Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
79222/09.0YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: DESCOBERTO BANCÁRIO
CONTA SOLIDÁRIA
RESPONSABILIDADE
Data do Acordão: 12/05/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 513º DO C. CIV.; 100º DO CÓDIGO COMERCIAL.
Sumário: 1. O descoberto em conta - também designado por facilidades de caixa - é uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre, tipicamente, quando se verifiquem dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.

2. Se numa conta bancária de depósito à ordem, de que são titulares em solidariedade activa dois depositantes, o banco paga para além dos limites do depósito, ficando a conta a descoberto, por ordem de um dos titulares da conta, sem que tenha havido convenção de solidariedade passiva contemporânea da abertura de conta ou posterior, será ao responsável pela origem do descoberto que o banco tem de exigir o montante que adiantou.

3. Secundando-se aqui o entendimento segundo o qual a responsabilidade solidária dos co-titulares só vai até à completa absorção do saldo, ficando a responsabilidade pela movimentação a título de descoberto em conta a cargo exclusivo do titular que procedeu a esta movimentação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório

Notificado da sentença, que está a fls. …o Banco A… interpôs recurso da mesma.

Os termos do processo:

O Banco A..., com sede …, apresentou na competente secretaria o Requerimento de Injunção constante de fls. 2, pedindo a notificação de J…, residente no …; e F…, residente no …, no sentido de lhe ser paga a quantia de €: 45.563,75 [quarenta e cinco mil, quinhentos e sessenta e três euros e setenta e cinco cêntimos], sendo €: 36.789,34, de capital, €: 6.654,41, de juros e €: 120,00, de taxa de justiça paga, acrescida dos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

ALEGOU, para tanto, que no exercício da sua atividade abriu em nome dos requeridos uma conta bancária, a qual, em 1 de agosto de 2007, apresentava um saldo negativo no valor do capital pedido, saldo que nunca veio a ser provisionado e se encontra presentemente em débito.

O requerido J… foi regularmente notificado e não deduziu oposição, não constituiu mandatário nem interveio por qualquer forma no processo.

Regularmente notificado, o requerido F… deduziu oposição na qual alegou que a movimentação da aludida conta bancária foi exclusivamente efetuada pelo réu J…, a quem deverá por isso ser imputada a responsabilidade pelo pagamento do respetivo saldo negativo.

Remetidos à distribuição, nos termos do artigo nos termos do artigo 17º, número 1, do Diploma anexo ao Decreto-lei número 269/98, de 1 de setembro, passaram os autos a seguir os termos da forma ordinária do processo comum de declaração, atento o seu valor – cf. artigo 7º, número 2, do Decreto-lei número 32/2003, de 17 de fevereiro.

Nessa conformidade, notificada da oposição do réu [cf. artigo 492º, número 1, do Código de Processo Civil], a autora apresentou réplica, por meio da qual reiterou a procedência do pedido formulado na petição inicial.

Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, seguido da seleção da matéria de facto, em cujo âmbito se fixaram os factos assentes e selecionaram aqueles que, por controvertidos, ficaram a integrar a base instrutória.

É desta decisão que o autor recorre:

“… julgando a presente ação parcialmente procedente, por provada em igual medida, este Tribunal decide condenar o réu J… a pagar ao autor Banco A… a quantia de € 36.789,34 [trinta e seis mil setecentos e oitenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos], acrescida de juros contados, à taxa legal, desde 1 de agosto de 2007 até efetivo e integral pagamento, ascendendo os juros vencidos à data da propositura da ação ao montante de €: 6.654,41 [seis mil, seiscentos e cinquenta e quatro euros e quarenta e um cêntimos].

No mais julga-se a ação improcedente, por não provada, absolvendo-se do pedido o réu F...

Custas pela autora e pelo réu J…, respetivamente na proporção de ¼ e 3/4”.

2.O Objecto da instância de recurso;

Nos termos do art. 684° e 685.º-A do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas alegações do recorrente.

São as seguintes as conclusões que apresenta a autora:

...
Não foram apresentadas contra alegações.

3. A questão a decidir é a seguinte:

Deve o réu F… também deve ser responsabilizado pelo saldo devedor peticionado pela autora/apelante?

