Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
110/15.0T8CLB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: COMPROPRIEDADE
USUCAPIÃO
UNIDADE DE CULTURA
CONFISSÃO
PROCESSO DE JUSTIFICAÇÃO
COMPETÊNCIA MATERIAL
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 02/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - C.BEIRA - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1376 CC, 574 CPC, PORTARIA Nº 202/70 DE 21/4
Sumário: 1 – A usucapião pode fundamentar a divisão de prédio em regime de compropriedade, maxime se os comproprietários dividiram verbalmente o prédio e passaram a exercer a posse exclusiva sobre a parcela ou quinhão que acordaram ficar a pertencer-lhe.

2 – Sendo certo que a indivisibilidade imposta no art. 1376 do C.Civil não é absoluta, podendo o prédio ser e ficar dividido, mesmo que as parcelas tenham área inferior à unidade de cultura, nomeadamente se os interessados as usucapiram.

3 – Sem embargo, não pode haver acordo das partes (ou confissão) em ordem a viabilizar sem mais uma tal aquisição por usucapião, com o consequente reconhecimento da divisão material porventura operada dos prédios.

4 – Nessa medida, a verificação da dita usucapião, com as legais consequências, e bem assim as demais questões/aspetos controvertidos, têm que ser apreciados e decididos em sede de processo judicial litigioso, não sendo possível solucionar a questão em processo de justificação judicial, da competência do Conservador do Registo Predial.

Decisão Texto Integral:       








      Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

C (…), melhor identificada nos autos, intentou a presente acção de divisão de coisa comum contra A (…) e esposa M (…), A (…)e marido E (…) e J (…) e esposa S (…), também melhor identificados nos autos.

Alegou, para tanto e em síntese, que, por escritura de partilhas outorgada em 28 de Outubro de 1966, por óbito de A (…) que também usava o nome de (…) viúva de A (…), os seus quatro filhos habilitados, E (…), casado com R (…) – J (…), casado com M (…), - R (…), casada com M (…) e – A (…) casado com M (…), procederam à partilha dos bens provenientes da herança de seus pais, sendo que entre os imóveis que foram partilhados, consta o prédio rústico seguinte e assim identificado na escritura de partilhas referida: “Número um – Prédio rústico, composto de terra de batatas, vinha, oliveiras, no sítio de x(...) , limite da freguesia de y(...) , deste concelho, a confrontar do nascente com herdeiros de AA..., poente com MM.... herdeiros, norte com caminho público e sul com MF... e outros, inscrito na matriz respectiva sob os artigos cento e sessenta, cento e sessenta e um, cento e sessenta e três, cento e sessenta e quatro, cento e cinquenta e seis, cento e cinquenta e oito, cento e cinquenta e nove, cento e sessenta e seis, cento e sessenta e oito e cento e sessenta e nove…”, o qual foi adjudicado, na dita partilha, ao interessado E (…) e mulher, na proporção de metade e ao interessado A (…) e mulher, na proporção da outra metade.

Mais alegou que a matriz predial rústica estava, no Serviço de Finanças, completamente desactualizada e era vulgar a existência de prédios rústicos com vários artigos matriciais, como acontecia no presente caso e se verifica supra, tendo-se procedido, no ano de 1975, neste concelho de Celorico da Beira , às avaliações fiscais em relação aos prédios rústicos, actualizando-se as matrizes respectivas, sendo-lhes atribuído, a cada prédio, um novo artigo matricial.

