Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1998/12.1TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PEDIDO
AQUISIÇÃO
USUCAPIÃO
EXECUÇÃO FISCAL
Data do Acordão: 09/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1, AL. F) E 49º, Nº 1, AL. D) DO ETAF E 248º E SEGUINTES CPPT.
Sumário: I – É da competência dos tribunais judiciais – e não dos tribunais administrativos e fiscais – a preparação e julgamento de uma acção em que o pedido principal é o de condenação dos RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários de determinado prédio, por o haverem adquirido por usucapião e por beneficiarem da presunção decorrente do registo do mesmo a seu favor.

II – São instrumentais e dependentes – e, por isso, irrelevantes para efeito da determinação da competência – os demais pedidos formulados, nomeadamente os de declaração de que: (1) o prédio vendido em execução fiscal não corresponde ao prédio dos AA.;(2) houve um lapso no processo executivo ao identificarem o prédio penhorado como parte do prédio pertencente aos AA.; (3) para o caso de ser entendido que o prédio vendido na execução fiscal constitui uma duplicação de parte do prédio dos AA., que tal prédio não existe e que houve uma venda de bens alheios, feita, aliás, de má fé e, por isso, nula e de nenhum efeito para os AA.

Decisão Texto Integral:                 Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da relação de Coimbra:

                1. RELATÓRIO

                A... e mulher M..., residentes em Rua ..., intentaram, em 26/12/2012, acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra C..., residente em Rua ..., J..., residente em Rua ..., F..., residente em ... e MINISTÉRIO DAS FINANÇAS (Serviço de Finanças da Marinha Grande) Rua das Portas Verdes, Marinha Grande, formulando o seguinte pedido:

“a) Condenarem-se os RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1º, o qual se encontra atravessado por um caminho que o dividiu em duas partes, conforme o artº 14º, que é o  U-..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...;

b) Declarar-se que o prédio rústico, que é o artº ... não corresponde ao prédio dos AA. e que, houve um lapso no processo executivo nº ..., ao identificarem o prédio penhorado como parte do prédio pertencente aos AA.

c) Condenarem-se os RR. ... a pagarem aos AA., a título de indemnização pelos danos que lhe causaram, todas as despesas que eles já fizeram com os embargos e com esta ação, incluindo os honorários a pagar ao seu advogado, a liquidar em execução de sentença, por não estarem apurados;

d) E, se o prédio rústico, com o artº ... constitui uma duplicação de parte do prédio dos AA., declarar-se que tal prédio não existe e que houve uma venda de bens alheios, feita, aliás, de má fé e, sendo assim, tal venda é nula e de nenhum efeito para os AA.”

Alegaram para tanto, em síntese, que, por o haverem adquirido por usucapião e por beneficiarem da presunção de propriedade decorrente do registo a seu favor na Conservatória do Registo Predial, são donos e possuidores do prédio urbano com a superfície coberta de 49 m2, descoberta de 60 m2 e logradouro de 372 m2, sito em ...; que esse prédio se encontra dividido em duas partes por um caminho; que o R. J... inscreveu na matriz Predial da Marinha Grande, como tratando-se de prédio autónomo seu, uma das partes daquele imóvel, tendo-lhe sido atribuído o artigo rústico ..., vendendo-o mais tarde ao R. C...; que o Serviço de Finanças da Marinha Grande penhorou tal “prédio”, em processo movido contra o R. C... e, apesar da oposição[1] dos AA., procedeu à venda do mesmo ao R. F...; e que, mercê da actuação dos RR., sofreu danos, dos quais pretende ser indemnizado.

O Serviço de Finanças da Marinha Grande contestou por excepção e por impugnação. Por excepção, arguiu a sua falta de personalidade judiciária. Por impugnação, contrariou a factualidade alegada pelos AA.

Também o R. F... contestou por excepção e por impugnação, deduzindo ainda pedido de condenação dos AA. por litigância de má fé. Por excepção, arguiu a ineptidão da petição inicial, a incompetência material do Tribunal, a irregularidade do mandato conferido pelos AA. ao seu advogado e o abuso de direito. Por impugnação, contrariou a factualidade alegada pelos AA.

