Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50/09.1TBALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
CAMINHO PÚBLICO
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 4º, Nº 2, AL. A) DO CPC; 342º E 343º DO C. CIV.
Sumário: I – A acção declarativa de simples apreciação negativa - ou seja, uma acção pela qual se procura “… obter unicamente a declaração da … inexistência de um direito ou de um facto” (artigo 4º, nº 2, al. a), do CPC) - destina-se, desde logo, a definir uma situação jurídica tornada incerta - o demandante pretende reagir contra uma situação de incerteza que o impede de auferir todas as vantagens normalmente proporcionadas pela relação jurídica material que lhe causa um dano patrimonial ou moral apreciável.

II - A incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave, deve brotar de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente do Autor.

III - A causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa consubstancia-se na inexistência do direito e nos factos materiais pretensamente cometidos pelo demandado que determinaram o estado de incerteza.

IV - Pedindo o autor a declaração da propriedade plena de um dado prédio, “sem ónus de quaisquer servidões de passagem ou caminho público”, está a formular, também, o pedido de declaração de inexistência de servidão e de caminho público.

V - O ónus da prova do direito de propriedade caberá ao autor (artº 342º, nº 1, do CC) e o atinente ao pedido de simples apreciação negativa, de inexistência de servidão ou caminho público a limitá-lo, caberá ao réu (artº art. 343.º, n.º 1, do CC).

VI - Assim, provada a propriedade, que se tem por plena, há-de ser o sujeito que se arroga titular do direito que limita os poderes do proprietário que tem de provar a existência e conteúdo do seu direito, no caso a existência da servidão de passagem e seu âmbito e modo de exercício. É o que resulta do conjunto normativo vazado nos arts. 342.º a 344.º do CC. .

VII - De harmonia com o disposto no artº 7º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção - juris tantum, elidível, pois, por prova em contrário (art.º 350º, nº 2, do CC) - de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito.

VIII - Provada a propriedade do Autor sobre os prédios em causa, em virtude de beneficiar de presunção registral não ilidida, e não se provando (o que competiria ao Réu) a existência de servidão ou do invocado caminho público, a acção tem de proceder.

IX - Segundo o Assento do STJ de 19 de Abril de 1989 - hoje com valor de uniformização de jurisprudência (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12/12) - “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

X - Relativamente ao conceito de “tempos imemoriais” a doutrina e a jurisprudência têm entendido equivaler a uma ocasião tão recuada no tempo que os vivos não conseguem dizer desde quando ocorre, nem com apelo à memória daquilo que percepcionaram directamente, nem com recurso à recordação do relato que lhes haja sido efectuado pelos seus antecessores.

XI - Segundo a doutrina, a aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, podendo esta resultar de um acto administrativo ou de uma "prática consentida pela administração, em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público" ..., e aquela utilidade pública, que "consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas", traduz o "verdadeiros fundamento" da sua publicidade.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - A) - 1) – A…[1], residente na Rua …, instaurou, em 05/03/2009, no Tribunal Judicial da Comarca de Almeida, contra o Município de …, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, rematando assim a petição inicial:

a) Deve o A. ser declarado proprietário pleno do prédio rústico composto por terra arvense de sequeiro, vinha, pastagem, pinhal, mato e um barracão, sito no lugar da Frieira, a confrontar …, com a área de 7,179 hectares, inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de …, sob o artigo x..., com exclusão de outrém, sem quaisquer ónus de servidões de passagem ou caminho público.

b) Devem ser declarados nulos por vício formal por falta de fundamentação todos os actos administrativos praticados pelo R em relação com o A. e aqui referidos.

c) Deve o Réu, Município de …, ser condenado a abster-se a, de futuro, invocar a existência de qualquer caminho sobre o prédio do A. inscrito actualmente na matriz predial rústica da freguesia de … com o artigo … reconhecendo ao A. o direito de propriedade plena e exclusiva, sem fraccionamentos nem ónus ou encargos de qualquer espécie.

d) Deve o Réu ser condenado a pagar ao A., pelos diversos danos patrimoniais já verificados e por perda de rendimentos tanto passados, desde os factos danosos até ao presente, como futuros, assim como pela perda do valor do prédio, uma indemnização no valor de 310.467,80 €.