Invocou também que, logo após a escritura de partilhas, os titulares a quem ficou adjudicado o prédio número um, na proporção de metade para cada um, procederam à sua divisão, em dois prédios distintos e autónomos, completamente divididos entre si, através de paredes e muros, por forma a ficarem completamente separados um do outro e sem ficarem confundidos nos seus limites e estremas, adjudicando, verbalmente, para cada um deles o respectivos prédios assim divididos, passando os prédios resultantes dessa divisão a identificar-se como: PRÉDIO NÚMERO UM: -- Terreno de regadio onde se cultivam, predominantemente, culturas arvenses e algumas hortícolas, com a área de 28.500m2, no sítio de em x(...) , y(...) , concelho de Celorico da Beira , a confrontar do norte com caminho público e EA..., sul com MP... e outros, nascente com caminho público e herdeiros de AA... (os RR) e poente com MP...; e PRÉDIO NÚMERO DOIS -- Terreno de regadio onde se cultivam, predominantemente, culturas arvenses e algumas hortícolas, com a área de 20.000m2, no sítio de em x(...) , y(...) , concelho de Celorico da Beira , a confrontar do norte com caminho, sul com caminho e MP..., nascente com jP...e poente com CA...; sendo que, no Serviço de Finanças, aquando das avaliações fiscais em 1975, na sequência da divisão do prédio inicial em dois, passaram a constar da matriz predial rústica, dois prédios autónomos e com artigos matriciais próprios, como se segue: PRÉDIO NÚMERO UM: -- Terra da batata, centeio, oliveiras, figueiras, castanheiros, cerejeiras, pereiras, macieiras, mato, pinhal e pastagem com a área de 23.740 m2, no sítio de em x(...) , y(...) , concelho de Celorico da Beira , a confrontar do norte com Hºs.de ML..., sul com JF... e outro, nascente com AA... e poente com JF... e outro, inscrita na matriz rústica sob o artigo 373; e PRÉDIO NÚMERO DOIS -- Terra da batata, centeio, oliveiras, figueiras, castanheiros, cerejeiras, pereiras, macieiras, mato, pinhal e pastagem com a área de 19.000 m2, no sítio de x(...) , y(...) , concelho de Celorico da Beira , a confrontar do norte com caminho público, sul com MP..., nascente com Hºs de JP...e poente EA..., inscrita na matriz rústica sob o artigo 371, tendo, com a União de Freguesias de Celorico (São Pedro e Santa Maria) e y(...) , tais artigos matriciais sido alterados, passando o artigo 373 a ser o artigo 1913 e artigo 371 a ser o 1909, com alteração da área daquele para 28.357m2, e sendo certo que, quer em relação às confrontações, quer em relação à composição e áreas, os artigos matriciais tal como constam no Serviço de Finanças estão incorrectos, sendo a composição, áreas e confrontações reais são as que constam do artigo 7.º da petição inicial e supra referidas.

Refere que a partir do momento em que o Serviço de Finanças atribuiu artigos matriciais aos dois prédios, provenientes da divisão amigável operada conforme consta do artigo 7º da petição inicial, tendo inscrito o primeiro sob o 373 e o segundo sob o atrigo 371, inscrevendo os dois artigos na proporção de metade para cada parte, ficou toda a situação alterada e incorrecta e todos os actos praticados a partir de então, têm por base a errada inscrição matricial dos respectivos titulares, como se fora, o prédio assim dividido em dois, comum a todos, pelo que, o PRÉDIO NÚMERO DOIS (artigos 8º e 9º da petição inicial) ficou descrito na Conservatória do Registo Predial de Celorico da Beira , sob o n.º 533, da freguesia de y(...) e inscrito a favor dos Réus, em 1/2 do prédio, pela apresentação 1652 de 14 de Junho de 2012, por sucessão de M (…), a qual tinha sido casada com A (…), tendo ficado o outro 1/2 em nome da autora, de forma incorrecta mas em consequência da errada inscrição matricial, já que o prédio devia ter ficado inscrito a favor dos Réus na sua totalidade por ser esta a situação real de facto, e; o PRÉDIO NÚMERO UM (artigos 8º e 9º da petição inicial) ficou descrito na Conservatória do Registo Predial de Celorico da Beira , sob o n.º 534 da freguesia de y(...) e inscrito a favor da autora, em 1/2 do prédio, pela apresentação 1744 de 14 de Julho de 2015, por doação de 10 de Julho de 2015, efectuada por A (…) (seu tio) que o tinha adquirido por partilha por óbito de seus pais, E (…) e R (…), levada a efeito na Conservatória do Registo Civil e Predial de Celorico da Beira em 5 de Novembro de 2013, verbas número um e quatro da respectiva relação de bens, tendo ficado o outro 1/2 em nome dos réus, de forma incorrecta, mas em consequência da errada inscrição matricial, já que o prédio devia ter ficado inscrito a favor da Autora, na sua totalidade, por ser esta a situação real de facto, pelo que, o prédio descrito nos artigos 8º e 9º da petição inicial como PRÉDIO NÚMERO UM, inscrito na matriz sob o artigo 1913 (373) é pertença exclusiva da Autora e o PRÉDIO NÚMERO DOIS, inscrito na matriz sob o artigo1909 (371) é pertença exclusiva dos Réus.