Igualmente o R. J... contestou por excepção e por impugnação, deduziu reconvenção e pediu a condenação dos AA. por litigância de má fé. Por excepção, arguiu a sua ilegitimidade. Por impugnação, contrariou os factos alegados na petição inicial. Em reconvenção, pediu que seja “declarado procedente por provado o esbulho e posse indevida da propriedade do R, com recurso a justificação falsa, devendo a mesma ser anulada, na parte em que pretende usurpar a propriedade do R., este que tem posse, pública, de boa fé, titulada, há quase 40 anos” e que seja “ainda o A. condenado a pagar danos morais e condenado como litigante de má fé e abuso de direito”.

Os AA. replicaram, concluindo como na petição inicial.

Juntos pelas partes, a convite do tribunal, formulado nos termos do artº 5º, nº 4 da lei nº 41/20013, de 26/06, os requerimentos probatórios, foi, em 24/10/2013, proferido despacho convidando os AA. a sanarem a irregularidade do mandato conferido ao seu advogado, bem como a juntarem certidão “certidão do processo de execução fiscal, designadamente da fase de venda do imóvel alegado, devendo constar da certidão a data da venda alegada.”

Satisfeito o convite, foi, em 22/01/2014, proferido despacho julgando o tribunal materialmente incompetente em razão da matéria e absolvendo os RR. da instância.

Inconformado, o A. interpôs recurso, encerrando a alegação apresentada com as seguintes conclusões:

...

Os apelados não responderam.

O recurso foi admitido.

Nada a tal obstando, cumpre apreciar e decidir.

Tendo em consideração que:

                - O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 635º, nº 4, 637º, nº 2 e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil aplicável[2]);

                - Nos recursos se apreciam questões e não razões;

                - Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

                à ponderação e decisão deste Tribunal foi colocada apenas a questão de saber se a competência para a preparação e decisão dos presentes autos recai sobre os tribunais judiciais, mais precisamente, sobre o Tribunal Judicial da Marinha Grande, ou sobre ao tribunais fiscais.

                2. FUNDAMENTAÇÃO

                2.1. De facto

                A factualidade e incidências processuais relevantes para a decisão do recurso são as que decorrem do antecedente relatório, aqui dado por reproduzido.

                2.2. De direito

                Entendeu-se na decisão sob recurso que “o que os AA. pretendem com a presente acção e o que peticionam na mesma, é que se anule a venda realizada em sede de execução fiscal com base no facto de ter sido vendida coisa alheia por erro quanto ao objecto (imóvel) da referida venda. Os demais pedidos são pois, por assim dizer, instrumentais e dependentes deste pedido, já que para se dizer que se vendeu coisa alheia é necessário declarar que os AA. dela são proprietários, e que, por isso, o prédio dos mesmos não é o prédio referido em sede de execução fiscal, peticionando ainda que os RR. sejam assim condenados no pagamento das despesas dos AA. com os embargos e com a presente acção, bem como honorários do seu il. Mandatário nos referidos autos”.

                Mais se entendeu que “estamos perante um pedido de apreciação da validade de um contrato de compra e venda celebrado no âmbito de um processo de execução fiscal em que o Estado/Fazenda Nacional é o vendedor e F..., como particular, é comprador, validade esta que vem posta em causa pelos AA. por, em termos de causa de pedir, entenderem ter sido alienado em execução fiscal um prédio que lhes pertence (e portanto bem alheio relativamente ao vendedor) ou, no limite, um bem que não tem existência física autónoma”.

                Consequentemente, apoiando-se no preceituado no artº 4º, nº 1, al. f) e 49º, nº 1, al. d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF[3]) e nos artºs 248º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), concluiu-se na decisão recorrida pela incompetência absoluta do Tribunal da Marinha Grande para preparar e decidir a acção e, consequentemente, pela absolvição dos RR. da instância, por tal competência recair sobre os tribunais fiscais.