e) Deve o Réu ser condenado a pagar ao A. pelos diversos danos não patrimoniais supra-referidos uma indemnização no valor de 25.000,00 €.

f) Deve o Réu ser condenado a pagar ao A., por manifesto abuso de poder, uma indemnização no valor de 10.000,00 €.

g) Mas se, por mera hipótese académica se pudesse vir a admitir que o repetidamente referido caminho existisse, o que para o A. é inconcebível, como exaustivamente vem referido, devido ao uso excessivo de meios por parte do Réu, pois sempre poderia ter rasgado o caminho por outro sítio, onde o terreno estava inculto e desocupado, este deverá ser condenado a indemnizar o A. por manifesto ABUSO DE DIREITO em quantia correspondente aos danos patrimoniais directos, no valor de 269.467,80 € (excluindo-se assim as despesas processuais suportadas pelo A., a perda de valor do prédio e os danos não patrimoniais)».

Alegou, em síntese, que:

- É dono e legítimo possuidor de um prédio rústico de cultura arvense de sequeiro, vinha, pastagem, pinhal, mato e barracão, com uma área total de 7,179 hectares, sito na …, freguesia e concelho de …, inscrito na respectiva matriz predial actual sob o artigo n.º …, elaborada no ano de 1995, o qual, apesar de actualmente constituir uma unidade predial, estes terrenos foram sendo adquiridos em separado, por três vezes, em sequência cronológica e espacial, de Sul para Norte, sendo a primeira compra em 1954, a segunda em 1968 e a terceira em 1987.

- Nunca existiu qualquer servidão de passagem nem de outra espécie, nem caminho privado de terceiros ou público que atravessasse em qualquer sentido o supra-referido prédio, e que nunca existiu, nem existe, qualquer sinal visível, natural ou artificial duradouro, que indubitavelmente pudesse, sequer, sugerir, a existência de qualquer atravessamento no sentido Leste Oeste;

- Porque terceiros, alguns deles proprietários de terrenos para o lado do Vale Fundo, sem qualquer autorização sua e mesmo contra a sua vontade, vinham fazendo, em parte, uso das passagens por ele abertas, atravessando de vez em quando, sem continuidade, exactamente pelo meio deste prédio, viu-se obrigado a alterar o lugar das suas passagens, a procurar ter os terrenos cultivados e a colocar alguns obstáculos físicos como arames ou redes, e nos primeiros meses de 2003, ao longo do caminho da Frieira, uma vedação mais consolidada;

- Em resultado desses seus actos, o Réu, instado por alguns populares, abordou-o, por diversas vezes, para desobstruir o caminho público supostamente existente no seu terreno, advertindo-o, até, de que, se não o fizesse, incorreria em crime de desobediência, tendo chegado mesmo a destruir algumas culturas e 47 colmeias (em 1995), dois pilares em betão e os portões da entrada do prédio (em 2003).

2) - Na contestação que ofereceu, além de excepcionar a prescrição do direito de indemnização do autor, o Réu defendeu-se alegando, em síntese, que:

- Os actos que praticou, descritos na petição inicial, foram executados depois de várias reclamações apresentadas junto de si, de que Autor se opunha à utilização do caminho existente no seu terreno, caminho este que está e sempre esteve assinalado nas cartas militares.

- O Autor não alega, nem demonstra, o direito de propriedade que afirma ter sobre os prédios que identifica na petição inicial, com a composição, estremas, limites e confrontações dos prédios que diz formarem agora um só, pelo que não pode o Tribunal reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre os prédios por ele invocados, nem sobre o prédio que, segundo diz, resultou da reunificação de todos os outros.

- Estamos perante a existência de um Caminho Público que, desde tempos imemoriais, seguramente há mais de 40, 50, 60 anos, tem uso directo e imediato do público que delimitava prédios rústicos e que hoje, se unificados, atravessa um prédio particular, mas que, em todo o caso, sempre esteve afecto à utilidade pública.

3) - Replicando, o A., pugnou pela improcedência das excepções e reiterou a posição que assumira na petição inicial.

