Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1035/18.2T8CVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: SERVIDÃO DE ÁGUAS
DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
EXTINÇÃO
RENÚNCIA
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - COVILHÃ - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.236, 239, 1543, 1549, 1569 CC
Sumário: 1. A aquisição de uma servidão por constituição de pai de família ocorre automaticamente com a separação do domínio, desde que no documento formalizador da separação constar declaração de vontade incompatível com a constituição da servidão.

2. A declaração de venda “livre de ónus e encargos”, aquando da venda do prédio serviente por parte dos proprietários que, em simultâneo o eram dos prédios dominantes, em conjugação com os termos do processo negocial que a precedeu, pode ser entendida como renúncia ao direito de servidão.

Decisão Texto Integral:








Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2ª Secção):

I – RELATÓRIO

M (…), e outros, intentam o presente procedimento cautelar comum contra a U (…),

requerendo, entre outros pedidos oportunamente indeferidos, a condenação da ré a retirar, do poço da mina de água, a bomba de água e cano acoplado que ali colocou para retirar e utilizar a água. Mais requerem o decretamento da mesma sem prévia audiência da Requerida.

Para tanto, alegam, em síntese:

os prédios urbanos de cada um dos Requerentes e o prédio rústico que a Requerida adquiriu aos requerentes no ano de 2003 faziam parte de um único prédio designado por Quinta G (...) ;

no prédio hoje da ré situa-se uma mina de água que brota para um poço, onde se encontra colocada uma bomba à qual está acoplado um cano que extrai a água da mina do poço;

após as desanexações e autonomizações prediais do prédio mãe, a água da mina do referido poço passou a ser utilizada pelos requerentes;

 a água da mina do poço sempre foi utilizada pelos requerentes e pelos seus ante possuidores e ante proprietários, nunca tendo a ré, mesmo depois de ter adquirido o seu prédio, praticado qualquer ato impeditivo da utilização da água pelos requerentes, sempre tendo a ré reconhecido que os requerentes tinham direito a uma servidão legal de água;

no final do mês de Maio de 2018, o autor (…) constatou que tinha sido colocado pela ré, no poço da mina, uma bomba de água com um cano acoplado submerso a um nível de água mais profundo do que a bomba de água dos autores, sugando, dessa forma, toda a água, o que impede que a bomba de água dos Requerentes consiga trabalhar e recolher água da mina do poço como sempre aconteceu durante mais de 50 anos;

Concluem, assim, que o prédio da ré se encontra onerado com uma servidão voluntária de águas constituída por destinação de pai de família, a favor dos prédios dos requerentes, ou subsidiariamente por uma servidão legal de águas, constituída por usucapião.

Procedeu-se à produção da prova oferecida pelos requerentes, após o que foi proferida decisão a julgar parcialmente procedente o presente procedimento cautelar comum, condenando a ré U (…) a retirar do poço da mina de água existente no seu prédio, a bomba e cano acoplado que ali colocou, referidos no ponto 18) da matéria de facto provada.

Citada, veio a ré U (…) deduzir oposição, alegando em síntese:

do processo negocial que levou à aquisição da propriedade dos autores pela ré resulta que a compra foi feita “livre de ónus ou encargos”, tanto mais que os autores procuraram excluir os poços e minas da venda, o que levou à perda de interesse pela ré, interesse que a ré só retomou quando os autores abdicaram das condições propostas;

sempre será consideravelmente superior para a ré o dano que resulta do decretamento da providência por comparação ao que se pretende evitar com o seu decretamento, uma vez que as utilidades que os autores pretendem acautelar com a água são recentes e construídas após a transmissão da parcela à ré, para além de que os autores têm instalado em cada um dos seus prédios um furo artesiano equipado com bomba submersível, que satisfazem essas necessidades;

 ao invés, a ré tem no seu prédio uma área de 4.600 m2 plantados que dependem da água existente para serem regados, uma vez que, sem a mesma, tal conduzirá à morte das culturas ou a um custo excessivo para as manter, atendendo ao preço do metro cúbico de água pago pelo consumidor “Estado”.

Conclui pela improcedência da providência, requerendo ainda a condenação dos autores como litigantes de má-fé.

Procedeu-se a audiência final, após o que foi proferida sentença a julgar procedente a oposição, determinando-se o levantamento da providência decretada.


*

Inconformados com tal sentença, os Requerentes (…)e outros, dela interpõem recurso de apelação, que termina com as seguintes conclusões:

(…)

