Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/06.4GBTNV-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: LIQUIDAÇÃO DA PENA
DETENÇÃO
DESCONTO
Data do Acordão: 02/19/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 80º Nº 1 CP
Sumário: 1.- A detenção imposta ao arguido deve ser descontada no cômputo da pena de prisão que lhe veio a ser imposta;

2.- A unidade de tempo mais reduzida prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas. Assim, à detenção ocorrida durante cerca de 4 horas, corresponde o desconto de 1 dia.

Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

1. No processo sumário n.º 377/06.4GBTNV, a correr termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Novas, de que os presentes autos constituem apenso, foi proferido, em 1/11/2013, despacho que, ao proceder à liquidação da pena de seis meses de prisão aplicada ao arguido A... no âmbito dos referidos autos, divergindo da posição manifestada pelo Ministério Público, não procedeu ao desconto de um dia no cômputo da pena.

2. Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, concluindo a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):

«                                                      1.º

Os artigos 80.º, n.º 1 do Código Penal e artigo 27.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República, impõem que no cômputo da pena de prisão que o arguido deverá cumprir, seja descontada por inteiro a detenção sofrida pelo arguido no processo em que vier a ser condenado.

                                                        2.º

Desse desconto estarão apenas afastadas as situações de detenção ao abrigo do artigo 116.º do C.P.P. - conforme decisão do S.T.J. de 26-04-2009 (Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 10/09).

                                                        3.º

Por sua vez, o artigo 255.º e 254.º do C.P.Penal prevêm a «detenção» em flagrante delito e não mera «intercepção para prestação e TIR e condução a tribunal», sem necessidade de haver mandado de detenção ou captura para o efeito, de arguido para «no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento em processo sumário...»

                                                        4.º

Tendo o arguido sido detido em flagrante delito em 22-09-2006 pelas 11 horas e 50 minutos, e tendo-se mantido detido no posto de GNR. (em virtude de a detenção ter ocorrido durante o horário de funcionamento dos tribunais (cf. o artigo 385.º do C.P.P.) até ser presente em tribunal para onde foi conduzido pela GNR. a fim de ser sujeito a julgamento em processo sumário sempre em situação de detenção o mesmo só viria a ser libertado após o julgamento se ter realizado, ou seja, apos as 16horas e 05 minutos.

                                                        5.º

Manteve-se assim detido pelo período de pelo menos 4 horas.

                                                        6.º

«Embora a lei não preveja tempo de prisão contado em horas, daí não se pode retirar-se a conclusão de que a detenção por tempo inferior a 24 horas, porque não expressamente prevista, não poderá ser descontada na pena de prisão a cumprir» - cf. resulta do Ac. Do TR Lisboa de 23-10-2007 (publicado in www.dgsi.pt ).

                                                        7.º

«Trata-se de uma privação da liberdade, havendo que observar, na contagem da pena, a regra do art. 80º, nº 1, do Código Penal que impõe o desconto por inteiro da detenção sofrida no cumprimento da pena de prisão. Como a menor unidade de tempo prevista para a contagem da prisão é o dia (art. 479.º, do CP), correspondente a um período de 24 horas, tendo o arguido sido detido e libertado no mesmo dia, há que considerar o período mínimo previsto para cumprimento da pena de prisão (1 dia) e proceder ao respectivo desconto, na medida em que é esta a forma mais ajustada de dar cumprimento ao n.º 1 do art. 80º do Código Penal, com pleno respeito pela dignidade constitucional do direito à liberdade, nos termos em que este se encontra consignado no art. 27º da CRP».

                                                        8.º

Não poderá assim o arguido ser prejudicado em um dia de prisão.

                                                        9.º

Ao não considerar esse dia de detenção violou o Mmo juiz «a quo» o disposto no artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal e o princípio contido no artigo 27.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa.

                                                        10.º

Pelo que, deverá tal despacho ser revogado e substituído por outro que determine o desconto na pena de seis meses de prisão, de um dia de detenção efectivamente sofrida pelo arguido, ou seja, o dia 22-09-2006, reformulando-se a liquidação da pena em conformidade.

Assim decidindo, farão V. Ex.as

Justiça!»

3. O arguido não respondeu ao recurso.

4. O Mmo. Juiz a quo sustentou o despacho recorrido.

5. Nesta instância, o Exmo. Procurador da República de turno, acompanhando a motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso merece provimento.

6. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.

7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

                                          *

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. É o seguinte o teor do despacho recorrido no que ora releva (transcrição):

«Através da sentença condenatória proferida de fls. 23 a 33, entretanto transitada em julgado, foi o arguido A... condenando na pena de 6 meses de prisão, que ficou suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, pela prática de um crime de desobediência qualificada.

