sobre a aplicação do princípio do contraditório, consagrado no art. 3.°/3 do Código de Processo Civil, ao processo registal, tendo em conta a sua natureza e a função por ele prosseguida.

A aplicação subsidiária do regime processual civil, decorre do disposto no artº 156 do Código de Registo Predial (após revogação do disposto no artº 147-B, que mandava aplicar subsidiariamente o processo administrativo (redacção do D.L. 116/2008 de 04/07), sendo este regime aplicável a todos os actos, processos e prazos, no que não for contrário às normas deste diploma.

Que o processo de registo não é um processo de partes tout court, é certo, decorrente da sua própria natureza e da função associada ao registo predial. O registo predial tem por função essencial, conforme decorre do artº 1 do Código de Registo Predial, publicitar os direitos, ónus ou encargos que recaem sobre os imóveis, visando a segurança do comércio jurídico imobiliário[7].

A segurança jurídica decorrente do registo, como refere Isabel Pereira Mendes[8], opera, no entanto, numa dupla vertente: na protecção dos direitos dos titulares inscritos, em especial no campo dos direitos com eficácia real ou das relações jurídicas com carácter patrimonial e da comunidade em geral, decorrente da certeza do tráfego imobiliário. Nesta medida, o registo predial prossegue igualmente fins de natureza privada e fins de natureza eminentemente pública.

Prossegue fins de natureza privada, garantindo a segurança jurídica, nomeadamente por efeito da presunção constante do artº 7 do Código de Registo Predial, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define, dele decorre a protecção da aparência jurídica nele contida e garante a protecção constante da prioridade do registo (artº 6) e de terceiros de boa fé, nomeadamente para os efeitos dos artºs 5 e 17 nº2 deste diploma legal.

Nestes termos, “preponderante no registo predial é a “garantia do publicado”, conferindo a quem, de boa fé e a título oneroso, adquire um direito inscrito no registo e o inscreve a seu favor a garantia de que a sua posição não vai ser posta em causa em virtude de um vício anterior ao qual é alheio”.[9]

Prossegue igualmente fins de interesse público, enquanto instrumento de ordenamento do território, de urbanismo, e de garante da actualização do registo face ao facto publicitado[10].

Para o cumprimento destas funções, afectou-se à obrigação de promover o registo de factos obrigatoriamente a ele sujeitos, pessoas e entidades que, por via das suas funções privadas ou públicas, de algum modo tenham tido intervenção nos actos sujeitos a registo obrigatório. Neste campo, se insere o dever funcional dos notários de promoverem o registo dos actos que lhes são solicitados (artº 8-B nº1 do Código de Registo Predial) e a legitimidade que lhes é conferida para impugnarem, na qualidade de apresentantes do registo, o acto de recusa ou diversa qualificação do registo, tendo em conta que é aos apresentantes que é dado conhecimento dessa recusa ou da diversa qualificação do registo promovido (cfr. art. 71.°, n.°s 1 e 2, do Código de Registo Predial).

Por assim ser, não sendo um processo de partes, o processo de registo predial está ainda assim sujeito, entre outros, aos princípios da instância, da legalidade e do exercício do contraditório em relação a decisões prejudiciais aos interessados na efectivação do registo.

O princípio da instância, consagrado no artº 41 do Código de Registo Predial, significa que o registo se efectua a pedido de quem tenha legitimidade para tal, nos termos definidos no artº 36 do mesmo diploma, ressalvados os casos de oficiosidade legalmente previstos (nomeadamente os previstos no artº 92, nºs 7, 8 e 10, 97, nº1, 98, nº3, 102, nºs 4 e 5, 148 nº4 e 149).

O princípio da legalidade ou da qualificação, consagrado no artº 68 do Código de Registo Predial, impõe ao conservador o dever de, em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificar a viabilidade do registo, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos dispositivos nele consignados. Nesta apreciação, a mera incorrecção do pedido de registo formulado não constitui motivo de recusa, devendo o Conservador, nesse caso e desde que dessa diversa interpretação não resulte o “desvirtuamento dos elementos essenciais da apresentação do pedido e dos efeitos registrais a produzir”[11] , tendo em conta o princípio da instância registal, convolar o pedido formulado, precedido de despacho em conformidade e proceder à sua comunicação ao requerente, quando tal se justifique em face da alteração sofrida, [12]expressão do princípio do contraditório, por possibilitar a cabal reacção do interessado, se considerar que essa diversa qualificação, excede o pedido, ou constitui decisão prejudicial.