*
A Requerida apresentou contra-alegações no sentido da manutenção do decidido, pelos fundamentos que assim sintetizam:
(…)
*
Dispensados que foram os vistos legais ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 657º do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – artigos 635º, nº4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões levantadas pelos apelantes nas suas alegações de recurso, são as seguintes:
1. Se se achava constituída uma servidão de águas por destinação de pai de família.
2. Em caso afirmativo se, com a celebração da escritura de compra e venda, tal servidão se extinguiu.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Matéria de facto
Os factos, dados como provados na sentença recorrida e que aqui não foram objeto de impugnação, são os seguintes:
1. O prédio urbano sito em Quinta da G (...) , K (...) , composto por edifício de rés-do-chão, com a área descoberta de 4534m2, inscrito na matriz sob o artigo (...) 2, da União de Freguesias de K (...) e Y (...) (extinto artigo (...) 9 da freguesia de W (...) , K (...) ), descrito na Conservatória do Registo Predial da K (...) sob o nº (...) 8/19971212, encontra-se registado a favor dos autores (…) pela Ap. (...) 33, de 1998/03/17, tendo como causa de aquisição “Partilha” e como sujeito passivo (…) casado que foi com (…), em comunhão geral.
2. O prédio urbano sito em Quinta da G (...) , K (...) , composto por edifício de rés-do-chão e sótão, com a área descoberta de 3650m2, inscrito na matriz sob o artigo (...) 3 da União de Freguesias de K (...) e Y (...) (extinto artigo (...) 4 da freguesia de W (...) , K (...) ), descrito na Conservatória do Registo Predial da K (...) sob o nº (...) 04/19901115, encontra-se registado a favor de (…) casados em comunhão de adquiridos, pela Ap. (...) 03 de 1990/11/15, tendo como causa de aquisição “Doação” e como sujeito passivo (…) e mulher (…), casados em comunhão geral.
3. O prédio urbano sito em Quinta da G (...) , K (...) , composto de edifício do rés-do-chão e 1º andar, com a área descoberta de 3532 m2, inscrito na matriz sob o artigo (...) 99, da União de Freguesias de K (...) e Y (...) (extinto artigo (...) 11 da freguesia de W (...) , K (...) ), descrito na Conservatória do Registo Predial da K (...) sob o nº (...) 77/19950920, encontra-se registado a favor de (…) casado com (…) no regime de comunhão de adquiridos, pela Ap. 31 de 1995/09/20, tendo como causa de aquisição “Compra” e como sujeito passivo (…), casados no regime de comunhão geral.
4. O prédio rústico sito em L(...) ou Quinta da G (...) , inscrito na matriz sob o artigo (...) 07 da União de Freguesias de K (...) e Y (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial da K (...) sob o nº (...) 009/20020314, encontra-se registado a favor da U (…), pela Ap. 7, de 2004/04/02, tendo como causa de aquisição “Compra” e como sujeito passivo os aqui requerentes e ainda (…)
5. Os prédios referidos em 1) a 4) faziam parte de um único prédio – prédio mãe - conhecido por Quinta da G (...) , propriedade do falecido (…) e esposa (…).
6. No prédio mãe referido em 5) situava-se uma mina de água que brotava para um poço construído em pedra delimitado por uma vedação em arame, no qual foi colocada uma bomba à qual está acoplada um cano que extrai a água da mina do poço, e com uma casota de pedra contígua.
7. Nessa casota contígua ao poço foram colocados os dispositivos auxiliares da bomba de água, designadamente, balão e tubagem que a encana através de um tubo instalado no subsolo.
8. Tal poço em pedra para aproveitamento da água da mina existe há mais de 50 anos, sendo que essa água, proveniente da mina, sempre foi utilizada pelos proprietários e pelos rendeiros/quinteiros do prédio mãe referido em 5) para rega das culturas existentes no prédio, o qual vinha sendo cultivado há pelo menos 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e de forma contínua, mesmo após a divisão do prédio referida em 9).
9. O prédio mãe referido em 5) foi atravessado entre 1970 e 1980 pela construção da estrada nacional conhecida como “Variante à K (...) ”, a qual dividiu o prédio em duas partes: uma situada a poente da estrada, correspondente à parcela de terreno que hoje constitui o prédio referido em 4) e a outra correspondente à parcela de terreno que hoje constitui os prédios referidos em 1), 2) e 3).
10. Com o atravessamento do prédio mãe pela estrada referida em 9), a mina de água, o poço e a casota referidas em 6) passaram a situar-se na parcela de terreno que hoje constitui o prédio referido em 4).
11. O tubo instalado no subsolo do prédio referido em 4) continua no subsolo da estrada nacional “Variante à K (...) ” e chega ao prédio referido em 3) daí derivando por outras tubagens que encanam a água para os prédios referidos em 1) e 2).
12. Com a aquisição dos prédios referidos em 1), 2) e 3), os autores continuaram a utilizar essa água para regas de jardins e relvados, para regas de pequenas hortas e lavagens, com a convicção de que o podem fazer, de forma contínua, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição, designadamente, da ré, desde que esta adquiriu o prédio referido em 4), o que se manteve até ao referido em 46).
13. Contíguo ao poço e à casota referidos em 6) existe um poste em cimento com uma baixada de corrente elétrica para fornecer energia à bomba de extração de água do poço e a todos os dispositivos da bomba de água que se encontram no interior da referida casota, onde também se encontra o contador de energia elétrica.
14. Tai baixada de corrente elétrica e o contador para fornecer energia elétrica à bomba de água e dispositivos foram requisitados à EDP há mais de 40-50 anos pelos antigos rendeiros/quinteiros do prédio mãe.
15. O contrato de energia elétrica referente ao contador que se encontra instalado na referida casota de pedra, encontra-se atualmente em nome do autor (…) sendo ele quem paga o consumo elétrico.
16. No mês de Maio de 2018 o autor (…) testou o sistema de rega de jardim e constatou que não havia água, o mesmo sucedendo com os outros autores.
17. Pensando que se tratava de uma avaria chamou um técnico ao local que verificou estar tudo bem com o sistema de rega mas que as tubagens não tinham água.
18. Após deslocação ao poço de água referido em 6) constatou-se que tinha sido colocada pela ré no poço da mina uma bomba de água com um cano acoplado, submersa a um nível de água mais profundo do que a bomba de água dos autores e que suga toda a água.
19. O referido em 18) impede que a bomba de água dos autores consiga trabalhar e recolher água da mina do poço.
20. Tal tem impedido os autores de usarem a água proveniente da mina e, consequentemente, de regarem os seus jardins, relvados e pequenas hortas e de encherem piscinas uma vez que, quando construíram as suas casas instalaram um sistema de rega e de lavagem concebidos apenas para utilização exclusiva da água da mina do poço.
21. Por escritura de compra e venda, outorgada em 25/11/2003 no Cartório Notarial da K (...) , exarada a fls. 16 a 18 do Livro de Escrituras Diversas número cento e treze, (…) primeiros outorgantes, declararam vender à U (…), representada no ato pelo (…) R (...), segundo outorgante, pelo preço já recebido de oitocentos e cinquenta e sete mil, novecentos e trinta e dois euros e vinte e seis cêntimos, livre de quaisquer ónus ou encargos, o seguinte prédio: Prédio rústico, composto de terra de cultivo, oliveiras e pastagem, sito no L(...) ou Quinta da G (...) , na dita freguesia de W (...) , inscrito na matriz sob o artigo 54, com o valor tributável correspondente de 2.216,26€, descrito na Conservatória do Registo Predial da K (...) sob o número 00 (...) 009, freguesia W (...) , registado a seu favor em comum e sem determinação de parte ou direito, pela inscrição G – um.
22. No documento referido em 21) o Professor Doutor (…), na qualidade de R (...) e em representação da U (…), segundo outorgante, declarou que para a U (…) que representa, aceita esta venda e quitação nos termos antecedentes.
23. No documento referido em 21) pelos outorgantes foi ainda dito que os vendedores não possuem prédios rústicos contíguos ao ora vendido, mais tendo declarado que não celebraram contrato promessa de compra e venda.
24. Em 15 de Maio de 2000, o Professor Doutor (…) R (...) (à data) da ré U (…) dirige ao autor Dr. (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…). Exmo. Senhor, Na sequência dos nossos contactos anteriores relativamente à parcela de terreno pertencente à família de V. Exa. localizadas na área de implantação do Z (...) da U (...), de acordo com o Plano Director Municipal aprovado para a cidade da K (...) , venho através do presente enviar (em duplicado) a planta do Z (...), onde se encontram assinaladas as parcelas de terreno pertencentes a V. Exa. e que esta U (...) pretende adquirir. Aproveito, também, para enviar cópia da avaliação levada a efeito pela Direcção Geral do Património do Estado em 1991. Para o efeito de uma possível e desejável negociação, informamos que a U (...) procedeu à determinação das áreas das parcelas, estabelecendo os seus limites a título indicativo, pelo que agradecemos antecipadamente que nos devolva uma das plantas com a indicação da localização de cada artigo matricial, com as áreas e os limites físicos respectivos e bem assim certidões de teor matricial das Finanças e da Conservatória de Registo Predial, com vista à melhor identificação do prédio em questão. Uma vez mais reiteramos o interesse da U (...) na aquisição da parcela do Z (...), pertencente à família de V. Exa. solicitando, por esse motivo, que nos apresente proposta de preço por artigo, se assim o entender. Agradecendo antecipadamente a boa colaboração de V. Exa. aproveito a oportunidade para apresentar os meus melhores cumprimentos.”