4) - A Mma. Juiz do Tribunal “a quo”, no despacho saneador, entendendo que para a apreciação da acção, no que concerne aos pedidos formulados sob as alíneas b) e d) a g) da petição inicial, era materialmente competente o Tribunal Administrativo, julgou, oficiosamente, verificada a excepção da incompetência absoluta, em razão da matéria, e, consequentemente, absolveu o réu da instância relativamente a tais pedidos e considerou prejudicada a apreciação da invocada excepção da prescrição do direito de indemnização do Autor.

5) - Consignaram-se os factos que se consideravam estar já assentes e elaborou-se a base instrutória.

6) - O Réu reclamou quanto aos factos assentes, bem assim como quanto à BI, pugnando, além do mais, para que nesta fosse incluída a matéria do artº 26º da contestação e, ainda - para o caso de caso não se entender, ao invés do que defendia, dever integrar a matéria já assente -, a factualidade alegada nos artºs 24º, 25º, 27º, 28º, 29º, 32º, 33º, 35º, 37º, 38º, 46º, 47º, 55º, 56º, 57º, 59º, 60º, 61º, 64º, 71º, 72º e 79º desse seu articulado.

Também o Autor reclamou da selecção dos factos assentes e da BI.

7) - Por despacho de 18/11/2009, deferiram-se as referidas reclamações apenas no que respeita ao constante das alíneas, E) e F) e no que concerne ao artº 6º da BI, tendo-se ordenado a respectiva rectificação.

8) - No termo de incidente que para esse efeito foi suscitado oficiosamente, o valor da causa foi fixado em € 7.899,53.

B) - Efectuado o julgamento, a acção foi julgada “provada”, consignando-se, na parte dispositiva da sentença em que assim se julgou, a decisão que, suprimida da matéria atinente às custas, ora se transcreve:

«… a)  Julgo a acção provada e, consequentemente, declaro que sobre os prédios do Autor, identificados em 1., 2., 3. e 11. dos factos provados não recaiem quaisquer ónus de servidões de passagem ou caminho público, e por isso condena-se o réu a se abster de, no futuro, invocar a existência de qualquer caminho público naqueles prédios.

b) Julgo totalmente improcedente o pedido de litigância de má fé deduzido pelo Réu, e consequentemente, absolvo o Autor de tal pedido. (…)».

II - A) - Inconformado com o assim decidido, o Réu recorreu da sentença, recurso esse recebido como apelação e com efeito devolutivo.

B) - A terminar sua alegação de recurso, o Apelante formulou as seguintes conclusões:

C) - Questões a resolver:
Em face do disposto nos art.ºs 684º, n.º 3 e 685-Aº, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil (CPC)[2], o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 660º, n.º 2, “ex vi” do art.º 713º, n.º 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que, podendo, para benefício da decisão a tomar, ser abordados pelo Tribunal, não constituem verdadeiras questões que a este cumpra solucionar (Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586 [3]).
No presente caso importa verificar se, em face da factualidade provada e das disposições legais aplicáveis, designadamente, as respeitantes ao ónus da prova, é acertado o sentenciado pelo Tribunal “a quo”.

III - A) - Na sentença considerou-se como factualidade provada a seguinte matéria:

B) - 1) - Sinteticamente, poder-se-á dizer que a procedência da acção se deveu ao facto de o Tribunal “a quo” ter entendido que, estando-se no âmbito de uma acção de simples apreciação negativa e cabendo ao Réu, por via disso, ónus da prova, este não havia provado a existência de servidão ou caminho público a onerar o prédio do Autor.

O Réu pretende ver reconhecido o erro desta argumentação referindo, em suma, que, atento o pedido principal (o identificado sob a alínea a)), a acção deve ser caracterizada como uma acção de condenação ou, pelo menos como uma acção de simples apreciação positiva, cabendo o ónus da prova ao autor.

Não nos parece haver dúvida de que o litígio que esteve subjacente à instauração da presente acção, versa a existência ou inexistência de um caminho público a atravessar a propriedade do Autor.

Concordamos com a Mma. Juiz que lavrou a sentença quando nela diz: «Conforme facilmente se intui do pedido formulado, a lide proposta configura uma acção declarativa de simples apreciação negativa, ou seja, uma acção pela qual se procura “[…] obter unicamente a declaração da […] inexistência de um direito ou de um facto” [artigo 4º, nº 2, al. a), do CPC].

