Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2081/06.4TBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
DIREITOS SOCIAIS
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: CBV AVEIRO JUÍZO DO COMÉRCIO
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
Decisão: DETERMINA TRIBUNAL COMPETENTE
Legislação Nacional: ARTS.115, 116 CPC, 121 LOFTJ, 21, 77 CSC
Sumário: I. Como tem sido pacificamente aceite na jurisprudência, a aferição da competência material do tribunal é feita com base na relação jurídica controvertida tal como a configura o autor, ou seja, nos precisos termos em que foi proposta a acção.

II. Os “direitos sociais” ou corporativos, integráveis na alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º da LOFTJ pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que com o pedido formulado vise a protecção dos seus interesses sociais.

III. Invocando o autor na petição, a sua qualidade de sócio gerente, e demandando nessa qualidade a própria sociedade, os restantes sócios gerentes e os adquirentes do património social (dois imóveis), pedindo a anulação (ou, subsidiariamente, a redução do negócio) e, em consequência, a reversão dos imóveis para o património social, deverá entender-se que tal acção se reporta a direitos sociais, integrando-se na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º da LOFTJ.

IV. Revela-se assim materialmente competente para a tramitação da acção em apreço, o Tribunal de Comércio.

Decisão Texto Integral: I. Relatório
A (…) intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, em 6.07.2006, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, contra E (…), Lda, I (…), C (…), e A (…) e esposa M (…), pedindo:
A) Que seja o negócio titulado pela Escritura Pública outorgada em 01.02.2006 a fls. 132 a 134 do livro n.º 21-A do Cartório Notarial de Albergaria-A-Velha a cargo da Notária (…), declarado anulado por usurário, com o consequente cancelamento das inscrições a favor dos quartos demandados;
B) Quando se entenda de modo diverso, no que se não concede, que seja ordenada a modificação do negócio, quer nos termos do n.º 1 do art.º 283.º, quer nos termos do disposto nos art.º 473° e 292°, todos do Código Civil, com a sua consequente redução à fracção “A”, por o seu valor ser suficiente para solver o montante em dívida, com o consequente cancelamento das inscrições G-2, C-l, C-2 e C-3 que incidem sobre a fracção “B”.
Alegou o autor em síntese: os réus I (…) e C (…) são igualmente gerentes da ré E (…) Lda; a dita sociedade obriga-se com a assinatura de dois gerentes; por escritura pública os réus/gerentes I (…) e C (…) declararam em nome da sociedade, que esta era devedora aos 4.ºs réus, da quantia de € 123.132,48, e que, “em pagamento da mesma dívida”, a sociedade entregava aos 4.ºs réus as fracções autónomas identificadas na petição; as referidas fracções têm o valor de € 250.000,00; o negócio em causa provoca um sério prejuízo patrimonial, quer à sociedade, quer ao autor, seu gerente.
Em 04-04-2009, os autos foram remetidos para distribuição ao Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga.
Na pendência da acção, ocorreu o falecimento da ré M (…), tendo sido habilitados como seus únicos herdeiros, a intervir na posição desta: A (…), na qualidade de cônjuge; A (…) na qualidade de filho, e A (…), na qualidade de filhos.
Em 9.06.2010 foi proferido despacho pelo M.º Juiz do Juízo de Grande Instância Cível, onde considerou, face à causa de pedir concreta e aos pedidos vertidos na petição inicial, que a acção em apreço se deveria qualificar como “acção de responsabilidade proposta por sócios”, prevista no art. 77.º do C.S.C., traduzindo-se numa acção relativa ao exercício de um direito social pelo Autor, na qualidade de sócio-gerente da Sociedade Ré, concluindo que o Juízo materialmente competente para o seu conhecimento é o Juízo de Comércio de Aveiro.
Transitado o referido despacho, foram os autos remetidos ao Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga - Aveiro.
No Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga, por despacho proferido na em 27.05.2011, a M.ª Juíza considerou que a pretensão do autor não se funda em qualquer direito social, alicerçando-se em “direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros”, declarando em consequência a incompetência material deste tribunal.
Por despacho de 11.10.2001, foi determinada a remessa dos autos a esta Relação, solicitando-se “a resolução do conflito negativo de competências gerado com o trânsito em julgado de cada um dos sobre ditos despachos”.
A Exma. Sr.ª Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido da atribuição da competência material ao Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga.
Inexistindo qualquer questão que obste ao conhecimento do conflito suscitado e colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se numa única questão: resolução do conflito negativo de competência, com definição do tribunal materialmente competente para apreciação da acção.