25. Em 15 de Setembro de 2000 o autor (…) dirige à U (…), A/C do Exmo. Sr. Professor (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…). Exmo. Senhor R (...), os meus cumprimentos. Comunico em resposta à carta de V. Exa. de 2000/05/15 acerca do assunto supra referenciado. Os terrenos assinalados a sombreado na planta, que a U (...) pretende adquirir, fazem parte da denominada “Quinta da G (...) ”, sita na freguesia de W (...) desta cidade. (…) Os proprietários deste prédio não têm nenhum interesse na sua venda, no entanto compreendem a necessidade da sua transmissão para a U (…) A parte da quinta que a U (…) pretende adquirir corresponde a cerca de 60% da totalidade da quinta e exploração agrícola, pelo que a alienação dessa parte comprometerá, definitivamente, a viabilidade de tal exploração, que além de rentável é tão cara aos proprietários. Apesar de não pretenderem alienar a restante parte do prédio, como natural e legalmente poderiam exigir, deverão no entanto ser ressarcidos do prejuízo que terão com a venda da parte da quinta que, como se referiu, inviabilizará a exploração agrícola existente. Na verdade, ao contrário do referido no relatório/avaliação que nos foi enviado, esta quinta possui olival, vinha e árvores de frutos com uma óptima produção, instalações próprias onde se produz vinho e azeite de qualidade, além de possuir dos melhores terrenos de cultivo da zona, com uma boa produção hortícola. O prédio tem cerca de 500 m2 de muros em granito aparelhado, que como é sabido tem hoje grande valor, sendo todo o prédio regado através de quatro minas, dois poços e diversos canais de rega (…) Deste modo, parece-nos que a avaliação que V. Exa. nos apresentou se encontra desactualizada e peca por defeito, pelo que ficamos aguardar nova proposta que atenda aos valores de cálculo de indemnização legalmente em vigor. Sem outro assunto de momento”.
26. A carta referida em 25) mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho, em 18/09/2000: “P/ Assessoria Jurídica. Foi solicitada nova avaliação pelo que devemos aguardar para que possamos dar resposta”.
27. Em 17 de Maio de 2001 o autor (…)  dirige à U (…), ao Exmo. Sr. Professor Doutor (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º - Freguesia da W (...) ). Exmo. Senhor R (...), os meus cumprimentos. Na sequência do contacto acerca do assunto supra referenciado, sou a expor o seguinte: Os proprietários após estudo relativo à avaliação do prédio que a U (…) lhes pretende adquirir, chegaram a um valor de venda que agora propõem, atendendo sumariamente aos seguintes aspectos:
1- Apesar de se tratar de um terreno apto para construção, devendo assim ser avaliado, não pode deixar de se tomar em conta que o prédio (artigo 54º) corresponde a cerca de 60% de uma exploração agrícola devidamente dimensionada, que sem esse prédio se extinguirá, porque não é compensadora a exploração somente da parte restante, facto que representa um prejuízo independente da avaliação do prédio propriamente dito.
2- Está classificado no PDM como solo apto para construção integrada na UOP 18 com uma capacidade construtiva de 0,6.
3- Confronta a nascente com a variante à N18 pelo que é onerada por uma faixa de 20 m de protecção “non aedificandi” o que atendendo à existência do talude da estrada, corresponde a uma área de 439 m2.
4- Na restante parte do terreno, que corresponde a uma área total de 28.476 m2, entrou-se em linha de conta com a capacidade construtiva do terreno de 0,6 com o valor do m2 de construção (102.100$) (portaria nº1062-C/2000) e considerou-se atendendo às características do prédio, nomeadamente à sua excelente localização e em função da qualidade ambiental e dos equipamentos existentes, como mais correcta a aplicação de um índice total de 17% por aplicação cumulativa dos índices a que se refere o artigo 26º, nº6, (…). Concluindo: Faixa de protecção à E.N.18 – 439 m2 X 3.000$ = 1.317 contos. Área de construção 28.476 m2 X 0,6 X 102.100$ X 0,17 = 296.554 contos. Total = 297.871 contos. Parecendo-nos ser esta a avaliação correcta do prédio, é este o valor que se propõe para venda à U (…). Aguardando uma resposta.”
28. A carta referida em 27) mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho: “À assessoria jurídica. Enviar à D.G.P. com pedido de avaliação deste prédio tendo em vista a sua aquisição”.
29. Em 30 de Maio de 2001, o Professor Doutor (…), R (...) (à data) da ré U (…) dirige ao Diretor Geral do Património do Estado uma carta com o seguinte teor: “Aquisição do terreno designado por Lote (...) , sito na Quinta da G (...) com vista à implantação da Faculdade de S (...) da U (…). Relativamente ao assunto em epígrafe vimos solicitar a V. Exa. autorização para a aquisição do referido Lote e consequentemente que se proceda à sua avaliação por essa Direcção. (…) Torna-se cada vez mais urgente adquirir o conjunto de terrenos que constituem o Z (...) da U (…). Nesta conformidade, junto se anexa Relatório de avaliação dos terrenos em causa, solicitados por esta U (...) a essa Direcção em 1991 e reavaliação actualizada, por nós solicitada aos membros da Comissão Permanente de Avaliação de Propriedades das Finanças do Conselho da K (...) ; Planta de Localização do Lote demarcado a verde e bem assim carta do advogado dos proprietários do Lote em causa propondo a sua venda pelo valor total de 297.871.000$00. Agradecendo antecipadamente a boa colaboração de V. Exa. e ao dispor para qualquer esclarecimento adicional, apresento a V. Exa. os meus melhores cumprimentos.”
30. Em 07 de Setembro de 2001 a Direção Geral do Património dirige ao Professor Doutor (…) um ofício com o seguinte teor: “Avaliação para aquisição de terreno designado por Lote (...) sito na Quinta da G (...) com vista à implantação da Faculdade de S (...) da U (…)Para os efeitos tidos por convenientes junto remeto a V. Exa. cópia do meu despacho que recaiu sobre a informação nº (...) /DTOA/2001, realizada na sequência do relatório de avaliação efectuado. (…). Fixando em 178.000.000$00 o valor para o imóvel.”
31. Em 11 de Outubro de 2001 o Professor Doutor (…), R (...) (à data) da ré U (...) KA (...) dirige ao autor (…) e família uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos para implantação da Faculdade de S (...) no Z (...) da U (…): Lote (...) . Exmo. Senhor, Relativamente ao assunto em epígrafe vimos propor a V. Exas. de acordo com o valor de avaliação homologado pela Direcção Geral de Património do Estado, a aquisição do supra referido lote de terreno, o valor de 857.932,38€ (172.000.000$00). Certos da melhor atenção que darão a este assunto, ficaremos aguardar as vossas breves notícias. Com os meus melhores cumprimentos”.
32. Em 22 de Novembro de 2001 o autor (…) dirige à U (…),  (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º Freguesia de W (...) ). Exmo. Senhor R (...): Os meus cumprimentos. Sou a responder à prezada carta de V. Exa. do passado dia 11 de Outubro. Os proprietários do prédio supra referenciado aceitam vendê-lo pelo preço proposto (172.000.000$00) nas seguintes condições:
1- A transacção deverá ser efectuada até ao final do corrente ano;
2- As minas de água, poços e respectivas condutas que se encontram no prédio a vender, que servem a quinta dos proprietários a nascente da variante, não se incluem na venda;
3- Os proprietários poderem continuar a explorar a terra e recolher os respectivos frutos até à altura que a U... necessite de ocupar efectivamente o prédio, podendo os proprietários até essa altura, querendo, retirar as oliveiras existentes no mesmo;
4- As licenças de produção agrícola, nomeadamente, olival e vinha, não se incluem na venda.”
33. A carta referida em 32) mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho, em 23/11/2001: “Arquivar. Não são aceitáveis as condições propostas”.
34. Em 27 de Novembro de 2001 o autor (…) dirige à U (…), ao Exmo. Sr. Professor (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º freguesia de W (...) ). Exmo. Senhor R (...): Os meus cumprimentos. Sou a responder à prezada carta de V. Exa. do passado dia 11 de Outubro. Os proprietários do prédio supra referenciado aceitam vendê-lo pelo preço proposto devendo a transacção ser efectuada até ao final do corrente ano. Aguardando uma resposta”.