A matéria de facto dada como provada pela 1ª Instância é a seguinte:

...

O Sr. Juiz da 1.ª instância, para afastar a responsabilidade do co-réu F…, escreveu assim:

“A questão que seguidamente se coloca prende-se com a determinação dos responsáveis pelo pagamento desse saldo deficitário.

Assim, estando em causa uma conta solidária, em que existe, por isso, uma solidariedade ativa, significando isto, nos termos acima expostos, que cada um dos cotitulares pode, isoladamente, exigir a entrega do montante total depositado ou efetuar, por si só, as operações de movimentação da conta, impõe-se ainda indagar se existe também uma solidariedade passiva, em termos de, pelo saldo devedor, poder igualmente responder qualquer um daqueles cotitulares.

 Ora, a solidariedade, ativa ou passiva, só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes [cf. artigo 513º do Código Civil]. E certo é que, no caso das contas solidárias, a solidariedade ativa resulta claramente da vontade das partes, que acordam em que qualquer dos titulares pode livremente, e sem necessidade de colaboração dos demais, realizar as operações a que acima se fez referência.

Todavia, se nada impede que o banco e os cotitulares de uma conta solidária estabeleçam contratualmente o regime da solidariedade passiva, a verdade é que, se apenas àquilo se resumir o acordado (ou seja, à abertura de uma conta solidária), daí não resultará (ou seja, não terá expressão na vontade das partes, expressa no contrato de abertura de conta) o estabelecimento, ao lado de uma solidariedade ativa, de uma solidariedade passiva dos titulares da conta.

Por outro lado, tampouco se encontra na lei o estabelecimento da solidariedade passiva dos cotitulares de uma conta solidária.

Na verdade, apesar de o artigo 100º do Código Comercial estabelecer que nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários, salvo estipulação em contrário, tal norma não tem aplicação a situações como a destes autos, uma vez que os titulares da conta não são coobrigados, não ocupando, na relação jurídica estabelecida com o banco em consequência do contrato de depósito bancário, uma posição devedora.

Só passam a ter essa posição devedora quando a conta se encontra a descoberto, mas, neste caso, só existirá solidariedade entre eles caso se tenham obrigado “em conjunto” perante o banco.

Nestes termos, não pode afirmar-se a existência de solidariedade passiva no tocante aos titulares da conta solidária, como contraponto do regime de solidariedade ativa existente em relação à conta de depósito à ordem” – fim de citação.

Com esta argumentação, afastou a responsabilidade do co-réu F…, julgou a ação improcedente, por não provada, absolvendo-o do pedido.

Diz o autor que se o réu contestante queria de facto alterar os termos contratados da conta e não conseguia que o outro réu permitisse tal concretização de forma voluntária, deveria ter recorrido á via judicial para salvaguardar os seus eventuais direitos. Não o tendo feito, conformou-se o réu contestante com a possibilidade ser responsabilizado pelo saldo devedor, porque manteve a ora recorrente na convicção de que a conta bancária se mantinha sempre nos mesmos moldes iniciais, solidariamente e á ordem dos 2 titulares. Mais, houve falta de comunicação pelo contestante ao ora recorrente de que deixava de autorizar os lançamentos a débito se a conta não estivesse suficientemente provisionada para o efeito. Sabendo o contestante F… ao que o autor estava autorizado, se queria alterar a autorização (originária e tacitamente “dada” por ambos os réus) de lançamentos a débito (descobertos em conta) deveria ter formalizado junto do autor essa sua contra ordem … o que NUNCA O FEZ … apesar de não carecer para o efeito da assinatura do outro co-titular.

De onde se tem de concluir que o réu F… também deve ser responsabilizado pelo saldo devedor peticionado nos presentes autos.

O que podemos dizer mais, atentas as versões em conflito:

Todos sabemos, que o descoberto em conta - também designado por facilidades de caixa - é uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre, tipicamente quando se verifiquem dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.

O descoberto em conta, em si mesmo, tem relevância jurídica conferindo ao banco o direito à restituição da quantia adiantada ao cliente e a este a obrigação de a restituir.

Esta operação pode resultar de um acordo prévio com o titular da conta, mas pode também ocorrer – o que constitui a situação mais frequente – independentemente de tal acordo, o que sucede quando o banco consente que o cliente levante fundos superiores ao saldo da sua conta.