2. Factualidade relevante
São os seguintes, os factos relevantes para a decisão, provados nos autos face aos documentos autênticos juntos:
2.1. A (…) intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, em 6.07.2006, acção declarativa com processo comum na forma ordinária, contra E (…), Lda, I (…), C (…), e A (…) e esposa M (…), pedindo:
A) Que seja o negócio titulado pela Escritura Pública outorgada em 01.02.2006 a fls. 132 a 134 do livro n.º 21-A do Cartório Notarial de Albergaria-A-Velha a cargo da Notária (…) declarado anulado por usurário, com o consequente cancelamento das inscrições a favor dos quartos demandados;
B) Quando se entenda de modo diverso, no que se não concede, que seja ordenada a modificação do negócio, quer nos termos do n.º 1 do art.º 283.º, quer nos termos do disposto nos art.º 473° e 292°, todos do Código Civil, com a sua consequente redução à fracção “A”, por o seu valor ser suficiente para solver o montante em dívida, com o consequente cancelamento das inscrições G-2, C-l, C-2 e C-3 que incidem sobre a fracção “B”.
2.2. Como fundamento da sua pretensão, o autor alegou em síntese: é sócio gerente da ré E (…), Lda; os réus I (…) e C (…) são igualmente gerentes da ré E (…) Lda; a dita sociedade obriga-se com a assinatura de dois gerentes; por escritura pública os réus/gerentes (…) declararam em nome da sociedade, que esta era devedora aos 4.ºs réus, da quantia de € 123.132,48, e que, “em pagamento da mesma dívida”, a sociedade entregava aos 4.ºs réus as fracções autónomas identificadas na petição; as referidas fracções têm o valor de € 250.000,00; o negócio em causa provoca um sério prejuízo patrimonial, quer à sociedade, quer ao autor, seu gerente.
2.3. Em 04-04-2009, os autos foram remetidos para distribuição ao Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga.
2.4. Em 9.06.2010 foi proferido despacho pelo M.º Juiz do Juízo de Grande Instância Cível, no qual considerou, face à causa de pedir concreta e aos pedidos vertidos na petição inicial, que a acção em apreço se deverá qualificar como “acção de responsabilidade proposta por sócios”, prevista no art. 77.º do C.S.C., traduzindo-se numa acção relativa ao exercício de um direito social pelo Autor, na qualidade de sócio-gerente da Sociedade Ré, concluindo que o Juízo materialmente competente para o seu conhecimento é o Juízo de Comércio de Aveiro.
2.5. Transitado o referido despacho, foram os autos remetidos ao Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga - Aveiro.
2.6. No Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga, por despacho proferido na em 27.05.2011, a M.ª Juíza considerou que a pretensão do autor não se funda em qualquer direito social, alicerçando-se em “direitos extra-sociais que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros”, declarando em consequência a incompetência material deste tribunal.
2.7. Ambos os despachos transitaram em julgado.