35. A carta referida em 34) mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho, em 28/11/2001: “Á Assessoria Jurídica. Para prosseguir com a organização do processo de aquisição”.
36. Em 05 de Dezembro de 2001 o Professor (…)   R (...) (à data) da ré U (...) KA (...) dirige ao autor (…) e família uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos para implantação da Faculdade de S (...) no Z (...) da U (…): Lote (...) . Exmo. Senhor, Acuso a recepção da carta de V. Exa. de 27 de Novembro passado, na qual aceita a venda a esta U (...) do terreno em epígrafe, pelo preço de 172.000.000$00, livre de ónus e encargos. Nesta conformidade e afim de prosseguirmos com o processo aquisitivo, solicitamos que nos envie o mais brevemente possível os documentos identificativos do Lote em questão, nomeadamente, cópia da certidão de teor do Registo Predial e certidão da inscrição na matriz das Finanças. Agradecendo antecipadamente a boa colaboração de V. Exa. aproveito a oportunidade para apresentar a V. Exa. os meus melhores cumprimentos.”
37. Em 09 de Abril de 2002 o autor (…) dirige à U (…), ao Exmo. Sr. Professor Doutor (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º - Freguesia W (...) ). Exmo. Senhor R (...): Os meus cumprimentos. Conforme combinado, junto remeto fotocópia autenticada de certidão da Conservatória do Registo Predial, referente ao assunto supre referenciado. Sem outro assunto”.
38. Em 26 de Junho de 2002 o autor (…) dirige à U (…), A/C da Exma. Sra. Dra. (…), uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º - Freguesia W (...) ). Exma. Colega: Os meus cumprimentos. Conforme combinado telefonicamente, junto envio certidão do teor matricial e habilitação de herdeiros. Sem outro assunto”.
39. Em 24 de Novembro de 2003 o autor (…) dirige à U (…), ao Exmo. Sr. Professor Doutor (…) uma carta, com o seguinte teor: “Aquisição de terrenos do Z (...) da U (…), Quinta da G (...) (artigo 54º - Freguesia da W (...) ). Exmo. Senhor R (...): Os meus cumprimentos. Conforme combinado junto envio planta do prédio a vender à U (…) (artigo 54º) onde estão indicados a tinta verde as minas, nascentes e poços, bem como as respectivas linhas que conduzem as águas para o prédio (inferior) do outro lado da estrada. Chamo a atenção para o facto de que devem as mesmas ser respeitadas, já que os prédios do outro lado da estrada dependem somente dessa água. Sem mais.”
40. A carta referida em 39) foi rececionada na U (…) no dia 25 de Novembro de 2003 e mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho, em 26 de Novembro de 2003: “À assessoria jurídica com quem desejo falar sobre o assunto”.
41. A carta referida em 39) não foi respondida pela ré.
42. Todas as negociações foram sempre conduzidas através do autor (…).
43. No período que mediou entre o ano de 2010/2011 e o ano de 2015 a ré veio a edificar no prédio referido em 4) um edifício designado por “ UM (...)”.
44. A bomba de água referida em 18) foi colocada pela ré no ano de 2014, data em que começou a instalar serviços no terreno.
45. Foi nessa altura que a ré constatou a existência da bomba referida em 6), no poço aí identificado, mas só em 2017, dando conta da insuficiência de água para a rega do seu prédio em virtude do período de seca meteorológica em Portugal, é que a ré constatou que a bomba referida em 6) se encontrava em funcionamento.
46. Nessa senda, a ré agendou uma reunião com os autores, que se realizou em 07 de Junho de 2017, na qual estiveram presentes, pelos autores, o (…) e pela ré o (…) tendo sido por estes solicitado àquele que os autores deixassem de utilizar a água do poço identificado nos autos, o que foi recusado pelos autores.
47. A ré tem no seu prédio 4.600 m2 plantados que necessitam de ser regados, sendo 2.000 m2 com diversas plantas e árvores, regados em sistema gota-a-gota e 2.600 m2 de relva que no Verão necessitam de cerca de 15 m3 diários de água para se manterem.
48. O consumidor “Estado” paga o metro cúbico de água a 8,579€.
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B. Subsunção dos factos ao direito
Os Requerentes intentam a presente providência cautelar pedindo a condenação da Requerida a retirar, do poço da mina existente no seu prédio, a bomba de água e o cano que ali colocou, por violar a existência de uma servidão de águas, constituída por destinação de pai de família, a favor de cada um dos prédios dos Requerentes, prédios estes que, juntamente com o prédio vendido à Ré em 2003, formavam antigamente um único prédio.
A Requerida opõe-se a tal pretensão, negando ter-se constituído tal servidão, porquanto o prédio foi-lhe vendido “livre de ónus e encargos”.
A sentença recorrida, julgando a oposição procedente, determina a revogação da providência decretada. Partindo do pressuposto de que as várias frações só deixaram de pertencer ao mesmo dono aquando da transmissão do prédio à Ré em 2003, em cuja escritura ficou a constar expressamente que tal venda era feita “livre de quaisquer ónus ou encargos”, e tendo em conta o teor das negociações, conclui que:
“(…) com a transmissão do prédio à Ré, os autores prescindiram do direito de servidão que existia a seu favor, pelo que fica, desde logo, prejudicada, qualquer aquisição do direito de servidão que tenha existido a favor dos autores, por usucapião, uma vez que os autores abdicaram de tal direito aquando da transmissão do prédio à ré.
Assim sendo, verifica-se que, não obstante se encontrarem preenchidos todos os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação de pai de família, a favor dos prédios que hoje são dos autores e sobre o prédio onde se situa a mina e o poço e que hoje pertence à ré, foram os próprios autores, com a sua transmissão à ré, que, voluntariamente, impediram que se constituísse essa servidão de águas, por destinação de pai de família.
Em bom rigor, tal servidão nunca se chegou a constituir pois apenas se constituiria com a transmissão do prédio à ré (as servidões por destinação do antigo proprietário só se constituem no momento da separação pois a servidão só nasce quando os prédios ou as fracções se separam quanto à sua titularidade).
Assim sendo, a declaração que ficou a constar da escritura de compra e venda cumpre a vontade dos próprios autores.”
Insurgem-se os apelantes contra o decidido com os seguintes fundamentos:
- a declaração genérica constante na escritura pública de que o prédio foi vendido “livre de ónus e encargos” não é suficiente para extinguir a relação de serventia existente entre o prédio dos apelantes (prédios dominantes) e o prédio da Apelada (prédio serviente);
- a renúncia não está prevista como causa extintiva das servidões constituídas por destinação de pai de família, mas apenas se “outra coisa se houver declarado no respetivo documento” (art. 1569º CC).
Por sua vez, as contra-alegações do Apelado partem da consideração de que a servidão não se chegou a constituir.
Se bem entendemos a exposição contida na sentença recorrida, para o juiz a quo, a servidão por destinação de pai de família, a ter-se constituído, seria apenas com a transmissão do prédio à Ré (até, aí, quando muito, teria ocorrido uma aquisição por usucapião), porquanto, só então, as frações se teriam separado quanto à sua titularidade. Daí a conclusão de que “em bom rigor, tal servidão nunca se chegou a constituir pois apenas se constituiria com a transmissão do prédio à ré (as servidões por destinação do antigo proprietário só se constituem no momento da separação pois a servidão só nasce quando os prédios ou as fracções se separam quanto à sua titularidade)”.
Assim sendo, e antes de mais, para determinar quais os eventuais efeitos da declaração aposta na escritura de 2003, pela qual a Requerida adquiriu o seu prédio – de que lhe era vendido “livre de ónus e encargos” – sobre o invocado direito de servidão de águas por destinação de pai de família por parte dos autores, haverá que determinar:
1. se tal direito já se havia constituído em data anterior – caso em que o que haveria que discutir era a sua eventual cessação, ou,
2. se tal direito só se poderia vir a constituir com a alienação do prédio à U (...), caso em que haverá que apreciar se tal declaração seria suficiente para obstar à constituição da servidão.
Dito por outras palavras, antes de mais, haverá que determinar se, há data da escritura de compra e venda do prédio à U (…), se encontrava constituída uma servidão de águas por destinação de pai de família, a favor dos prédios de cada um dos autores.
Dispõe o artigo 1549º do Código Civil, sob a epígrafe, “Constituição por destinação de pai de família”:
Se, em dois prédios do mesmo dono, ou em duas frações de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas frações do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respetivo documento”.
São pressupostos da constituição de uma serventia por destinação de pai de família[1]:
a) A existência de dois ou mais prédios ou duas ou mais frações de um mesmo prédio, pertencentes a um mesmo proprietário ou aos mesmos comproprietários;