Invoca ainda que o prédio número um tem uma área maior que a do prédio número dois, situação esta que provém já desde 1966, mais alegando a aquisição do prédio número um – com o artigo matricial 373 a partir de 1975, hoje artigo1913 – pela autora, por usucapião, e a aquisição pelos réus do prédio número dois – com o artigo matricial 371 a partir de 1975, hoje 1909 – também por usucapião.

Mais alega que, tendo em conta a área total do prédio que inicialmente (1966) foi dado então à partilha – 48.500m2 – uns e outros logo procederam à divisão material e em substância do terreno, respeitando ao longo destes já há cerca de 49 anos a linha divisória assinalada e que consta do levantamento topográfico, ficando para a Autora (seus antepossuidores) a parcela (Prédio) NÚMERO UM e para os Réus (seus antepossuidores) a parcela (Prédio) NÚMERO DOIS, ficando cada um seu dono exclusivo, pelo que, quer a Autora e seus antepossuidores, quer os Réus e seus antepossuidores, desde o quarto trimestre de 1966 até hoje, sempre respeitaram a demarcação das parcelas correspondentes aos agora prédios de cada um e conforme a demarcação assinalada no levantamento topográfico (Doc.12), cultivando-os ou mandando-os cultivar na observância por tal demarcação no terreno, sendo que, tendo em conta a área total do prédio na partilha de 1966 (48.500m2) e divisão material que então efectuaram há cerca de 49 anos, sempre seria possível proceder a tal divisão de acordo com o levantamento topográfico junto, ficando as parcelas/ prédios da Autora e dos Réus conforme o acima exposto, tendo Autora e Réus e seus respectivos antepossuidores sempre respeitado a divisão material tal qual hoje se encontra demarcada, com as áreas indicadas, impondo proceder-se à divisão formal.

Conclui referindo que, mesmo que não tivesse ocorrido a usucapião na divisão/demarcação efectuada, esta divisão do prédio nunca colidia com o disposto no nº 1 do artigo 1376.º do Código Civil, uma a vez que não resultavam dessa divisão áreas inferiores à unidade de cultura fixada para esta zona, sendo que, fraccionado o prédio inicial em dois, constata-se que nenhum dos dois prédios que resultaram daquele, tem área inferior à unidade de cultura, pelo que, embora tenha havido divisão material do prédio inicial, com os diversos erros de inscrição matricial e dos subsequentes registos em relação aos prédios que daí derivaram, não convém à Autora permanecer nessa indivisão formal dos prédios a que de resto não é obrigada nem tal foi convencionado entre todos, pelo que lhe cabe o direito de pôr termo a esta situação de indivisão formal.

Conclui propugnando pela adjudicação dos prédios, respeitando-se a divisão efectuada e usucapião alegada, quer a favor da Autora quer a favor dos Réus.

Juntou documentos.

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Citados, os réus deduziram contestação, alegando, em síntese, e no que ora releva, que os dois prédios descritos no registo predial – rústico inscrito na matriz sob o artigo 1909 (antes 371) e descrito com o n.º 533, e rústico inscrito na matriz sob o artigo 1913 (antes 373) e descrito com o n.º 534 – antes constituíam um só prédio, tendo posteriormente sido adjudicado aos herdeiros de A (…) viúva de A (…), E (…) e A (…)  na proporção de metade para cada um deles, sendo que estes, após a partilha por óbito de A (…), acordaram a divisão do prédio, por forma a que cada um dos comproprietários cultivasse uma parte determinada do mesmo, mantendo sempre a utilização da água em proveito das duas partes do prédio, situação que se mantém desde 1966 até ao presente; desconhecendo se as áreas que constam como sendo a de cada um dos prédios descritos são exactas ou não.

