Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/09.6ZRCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: CRIMINALIDADE ORGANIZADA
PERDA A FAVOR DO ESTADO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIA
ARRESTO
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (1.º JUÍZO CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 7.º E 10.º DA LEI N.º 5/2002, DE 11-01 (SUCESSIVAMENTE ALTERADA PELOS SEGUINTES DIPLOMAS: LEI 19/2208, DE 21-04; DL 317/2009, DE 30-10; DL 242/2012, DE 17-11, E LEI 60/2013, DE 23-08)
Sumário: I - Não obstante o segmento inicial do n.º 2 do artigo 10.º da Lei 5/2002, de 11-01 - sucessivamente alterada pelos seguintes diplomas: Lei 19/2208, de 21-04; DL 317/2009, de 30-10; DL 242/2012, de 17-11, e Lei 60/2013, de 23-08 -, a expressão “a todo o tempo” deve entender-se limitada ao dia designado para a primeira data de julgamento.

II - Diversamente do que sucede com o arresto preventivo (cfr. artigo 228.º do CPP), o arresto previsto no art. 10.º da Lei 5/2002 é decretado independentemente da comprovação de um justificado receio de perda da garantia patrimonial.

III - Não padecem de inconstitucionalidade (material) os artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 5/2002.

IV - A competência subjectiva para o decretamento do arresto regulado no art. 10.º da Lei n.º 5/2002 depende da fase processual em que se suscita a oportunidade da decisão: até ao momento da remessa dos autos ao tribunal de julgamento, pertence ao juiz de instrução; a partir daí, cabe ao juiz de julgamento.

V - O valor referido nos artigos 7.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, da Lei 5/2002, constituindo um dos pressupostos do arresto, necessita de ser alicerçado em factos que o evidenciem.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

            1.         O Ministério Público (de futuro, apenas Mº Pº) deduziu acusação contra A..., e outra, imputando-lhe a autoria material de um crime de lenocínio, na forma continuada, previsto e punido (de futuro, apenas p. p.) pelo art. 170º nº 1 (até Setembro de 2007) e art. 169º nº 1 (posteriormente à entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04.09) e 30º nº 2, todos do Código Penal (de futuro, apenas CP).

            Aquando da dedução da acusação deduziu ainda incidente de liquidação, nos termos dos artigos 1º nº 1 al. i), 7º, 8º nº 1, 10º nº 1, 2, 3 e 4 da Lei nº 5/2002, de 11.01.

Posteriormente, requereu o arresto de bens do arguido, suficientes para garantir o montante de € 223.200,00 encontrado em sede de liquidação.

            2. Apreciando o pedido de arresto, a M.mª Juíza decidiu nos seguintes termos:

«1. No âmbito do Processo nº 22/09.6ZRCBR, foi, pelo Ministério Público deduzida acusação contra os arguidos A... e B... , imputando ao arguido A... a prática, em autoria material de um crime de Lenocínio, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 169°, nº 1 e 30°, nº 2 do Código Penal (punido pelo artigo 170, nº 1 do Código penal pelos factos praticados até Setembro de 2007), e à arguida B..., a prática, em autoria material de um crime de Lenocínio, na forma continuada, previsto e punido pelo artigo 169°, nº 1 e 30°, nº 2, ambos do Código Penal.

2. O Ministério Público procedeu à liquidação, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 7°, 8°, nº 1, 10°, nº 1, nº 2, nº 3 e nº 4 e artigo 1°, nº 1, al. i) da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro.

3. O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O Ministério Público tem legitimidade.

Não há nulidades ou questões prévias que cumpra apreciar.

4. Em face da prova testemunhal, em conjugação com a prova documental constante dos autos, resulta fortemente indiciada a factualidade imputada ao arguido na acusação deduzida pelo Ministério Público, tendo os arguidos auferido, com a imputada actuação ilícita a quantia global de € 223.200,00.

5. Subsunção jurídica

De acordo com o disposto no artigo 7°, nº 1 da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, em caso de condenação pela prática de crime referido no nº 1 da citada Lei, nos quais se inclui o crime de Lenocínio, e para efeito de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.

O Ministério Público, de acordo com o artigo 8° da citada lei, liquida, na acusação, o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado.