Enquanto acção de simples apreciação, destina-se, desde logo, a definir uma situação jurídica tornada incerta - o demandante pretende reagir contra uma situação de incerteza que o impede de auferir todas as vantagens normalmente proporcionadas pela relação jurídica material que lhe causa um dano patrimonial ou moral apreciável.

A incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objectiva e grave, deve brotar de factos exteriores, de circunstâncias externas, e não apenas da mente do Autor.

Assim, a causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa consubstancia-se na inexistência do direito e nos factos materiais pretensamente cometidos pelo demandado que determinaram o estado de incerteza (cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 187, e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Vol., 2.ª ed., 1999, pág. 204).

(…)

Ao autor caberá, em todo o caso, alegar e provar o seu interesse em demandar (neste caso, por ser proprietário do prédio onde o Réu diz existir um caminho público e o que determinou este estado de incerteza).

Isto posto, avancemos para o mérito da causa, cientes de que o pedido principal da acção aqui em causa é o de obter declaração de que sobre determinados prédios do Autor não está constituída qualquer servidão de passagem, nem aí existe qualquer caminho público, deixando por isso, o réu, de invocar a existência de qualquer caminho ou servidão sobre o prédio do Autor. Como causa de pedir alega o Autor que é dono e legitimo proprietário de um terreno unificado, onde o réu já entrou por mais que uma vez, com máquinas e homens, destruindo-lhe culturas e pequenas obras aí existentes, com o intuito de desimpedir e delimitar tal caminho público. Assim, é o réu quem tem o ónus de demonstrar que o caminho público ou uma qualquer servidão de passagem existe, sob pena de se julgar a acção procedente, no sentido de que aquela servidão e caminho público não existem.».

O autor alegou o seu direito de propriedade plena sobre determinados prédios rústicos e justificou a incerteza do mesmo com a prática de actos, por terceiros e pelo Réu, que o limitam, sob o pretexto da existência de um caminho público.

Assim, pedindo o autor a declaração da propriedade plena desses prédios, “sem ónus de quaisquer ónus de servidões de passagem ou caminho público”, está a formular, também, o pedido de declaração de inexistência de servidão e de caminho público.

O pedido de reconhecimento de propriedade não descaracteriza, como sendo de simples apreciação negativa, o pedido de declaração de inexistência de servidão e de caminho público a limitar o direito de propriedade em causa.

O ónus da prova do direito de propriedade caberá ao autor (artº 342º, nº 1, do CC) e o atinente ao pedido de simples apreciação negativa, de inexistência de servidão ou caminho público a limitá-lo, caberá ao réu (artº art. 343.º, n.º 1, do CC).[4]

Conforme se refere no Acórdão desta Relação, de 22/3/2011[5]“quando se acrescenta um pedido de condenação numa acção de simples apreciação, esta transmuda-se numa acção complexa, em parte de simples apreciação e em parte de condenação, valendo quanto a cada pedido as regras próprias acima referidas.”.

Na verdade, consoante decidiu o STJ no Acórdão de 17/12/2009 (Revista nº Revista n.º 305/2001.S1 - 1.ª Secção):”Nada impede que em acção declarativa se cumulem vários pedidos, nomeadamente de apreciação (positiva ou negativa) e de condenação, desde que a cumulação seja lícita à luz do critério estabelecido no art. 470.º, n.º 1, do CPC, ou seja, quando seja lícita a coligação, nos termos do art. 30.º.”.[6] 

Quando assim ocorra, “as regras do ónus da prova definirão, segundo a natureza e conteúdo de cada um dos pedidos, a qual das partes cabe demonstrar os factos conducentes à correspondente procedência, sendo que para os de apreciação negativa existe o aludido regime especial que a lei não trata como de inversão do ónus da prova.”. 

Assim, “provada a propriedade, que se tem por plena, há-de ser o sujeito que se arroga titular do direito que limita os poderes do proprietário que tem de provar a existência e conteúdo do seu direito, no caso a existência da servidão de passagem e seu âmbito e modo de exercício. É o que resulta do conjunto normativo vazado nos arts. 342.º a 344.º do CC. “.