3. Fundamentos de direito
3.1. Natureza do conflito e competência deste Tribunal
Nos termos do artigo 115º, nº 1, do Código de Processo Civil, verifica-se a existência de conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão, qualificando-se o conflito como positivo no primeiro caso e negativo no segundo.
De acordo com o disposto no n.º 2 do normativo citado, verifica-se a existência de conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão, dispondo o n.º 3, que não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.
No caso dos autos estão em causa duas decisões, proferidas respectivamente pelo Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga e pelo Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga, atribuindo cada um ou outro, a competência para tramitar os autos.
Os referidos juízos integram-se na ordem dos tribunais judiciais (artigos 1º, 72º, 73º e 74, nºs 1 e 2, alínea b), todos da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, diploma já aplicável nos referidos juízos ex vi artigos 171º, nº 1 e 187º, nº 1, da mesma lei, conjugados com os artigos 14º, 49 e 50º, ambos do decreto-lei nº 25/2009, de 26 de Janeiro).
Face ao exposto, concluímos que a divergência verificada se integra na previsão legal do n.º 2 do artigo 115.º do CPC, pelo que estamos perante um conflito negativo de competência.
De acordo com o disposto no artigo 116º, nº 1, do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, os conflitos de jurisdição são resolvidos pelo Supremo Tribunal de Justiça ou pelo Tribunal de Conflitos e os conflitos de competência são solucionados pelo tribunal de menor categoria que exerça jurisdição sobre as autoridades em conflito.
O Tribunal da Relação de Coimbra é o tribunal que exerce jurisdição sobre as autoridades em conflito, sendo o tribunal de categoria imediatamente superior aos tribunais em conflito (artigo 174º da Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto e o Mapa I anexo ao decreto-lei nº 186-A/99, de 31 de Maio), pelo que lhe assiste competência para dirimir o conflito suscitado.
3.2. Definição da competência, com base no conceito de “direitos sociais”
O artigo 121.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ)[1], define nestes termos a competência material dos tribunais de comércio:
1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência;
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) Acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) Acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar:
a) As impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais;
b) Os recursos das decisões da Autoridade da Concorrência, em processo de contra-ordenação.
3 - A competência a que se refere o nº 1 abrange os respectivos incidentes e apensos.
4 - Quando, na comarca, não haja juízos de comércio, as competências referidas na alínea b) do nº 2, bem como a competência para a execução das respectivas decisões, cabem à comarca mais próxima do distrito, em que haja juízo de comércio, e aos juízos de média ou pequena instância criminal, consoante o valor da coima, nos restantes casos.
5 - Compete aos juízos de comércio exercer, onde não houver juízos de propriedade intelectual, as competências a estes atribuídas.
No conflito que nos incumbe dirimir, a divergência entre o Juízo de Grande Instância Cível e o Juízo de Comércio sintetiza-se nestes termos: o primeiro entende que a questão suscitada na acção se reconduz ao exercício por parte do autor, de “direitos sociais”, tese de que o segundo discorda, por entender que o direito que o autor pretende exercer não tem essa natureza.
Está assim, especificamente, em causa, a averiguação sobre se a presente acção se integra, ou não, na alínea c) do n.º 1 do citado artigo 121.º: «1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: […] c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; […]».
Tal averiguação pressupõe a prévia definição do que se deverá entender pelo conceito normativo de “direitos sociais”.
Como tem sido pacificamente aceite na jurisprudência, a aferição da competência do tribunal é feita com base na relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor, ou seja, nos precisos termos em que foi proposta a acção[2].
Tudo se resume em saber se perante a petição inicial (causa de pedir e pedido), se deverá concluir ou não pela qualificação da acção como “relativa ao exercício de direitos sociais”.
Na situação concreta, o autor, invocando a qualidade de sócio gerente da sociedade ré, requer que o tribunal declare a nulidade (ou, pelo menos a redução), do contrato celebrado entre a sociedade, representada pelos dois restantes gerentes (2.º e 3.º réus) e o 4.º e 5.º réus, para quem a sociedade transferiu dois imóveis.
Na versão que o autor defende na petição, tal negócio lesa seriamente a sociedade, provocando um grave prejuízo patrimonial, quer à sociedade, quer ao autor, seu gerente.
A questão que se coloca é a seguinte: abstraindo-nos do mérito, a pretensão formulada pelo autor traduz-se no exercício de um direito social?
Vejamos.
Sob a epígrafe “Direitos dos sócios”, o artigo 21.º do Código das Sociedades Comerciais enumera os direitos a quinhoar nos lucros, a participar nas deliberações, a obter informação sobre a vida da sociedade e a ser designado para os órgãos sociais.
Como constata Pinto Furtado[3], os direitos enumerados no citado normativo «são apenas os que podemos dizer fundamentais, aqueles que decorrem do simples factos do contrato (…) A par deles, há ainda direitos que também são gerais, mas que somente se suscitam em presença de determinada situação, que venha eventualmente a ocorrer (…). Tais direitos gerais são, naturalmente, numerosos, e não podiam por isso ser objecto de uma enumeração exaustiva…».
Menezes Cordeiro[4], depois de referir a dificuldade da definição do “conteúdo complexo do estado de sócio”, distingue os direitos sociais, em função dos valores que tutelam, agrupando-os em: valores patrimoniais; valores que se prendem com o funcionamento da sociedade; e valores pessoais dos sócios.
No que concerne aos direitos sociais que tutelam valores patrimoniais, o autor citado refere um vasto elenco (12), onde inclui, nomeadamente, “o direito individual de indemnização contra os administradores ou acção ut singuli”, previsto no n.º 1 do artigo 77.º do CSC.
 Vem-se revelando pacífico na jurisprudência, o entendimento de que a competência material para apreciação da acção de responsabilidade proposta pelos sócios, prevista no n.º 1 do já citado artigo 77.º do CSC, cabe ao Tribunal do Comércio, como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 11.01.2011[5] cujo sumário se transcreve[6]:

I - O Tribunal de Comércio é o competente em razão da matéria para acção que a sociedade intente, nos termos conjugados dos arts. 72.º e 75.º do CSC, pois estamos face a uma acção relativa ao exercício de direitos sociais (art. 89.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 3/99, de 13-01 – LOFTJ).

II - Essa acção visa a responsabilização dos gerentes ou administradores que, no exercício das suas funções, causem prejuízos à sociedade, acção relativa ao exercício de direitos sociais com expressão no direito de os sócios exigirem, no interesse da sociedade, o pagamento da indemnização por tais prejuízos.

III - O facto de, beneficiando a sociedade com o desfecho da acção em termos patrimoniais, reflexamente beneficiarem os seus sócios, não retira que estejam em causa direitos sociais, nem desqualifica a acção como uti universi.
Na primeira decisão proferida nos autos, o M.º Juiz do Juízo de Grande Instância Cível, considerou, face à causa de pedir concreta e aos pedidos vertidos na petição inicial, que a acção em apreço se deveria qualificar como “acção de responsabilidade proposta por sócios”, prevista no art. 77.º do C.S.C., traduzindo-se numa acção relativa ao exercício de um direito social pelo Autor, na qualidade de sócio-gerente da Sociedade Ré, concluindo que o Juízo materialmente competente para o seu conhecimento é o Juízo de Comércio de Aveiro.
No que respeita à competência material do Tribunal de Comércio para a tramitação da “acção de responsabilidade proposta por sócios”, prevista no n.º 1 do artigo 77.º do CSC, nenhuma objecção se suscita, face à doutrina e à jurisprudência citadas.
A questão que se suscita é a se saber se a acção em apreço, tal como o autor a configurou na petição, se integra na previsão do n.º 1 do artigo 77.º do CSC.
Prescreve a norma em apreço: «Independentemente do pedido de indemnização dos danos individuais que lhes tenham causado, podem um ou vários sócios que possuam, pelo menos, 5% do capital social, ou 2% no caso de sociedade emitente de acções admitidas à negociação em mercado regulamentado, propor acção social de responsabilidade contra gerentes ou administradores, com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma a não haja solicitado.»
A norma transcrita confere ao sócio que reúna as condições nela previstas, o direito de acção[7] contra gerentes ou administradores, com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo que esta tenha sofrido.
O conceito de “reparação” encontra-se definido no artigo 562.º do Código Civil, como reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento gerador do dano.
Na versão que o autor descreve na petição (convém recordar que a averiguação da competência se faz com base na relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor), os sócios gerentes réus, em representação da sociedade, de forma culposa, terão celebrado um negócio com terceiros que prejudicou directamente a sociedade e indirectamente o autor (também sócio gerente), visando o autor, com esta acção, a anulação do negócio (com reversão total para o património da sociedade, dos prédios transferidos), ou a sua redução (com reversão parcial).
O pedido formulado deverá definir-se como “reparação, a favor da sociedade”, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 77.º do CSC.
Com efeito, abstraindo da apreciação do mérito da acção, a demonstrar-se a factualidade alegada pelo autor, nomeadamente no que concerne à invocada diferença entre o valor dos prédios transferidos e o da dívida assumida pela sociedade, teríamos que concluir pela existência de um dano, imputável à conduta dos réus, cuja reparação se traduziria no pedido formulado – anulação do negócio (na eventualidade de se provar a inexistência da dívida), ou redução do negócio (provando-se a existência da dívida, de forma a equivaler o seu valor, ao valor da transferência imobiliária).
É quanto basta para a integração da presente acção na previsão legal do n.º 1 do artigo 77.º do CSC, o que nos leva à conclusão, com suporte na doutrina e na jurisprudência referenciadas, de que o autor através da presente acção pretende exercer um “direito social”, daí decorrendo a integração da acção na alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, que atribui competência material ao Tribunal de Comércio[8].