Posteriormente, através de despacho datado de 30-10-2008, e junto de fls. 163 e 164, foi revogada a suspensão da pena de prisão aplicada ao arguido A..., determinando-se assim que ele cumprisse a pena de 6 meses de prisão que lhe foi aplicada de forma efectiva.

Como se extrai dos mandados de condução, devidamente certificados, juntos de fls. 465 e 466, o arguido A... está preso à ordem dos presentes autos desde o dia 22 de Outubro de 2013.

Por outro lado, discorda-se da posição manifestada pelo Ministério Público de que o arguido teria estado detido um dia à ordem dos presentes autos. Na verdade, conforme decidimos no Processo nº 54/03.8PATNV, que correu termos neste 1º Juízo, e conforme foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão que decidiu o recurso quanto a essa decisão, verifica-se que o arguido foi surpreendido pela GNR a conduzir um veículo apreendido, e foi detido para prestar termo identidade e residência e para ser conduzido ao Tribunal para ser julgado em processo sumário. Tal não corresponde de forma alguma a um dia de privação de liberdade. Ora, a detenção prevista no artigo 80º, do Código Penal tem de se traduzir num acto equivalente a um dia de privação de liberdade, não a uma mera prestação de TIR e um transporte do arguido a Tribunal para ser sujeito a julgamento, que equivale a cerca de uma hora. Nesse processo não houve qualquer ordem ou mandado de detenção ou prisão e consequente de soltura, mas apenas de intercepção e posterior prestação do TIR e do transporte do arguido a Tribunal para ser sujeito a julgamento. Logo não se poderá considerar que o arguido esteve detido um dia à ordem daquele processo conforme sustenta o Ministério Público.

Consequentemente, o arguido não esteve detido ou preso qualquer dia à ordem dos presentes autos.

Deste modo, passa a expôr-se a forma como se concretiza a liquidação da pena de prisão aplicada nos autos ao arguido A..., nos termos do artigo 477º, nº2, do Código de Processo Penal:

-) PENA EM QUE O ARGUIDO FOI CONDENADO: 6 meses de prisão;

-) INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA: 22 de Outubro de 2013;

-) METADE DO CUMPRIMENTO DA PENA: 3 meses de prisão, que ocorrerá no dia:

22 de Janeiro de 2014.

-) FIM DO CUMPRIMENTO DA PENA: dia 22 de Abril de 2014.

                                                        *

Tendo em conta o disposto no artigo 477º, do Código de Processo Penal, e ainda o artigo 25º-D, nºs 1, 2, 4 e 5, da Portaria nº 114/2008, de 6-2, na redacção introduzida pela Portaria nº 195-A/2010 de 8-4, transmita electronicamente ao TEP, ao Estabelecimento Prisional onde o arguido se encontra preso, e aos serviços de reinserção social os dados indicados pelo Ministério Público na sua promoção.

Em qualquer dos casos, e nos termos do nº 6, do artigo 25º-D, da Portaria nº 114/2008, extraia 3 certidões da sentença condenatória proferida de fls. 23 a 33, do despacho de revogação da suspensão da pena de prisão junto de fls. 163 e 164, da promoção de fls. 467 e 469, e do presente despacho de liquidação da pena e remeta as mesmas ao Tribunal de Execução das Penas, ao Estabelecimento Prisional onde o arguido A... se encontra a cumprir pena de prisão, e aos serviços de reinserção social, dando-se assim cumprimento ao disposto no artigo 477º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Notifique.»

                                          *

2. Apreciando.

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

A questão que constitui objecto do presente recurso consiste em saber se deve ou não ser descontado um dia na liquidação da pena de seis meses de prisão aplicada ao arguido A... no âmbito do processo sumário n.º 377/06.4GBTNV.

Como se retira das peças processuais que instruem o presente apenso de recurso, o arguido foi detido em flagrante delito pela GNR de Torres Novas, no dia 22 de Setembro de 2006, pelas 11:50 horas, por conduzir veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil, tendo a detenção do arguido sido comunicada pela GNR ao Ministério Público e bem assim que o arguido iria ser presente em tribunal pelas 14:00 horas desse mesmo dia.

Uma vez presente em tribunal, o Ministério Público requereu o julgamento do arguido em processo sumário, o qual se realizou de imediato, tendo a audiência de julgamento sido declarada encerrada pelas 16:05 horas.