Por último e expressão do princípio do contraditório, proferido despacho de recusa do registo ou de qualificação diversa e desfavorável ao apresentante do registo, deve este despacho conter os fundamentos de facto e de direito, pelos quais se recusa o registo na forma pedida, sob pena de nulidade por aplicação do disposto nos artº 615 nº1 b) do C.P.C., aplicável ex vi do artº 156 do Código de Registo Predial). Como nulo será o despacho de sustentação do Conservador, interposto recurso hierárquico, que deixe de se pronunciar sobre questão de que deveria conhecer ou conheça de questões novas, não constantes do anterior despacho notificado ao interessado.[13]

Dos preceitos acima citados decorre que tem plena aplicabilidade ao processo registal o princípio do contraditório e o regime das nulidades da decisão previstas no actual artº 615 do C.P.C.

Quer isto dizer que nem o Conservador, no seu despacho de sustentação, pode convocar argumentos novos, pois que a estes não pode o recorrente responder, nem omitir pronúncia fundamentada sobre os fundamentos da recusa ou da diversa qualificação do registo.[14]

O mesmo principio se aplica à decisão do recurso hierárquico. A apreciação do mérito do recurso deve circunscrever-se às questões que são suscitadas no despacho impugnado e, porque o recorrente sobre elas já se pronunciou, não há que conceder-lhe novamente prazo para pronúncia após audição do Conselho Consultivo, prevista esta no artº 144 do Código de Registo Predial.

No entanto, este princípio geral deve ceder sempre que esteja em causa a realização de registos nulos, embora não equacionados como tais no despacho do conservador, uma vez que quando a “omissão sobre questões não equacionadas (mas que, indiscutivelmente, o deviam ter sido) pode conduzir à feitura de registos nulos, tem-se entendido que tal deficiência deve ser colmatada, em sede de recurso e decidir em real conformidade com os obstáculos existentes.[15]

Nada obsta, assim, a que a decisão do recurso hierárquico, quando em causa esteja a possibilidade de realização de um registo nulo, conheça oficiosamente desta questão, ainda que se trate de questão nova. O mesmo ocorre aliás no processo civil, conforme acima consignado, impondo-se ao juiz conhecer de todas as questões que não estejam na disponibilidade do interessado e que assim são de conhecimento oficioso, ainda que não invocadas no recurso da decisão. O que não significa, no entanto, que possa delas conhecer, sem previamente conceder ao recorrente a possibilidade de sobre elas se pronunciar, sob pena de nulidade da decisão, por violação do contraditório. O princípio legal e constitucional de observância do contraditório e da proibição da indefesa, decorrente dos artsº 3 nº3 do C.P.C. e 20 nº1 e 4 da Constituição, princípio inerente a um Estado de Direito e que assim perpassa por todo o ordenamento jurídico sem exclusão do registal, impõe que, previamente à decisão final do recurso, seja ele hierárquico, seja de impugnação judicial, se ouça o interessado possibilitando-lhe o exercício do contraditório quanto à nova questão que se pretende decidir.

Assim sendo, não existe norma expressa no registo predial que afaste este princípio do contraditório, que sempre se imporia por aplicação subsidiária do regime processual civil, como, aliás, tem sido entendido em relação ao despacho do Conservador, por pareceres do próprio Conselho Técnico do INRI, já citados.

Nem vemos que no âmbito do recurso hierárquico, ainda que movido pela Notária apresentante do registo, se processe de forma diversa. É que a Notária, enquanto apresentante do registo por via funcional, é a pessoa com legitimidade para deduzir esta impugnação (tem sido, aliás, entendida como sendo a única parte legítima, salvo a posição expressa em Ac. do STJ de 2019, acima citado, que confere igualmente legitimidade para a impugnação ao interessado não apresentante do registo) e, nessa medida, incumbe-lhe igualmente salvaguardar os interesses privados das partes que se pretendem prevalecer do registo.

Por último, a audição prévia do interessado, ao contrário do que parece defender a recorrente, não implica a não decisão sobre a questão nova, ou a possível realização de um registo nulo. Significa simplesmente que se concede ao interessado ou seu representante, o direito que lhe é reconhecido pela Constituição, de se pronunciar sobre questões que afectem os seus legítimos direitos e interesses.