                Os AA./recorrentes mantêm no recurso a convicção de que a competência é do Tribunal Judicial da Marinha Grande e não dos tribunais fiscais.

                Vejamos, pois, se aos recorrentes assiste ou não razão.

Nos termos dos artºs. 211º, nº 1 da Constituição, 64º[4] do Código de Processo Civil (CPC) e 40º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ – Lei nº 62/2013, de 26/08)[5], a competência dos tribunais judiciais é residual, de modo que tal competência só existirá na hipótese de a causa não caber a outra jurisdição.

                O caso em análise opõe os tribunais judiciais aos tribunais fiscais pelo que convém averiguar o que, a este respeito, estipulam os vários textos legais, nomeadamente, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)[6] e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT)[7].

                Se for possível concluir que a competência cabe à jurisdição fiscal, fica automaticamente excluída a competência dos tribunais judiciais. Se não, serão estes os competentes.

De acordo com o artº 212º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa, compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

O artº 1º, nº 1 do ETAF[8] estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais[9].

O artº 49º, nº 1, al. d) do mesmo diploma legal estipula que compete aos tribunais tributários conhecer: (d) Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal.

O artº 97º, nº 1, al. h) do CPPT preceitua que o processo judicial tributário compreende: h) As acções para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária.

O artº 257º do mesmo diploma legal estipula que:

1 - A anulação da venda só poderá ser requerida dentro dos prazos seguintes:

a) De 90 dias, no caso de a anulação se fundar na existência de algum ónus real que não tenha sido tomado em consideração e não haja caducado ou em erro sobre o objecto transmitido ou sobre as qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado;

b) De 30 dias, quando for invocado fundamento de oposição à execução que o executado não tenha podido apresentar no prazo da alínea a) do n.º 1 do artigo 203.º;

c) De 15 dias, nos restantes casos previstos no Código de Processo Civil.

2 - O prazo contar-se-á da data da venda ou da que o requerente tome conhecimento do facto que servir de fundamento à anulação, competindo-lhe provar a data desse conhecimento, ou do trânsito em julgado da acção referida no n.º 3.

3 - Se o motivo da anulação da venda couber nos fundamentos da oposição à execução, a anulação depende do reconhecimento do respectivo direito nos termos do presente Código, suspendendo-se o prazo referido na alínea c) do n.º 1 no período entre a acção e a decisão.

4 - O pedido de anulação da venda deve ser dirigido ao órgão periférico regional da administração tributária que, no prazo máximo de 45 dias, pode deferir ou indeferir o pedido, ouvidos todos os interessados na venda, no prazo previsto no artigo 60.º da lei geral tributária. (Redacção da Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro)

5 - Decorrido o prazo previsto no número anterior sem qualquer decisão expressa, o pedido de anulação da venda é considerado indeferido. (Aditado pela Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro)

6 - Havendo decisão expressa, deve esta ser notificada a todos os interessados no prazo de 10 dias. (Aditado pela Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro)

7 - Da decisão, expressa ou tácita, sobre o pedido de anulação da venda cabe reclamação nos termos do artigo 276.º. (Aditado pela Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro)

8 - A anulação da venda não prejudica os direitos que possam assistir ao adquirente em virtude da aplicação das normas sobre enriquecimento sem causa. (anterior nº4) (Redacção da Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro)

E o artº 204º, nº 1, al. i) do mesmo Código estabelece que a oposição (à execução fiscal) só poderá ter algum dos seguintes fundamentos: i) Quaisquer fundamentos não referidos nas alíneas anteriores, a provar apenas por documento, desde que não envolvam apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda, nem representem interferência em matéria de exclusiva competência da entidade que houver extraído o título.

A competência material para a acção afere-se em face da natureza da relação jurídica material em litígio, tal como a apresenta o autor da demanda[10]. Ou seja, determina-se pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir[11], sendo fixada em função dos termos em que a acção é proposta[12].