Na acção de reconhecimento do direito de propriedade, cuja causa de pedir é o facto jurídico de que deriva tal direito (art.º 498º, n.º 4º, do CPC), cabe a quem este invoca, o ónus da prova da respectiva titularidade, ou seja, a prova dos factos por efeito dos quais o adquiriu.

Embora que, com vista a esse desiderato, importe, em princípio, invocar um dos meios de aquisição originária, designadamente, a usucapião, admite-se, contudo, que, em determinadas situações, a parte se possa fazer valer de uma das formas de aquisição derivada, havendo então, em princípio, que efectuar a prova de que o direito de propriedade já existia na esfera jurídica do transmitente.

Nem sempre, todavia, a procedência da acção de reconhecimento de propriedade depende da prova da aquisição originária, salientando-se, como exemplos disso, para além dos casos em que o direito de propriedade não é posto em causa pelo réu, ou não o é eficazmente[7], aqueles em que o peticionante beneficia de presunção legal de propriedade não ilidida, como seja a resultante da posse (art.º 1268º n.º 1 do CC), ou a derivada do registo (art.º 7º do CRPredial).

De harmonia com o disposto no artº 7º do Código do Registo Predial, o registo definitivo constitui presunção - juris tantum, elidível, pois, por prova em contrário (art.º 350º, nº 2, do CC) - de que o direito existe e pertence ao titular nele inscrito.

Ora, no caso em apreço, provada a propriedade do Autor sobre os prédios em causa, em virtude de beneficiar de presunção registral não ilidida, não se provando, como não se provou - o que, como vimos, competiria ao Réu - a existência de servidão ou do invocado caminho público, a acção teria de proceder, como foi decidido.

Saliente-se, que o Apelante, não obstante as alusões que faz ao que disseram algumas das testemunhas inquiridas e a afirmação que produz de que se decidiu “contra a prova produzida nos autos”, não procedeu à impugnação da matéria de facto, nos termos exigidos pelo art.º 690-A, n.ºs 1 e 2, do CPC (cfr, tb., art.º 712, n.º 1, alínea a), segunda parte, do mesmo Código).

Argumenta o Réu que, a circunstância de ter sido dada resposta negativa ao ponto 4º da Base Instrutória “deixa provado que o terreno do Autor não deixou de confinar com o caminho que ali existia de sentido Leste-Oeste”.

Invoca, ainda, como reforço da prova da “existência do referido caminho”, a resposta negativa ao quesito 5º.

Carece de razão, salvo o devido respeito, pois que as respostas negativas aos pontos em causa não equivalem a ter como assente o inverso daquilo que neles se perguntava.[8]

Sustenta o Apelante, ainda, que tendo sido invocado, no despacho que indeferiu a sua reclamação à base instrutória, como fundamento desse indeferimento, a circunstância de o ónus da prova pertencer ao autor, na sentença violou-se o assim julgado ao entender-se que tal ónus cabia a ele, Réu.

Sabendo-se que é sobre as decisões e não quanto aos respectivos fundamentos, que se forma o caso julgado (ainda que formal), caberá apenas acrescentar, para refutar por completo o argumento do Apelante, que, não se formando caso julgado, até ao trânsito da decisão final do litígio, sobre o despacho que indefere as reclamações apresentadas contra a selecção da matéria de facto - daí se poder impugnar tal despacho no recurso que se interponha da decisão final - por maioria de razão não ofenderia qualquer caso julgado a consideração na sentença, em sentido oposto ao seguido no despacho que indeferiu a reclamação apresentada pelo Réu quanto à BI, de que o ónus da prova cabia a este e não ao Autor.

Inexiste, assim, ao alicerçar-se, na sentença, a procedência da acção, na falta de cumprimento do ónus da prova que aí se considerou estar a cargo do Réu, qualquer violação do caso julgado formal.

Sucede que o Apelante, conforme lhe facultava o artº 511º, nº 3, do CPC, impugnou no presente recurso, na parte em que lhe foi desfavorável, o despacho que recaiu sobre a reclamação que apresentou relativamente à selecção da matéria de facto, importando apurar da susceptibilidade de a matéria cuja inclusão na BI se recusou nesse despacho, proporcionar desfecho diverso daquele que a acção conheceu com a sentença ora impugnada.