Mais referem que, quer a parte do prédio que agricultam ou deixam agricultar, quer o direito a utilizar a água, foram adquiridos de modo legítimo e a posse que têm exercido é dotada de todas as características que permitam a aquisição por usucapião, mais alegando que deve ser mantida a divisão inicialmente feita do modo descrito em 16.º da contestação, sempre considerando a igualdade dos quinhões.

Concluem propugnando pela improcedência parcial da acção, porquanto os prédios não são divisíveis por falta de área que permita criar prédios com área, pelo menos correspondente à unidade de cultura; sendo que, aceitando a divisibilidade dos prédios, por via da aquisição por usucapião, deverá ser reconhecido o direito de propriedade dos réus sobre o prédio identificado na alínea a) do artigo 1.º da contestação (prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 1909 (antes 371) e descrito com o n.º 533), tomando-se em consideração o quinhão correspondente a cada consorte, mais devendo ser reconhecido o direito de utilização, quer das águas sobrantes, quer das superficiais captadas pela poça maior, ambas utilizadas em benefício do prédio dos réus, mais devendo ser reconhecida a existência de uma servidão de águas a favor do prédio dos réus; mais requerem que o pedido reconvencional deduzido seja julgado procedente.

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A autora apresentou réplica, respondendo ao pedido reconvencional deduzido pelos réus.

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Nos autos, foi realizada uma tentativa de conciliação, na mesma tendo as partes requerido a suspensão da instância, com vista à obtenção de acordo, o que foi deferido, pelo prazo de 30 dias, não tendo, contudo, as partes logrado chegar a acordo.

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Por despacho de 3 de Maio de 2016, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto à eventual (in)competência do tribunal, abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do NCPC.

Respondendo ao convite formulado, veio a autora alegar não se verificar a incompetência absoluta do tribunal, considerando os documentos juntos, à demais prova alegada, à prova que se vier a produzir em sede de julgamento e à confissão expressa e tácita dos réus em sede de contestação.

Também os réus, respondendo ao convite formulado, propugnando pela competência do tribunal, sendo que no que concerne ao aproveitamento das águas alegado pelos réus, estes pretendem ver reconhecido o seu direito de aproveitar e utilizar tais águas, sendo que tal direito apenas se verifica na sequência da pretensão da autora, de ver consagrada a divisão jurídica do prédio e o eventual termo da compropriedade sobre os dois distintos prédios; mais referindo que, certamente será duvidoso se a pretensão da autora deverá ou poderá ser conseguida do modo pretendido, mas a verdade é que qualquer uma das partes pretende ver reconhecidos direitos conflituantes, o que é competência do poder judicial.

                                                           *

Na sequência, em sede de despacho saneador, a Exma. Juíza de 1ª Instância passou a apreciar e decidir essa referenciada questão da incompetência do tribunal, relativamente ao que considerou inexistir qualquer relação de conflito entre os diversos e alegados titulares do direito sobre a coisa, sendo certo que os réus nem, sequer, contestaram a divisão material operada no prédio em apreço e a aquisição por usucapião, sem embargo de terem deduzido pedido reconvencional, por forma a que se reconheça o direito de propriedade dos mesmos sobre o prédio que utilizam e o direito ao uso das águas existentes no prédio – direito este (à utilização das águas) qual poderá igualmente ser acautelado em sede de realização da competente escritura pública, donde, cumprir à autora lançar mão do disposto nos artigos 117-A.º e ss. do Código de Registo Predial por forma a estabelecer um novo trato registral sucessivo a partir do novo direito titulado por uma justificação resultante da usucapião; competindo-lhe, através dos meios extrajudiciais para o efeito (junto das Finanças e Conservatória do Registo Predial), encetar as diligências necessárias para que estejam reunidos os requisitos necessários para realização da escritura de justificação notarial, isto é, que  não servia a acção judicial para a autora realizar tal desiderato.