A solidariedade, activa ou passiva, só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.

No caso das contas solidárias, a solidariedade activa resulta claramente da vontade das partes; mas não existe solidariedade passiva como mero contraponto da solidariedade activa.

Da existência do acordo de solidariedade activa – que permite a qualquer dos co-titulares, em atenção às relações de confiança que é suposto existir entre eles, a facultar de movimentar, total ou parcialmente, a conta – não pode deduzir-se ou presumir-se a vontade de qualquer dos co-titulares se responsabilizar por saldos negativos da conta originados por outro, não podendo, pois, presumir-se a existência de uma solidariedade passiva.

Para que esta possa afirmar-se é necessário que exista, no contrato de depósito, uma cláusula que a estabeleça ou que se convencione, no momento da abertura da conta, a possibilidade de “sacar a descoberto”, caso em que se poderá inferir uma vontade tácita de cada um dos co-titulares se obrigar por saldos negativos da conta, ainda que o descoberto seja criado por outro dos co-titulares.

Mas será que, como entende o recorrente e no caso dos autos, são ambos os réus solidariamente responsáveis pelo pagamento desse saldo deficitário?

A decisão da 1.ª instância, em resposta a esta questão, respondeu negativamente, afastando a responsabilidade do réu F...

Cremos que o fez com argumentação consistente, que o recorrente não logra pôr em causa.

De facto, o que está em causa nestes autos, não é o contrato de depósito - conta de Depósitos à Ordem n.º ….

 Não é este contrato que deu origem à divida reclamada pelo autor, mas um outro acordo, que ultrapassa e primeiro e é autónomo deste.

Tem outros direitos e obrigações, que pode não coincidir com o contrato de depósito.

Se a conta ficar a descoberto e o banco pagar para além dos limites do seu saldo positivo, ele torna-se credor do depositante, financiando-o, ficando-se perante um novo contrato emergente de um acto que o banco praticou, no qual – e regido que é pelas regras típicas do mútuo – se mudam os termos da relação obrigacional: quem é credor é o próprio banco que financiou o depositante, afastando, com este comportamento a solidariedade típica da supra referida conta à ordem.

 Ainda que se não esteja perante um acordo bilateral expresso de vontades, no que respeita ao dito financiamento, estamos perante relações contratuais de facto, assentes em puras actuações de facto: as relações entre o banco e o cliente resultam de um comportamento típico de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, ficando tal relação sujeita ao regime do contrato de mútuo.

Por outro lado, debalde se procurará, na lei, estatuição da solidariedade passiva dos co-titulares de uma conta solidária.

O art. 100º do Cód. Comercial – por vezes invocado a este propósito – não tem aqui aplicação.

Este preceito estabelece, é certo, que, nas obrigações comerciais os co-obrigados são solidários, salvo estipulação em contrário.

Mas os titulares da conta não são co-obrigados, pois que não ocupam, na relação jurídica estabelecida com o banco em consequência do contrato de depósito bancário, uma posição devedora.

Só passam a ter essa posição devedora quando a conta se encontra a descoberto, mas, neste caso, só existirá solidariedade entre eles se se obrigaram “em conjunto” perante o banco. O grau de confiança existente entre eles resume-se à movimentação do saldo da conta, e não respeita a uma movimentação para além daquele” – entre outros, PAULA PONCES CAMANHO, Contrato de depósito bancário. Descoberto em conta. (…), in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. II, p. 127; MUÑOZPLANAS, Cuentas bancarias con varios titulares, Madrid, Civitas, 1993, págs. 175/176.

Para que a solidariedade passiva possa existir é necessário que exista, no contrato de depósito, uma cláusula que a estabeleça, ou – o que dará no mesmo – que se convencione, no momento da abertura da conta, a possibilidade de “sacar a descoberto”, caso em que se poderá inferir uma vontade tácita de cada um dos co-titulares se obrigar por saldos negativos de tal conta, ainda que o descoberto seja criado por outro dos co-titulares.