Sendo certo que servidão alguma o Réu afirmou estar constituída sobre os prédios do Autor, impõe-se saber se aquilo que por aquele foi alegado é suficiente para se reconhecer, a limitar a plena propriedade do Autor, o caminho público que o Réu alegou existir, pois só assim se justificaria a ampliação da matéria de facto (artº 712, nº 4, do CPC), com a consequente insubsistência da sentença recorrida.

Embora haja factualidade conexa noutros artigos da contestação, a matéria relativa ao caminho público está, essencialmente, alegada no artº 97º dessa peça processual, artigo esse, diga-se, não incluído naqueles cujos factos o Réu pretendeu que fossem vertidos na base instrutória. Alegou-se nesse artº 97º: «… estamos perante a existência de um CAMINHO PÚBLICO que, desde tempos imemoriais, seguramente há mais de 40, 50, 60 anos, tem uso directo e imediato do publico que delimitava prédios rústicos, que hoje, se, porventura, reunificados, atravessa um prédio particular, mas, em qualquer caso, sempre esteve - como continua a estar - afectado à utilidade pública (ou seja, sempre visou a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância - acesso a prédios rústicos a montante e a jusante do mesmo).».

Segundo o Assento do STJ de 19 de Abril de 1989[9] - hoje com valor de uniformização de jurisprudência (artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12/12) - “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.

Afigura-se-nos, em primeiro lugar, que o Réu não descreve convenientemente o caminho que afirma existir e que reputa de público, não referindo, designadamente, qual o seu traçado e as características do seu leito, v.g., a sua largura, etc, a esse desiderato não bastando a simples remissão para os documentos que junta, nomeadamente, para as “cartas militares”.

Por outro lado, relativamente ao conceito de “tempos imemoriais” a doutrina e a jurisprudência[10] têm entendido equivaler a uma ocasião tão recuada no tempo que os vivos não conseguem dizer desde quando ocorre, nem com apelo à memória daquilo que percepcionaram directamente, nem com recurso à recordação do relato que lhes haja sido efectuado pelos seus antecessores.

Ora, quando o Réu alega que o caminho existe “…seguramente há mais de 40, 50, 60 anos”, só pode querer significar que tal existência, embora podendo ultrapassá-los, rondará os 60 anos. É claro que a expressão “há mais de” permite até admitir os 150, ou mais anos, mas, se fosse essa a intenção do Réu, não se entenderia a referência aos 40 anos, ou mesmo aos 60 anos.

Ora o lapso de tempo de 60, 70, ou, mesmo, 80 anos, não é suficiente, sequer, para o seu início não ser recordado pelos vivos, pelo que nos parece haver um certa contradição na alegação do Réu quando, depois de afirmar que o caminho público existe desde tempos imemoriais, concretiza “…seguramente há mais de 40, 50, 60 anos”.

Por outro lado - e é nesta vertente que se vislumbra o escolho mais decisivo ao atendimento da pretensão do Réu em ver reconhecida a existência do dito caminho público - tem sido entendimento da jurisprudência dos Tribunais superiores (com a qual concordamos), que a doutrina do citado Assento deve ser interpretada restritivamente no sentido de que «…a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância».

É o que se explica, designadamente, no Acórdão do STJ, de 15/06/2000[11], dizendo-se:

«…PIRES de LIMA e ANTUNES VARELA, a propósito da corrente jurisprudencial que fez vencimento no Assento de 19 de Abril de 1989, escreveram:

"Traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem se ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383 e 1384, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade”.

E acrescentam:

"Sempre que... o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo 1383º, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem no domínio público, através de algum dos títulos por que pode ser adquirida a dominialidade", cfr. CÓDIGO CIVIL ANOTADO, volume III, 2. edição, páginas 281/282.

Segundo a doutrina, a aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, podendo esta resultar de um acto administrativo ou de uma "prática consentida pela administração, em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público" ..., e aquela utilidade pública, que "consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas", traduz o "verdadeiros fundamento" da sua publicidade, cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, volume II, 10. edição, páginas 886/888.

Ora, se um dos requisitos essenciais da dominialidade é a afectação do caminho à utilidade pública, ou seja, à satisfação de relevantes interesses colectivos, estamos de inteira sintonia com a doutrina do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de Novembro de 1993: o assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva quando afirma que deixou subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente a entidade pública e estar afecto à utilidade pública - cfr. Boletim Ministério da Justiça n. 431, página 300, e Colectânea - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - ano I, tomo III, página 135.