Prosseguiu com o entendimento de que «Não existindo litígio, pertence, pois, ao Conservador do Registo Predial a competência para, em processo de justificação, suprir, com fundamento na usucapião, a falta de título de propriedade do imóvel que a autora alega pertencer-lhe, tendo em vista o registo predial da descrição de tal prédio e a divisão processual do prédio, nos termos do disposto no artigo 1413.º do Código Civil».

E, nesta linha de entendimento, concluiu com o seguinte concreto “dispositivo”:  

«Por tudo o exposto, declaro a incompetência em razão da matéria da Instância Local de Celorico da Beira para a apreciação do pedido deduzido pela autora, e em consequência absolvo os réus da instância (artigos 64.º, 96.º a 99.º, 278.º, n.º1, alínea a), 576.º, n.º 1 e 577.º, alínea a), todos do Novo Código de Processo Civil e artigos 116.º seguintes do Código de Registo Predial.)

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Custas pela autora (artigo 527.º, n.º 1, do Novo Código de Processo Civil).

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Valor da acção: €5.100,00 (cinco mil e cem euros) – cfr. arts. 296.º, 302.º e 306.º, todos do Novo Código de Processo Civil.

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Notifique e registe.».

                                                           *

Inconformada com esse despacho-saneador, apresentou a Autora, recurso de apelação contra o mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

De referir que quanto à arguição de nulidade da sentença, a Exma. Juíza do Tribunal a quo, sustentou a sua não verificação pelo despacho de fls. 236-237 destes autos de recurso.

                                                                       *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

            - nulidade da decisão, por excesso de pronúncia [art. 615º, nº1, al.d) do n.C.P.Civil]?;

- desacerto da decisão de considerar que o Tribunal era incompetente em razão da matéria (em consequência do que absolveu os RR. da instância)?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 – A primeira questão que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade da decisão, a saber, que teve lugar um excesso de pronúncia [cf. art. 615º, nº1, al.d) do n.C.P.Civil]

De referir, desde logo, que a Autora/recorrente invoca esta causa de nulidade da alínea d) do art. 615º do n.C.P.Civil apenas nas “conclusões”, isto é, sem o concretizar ou evidenciar minimamente no corpo das alegações propriamente ditas, o que em nosso entender logo deixa transparecer a falta de razão que lhe assiste ao fazer esta concreta invocação.

Senão vejamos.

Nos termos da dita al. d), verifica-se a nulidade da sentença quando “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Acontece que, não se consegue de todo vislumbrar que tenha ocorrido qualquer excesso de “pronúncia” – que é disso que se trata nessa referenciada alínea!

Estando em causa nesta sede quer o vício designado por “omissão de pronúncia”, quer o do “excesso de pronúncia”, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no nº2 do art. 608º do mesmo n.C.P.Civil, que é, por um lado, o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas em que a lei lhe permite delas conhecer oficiosamente).

Ora, consabidamente, a (in)competência do Tribunal, sendo um pressuposto processual, precisamente porque no caso vertente, dado se tratar da incompetência em razão da matéria, configurava um caso de incompetência absoluta, integra-se no elenco das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 97º do n.C.P.Civil).

Donde, nada havendo que censurar em termos de pronúncia sobre essa questão…

Sendo certo que uma eventual incorrecção/descerto no enquadramento da situação a essa luz, não é causa de nulidade de sentença, configurando, quando muito, um erro de julgamento!

Nessa medida, será apreciada no subsequente capítulo deste aresto, para lá se reservando a sua apreciação.

Assim improcedendo, sem necessidade de maiores considerações, esta arguida nulidade.

                                                           *

4.2 – A segunda questão é precisamente a do invocado desacerto da decisão de considerar que o Tribunal era incompetente em razão da matéria (em consequência do que absolveu os RR. da instância)

Que dizer?