Temos assim que concluir que, mesmo no processo registal e abrangendo todas as decisões proferidas sobre o pedido formulado pelos interessados e do qual decorra a afectação dos seus direitos, se aplica este princípio do contraditório.

Nestes termos, violado o contraditório prévio à decisão incidindo sobre questão nova e prejudicial ao interessado (por via da aplicação do disposto no artº 69 nº1 d) do Código de Registo Predial) a primeira instância concluiu, pela aplicação subsidiária do artº 615 nº1 d) do C.P.C., considerando assim nula a decisão tomada pela Presidente do INRI.

 Desde já se adianta que se concorda com esta decisão, embora não com o seu concreto alcance.

Garantido por via constitucional a proibição da indefesa (artº 20 nº4 da CRP)[16], deste decorre que não deve ser proferida nenhuma decisão, sobre qualquer questão, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido aos interessados, cujos direitos e interesses legítimos possam ser afectados por esta decisão, a possibilidade de  sobre ela se pronunciarem.[17]

Tendo em conta que constitui decisão surpresa apenas aquela que seja “baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado”[18],[19], a decisão em causa constitui efectivamente uma decisão surpresa porque, não tendo sido previamente equacionado pelo apresentante do registo, nem pelo Conservador, não foi objecto de contraditório, não tendo sido concedido ao recorrente o direito de sobre ela se pronunciar.

A consequência da preterição deste princípio do contraditório, com reflexos evidentes no agravamento da posição registal do interessado é a nulidade que, à semelhança do previsto no artº 615 nº1 d), é invocável apenas em sede de impugnação deste despacho.

Assim, quanto à inclusão desta nulidade nas nulidades da sentença previstas no nº1 d) do artº 615 do C.P.C., a doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes a este respeito.

Já Alberto dos Reis[20] referia que «a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.»

Ainda na doutrina, ABRANTES GERALDES[21], entende que «sempre que o juiz, ao proferir a decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reação da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado na nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615 nº1 d). Afinal, nesses casos, designadamente quando o juiz aprecie uma determinada questão que traduza uma decisão surpresa, sem respeito pelo princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3, a parte prejudicada nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual emergente da omissão do acto, não podendo deixar de integrar essa impugnação, de forma imediata no recurso que seja interposto de tal decisão.”

Por último, em artigo publicado no blogue do IPCC pelo Prof. Dr. Miguel Teixeira de Sousa, em 22/09/20 intitulado “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, explica-nos este ilustre processualista em resposta à questão “uma decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos do art. 195.º, n.º 1, CPC ou uma nulidade da sentença de acordo com o estabelecido nos art. 615.º, 666.º e 685.º CPC?” que “A audição prévia das partes é um pressuposto ou uma condição para que a decisão não seja considerada uma decisão-surpresa. Quer dizer: a decisão-surpresa é um vício único e próprio: a decisão é uma decisão-surpresa quando tenha sido omitida a audição prévia das partes. Noutros termos: há um vício (que é a decisão-surpresa), e não dois vícios independentes (a omissão da audiência prévia das partes e a decisão-surpresa). Em concreto: há um vício processual que é consequência da omissão de um acto. Se assim é, claro que o que há que considerar é o vício em si mesmo (a decisão-surpresa), e não separadamente a causa do vício e o vício. Em parte alguma do direito processual ou do direito substantivo se considera a causa do vício e o vício como duas realidades distintas. A única distinção que é possível fazer é ontológica: é a distinção entre a causa e a consequência. Dado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar.”

Mais recentemente, o nosso Supremo Tribunal em Ac. de 16/12/21[22], veio considerar que “ Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (...), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.”

No mesmo sentido vai o Ac. do STJ de 19/10/21[23] no qual se considerou que “as decisões surpresa, conceito que a jurisprudência tem vindo a densificar, são apenas aquelas com que as partes sejam confrontadas, com sentido de novidade relativamente às questões que haviam suscitado, e que não poderiam prever ou antecipar face ao conjunto do sistema jurídico na parte aplicável. Só quanto a estas, a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que determine a anulação da decisão, mas a uma nulidade da própria decisão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.”

Por último e ainda no mesmo sentido o Ac do STJ de 13/10/20[24], defende que “A violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC, que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma;”

Conclui-se assim ser esta nulidade da decisão proferida em recurso hierárquico, atacável por via da impugnação judicial interposta.