O Banco tem de pagar até ao limite da conta de depósitos à ordem porque isso constitui a sua obrigação estruturante integrada no contrato que celebrou com os depositantes. Mas o Banco não tem à partida um crédito correspondente que seja o reverso da mesma moeda porque – por força desse mesmo contrato – ele não tem nenhuma obrigação de pagar para além dos limites dos depósitos – neste preciso sentido, o Acórdão do STJ de 12.11.2009 publicado no site www.dgsi.pt.

Ora, no caso em análise nestes autos, a matéria de facto apurada não permite concluir pela verificação de qualquer das situações indicadas como susceptíveis de permitirem concluir pela existência de solidariedade passiva dos réus.

 Na verdade, em momento algum o autor alegou ter sido expressamente acordado no contrato de depósito o regime de solidariedade passiva, nem sequer ter havido qualquer convenção anterior que permitisse o saque a descoberto, situações que, por isso, não têm qualquer respaldo nos factos provados.

Nem se argumente com o facto da correspondência enviada pelo autor ora recorrente aos réus, referida na resposta ao quesito 6.º, ser sempre enviada em nome do contestante F… por ser ele o 1.º titular da conta bancária em apreço. Ou, o histórico da conta em apreço desde 01/01/2004 a 31/12/2006.

Pelo contrário, os factos provados – e è sobre estes que nos devemos movimentar, atenta a não impugnação da matéria de facto - revelam que os movimentos que originaram o saldo negativo, cuja liquidação o autor reclama, foram exclusivamente efectuados pelo réu J…, tendo, até, o autor emitido uma declaração pela qual atestou que o réu F… não sacou nem avalizou as letras que deram origem àquele “descoberto em conta” – o sublinhado é nosso.

Por isso, não era exigível a este réu que comunicasse ao autor a sua “saída” da titularidade da conta.

Assim, se numa conta bancária de depósito à ordem de que são titulares em solidariedade activa dois depositantes o banco paga para além dos limites do depósito, ficando a conta a descoberto, por ordem de um dos titulares da conta, sem que tenha havido convenção de solidariedade passiva contemporânea da abertura de conta ou posterior, será ao responsável pela origem do descoberto que o banco tem de exigir o montante que adiantou, secundando-se aqui o entendimento segundo o qual a responsabilidade solidária dos co-titulares só vai até à completa absorção do saldo, ficando a responsabilidade pela movimentação a título de descoberto em conta a cargo exclusivo do titular que procedeu a esta movimentação - neste preciso sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de dezembro de 2006, retirado do site www.dgsi.pt.

A co-titularidade da conta limita-se à "propriedade dos fundos comuns" sem, com isso, transformar-se o outro co-titular pelas dívidas contraídas por um deles.

Pelo exposto, sendo de reconhecer ao autor o direito a exigir a restituição do montante correspondente ao descoberto em conta resultando dos movimentos que autorizou ao réu J… na conta bancária em causa nestes autos, acrescido dos respectivos juros – conforme foi determinado na 1.ª instância -, ter-se-á que concluir também que tal direito apenas pode ser exercido sobre o réu J…, único responsável pela criação daquele descoberto, o que conduzirá à confirmação da sentença recorrida.

Sumariando esta decisão:

1. O descoberto em conta - também designado por facilidades de caixa -,é uma operação de crédito, uma forma de concessão de crédito, que ocorre, tipicamente, quando se verifiquem dificuldades acidentais de tesouraria para cuja solução o banco consente ou tolera um saldo negativo na conta do cliente.

2. Se numa conta bancária de depósito à ordem de que são titulares em solidariedade activa dois depositantes, o banco paga para além dos limites do depósito, ficando a conta a descoberto, por ordem de um dos titulares da conta, sem que tenha havido convenção de solidariedade passiva contemporânea da abertura de conta ou posterior, será ao responsável pela origem do descoberto que o banco tem de exigir o montante que adiantou.

3. Secundando-se aqui o entendimento segundo o qual a responsabilidade solidária dos Co-titulares só vai até à completa absorção do saldo, ficando a responsabilidade pela movimentação a título de descoberto em conta a cargo exclusivo do titular que procedeu a esta movimentação.

Assim sendo, na improcedência do recurso, mantemos a decisão da 1.ª instância.

Custas pela recorrente.

 (José Avelino - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)