A divergência nas posições assumidas pelos Srs. Magistrados surge quando, na promoção da liquidação da pena, a Sra. Procuradora-Adjunta menciona a necessidade de se proceder ao desconto de um dia de privação de liberdade, enquanto o Sr. Juiz no despacho de liquidação da pena defende entendimento diferente.

A questão que se coloca é, pois, a de saber se aquele período de tempo deve ser descontado na pena de seis meses de prisão que cabe cumprir ao arguido no âmbito daqueles autos.

A resposta para nós é afirmativa.

Nos termos do artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas([i]).

Segundo Figueiredo Dias «o instituto do desconto, regulado nos arts. 80.º a 82.º, assenta na ideia básica segundo a qual privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado.

Esta ideia vale sobremaneira relativamente às frequentes (...) privações de liberdade que têm lugar antes do trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas sobretudo (CPP, arts. 202.º e ss.), mas também meras detenções (CPP, arts. 254.º e ss) e obrigações de permanência em habitação (CPP, art. 201.º)»([ii]).

Uma das finalidades da detenção prevista no artigo 254.º do Código de Processo Penal é justamente a que se destina a que o detido seja presente a julgamento em processo sumário, no prazo máximo de quarenta e oito horas (primeira parte da alínea a) do n.º 1), sendo que, em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, qualquer entidade policial procede à detenção (artigo 255.º, n.º 1, a)), ou seja, a situação a que se reconduz a privação da liberdade em causa nos mencionados autos.

O artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal, fazendo uma referência genérica à detenção, inclui na sua previsão a detenção verificada nos autos, a qual teve lugar nos termos dos artigos 254.º, n.º 1, a) e 255.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal([iii]).

Como o arguido esteve detido à ordem dos referidos autos entre as 11:50 horas e as 16:05 horas do dia 22 de Setembro de 2006, ou seja, por período inferior a quatro horas, coloca-se, agora, a questão de saber em que termos deve ser descontado esse período de detenção.

Acompanhando a corrente hoje largamente maioritária na jurisprudência das Relações, dir-se-á que, como o artigo 479.º do Código de Processo Penal, regula a contagem do tempo de prisão sem fazer qualquer referência expressa à contagem do tempo objecto de desconto, outra solução não resta senão a de proceder à contagem do tempo de detenção a descontar segundo as regras previstas nesse mesmo artigo.

Assim, como a unidade de tempo mais reduzida prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas, a detenção ocorrida por período de tempo inferior a 24 horas há-de corresponder a um dia.

Esta é a única forma de dar cumprimento ao disposto no artigo 80.º do Código Penal com pleno respeito pela dignidade constitucional do direito à liberdade nos termos em que se encontra consagrado no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa([iv]).

Procede, portanto, o interposto recurso.

                                          *

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, determinar a substituição do despacho recorrido por outro que proceda ao desconto de um dia de detenção na liquidação da pena de prisão aplicada ao arguido.

                                          *

Sem tributação.

                                          *

                   Coimbra, 19 de Fevereiro de 2014

                  

Fernando Chaves (Relator)

Jorge Dias

[i] - A actual redacção foi introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que eliminou o anterior pressuposto da unidade processual, admitindo a extensão do desconto a um processo diferente daquele em que tenha tido lugar a aplicação daquelas medidas de privação de liberdade; Sobre esta concreta questão veja-se o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2011, publicado no Diário da República, I Série, de 23/11/2011.
[ii] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, pág. 297, § 434.
[iii] - O Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de não ser de descontar, nos termos do artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal, o período de detenção a que o arguido foi submetido, ao abrigo do disposto nos artigos 116.º, n.º 2 e 332.º, n.º 8 do Código de Processo Penal, por ter faltado à audiência de julgamento, para a qual havia sido regularmente notificado, e a que, injustificadamente, faltou – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2009, publicado no Diário da República, I Série, de 24/6/2009 (rectificado no DR, I Série, de 9 de Julho de 2009).
[iv] - Cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 17/5/2006, Proc.º 0641798, de 27/9/2006, Proc.º 0644710, de 18/10/2006, Proc.º 0644875 e de 20/12/2006, Proc.º 0645340, da Relação de Coimbra de 19/11/2008, Proc.º 281/07.9PANZR.C1, da Relação de Lisboa de 29/10/2002, Proc.º 0077415, de 23/10/2007, Proc.º 6994/2007-5, de 11/12/2008, Proc.º 10492/2008-9 e de 21/9/2011, Proc.º 317/08.6PDBRR-A.L1-3 e da Relação de Évora de 19/3/2013, Proc. 186/11.9 GBRDD-A.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.