No entanto, ainda que assim não se entendesse, pensamos, salvo melhor opinião, que, face à qualidade invocada pelo autor (sócio gerente), e ao pedido (anulação ou redução do negócio com reversão dos prédios para a titularidade da sociedade), sempre seria de considerar a acção como um meio de tutela jurisdicional de um “direito social”.
Vejamos porquê.
Ficou já referida a dificuldade na definição do conceito de direito social, considerando que a lei não estabelece um critério aplicável às várias situações concretas que se possam colocar ao intérprete.
Paulo Olavo Cunha[9] estabelece a diferença entre direito de crédito e direito social, chamando a atenção para o facto de não deverem, necessariamente, ser dirimidas pelo Tribunal do Comércio, todas as acções judiciais que envolvam as sociedades e os membros dos respectivos órgãos sociais. Dá como exemplo a acção de indemnização proposta por administrador ou gerente destituído sem justa causa, dado que se trata de uma acção para o exercício de um direito de crédito e não de um direito social.
Seguindo pelo caminho proposto pelo autor citado, nesta acção o autor invoca a sua qualidade de “sócio gerente” e não pretende realizar qualquer direito de crédito, formulando um pedido que, na eventualidade de procedência, favorece directamente a sociedade e apenas indirectamente o autor (bem como os restantes sócios – réus).
Não se encontrando na lei uma definição concreta de “direitos sociais”, para efeitos de integração na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo 121.º da LOFTJ, a jurisprudência tem traçado um conceito amplo, de forma mais ou menos convergente, sintetizado no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.06.2011[10], nestes termos: «Direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais. São direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.»
Refere-se no citado aresto, que não revestem as características de direitos sociais, os direitos de que os sócios são igualmente titulares, independentemente da sua qualidade de sócios, aqueles em que essa qualidade não releva para o exercício do direito, representando direitos extra-sociais, que os sócios podem exercer como qualquer outra pessoa, numa posição semelhante à de terceiros
Analisando a jurisprudência sobre esta matéria, constatamos que tem vindo a adoptar um “denominador comum” na qualificação de “direitos sociais ou corporativos” – a definição proposta por Luís Brito Correia[11]: “os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendem à protecção dos seus interesses sociais”.
Partindo da definição apontada, conclui-se no já citado acórdão do STJ, de 11.01.2011[12], que se inscreve no âmbito dos seus direitos sociais, o direito de os sócios exigirem, no interesse da sociedade, a indemnização aos gerentes e administradores que, no exercício da actividade societária e aproveitando-se da sua função, lesarem a sociedade, facultando a lei o exercício judicial desse direito se não puder ser exercido pela sociedade por falta de deliberação social que o permita[13].
A qualificação dos direitos sociais ou corporativos como “os direitos que os sócios têm como sócios da sociedade e que tendem à protecção dos seus interesses sociais”, permite a distinção entre direitos extra-corporativos ou extra-sociais, em contraposição à definição enunciada, nestes termos: os direitos extra-corporativos ou sociais reportam-se àqueles de que os sócios são titulares independentemente da qualidade de sócios, como terceiros face à relação jurídica social, e os direitos corporativos ou sociais, àqueles que pressupõem a qualidade de sócio[14].
Ora, a presente acção, em que o autor invoca a sua qualidade de sócio gerente da sociedade Euroimóveis, e nessa qualidade demanda a própria sociedade, os restantes sócios gerentes e os adquirentes do património social (dois imóveis), pedindo a anulação (ou, subsidiariamente, a redução do negócio) e, em consequência, a devolução dos imóveis ao património social, face à distinção enunciada, reporta-se inquestionavelmente a “direitos sociais”, na medida em que: i) é proposta por um sócio gerente, nessa qualidade; ii) tende à protecção de interesses sociais.
Face às razões expostas, com ressalva do muito respeito devido, não podemos estar de acordo com o douto parecer da Digna Procuradora-Geral Adjunta, bem como com a posição assumida pela M.ª Juíza do Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga.