No entanto, a decisão a proferir neste âmbito é de “mera anulação do despacho do conservador, se julgar procedente o recurso.”[25] Nada mais.

Conforme referido em Ac. do STJ nº 799/99[26], “Em recurso contencioso o tribunal, se julgar procedente o recurso, limita-se a anular ou declarar nulo o despacho impugnado. Nada ordena. Administração e Tribunais são entidades independentes. Não dão nem recebem ordens entre si. Anulado ou declarado nulo o despacho impugnado, cumpre à Administração, em obediência à ordem jurídica (sentença transitada faz parte do chamado “bloco legal”), “sponte sua”, praticar novo acto, agora tendo em conta o julgado e seus fundamentos, que se lhe impõem.”

Improcede assim, o recurso interposto pela Srª Presidente do INRI.


***

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida na parte em que julgou “nula e sem efeito a decisão da Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC, aplicável ex vi artigo 156º do Código do Registo Predial.”

Sem custas.                

                                                           Coimbra 15/02/22


*

Declaração de voto (Apelação nº 101/21.1T8PCV –C1):

Voto favoravelmente o presente Acórdão com o esclarecimento que se segue:

No meu entender, há casos em que as omissões do rito processual previsto na lei - incluindo a falta de contraditório -, enquadráveis nas nulidades atípicas previstas no artº 195º, nº 1, do NCPC, não devem entender-se como passíveis de ser impugnadas em recurso de despacho subsequente a elas ou em recurso de decisão final, sendo antes, quanto a elas, de seguir, tempestivamente, o mecanismo impugnatório da reclamação, prevista no artº 199º, nº 1, sob pena de sanação.

Se bem que se note, mais recentemente, na jurisprudência do STJ, a tendência que se refere no presente Acórdão, há nesse conspecto exemplos dissonantes, também relativamente recentes, como seja o do entendimento seguido no Acórdão de 19-12-2018, relatado pelo Sr. Conselheiro Alexandre Reis (Revista n.º 17937/16.8T8LSB.E1.S1), assim, sumariado:

“I - A arguição da nulidade cometida com a dispensa (ilegal) da audiência prévia configura uma nulidade processual – art. 195.º do CPC.

II - A referida nulidade processual deve ser arguida no prazo legal de 10 dias após o seu conhecimento – art. 199.º, ambos do CPC,

III - Não tendo sido oportunamente arguida, a nulidade processual sanou-se e não pode ser invocada e conhecida no recurso de apelação interposto sobre o despacho saneador/sentença sequente àquela dispensa.”.

O mesmo ocorre na jurisprudência das Relações, citando-se, exemplificativamente, o caso da Decisão desta Relação de 3.5.2021, relatada pelo Sr. Des. Moreira do Carmo (Apelação nº 1250/20.9T8VIS.C1), em cujo sumário se pode ler: “(…) Proferida decisão-surpresa, com violação do princípio do contraditório, em desrespeito pelo estatuído no art. 3º, nº 3, do NCPC, incorre-se numa nulidade processual, nos termos do art. 195º, nº 1, do mesmo diploma, e não numa nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, do art. 615º, nº 1, c), do referido código (…)”.

Já no Acórdão de 11/01/2005 desta mesma Relação de Coimbra, relatado pelo ora Conselheiro do STJ, Isaías Pádua, entendeu-se que o conhecimento oficioso, na sentença, sem prévio contraditório da parte interessada, da questão da litigância de má fé, consubstanciava excesso de pronúncia, por aí se decidido uma questão que não se podia, nesse momento, conhecer, sendo, nessa parte, nula, a sentença, à luz do disposto no artº 668, nº 1 al. d) - 2ª parte -, do CPC (ora artº 615, nº 1 al. d) - 2ª parte -, do novo CPC).

No caso presente, entendo que a decisão da Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, é nula, não, propriamente, por constituir decisão surpresa – que também o é -, mas por aí ter proferido decisão sobre questão que, embora de conhecimento oficioso, nas circunstâncias em que o fez, lhe era defeso conhecer, incorrendo, assim, a decisão em causa, na nulidade do excesso de pronúncia, prevista no artº 615, nº 1 al. d) - 2ª parte -, do novo CPC.

Assim, muito embora com este meu esclarecimento, concordo com a decisão do Acórdão em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida na parte em que julgou “nula e sem efeito a decisão da Presidente do Conselho Diretivo do Instituto dos Registos e Notariado, IP, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC, aplicável ex vi artigo 156º do Código do Registo Predial.”, bem assim, como o perfilhar da solução seguida no citado Acórdão do STJ nº 799/99.