b) Verificação de sinais visíveis e permanentes da existência de uma relação de serventia entre os prédios, isto é de afetação das utilidades de um (ou mais) prédio(s) ou fração(ões)[2];
c) A separação dos prédios ou frações em relação de serventia, isto é, afetação a donos diferentes;
d) Inexistência de um acordo de afastamento da constituição da servidão na separação no ato de separação dos prédios[3].
Não se suscitando dúvidas sobre a verificação dos pressupostos referidos nas alíneas a) e b) – existência, há mais de 50 anos, de sinais visíveis e permanentes que revelam serventia da parcela que hoje constitui o prédio Ré, a favor das parcelas que hoje constituem cada um dos prédios dos autores –, debrucemo-nos sobre a questão de saber quanto terá ocorrido a separação do domínio, relativamente a cada uma das frações ou prédios.
Quer os prédios hoje pertencentes a cada um dos autores, quer o prédio adquirido pela Ré em 2003, formaram em tempos um prédio único pertencente a um único proprietário – J(…) (pais e sogros dos aqui Requerentes).
A primeira divisão de domínio ocorreu com a doação que aqueles, J (…) e mulher, fizeram ao seu filho e nora, F (…)e mulher (aqui 2ºs Requerentes), por escritura pública celebrada a 20 de agosto de 1990 (doc. 6, fls. 27-28, processo físico), uma parcela de terreno com a área de 4.000m2 destinada à construção urbana, a destacar de “uma Quinta com terra de cultura, oliveiras e videiras, com a área de 60.630 m2 (…) inscrita na matriz (…) sob o artigo 456º (…), descrita sob o nº 20.532”.
A segunda ocorreu a 28 de junho de 1995, quando por escritura pública, os identificados pais e sobros dos Requerentes, vendem ao seu genro, J (…) (aqui 3ºs Requerentes), o prédio urbano destinado à habitação, inscrito na matriz sob o artigo (...) 11, e a destacar do tal prédio mãe, registado sob o nº 20.532 (doc. 9, fls. 30-32).
A terceira dá-se com a escritura de partilhas de 6 de fevereiro de 1998, pela qual é adjudicada mais um “talhão” de tal prédio a M (…)aqui 3ª Requerente, juntamente com o seu marido (doc. 3, fls. 20-24).
Como se refere e, nesta parte, bem, a sentença recorrida, a separação física ocorrida com o atravessamento do prédio mãe pela construção da estrada em 1970/1980, a qual dividiu o prédio em dois, é irrelevante para efeitos da constituição da servidão, porque esta pressupõe a separação do domínio.
Enquanto os dois prédios ou as duas frações pertencem ao mesmo dono, não se pode falar em servidão, existindo apenas uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, pois o proprietário ao gozar as utilidades usa do direito de domínio e não do direito de servidão, só o podendo vir a ter na hipótese de os dois prédios ou das suas frações se virem a separar, pois é neste momento que a servidão latente e causal, passa a ser aparente e formal[4].
No caso em apreço, de cada vez que os proprietários do prédio mãe procederam ao destaque de uma parcela, transferindo a sua propriedade para um terceiro – doando-a, vendendo-a outrem, ou mediante adjudicação por escritura de partilhas –, importou uma separação do domínio, pelo que, e uma vez que nada foi declarado em contrário no documento que a formalizou, teve por efeito a constituição de uma servidão de águas por destinação de pai de família a favor do novo prédio resultante do destaque.
Ocorrido cada um desses referidos destaques e sendo a propriedade da parcela destacada transferida para um terceiro, igualmente se mantiveram os sinais reveladores da “servidão” de águas sobre o prédio mãe a favor de cada uma destas parcelas, sem que algo tivesse sido declarado, relativamente a tal servidão, nos respetivos títulos de transferência de propriedade.
A lei parte do pressuposto que o pai de família, se não houver declarado o contrário ao tempo da separação, de antemão, que certa utilidade de um dos prédios ou fração fosse gozada por outro prédio ou fração, perpetuando-se a situação de facto existente ao tempo em que se deu a separação dos prédios[5].
Uma vez verificados os pressupostos para a constituição de uma servidão por destinação de pai de família, o direito de servidão é constituído automaticamente, isto é por mero efeito da lei, sem que seja necessária qualquer intervenção judicial ou administrativa. E tal intervenção é dispensada porque, contrariamente ao que sucede nas demais servidões legais, na servidão prevista no artigo 1549º já existe uma serventia, pelo que o local e o modo já se encontram definidos[6].
Concluindo, cada um dos casais Requerentes adquiriu o direito de servidão de águas por destinação de pai de família:
- os 2ºs. Requerentes, F (…) e mulher, no momento da aquisição por doação do seu prédio – 20 de agosto de 1990;
- os 3ºs. Requerentes, J (…) e mulher, adquiriram o seu direito à data da aquisição do seu prédio por escritura de compra e venda de 18 de junho de 1995;
- os 1ºs. Requerentes, M (…) e marido, pela adjudicação que lhe é feita do seu prédio, por escritura de partilha de 6 de fevereiro de 1998.
*
Passemos, agora à análise da segunda questão: determinar se tal direito se extinguiu pelo facto de os alienantes terem declarado, na escritura que celebraram com a Requerida, que tal prédio era transmitido “livre de ónus e encargos”, como defende a apelada.
Segundo o disposto no artigo 1569º do Código Civil, sob a epígrafe “Casos de extinção”, as servidões extinguem-se, entre outras causas, e no que agora nos interessa, “pela renúncia” (alínea d), do nº1, da citada norma).
Ou seja, e ao contrário do defendido pelos Apelantes nas suas alegações de recurso, a renúncia encontra-se expressamente prevista no artigo 1569º do CC como causa de extinção das servidões, respeitando o artigo 1549º do CC, não às causas de extinção, mas à constituição da servidão por destinação de pai de família.
Quanto ao nº3 do artigo 1569º, apenas restringe a causa de extinção prevista no nº 2 – extinção da servidão por desnecessidade – às servidões “legais”, não impondo qualquer restrição à aplicabilidade das causas de extinção previstas no nº1.
Ou seja, as causas de extinção elencadas no nº1 do artigo 1569º, entre as quais se encontra a “renúncia”, encontram-se previstas para todas as servidões, legais ou voluntárias[7].
Segundo Rui Pinto e Cláudia Trindade, a enumeração das causas de extinção previstas nos ns. 1, 2 e 3, é meramente exemplificativa, podendo o direito de servidão extinguir-se ainda por outras causas previstas na lei ou no título constitutivo.
A extinção direito de servidão por renúncia opera pela mera comunicação ao proprietário do prédio serviente, sem necessidade de aceitação por parte deste, nos termos do nº5 do artigo 1569º.
O facto jurídico de renúncia corresponde à declaração unilateral entre vivos pela qual o sujeito ativo da servidão (o proprietário do prédio dominante) concretiza a sua decisão de deixar de ser titular desse direito[8].
A renúncia é um negócio jurídico unilateral, porquanto, para que se verifique basta a simples declaração de vontade nesse sentido do dono do prédio dominante (que, embora deva ser levada ao conhecimento do dono do prédio serviente, não carece da sua aceitação) ou da prática de atos donde claramente a renuncia resulte. No primeiro caso a renúncia é expressa, no segundo a renúncia é tácita.
Em qualquer dos casos, para Carlos do Nascimento Rodrigues[9], a natureza dos atos praticados deve ser tal que torne impossível o uso ulterior da servidão, bem como deles se deve concluir claramente que a vontade do dono do prédio dominante é de deixar de toda a servidão (renúncia total) ou parte dela (renúncia parcial).
Vejamos, assim, se a declaração exarada na escritura pela qual os aqui autores (e outros), na qualidade de vendedores, declararam vender à Requerida o prédio em questão, “livre de ónus e encargos”, pode ser entendida como uma renúncia por parte dos aqui Requerentes à servidão de águas constituída a favor de cada um dos seus prédios id. nos arts. 1º, 3º e 5º do Requerimento Inicial.
Carlos do Nascimento Rodrigues pronunciou-se no sentido de que, para efeitos da constituição da servidão por destinação de pai de família, “a declaração em contrário constante do documento, há de ser feita especialmente, de uma forma clara e terminante, não bastando dizer que o prédio se encontra livre de qualquer encargo, quando se aliena o prédio serviente[10]”.
E, se assim era entendido para efeitos de afastar a constituição de uma servidão por destinação de pai de família, por maioria de razão assim seria, em princípio, para efeitos de renúncia a uma servidão já constituída.
Contudo, a Requerida/Apelada sustenta que encontrando-se o processo negocial todo documentado, das comunicações escritas sobressai que foi a tentativa do Requerente F (…), na qualidade de representante de todos os proprietários, de imposição de ónus – pretendendo excluir da venda as minas de águas, poços e respetivas condutas que se encontram no prédio a vender, que servem a quinta dos proprietários a nascente da variante” – que fez abortar o negócio uns dias antes e que obrigou os Requerentes a apresentar uma nova proposta de compra.