Será correta a decisão do Tribunal a quo assente no entendimento da desnecessidade da ação judicial para conferir tutela à pretensão da Autora, isso porque não existiria litígio entre as partes, donde competir ao Conservador do Registo Predial a competência para, em processo de justificação, dar solução ao pedido da Autora?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – não pode nem deve ser sancionado o entendimento perfilhado na decisão recorrida, na medida em que não apreciou adequadamente a situação.

Senão vejamos.

Desde logo porque, salvo o devido respeito, em função do que foi o próprio Relatório elaborado pelo Tribunal a quo – o qual, naturalmente, precedeu o enquadramento e decisão sobre a situação – não vislumbramos como foi possível sustentar que não havia litígio entre as partes.

Neste particular, acompanhamos por inteiro o que foi aduzido nas alegações recursivas como síntese do que fora a posição dos RR. na contestação/reconvenção que estes últimos deduziram, a saber:

«-- Não sabem se as áreas de cada prédio são exatas ou não (artº 4).

-- Aquando das avaliações físcais de 1975, foram criados dois prédios em regime de compropriedade (art.17).

-- Nos artigos 68 e 69, alegam a composição de cada prédio.

-- Concluem que, dada a sua composição, são classificados como terreno de sequeiro sendo que a unidade cultura para terrenos desta natureza na zona é de 3 hectares - Portaria 202/70 de 21/04/1970 – Arts.70 e 71.

-- Os prédios (ou o prédio inicial) não têm área suficiente que permita a divisão em duas parcelas, cada uma com pelo menos a unidade de cultura (3 hectares) . – Artº 72.

-- Os quinhões de cada consorte são iguais (metade de cada um dos prédios) - artº 73.

-- Os réus não estão de acordo quanto à água do prédio que lhes ficaria a caber.

-- Concluem pela indivisibilidade do prédio devido à área insuficiente.

-- Mas mesmo que, no seu dizer, houvesse possibilidade de divisão, os quinhões (áreas) teriam de ser iguais.

--Entendem que têm direito às águas da mina e a “uma servidão de águas” e aqueduto favor do prédio dos réus.»

Isto é, muito claramente os RR. não mostraram estar de acordo nem  quanto à divisão do prédio inicial, nem quanto às áreas de cada prédio (dividido) e da água (sobejos) da mina que dizem também pertencer-lhes.

Neste conspecto, só após a instrução que se revele necessária em ordem a definir a exata composição e área de cada prédio, pode fundadamente ser decidido o litígio em termos de usucapião, verificados que sejam positivamente os respectivos requisitos[2], pois que, liminarmente se evidencia a apontada indivisibilidade do prédio original, sendo como é um terreno de sequeiro, face ao que a unidade cultura para terrenos dessa natureza, na zona, é de 3 hectares – cf. Portaria nº 202/70 de 21/04/1970 – e os dois terrenos ajuizados têm área não superior a 28.500 m2 cada um.

Na verdade, perfilhamos nesta matéria o entendimento de que «A indivisibilidade imposta no art.1376 do CC não é absoluta, podendo o prédio ser e ficar dividido, mesmo que as parcelas tenham área inferior à unidade de cultura, se a acção de anulação não for instaurada no prazo legal de três anos ou se os interessados as usucapiram.».[3]

Sucede que, nesta matéria da usucapião, rectius, dos atos materiais de posse em condições de tempo e modo para validamente conduzirem à usucapião, acresce uma exigência suplementar: é a de não pode haver acordo das partes (ou confissão) em ordem a viabilizar sem mais uma tal aquisição por usucapião, com o consequente reconhecimento da divisão material porventura operada dos prédios.

Isto porque admitir tal, significaria que com toda a facilidade poderiam tornear-se os obstáculos de ordem pública decorrentes nomeadamente do art. 1376º do C.Civil, conquanto o Tribunal se limitasse como que a um acto de chancela.

Efetivamente, prescreve o art. 574º, nº2 do n.C.P.Civil que: «Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.» (sublinhado nosso).[4]

É o caso da divisão de prédios se da mesma resultar área inferior à da respectiva unidade de cultura, atento o disposto no citado art. 1376º do C.Civil.