15/2/2022

Luiz José falcão de Magalhães


[1] Elaborado com aproveitamento do relatório constante da decisão recorrida.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Decorrendo do disposto na Portaria nº 621/2008, de 18 de Julho estipular, no seu artigo 3.°, n.° 2, que "quando o pedido de registo seja efectuado por advogado, notário ou solicitador nos termos da alínea b) do n.° 2 do artigo 39.º do Código do Registo Predial, deve ser indicado o nome da pessoa representada".
[4] Pondo termo às dúvidas surgidas na anterior redacção do artº 141 do CRP.

[5] Neste sentido (mas admitindo apenas a legitimidade do que promoveu o registo (o seu apresentante), vide Ac. do TR Porto de 02/07/15, proferido no proc. nº 643/14.5T2AVR.P1; Ac. do TRE de 08/02/18, proc. nº 715/17.4T8STR.E1 e AC. do TRP de 11/05/21, proc. nº 1060/20.3T8VCD.P1 e, por último o Ac. do STJ de 27/06/2019, proc. nº 715/17.4T8STR.E1.S2, admitindo igualmente a legitimidade para intervir nos autos de impugnação do despacho, o interessado na feitura do registo, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[6] Vide GERALDES, Isabel Ferreira Quelhas, Código de Registo predial Anotado, 2ª edição, Almedina, pág. 365.
[7] Sobre os fins da publicidade registal, vide ainda ROGRIGUES, Pedro Nunes, Direito Notarial e Direito Registal, Almedina, 2005, págs. 280 e segs.
[8] MENDES, ISABEL Pereira, Estudos sobre Registo Predial, Almedina 2003, pág. 84 e segs.
[9]  TEIXEIRA, Madalena, A relevância do cadastro para o registo predial, apud MENDES, Isabel Pereira, ob. cit..
[10] cfr. MOUTEIRA GUERREIRO, J.A., Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), 2ª edição, 1994, pág. 73.
[11] Parecer nº 97/2012 SJC-CT, disponível in  www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/
[12] Parecer do CT proferido no Proc. nº R.P.119//98 DSJ-CT, BRN nº 3/99, II, pág. 22.
[13] Conforme Pareceres proferidos no PROC. R P 2/2014 STJ-CC, Proc. nº 97/96, BRN nº 5/97 e Proc. nº RP 157/99 DSJ-CT, BRN, nº 4/2000, II caderno, no qual se considerou que “o despacho de qualificação é nulo por falta de fundamentação (art. 668º, nº 1, b), C.P.C.), sendo-o igualmente o despacho de sustentação por omissão de pronúncia (art. 668º, nº 1, d), C.P.C.).
[14] Conforme referido no Ac. do TRL de 01/07/2005, Proc. nº 4879/2005-6, Fernanda Isabel Pereira, disponível in www.dgsi.pt, o exercício do contraditório do recorrente é já assegurado na fase processual anterior, pois que “teve oportunidade de exprimir as razões da sua discordância da decisão recorrida na exposição dos fundamentos do recurso.”
[15] GERALDES, Isabel Ferreira Quelhas, ob. cit. págs. 364; vide ainda os Pareceres proferidos nos Proc.s RP31/2013 STJ-CC e 7/2014 STJ-CC, disponíveis in www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/
[16] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000).
[17] Cfr. refere Carlos Lopes do Rego, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, 2004, pp. 835 e segs.
[18] FREITAS, José Lebre e ALEXANDRE, Isabel, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 2014, pág. 9
[19] Acórdão do STJ de 20/09/2016, de que foi relator José Rainho, proferido no proc. nº 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[20] Comentário ao Código de Processo Civil, 2º Vol., p. 507.
[21] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, pág. 26.
[22] Proc. nº 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, relator Luís Espírito Santo, disponível in www.dgsi.pt
[23] Proferido no Proc. nº 225/20.2YHLSB-A.S1, relator Manuel Capelo, disponível in www.dgsi.pt
[24] Proferido no Proc. nº 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1, relator António Magalhães, disponível in www.dgsi.pt
[25] SEABRA LOPES; J., Direito dos Registo e do Notariado, 2ª ed. Almedina,pág. 222/223.
[26] Publicado no BRN nº 10/99, págs. 15-18.