O desacordo das partes quanto ao significado de tal declaração negocial, remete-nos para o regime da interpretação do negócio jurídico, a efetuar segundo as regras previstas nos artigos 236º e 237º do Código Civil.

A interpretação do negócio jurídico tem por objeto a declaração negocial e visa apurar o seu sentido juridicamente relevante, encontrando-se as respetivas regras plasmadas nos artigos 236º a 239º do Código Civil.

Dispõe o artigo 236º do Código Civil:

1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

Segundo a doutrina dominante, o artigo 236º consagra a uma orientação objetivista da interpretação negocial, numa das suas variantes, a chamada teoria da impressão do destinatário, afastando-se da busca da reconstituição da vontade do declarante[11].

“O intérprete não procurará esta vontade, mas o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real, retiraria da declaração.

Em todo caso, o sentido a buscar na atividade interpretativa da declaração negocial também não é o que corresponde à compreensão do declaratário real. A lei fala no sentido que possa ser deduzido por um “declaratário normal colocado na posição do declaratário real”, abstraindo, pois, da compreensão concreta do destinatário da declaração[12]”.

O legislador consagra um critério objetivo[13] de interpretação, sendo que, no apuramento do seu sentido são utilizáveis diversos meios ou elementos, incluindo a vontade do declarante, conhecida ou reconhecível e demais circunstâncias pertinentes.

A interpretação tem por objeto a declaração negocial, pois só esta pode ser atingida pelo intérprete e não a vontade em sentido psicológico. Contudo, sempre que a intenção do declarante seja conhecida do declaratário, o negócio deve valer segundo ela[14].

De entre as várias circunstâncias atendíveis para a interpretação da declaração negocial, Calvão da Silva[15] salienta, como as mais importantes, o sentido e o fim visado pelas partes, os termos declaracionais empregados e o comportamento complexivo dos contraentes, antes, durante e após a declaração negocial.

Por sua vez, Luís Carvalho Fernandes[16] aponta os seguintes elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou foram contemporâneas destas, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e costumes por ela recebidos. 

O Código não se pronuncia sobre quais as circunstâncias atendíveis para a interpretação.

No entender de José Alberto Vieira[17], a fórmula legal, que apela a um declaratário médio abstrato, permite considerar vários pontos de vista interpretativos: em primeiro lugar, a declaração deve ser interpretada com o sentido correspondente ao modo como as partes executam o negócio; em segundo lugar, sendo o negócio jurídico para as partes um instrumento de prossecução de fins, a interpretação negocial deve ser orientada pelo respeito desses fins (sendo este o elemento interpretativo de maior relevo); em terceiro lugar, o recurso à figura do declaratário médio não exclui a ponderação de todas as circunstâncias, anteriores ou posteriores à celebração do negócio, que sejam conhecidas do declaratário real ou que o deviam ser.

Segundo Carlos Alberto da Mota Pinto, “também aqui se deverá operar com a hipótese dum declaratário normal: serão atendíveis todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta[18]”.

E Manuel de Andrade[19] especifica que tais circunstâncias podem ser da mais diversa ordem; os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo, a finalidade prosseguida pelo declarante, as negociações prévias; as precedentes relações entre as partes; os hábitos do declarante; os usos da prática em matéria terminológica, ou se outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais os especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.

Como referia Carlos Alberto da Mota Pinto[20], a prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário sofre, na lei, de uma importante limitação: para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº1, in fine).

Quando a lei exige a forma escrita para o negócio, o sentido a extrair por via interpretativa tem de ter no texto do respetivo documento um mínimo de correspondência – art. 238º CC.

Por fim, há que salientar constituir matéria de facto saber qual foi o sentido efetivamente pretendido pelo declarante (a sua vontade real) e o eventual conhecimento da mesma pelo declaratário, bem como os elementos de factos que possam ser utilizados na busca do sentido relevante da declaração. Já a interpretação em si é uma operação jurídico-valorativa – consistente em determinar, não o que o declarante quis, mas qual o sentido que juridicamente deve ser atribuído à declaração –, constitui uma questão de direito[21].

No caso em apreço, haverá que atender às seguintes circunstâncias:

1. ao teor literal da declaração efetuada pelos aqui requerentes e que intervieram  na escritura de compra e venda, na qualidade de proprietários do prédio vendido à Ré – de que a venda era feita “livre de ónus e encargos”.

2. ao teor da troca de comunicações ocorrida, durante as negociações para venda do prédio, entre o Requerente F(…)e o R (...) da U (...) Requerida.

3. ao sentido comum e jurídico atribuído à expressão “livre de ónus e encargos”.