                Como oportunamente se escreveu, os AA. formularam, no final da petição inicial, o seguinte pedido:

“a) Condenarem-se os RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio identificado no artigo 1º, o qual se encontra atravessado por um caminho que o dividiu em duas partes, conforme o artº 14º, que é o U-...;

b) Declarar-se que o prédio rústico, que é o artº ... não corresponde ao prédio dos AA. e que, houve um lapso no processo executivo nº ..., ao identificarem o prédio penhorado como parte do prédio pertencente aos AA.

c) Condenarem-se os RR., C..., J... e Ministério das Finanças a pagarem aos AA., a título de indemnização pelos danos que lhe causaram, todas as despesas que eles já fizeram com os embargos e com esta ação, incluindo os honorários a pagar ao seu advogado, a liquidar em execução de sentença, por não estarem apurados;

d) E, se o prédio rústico, com o artº .... constitui uma duplicação de parte do prédio dos AA., declarar-se que tal prédio não existe e que houve uma venda de bens alheios, feita, aliás, de má fé e, sendo assim, tal venda é nula e de nenhum efeito para os AA.”

Alegaram para tanto, como também oportunamente se referiu, que, por o haverem adquirido por usucapião e por beneficiarem da presunção de propriedade decorrente do registo a seu favor na Conservatória do Registo Predial, são donos e possuidores do prédio urbano com a superfície coberta de 49 m2, descoberta de 60 m2 e logradouro de 372 m2, sito em ...; que esse prédio se encontra dividido em duas partes por um caminho; que o R. J... inscreveu na matriz Predial da Marinha Grande, como tratando-se de prédio autónomo seu, uma das partes daquele imóvel, tendo-lhe sido atribuído o artigo rústico ..., vendendo-o mais tarde ao R. C...; que o Serviço de Finanças da Marinha Grande penhorou tal “prédio”, em processo movido contra o R. C... e, apesar da oposição dos AA., procedeu à venda do mesmo ao R. F...; e que, mercê da actuação dos RR., sofreu danos, dos quais pretende ser indemnizado.

Procurando interpretar a petição inicial e, sobretudo, o pedido formulado no final da mesma, afirmou-se na decisão recorrida:

“Importa referir que, em rigor, o que os AA. pretendem com a presente acção e o que peticionam na mesma, é que se anule a venda realizada em sede de execução fiscal com base no facto de ter sido vendida coisa alheia por erro quanto ao objecto (imóvel) da referida venda.

Os demais pedidos são pois, por assim dizer, instrumentais e dependentes deste pedido, já que para se dizer que se vendeu coisa alheia é necessário declarar que os AA. dela são proprietários, e que, por isso, o prédio dos mesmos não é o prédio referido em sede de execução fiscal, peticionando ainda que os RR. sejam assim condenados no pagamento das despesas dos AA. com os embargos e com a presente acção, bem como honorários do seu il. Mandatário nos referidos autos.

Estamos perante um pedido de apreciação da validade de um contrato de compra e venda celebrado no âmbito de um processo de execução fiscal em que o Estado/Fazenda Nacional é o vendedor e F..., como particular, é comprador, validade esta que vem posta em causa pelos AA. por, em termos de causa de pedir, entenderem ter sido alienado em execução fiscal um prédio que lhes pertence (e portanto bem alheio relativamente ao vendedor) ou, no limite, um bem que não tem existência física autónoma.”

Face a tal interpretação, apoiando-se no preceituado no artº 4º, nº 1, al. f) e 49º, nº 1, al. d) do ETAF e nos artºs 248º e seguintes CPPT, concluiu-se na decisão recorrida pela incompetência absoluta do Tribunal da Marinha Grande para preparar e decidir a acção e, consequentemente, pela absolvição dos RR. da instância, por tal competência recair sobre os tribunais fiscais.

Com o devido respeito, não concordamos com a indicada interpretação.