Daqui continuar a ser admissível a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos: um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular será público se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros.».

Ora, no caso “sub judice”, sucede que, se por um lado, a mera circunstância de o caminho em causa permitir «acesso a prédios rústicos a montante e a jusante do mesmo», ou, «livre e cómodo acesso» de pessoas, veículos e animais «aos prédios situados na área dos lugares "Frieira" e "Vale Fundo"» (artº 91º da contestação), não consubstancia a situação de “satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância” que a dita de interpretação restritiva do Assento exige, por outro lado, o Réu nenhuma outra utilidade concreta alegou que, provando-se, permitisse dar como verificada a afectação à utilidade pública do dito caminho.

Assim, muito respeitando um outro, é nosso entendimento que, em face dos factos que alegou, jamais o Réu lograria provar a existência do caminho público que referiu, pelo que se revela inútil determinar a ampliação da matéria de facto, com a quesitação dos factos que o Réu viu indeferida através do despacho de 18/11/2009.

É claro que a falta de alegação de factos tendentes a, provando-se, demonstrar a existência do caminho público invocado pelo Réu, poderia ser suprida por este, caso se lhe tivesse sido endereçado convite nesse sentido, nos termos do artº 508.º, n.º 3, do CPC.

Não tendo sido formulado um tal convite, caberá apenas dizer que, consubstanciando o mesmo uma mera faculdade do juiz, a respectiva omissão, ou o seu exercício deficiente, não integra nulidade, nem pode ser objecto de recurso.[12] 

Em consequência do exposto a apelação improcede, mantendo-se a sentença recorrida.

VI - Decisão:
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.

Luís José Falcão de Magalhães (Relator)
Sílvia Maria Pereira Pires
Henrique Ataíde Rosa Antunes


[1] Que litiga com o benefício do apoio judiciário.
[2] Código este aqui aplicável na versão resultante do DL n.º 303/07, de 24/08.
[3] Consultáveis na Internet, através do endereço “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”, tal como todos os Acórdãos do STJ, ou os respectivos sumários, que adiante forem citados sem referência de publicação.
[4] No Acórdão da Relação de Lisboa de, 31/3/2011 (120/09.6TBVFC.L1-2), relatado pelo ora 2º Adjunto, definiu-se a “actio negatoria” como “…aquela que pode ser intentada pelo titular de um direito real maior contra aquele que se arroga a titularidade de um direito real menor e tem, como condições de procedência: que o autor seja titular do direito real invocado; que o demandado não prove que o direito real menor existe”. E em nota (5), escreveu-se:”… A prova do facto aquisitivo do direito real invocado pelo autor pertence a este; a prova de que o direito real – menor – do demandado, cabe a este. A improcedência da acção negatória tem, por isso, o efeito de declarar a existência do direito do réu.”.
[5] Apelação nº 158/09.3TBVZL.C1, consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase”.
[6] Os excertos transcritos pertencem ao respectivo sumário, consultável em “http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2009.pdf”.
[7] Cfr. Ac. desta Relação, de 24/03/2009, Apelação n.º 1879/06.8TBCVL.C1, consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/; Cfr. Ac. do STJ de 14/10/76, BMJ n.º 260, pág. 97.
[8]É entendimento jurisprudencial sólido que a resposta negativa a um facto da base instrutória, não implica a prova do facto contrário (Assim, por exemplo, o Acórdão do STJ de 04/01/1982 (Revista nº 069814).
[9] Diário da República nº 126/89, SÉRIE, de 2 de Junho de 1989.

[10] Acórdão desta Relação, de 04/03/2008 (Apelação nº 364/1999.C1) e Acórdão do STJ, de 09/02/2012 (Revista nº 1007/03.1TBL.SD.P1.S1).
[11]“In” BMJ nº 498 – 2000-, págs. 226 e ss.
[12] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2009, Revista n.º 712/07.8TBETZ.E1.S1, a cujo sumário se pode aceder em http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Mensais/Civeis/C%C3%ADvel092010.pdf.