4. ao facto de, até ao ano de 2014, as águas provenientes do poço sito no prédio adquirido pela Ré, terem continuado a ser conduzidas e aproveitadas pelos prédios dos Requerentes (o contrato do contador instalado no prédio da Requerida continua em nome do Requerente F (…) que continua a pagar as respetivas contas).
Quanto à troca de comunicações, temos o seguinte historial:
- a 15-05-2000, o R (...) da U (...) R., comunicando o seu interesse na compra, solicita ao Requerente Fernando que apresente proposta do preço;
- a 15-09-2000, o Requerente F (…)o, alertando a U (...) para o facto de a parcela em apreço representar cerca de 60% da Quinta e exploração agrícola, “pelo que a alienação dessa parte comprometerá, definitivamente, a viabilidade de tal exploração (…) deverão, no entanto ser ressarcidos do prejuízo que terão com a venda da parte da quinta que, como se referiu, inviabilizará a exploração agrícola existente. (…) O prédio tem cerca de 500 m2 de muros em granito aparelhado, que como é sabido tem hoje grande valor, sendo todo o prédio regado através de quatro minas, dois poços e diversos canais de rega (…) Deste modo, parece-nos que a avaliação que V. Exa. nos apresentou se encontra desactualizada e peca por defeito, pelo que ficamos aguardar nova proposta que atenda aos valores de cálculo de indemnização legalmente em vigor”.
- a 17 de maio de 2001, o Requerente F(…), envia nova missiva, comunicando-lhe: “Os proprietários após estudo relativo à avaliação do prédio que a U (…) lhes pretende adquirir, chegaram a um valor de venda que agora propõem, atendendo sumariamente aos seguintes aspectos:
1- Apesar de se tratar de um terreno apto para construção, devendo assim ser avaliado, não pode deixar de se tomar em conta que o prédio (artigo 54º) corresponde a cerca de 60% de uma exploração agrícola devidamente dimensionada, que sem esse prédio se extinguirá, porque não é compensadora a exploração somente da parte restante, facto que representa um prejuízo independente da avaliação do prédio propriamente dito.
(…)
4- Na restante parte do terreno (…). Total = 297.871 contos. Parecendo-nos ser esta a avaliação correcta do prédio, é este o valor que se propõe para venda à U (…). Aguardando uma resposta”.
- a carta referida em 27) mereceu do Sr. R (...) o seguinte despacho: “À assessoria jurídica. Enviar à D.G.P. com pedido de avaliação deste prédio tendo em vista a sua aquisição”.
- em 11-11-2001, R (...) da ré U (…) dirige ao autor Dr. (…) e família uma carta, pela qual  propõe, “de acordo com o valor de avaliação homologado pela Direcção Geral de Património do Estado, a aquisição do supra referido lote de terreno, o valor de 857.932,38€ (172.000.000$00).
- em 22 de Novembro de 2001 o autor F (…) dirige à U (…), uma carta, com o seguinte teor: “(…) Os proprietários do prédio supra referenciado aceitam vendê-lo pelo preço proposto (172.000.000$00) nas seguintes condições:
1- A transacção deverá ser efectuada até ao final do corrente ano;
2- As minas de água, poços e respectivas condutas que se encontram no prédio a vender, que servem a quinta dos proprietários a nascente da variante, não se incluem na venda;
3- Os proprietários poderem continuar a explorar a terra e recolher os respectivos frutos até à altura que a U (…)necessite de ocupar efectivamente o prédio, podendo os proprietários até essa altura, querendo, retirar as oliveiras existentes no mesmo;
4- As licenças de produção agrícola, nomeadamente, olival e vinha, não se incluem na venda.”
- na sequência de tal carta foi proferido o seguinte despacho por parte da  U (...), a 23.11.2001: “Arquivar. Não são aceitáveis as condições propostas”.
Ou seja, U (...) põe, então, fim às negociações e, tendo as partes atingido um acordo quanto ao preço a atribuir à parcela (172.000 contos), a não aceitação das “condições propostas” só se poderia referir às condições previstas nos pontos 1 a 4, da missiva do Requerente F (…) de 22.11.2001, entre as quais se incluíam proposta de “exclusão da venda”das minas de água, poços e respetivas condutas que se encontram no prédio a vender, que servem a quinta dos proprietários a nascente da variante”.
Ora, é o próprio Requerente F (…) que dá azo ao reabrir das negociações, nos seguintes termos:
- a 27.11.2001 envia nova missiva à U (...), comunicando “Sou a responder à prezada carta de V. Exa. do passado dia 11 de Outubro. Os proprietários do prédio supra referenciado aceitam vendê-lo pelo preço proposto, devendo a transação ser efetuada até ao final do ano”;
Nesta atualização da posição dos proprietários da parcela, poderemos afirmar que os mesmos deixaram cair as exigências por si identificadas sob os pontos 2, 3, e 4, mantendo unicamente a exigência de que a transação viesse a ser efetuada até ao final de 2001 (sendo que, nem sequer esta se veio a concretizar);
Na sequência desta ultima carta dos vendedores, a U (...) profere despacho a reabrir as negociações.
- a 05-12-2001, o R (...) envia ao Requerente e à família uma carta, nos seguintes termos: “Acuso a recepção da carta de V. Exa. de 27 de Novembro passado, na qual aceita a venda a esta U (...) do terreno em epígrafe, pelo preço de 172.000.000$00, livre de ónus e encargos. Nesta conformidade e afim de prosseguirmos com o processo aquisitivo, solicitamos que nos envie o mais brevemente possível os documentos identificativos do Lote em questão (…).
Durante o ano de 2002, o Requerente vai enviando à U (...) os documentos que lhe foram solicitados e
- a 24 de novembro de 2003, o Requerente F (…) envia nova carta à U (...), onde afirma “(…) Conforme combinado junto envio planta do prédio a vender à U (…) (artigo 54º) onde estão indicados a tinta verde as minas, nascentes e poços, bem como as respectivas linhas que conduzem as águas para o prédio (inferior) do outro lado da estrada. Chamo a atenção para o facto de que devem as mesmas ser respeitadas, já que os prédios do outro lado da estrada dependem somente dessa água. Sem mais.” (fls. 58).
Esta carta foi rececionada pela T (...), que mereceu o seguinte despacho a 26 de novembro “À acessoria jurídica com quem desejo falar do assunto”.
A última carta do autor não teve resposta e a escritura de compra e venda foi celebrada, no dia a seguir ao envio de tal carta, por escritura de 25 de novembro de 2003.
Voltando à questão em causa: quiseram as partes, com a declaração de venda do prédio “livre de ónus e encargos”, extinguir a servidão existente a favor de cada um dos prédios dos AA.?
É certo que a exigência que, na 1ª fase das negociações havia sido rejeitada pela U (...) não coincidia inteiramente, nos termos da sua formulação, à questão levantada na última carta, enviada pelo Requerente F (…) no dia imediatamente à celebração da escritura: enquanto na carta de 22 de novembro de 2001 se propunha a “exclusão da venda” “das minas de água, poços e respetivas condutas que se encontram no prédio a vender, que servem a quinta dos proprietários a nascente da variante” (proposta que foi expressamente rejeitada), na carta de 24 de novembro já só se fala em “as minas, nascentes e poços, bem como as respectivas linhas que conduzem as águas para o prédio (inferior) do outro lado da estrada. Chamo a atenção para o facto de que devem as mesmas ser respeitadas”.
De qualquer modo, os Requerentes não demonstraram que tal condição tenha sido aceite, sendo que, se estranha que tendo as negociações tido o seu início em 15 de maio de 2000 e tendo chegado a acordado quanto aos termos da venda, com a carta da T (...) de 5 de dezembro de 2001, na qual “aceita a venda a esta U (...) do terreno em epígrafe, pelo preço de 172.000.000, 00 €, livre de ónus e encargos”, e tendo sido celebrada quase 2 anos depois, os Requerentes, só no dia anterior à data designada pela escritura levantam a questão de se respeitar o aproveitamento das águas por parte dos Requerentes.
E, do teor dessas negociações ressalta que a expressão de procederem à venda “livre de ónus e encargos”, não resulta de uma referência genérica e habitual, que tenha ficado a constar da escritura pelo facto de constar de alguma minuta, mas que terá correspondido a uma exigência da Ré, como ficou claramente expresso na sua carta de 05-12-2001, pela qual deram por encerradas as negociações.
A servidão é definida por lei como “um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio (artigo 1543º Código Civil)”, é um direito real de gozo e que se encontra sujeito a registo.
É com este significado amplíssimo – abrangendo tanto os direitos reais limitados de gozo (como o é o direito de servidão), como os direitos reais de garantia, bem como certos direitos de crédito e determinados ditames de origem negocial, quando dotados de eficácia erga omnes (ex., arrendamento, preferência legal ou preferência convencional com eficácia real) – que o vocábulo “ónus” é utilizado nos artigos 905º, 906º, 907º, ns. 1 e 3, e 911º, nº1, do CC, bem como o nº1 do art. 838º, relativo à venda executiva[22].
Haverá que referir que, embora para efeitos de constituição de servidões por destinação de pai de família, a doutrina e a jurisprudência já se pronunciaram sobre o sentido da declaração “vendido livre de ónus e encargos”, considerando que tal declaração bastará para impedir que sobre ele se constitua uma determinada servidão[23].
Quanto à circunstância de, posteriormente à venda do prédio à Ré, os prédios dos Requerentes terem continuado a beneficiar de tais águas, se, à primeira vista, poderia indiciar a intenção por parte dos contratantes no sentido da manutenção da servidão, tal indício esfuma-se a partir do momento em que foi dado como provado que a Ré só começou a instalar serviços no terreno em 2014 e eu só então constatou a existência da bomba e que só em 2017 se apercebeu que a mesma estava em funcionamento, tendo então agendado uma reunião com os autores.
Por fim, atentar-se-á em que a pretensão dos Requerentes (a única que não foi objeto de indeferimento liminar), vai para além de um mero assegurar de uma invocada servidão de águas a favor dos prédios dos Requerentes, pedindo a condenação da Requerida “a retirar do poço da mina de água a bomba de água e cano acoplado que ali colocou para retirar água e retirar água que não é sua”.
A pretensão dos Requerentes assenta assim não só no pressuposto da existência de uma servidão de águas a favor de cada um dos seus prédios, mas ainda de que a requerida não teria direito à utilização das águas provenientes.
Ora, esta pretensão – de “não incluir na venda” “as minas de água, poços e respetivas condutas que se encontram no prédio a vender”, foi expressamente formulada pelos Requerentes nas negociações, perentoriamente recusada pela Requerida, através de um “Não são aceitáveis as condições propostas”.
A apelação será de improceder.
IV – DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente, e confirmando-se a decisão recorrida.