Com efeito, a nosso ver, da análise da petição inicial no seu todo e mesmo da própria ordem dada aos pedidos formulados no seu final decorre que o pedido principal é o de condenação dos RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do “prédio identificado no artigo 1º o qual se encontra atravessado por um caminho que o dividiu em duas partes, conforme o artº 14º, que é o artº U-...” [al. a)]. Os demais pedidos, nomeadamente os de declaração de que “o prédio rústico, que é o artº ... não corresponde ao prédio dos AA. e que, houve um lapso no processo executivo nº ..., ao identificarem o prédio penhorado como parte do prédio pertencente aos AA.” [al. c)], bem como o de, para o caso de ser entendido que “o prédio rústico, com o artº ... constitui uma duplicação de parte do prédio dos AA.”, ser declarado “que tal prédio não existe e que houve uma venda de bens alheios, feita, aliás, de má fé e, sendo assim, tal venda é nula e de nenhum efeito para os AA.” [al. d)], é que são instrumentais e dependentes daquele e não o contrário.

Ou seja, os AA. optaram por reivindicar a propriedade do prédio que dizem seu baseando-se na usucapião e na presunção a seu favor decorrente do registo de tal prédio em seu nome e, como consequência lógica de tal propriedade, sustentam que a venda feita ao R. F... no processo de execução fiscal ou se deveu a lapso na identificação do prédio ou integra venda de coisa alheia, “nula e de nenhum efeito” em relação a si[13].

Não está, pois, aqui em questão, ao menos de forma directa e imediata, qualquer relação de natureza administrativa ou fiscal que confira competência para a apreciação e decisão da causa aos tribunais administrativos e fiscais.

Por nos parecer elucidativo, transcreve-se o seguinte trecho do Ac. do STA de 21/05/2014 (Proc. 0663/12), já mencionado, que se debruçou sobre um caso com alguma semelhança ao que nos ocupa:

“Considerando que o pedido principal da acção é o do reconhecimento da propriedade considerando que o pedido subsidiário do levantamento da penhora é mera consequência ou efeito do reconhecimento da titularidade do direito em litígio constata-se não estar em causa qualquer relação administrativa antes a apreciação de mera relação civil para a conhecimento da qual os TAFs são materialmente incompetentes.

Efectivamente a jurisdição competente afere-se pela natureza da causa ou seja através do pedido e da verificação da causa de pedir.
Ora a acção de reconhecimento da propriedade directamente nada tem a ver com o acto da penhora ou seja a pretensão da autora não resulta directamente de qualquer relação administrativa e tal facto exclui desde logo a competência do TAF, ou seja da jurisdição administrativa para conhecer da pretensão da autora.

Na acção de reconhecimento em causa a causa de pedir assenta numa escritura pública de compra e venda celebrada entre a autora e um particular e o modo de aquisição da propriedade bem como o seu reconhecimento é questão regulada nos termos do direito privado, não emergindo o litígio de qualquer relação administrativa.

E é este pedido o cerne da acção administrativa que apreciamos.

No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal de Conflitos nos acórdãos de 26.09.2013 no processo 032/13 e de 28.09.2010 no processo 010/10.

Decorre do exposto e tendo presente o disposto nos artigos 13 do CPTA e nº 1 do artigo 4º do ETAF que o TAF de Penafiel é materialmente incompetente para conhecer o pedido formulado na presente acção.”

Por tudo quanto fica explanado, conclui-se que a competência para a preparação e decisão da acção não recai sobre os tribunais administrativos e fiscais, razão pela qual, dada a natureza residual da competência material dos tribunais judiciais, é sobre estes – no caso, sobre o Tribunal Judicial da Marinha Grande – que repousa tal competência.

A conclusão a que se chegou importa a procedência da apelação e a revogação da decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos autos.