Dito de outro modo: se tal impedimento pode ser afastado pela emergência da usucapião, não basta que a parte a invoque, e a contraparte com tal concorde, tornando-se, pois, necessário provar os seus requisitos.

Caso contrário, poderiam, eventualmente, gizar-se conluios com fraude à lei, com intuito de tornear os seus impedimentos.

O que tudo serve para dizer não só, que existia interesse em agir por parte da Autora, como se verificava a necessidade de a questão ser dirimida em processo judicial, donde, correspondentemente, o Conservador do Registo Predial não tinha competência para, em processo de justificação, dar solução ao pedido da Autora.

Ademais, afigura-se-nos como completamente incompreensível o que foi sustentado na decisão recorrida no tocante ao litígio entre as partes relativamente aos direitos sobre a água, relativamente ao que se aduziu que o direito ao uso das águas existentes no prédio (direito este à utilização das águas) “poderá igualmente ser acautelado em sede de realização da competente escritura pública”…

Então se há um desacordo ou conflito entre as partes nessa matéria, como é que elas vão acordar para efeitos de celebrar uma escritura?[5]

Dito de outra forma: a usucapião pode fundamentar a divisão, a tal não obstando o disposto no art. 1376º do C.Civil, sem embargo de a verificação da dita usucapião, com as legais consequências, e bem assim as demais questões/aspetos controvertidos, terem que ser apreciados e decididos em sede do processo judicial que havia sido instaurado pela Autora, sendo, ao invés do que foi perfilhado na sentença recorrida, competente para a apreciação do pedido deduzido pela autora, em razão da matéria, a Instância Local de Celorico da Beira.

Nestes termos procedendo o recurso, com a correspondente revogação da decisão recorrida.

                                                           *

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A usucapião pode fundamentar a divisão de prédio em regime de compropriedade, maxime se os comproprietários dividiram verbalmente o prédio e passaram a exercer a posse exclusiva sobre a parcela ou quinhão que acordaram ficar a pertencer-lhe.

II – Sendo certo que a indivisibilidade imposta no art. 1376 do C.Civil não é absoluta, podendo o prédio ser e ficar dividido, mesmo que as parcelas tenham área inferior à unidade de cultura, nomeadamente se os interessados as usucapiram.

III – Sem embargo, não pode haver acordo das partes (ou confissão) em ordem a viabilizar sem mais uma tal aquisição por usucapião, com o consequente reconhecimento da divisão material porventura operada dos prédios.

IV – Nessa medida, a verificação da dita usucapião, com as legais consequências, e bem assim as demais questões/aspetos controvertidos, têm que ser apreciados e decididos em sede de processo judicial litigioso, não sendo possível solucionar a questão em processo de justificação judicial, da competência do Conservador do Registo Predial.                                                                                                                                                                                 *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar o recurso procedente, e, consequentemente revoga-se a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que ordene a legal tramitação dos autos com vista à apreciação e decisão sobre a verificação da invocada usucapião e demais questões/aspetos controvertidos, com as legais consequências, em vista do conhecimento, a final, sobre o pedido formulado pela Autora.   

Custas pelos RR./recorridos.

Coimbra, 21 de Fevereiro de 2017

                                              

Luís Filipe Cravo ( Relator)

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Sobre a admissibilidade, em geral, desta forma de aquisição operar validamente, inter alia o acórdão do STJ de 27.06.2006, no proc. nº 06A1471, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Assim no acórdão do T. Rel. de Coimbra, de 09.11.2010, no proc. nº 1531/05.TBAGD.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.

[4] No mesmo sentido, prescreve o art. 1249º do C.Civil que: «as partes não podem transigir sobre direitos de que não lhes é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos».
 
[5]Ora, para haver escritura, têm as partes de estar de acordo, não podendo haver imposição de uma delas; se não estão de acordo, como é que a escritura poderia ser efetuada?” – assim aduziu pertinazmente a A. na suas alegações recursivas!