As custas da apelação serão suportadas pelos Apelantes.                      

                                                                          Coimbra, 11 de dezembro de 2018


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
1. A aquisição de uma servidão por constituição de pai de família ocorre automaticamente com a separação do domínio, desde que no documento formalizador da separação constar declaração de vontade incompatível com a constituição da servidão.
2. A declaração de venda “livre de ónus e encargos”, aquando da venda do prédio serviente por parte dos proprietários que, em simultâneo o eram dos prédios dominantes, em conjugação com os termos do processo negocial que a precedeu, pode ser entendida como renúncia ao direito de servidão.

Maria João Areias ( Relatora )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


[1] Rui Pinto e Cláudia Trindade, “Código Civil Anotado”, Vol. II (Artigos 1251º a 2334º), Coord. Ana Prata, Almedina 2017, p.416.
[2] Para a constituição de tal direito de servidão, Carlos do Nascimento Rodrigues exige ainda que “esses sinais tenham sido postos pelo antigo proprietário ou pelos seus antecessores” pressuposto este que, a nosso ver, se encontraria naturalmente implícito na existência de sinais ao tempo da separação –, artigo e local citados, p. 414.
[3] O alcance jurídico e prático desta ressalva cifra-se em que, embora se mostrem cumpridos os demais requisitos positivos, a transmutação, de situação de facto em situação de direito, não se verifica se, do documento formalizador do ato da separação, constar declaração de vontade que, interpretada segundo as circunstâncias concretas de cada caso, deva ser entendida como incompatível com o surgimento da servidão e, por isso, impeditiva da sua constituição – Augusto Penha Gonçalves, “Curso de Direitos Reais”, Universidade Lusíada, Lisboa 1992, p.462.
[4] “Carlos do Nascimento Gonçalves Rodrigues, Boletim da FDUC, Suplemento XII, Coimbra 1961, p.413.
[5] “Carlos do Nascimento Gonçalves Rodrigues, Boletim da FDUC, Suplemento XII, Coimbra 1961, p.413.
[6] Rui Pinto e Cláudia Trindade, obra citada, p.418. A servidão por destinação de pai de família, nas palavras de Augusto da Penha Gonçalves, constitui-se, ativa e passivamente, no próprio momento do ato da separação, em rigorosa conformidade com o conteúdo da serventia que, assim, de situação de facto se transmuta em situação de direito – “Curso de Direitos Reais”, Universidade Lusíada, Lisboa 1992, p.462.
[7] Neste sentido, Augusto Penha Gonçalves, obra citada, p. 474.
[8] Mário Tavarela Lobo, “Manual do Direito de Águas”, Vol. II, 2ª ed., Coimbra Editora 1999, p. 321.
[9] Artigo e local citados. p. 476.
[10] Artigo citado, p. 420.
[11] Defendendo opinião contrária e de que o “sentido” a que o artigo faz referência é o sentido pretendido pelo declaratário, encontrámos unicamente João de Castro Mendes, in “Teoria Geral de Direito Civil”, Vol. II, AAFDL, ed. revista de 1985, pág. 247 e 248.
[12] José Alberto Vieira, “Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil (arts. 217º a 295º)”, Coimbra Editora, pág. 43.
[13] Entre outros, José Alberto Vieira, “Negócio Jurídico, Anotação ao Regime do Código Civil”, Coimbra Editora, p.43.
[14] “Teoria Geral do Direito Civil”, II Fontes e Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5ª ed., Universidade Católica Editora, p. 447.
[15] “Negociação e Formação dos Contratos”, pág. 44.
[16] Obra citada, p. 450.
[17] Obra citada, págs. 44.
[18] “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. Atualizada, Coimbra Editora, págs. 448 e 450.
[19] “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Coimbra, 1987, pág. 313, nota (1).
[20] Obra citada, pág. 448.
[21] Evaristo Mendes e Fernando Sá, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Coord. de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, p.541. Em igual sentido, Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil”, II Fontes e Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, p. 445; José Alberto Vieira, obra citada, p. 46. Durval Ferreira, “Negócio Jurídico Condicional”, Almedina, pág. 103, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 223, nota 5, e Lebre de Freitas, segundo o qual, se o conhecimento da vontade real do declarante, inclusivamente para o efeito do art. 236º-2 CC constituiu matéria de facto, já a interpretação da vontade declarada, para fixação do seu sentido objetivo para um declaratário normal (sentido juridicamente vinculante), tem lugar perante o texto do documento, tratando-se então somente de aplicar os critérios interpretativos legais e assim se estando no domínio da questão de direito – cfr., “Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil”, Coimbra Editora 2002, pp. 218 e 219.
[22] Neste sentido, Manuel Henrique Mesquita, “Obrigações e Ónus Reais”, Coleção Teses, Almedina, Coimbra 1990, p. 411 e 412. Em igual sentido, a propósito do artigo 905º, CC, se pronunciam João Calvão da Silva, Compra e venda de Coisas Defeituosas, 5ª ed., Almedina, p.32, Jorge Morais de Carvalho, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Vol. I, Almedina 2017, p. 1118, e Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume II, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 203.
[23] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Volume III, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 635, e Acórdão do TRL de 21-12-2017, relatado por Anabela Calafate, disponível in www.dgsi.pt.