                Sumário:

                I – È da competência dos tribunais judiciais – e não dos tribunais administrativos e fiscais – a preparação e julgamento de uma acção em que o pedido principal é o de condenação dos RR. a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários de determinado prédio, por o haverem adquirido por usucapião e por beneficiarem da presunção decorrente do registo do mesmo a seu favor;

II – São instrumentais e dependentes – e, por isso, irrelevantes para efeito da determinação da competência – os demais pedidos formulados, nomeadamente os de declaração de que: (1) o prédio vendido em execução fiscal não corresponde ao prédio dos AA.;(2) houve um lapso no processo executivo ao identificarem o prédio penhorado como parte do prédio pertencente aos AA.; (3) para o caso de ser entendido que o prédio vendido na execução fiscal constitui uma duplicação de parte do prédio dos AA., que tal prédio não existe e que houve uma venda de bens alheios, feita, aliás, de má fé e, por isso, nula e de nenhum efeito para os AA.

                3. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar a decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos autos.

As custas são a cargo dos recorridos.

                                                                                              Coimbra, 2014/09/16
Artur Dias (Relator)

Jaime Ferreira

Jorge Arcanjo

[1] Efectivada através de embargos de terceiro que, por decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria de 23/11/2012 (Proc. ...), transitada em julgado, foram liminarmente rejeitados, por intempestividade – cfr. certidão de fls. 307 a 318.
[2] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06.
   São desse diploma todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.

[3] Aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/09, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19/02 e pela Lei nº 107-D/2003, de 31/12.
[4] Artigo 66º do anterior CPC.
[5] Artigo 18º, nº 1 da LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13/01).

[6] Aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/09, alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19/02 e pela Lei nº 107-D/2003, de 31/12.
[7]Aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99, de 26 de Outubro.
[8] Cfr. tb. Artº 144º, nº 1 da LOSJ.
[9] O Prof. Freitas do Amaral, em Direito Administrativo, vol. III, pág. 439, ensina que a relação administrativa é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.
  Por sua vez J.C. Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, Lições, 3ª edição, 2000. pág. 79, define relações administrativas como aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido.

  As relações jurídicas tributárias são definidas no artº 1º da Lei Geral Tributária LGT (aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17/12 e objecto de mais de três dezenas da alterações, que nos dispensamos de aqui mencionar), como as “estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas” (nº 2), as quais têm como sujeitos (activos ou passivos) “a Direcção-Geral dos Impostos, a Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo, a Direcção-Geral de Informática e Apoio aos Serviços Tributários e Aduaneiros, as demais entidades públicas legalmente incumbidas da liquidação e cobrança dos tributos, o Ministro das Finanças ou outro membro do Governo competente, quando exerçam competências administrativas no domínio tributário, e os órgãos igualmente competentes dos Governos Regionais e autarquias locais” (nº 3) e como objecto: a) O crédito e a dívida tributários; b) O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; c) O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; d) O direito a juros compensatórios; e) O direito a juros indemnizatórios (artº 30º, nº 1 da LGT).

  Ou seja, como consta do sumário do AC. STA de 29/01/2014 (Proc. 01771/13), consultável em www.dgsi.pt, “só se pode falar em relação jurídica tributária quando um dos seus sujeitos for uma das entidades identificadas no n.º 3 do art.º 1.º da LGT e o seu objecto for a liquidação e cobrança de tributos ou a resolução dos conflitos daí decorrentes (art.º 30.º do mesmo diploma).

[10] Ac. Rel. Porto de 10/11/2003 (Relator: Des. Oliveira Abreu) e de 27/05/2004 (Relator: Des. Fernando Batista), in www.jurisprudencia.no.sapo.pt.
[11] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 e Ac. STJ de 09/05/1995, in CJ, Ano III, Tomo 2, pág. 68.
[12] Ac. STJ de 06/03/2002 (Proc. 01S3359, relatado pelo Cons. Emérico Soares), in www.dgsi.pt/jstj.
[13] Cfr. o voto de vencido proferido no acórdão do STA de 15/10/2009 (Proc. 021/09), citado na decisão sob recurso, bem como o acórdão do mesmo Tribunal de 21/05/2014 (Proc. 0663/12), ambos consultáveis em www.dgsi.pt.