III. Dispositivo
Com os fundamentos expostos, dirime-se o conflito negativo de competência objecto destes autos, determinando que os mesmos sejam tramitados no Juízo de Comércio da Comarca do Baixo Vouga, por ser este o materialmente competente.
Sem custas.
Notifique e comunique aos Exmos. Juízes em conflito.


Carlos Querido ( Relator )


[1] Lei nº 52/2008 de 28 de Agosto

[2] Vide neste sentido Ac. STJ, de 20/05/98, BMJ 477-389, Ac. RP., de 04-02-2010, proferido no Proc. 8536/08.9TBVNG.P1, Ac. RP, de 19.02.2004, proferido no Proc. 0326765, e Ac. da RP de 18-06-2008, proferido no Proc. 0833654 (estes três últimos acessíveis em http://www.dgsi.pt.)
[3] Jorge Henrique Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 5.ª Edição, Almedina, 221
[4] Manual de Direito das Sociedades, Volume I, Das Sociedades em Geral, Almedina, 2.ª edição, 2007, página 573.
[5] Proferido no Processo n.º 1032/08.6TYLSB.L1.S1., acessível em http://www.dgsi,pt.
[6] No mesmo sentido, vejam-se os seguintes acórdãos do STJ: de 18-12-2008, proferido no Processo n.º 3907/2008; de 17-9-2009, proferido no Processo n.º 94/07.8TYLSB.L1.S1; e de 15.09.2011, proferido no Processo n.º 5578/09.OTVLSB.L1.S1., também acessíveis em http://www.dgsi,pt. Ainda no mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 18.06.2008, proferido no Processo n.º 0833654, acessível no mesmo site.
[7] Como ensinava o Professor Adelino da Palma Carlos (Ensaio Sobre o Litisconsórcio, Lisboa, 1956, pág. 36): «…o direito material e o direito de acção não se confundem; mas não podemos deixar de pensar que este é apenas suporte daquele e, para ser licitamente exercido, deve tender à defesa do direito material.»
[8] De acordo com a mesma conclusão, veja-se o já citado acórdão do STJ, de 15.09.2011, proferido no Processo n.º 5578/09.OTVLSB.L1.S1, onde se conclui: “A par da própria sociedade podem também os sócios, fazendo uso da igualmente denominada acção ut singuli (isoladamente, a título particular), propor acção social de responsabilidade contra gerentes ou administradores, com vista a obterem, a favor da sociedade, a reparação do prejuízo que esta tenha sofrido, quando a mesma o não tenha feito. Esta última acção incluiu-se no espaço jurídico-substantivo dos direitos sociais de que fala o art.º 89.º n.º1, al.ª c), da LOFTJ.”
[9] Lições de Direito Comercial, Almedina 2010, pág. 149, 150.
[10] Proferido no Processo n.º 612/08.4TVPRT.P1.S1, acessível em http://www.dgsi.pt
[11] In Direito Comercial, Sociedades Comerciais”, Volume II, pág. 306
[12] Proferido no Processo n.º 1032/08.6TYLSB.L1.S1., acessível em http://www.dgsi,pt.

[13] No mesmo sentido, vejam-se os acórdãos da Relação do Porto, de 4.02.2010, proferido no Proc. n.º 8536/08.9TBVNG.P1, e de 29.03.2011, proferido no Proc. n.º 5326/07.0TBVLG, acessíveis em http://www.dgsi.pt

[14] Vejam-se os acórdãos da Relação do Porto, de 29.03.2011, proferido no Proc. n.º 5326/07.0TBVLG, e de 18-06-2008, proferido no Proc. 0833654, ambos acessíveis em http://www.dgsi.pt