De acordo com o artigo 10º nº 1 da Lei vinda de referir, para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do artigo 7°, nº 1, é decretado o arresto de bens do arguido, sendo o arresto decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227° do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime, sendo aplicável, em tudo o que não contrariar a citada lei, o regime do arresto preventivo do Código de Processo Penal.

Foi requerida a procedência da liquidação e a declaração de perdimento a favor do Estado da quantia de € 223.200,00 (duzentos e vinte e três mil e duzentos euros).

6. Decisão

Face ao que fica dito supra, decide-se deferir ao requerido, decretando, ao abrigo dos artigos 391°, nº 2, 393°, nº 1 do Código de Processo Civil, 228° do Código de Processo Penal, e artigo 7°, n. ° 1 da Lei n. ° 5/2002, de 11 de Janeiro, o arresto dos bens identificados a fls. 21 (que se dão por integralmente reproduzidos), até garantia do montante em causa.».

3. Inconformado, recorre o arguido de tal decisão, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

            «1.º - A Lei n.º 5/2002, de 11.01, estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, em relação aos crimes que tipifica no seu artigo 1.º.

2º - Porém, especificamente em relação ao incidente de arresto previsto no artigo 10º ss do referido regime, não diz a lei, de forma expressa, quem será o juiz competente para a sua decisão.

3º - Contudo, uma coisa parece certa: esse juiz não poderá ser o Juiz de Instrução, uma vez que a prolação dessa decisão não cabe no âmbito das competências atribuídas ao Juiz de Instrução nos artigos 168.º, 169.º, 170.º e 287º, todos do C.P.P.

4º - E bem assim, porque, sendo aquela decisão tomada, necessariamente, depois de proferida a acusação, e por inerência depois de encerrado o inquérito, e fora do âmbito da instrução propriamente dita, aquela exorbita do momento e da fase processualmente própria de atuação do juiz de instrução.

5º - Pelo que, ao proferir a decisão sob recurso, a Sr.ª Juíza de Instrução violou as normas referidas em 3.º, o que, nos termos do disposto nos artigos 32º nº 1 e 119º al. e) ambos do C.P.P., implica a nulidade da decisão.

6º - Como é sabido, a Lei nº 5/2002 "estabelece um regime especial de perda de bens a favor do Estado", que consiste na presunção iuris tantum da origem ilícita dos bens de pessoas condenadas pela prática de certos crimes (descritos no art. 1º), com vista a proporcionar o confisco das presumidas vantagens de suposta atividade criminosa anterior

7º - Trata-se sem dúvida de uma verdadeira e própria presunção, pela qual certo facto, desconhecido e não comprovado (a ilicitude da origem de certo património), é inferido de outros factos, conhecidos e comprovados.

8º - Neste regime o que mais tem alarmado (com razão) a doutrina quando olha para este regime especial é a possível inconstitucionalidade das normas que "invertem o ónus da prova" (arts. 7 e 9 da Lei nº 5/2002), impondo ao arguido a prova da "congruência" do seu património (a prova da licitude dos seus bens e rendimentos) que, o Ministério Público indicou na liquidação que tiver feito.

9º - O que sempre constitui um atentado ao basilar privilégio de que goza o arguido, em processo penal, de não ter de contribuir para a sua incriminação, para além de também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo.

10º - Por isso, sempre terá que ser assegurado um processo equitativo, no sentido de a dita “liquidação” feita pelo Ministério Público, permitir ao arguido exercer o seu direito de defesa e o contraditório (tanto mais que sobre ele recaí um ónus de prova, apesar da sua duvidosa constitucionalidade).

11º - Isto significa que, a liquidação do montante apurado como devendo ser arrestado e mais tarde perdido a favor do Estado (art, 8º nº 1 da Lei n" 5/2002) - tal como a posterior (se for o caso) condenação a declarar o valor que deve ser perdido (art. 12 nº 1 da mesma lei) - que assenta num "juízo de prognose para o passado terá de ser feita com recurso a factos concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, de modo a perceber-se que é a diferença entre um e outro (a diferença entre o valor do património global e o valor do património lícito) que se presume constituir vantagem da atividade criminosa, ou seja, o tal património incongruente (art. 7 nº 1 da mesma lei).

12º - Assim, quer a liquidação, quer o pedido de arresto, quer a condenação, não podem ser feitas de forma arbitrária, sem fados concretos e objetivos, descrevendo o respetivo património global do arguido, bem como o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito, sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, o que sempre constituiria frontal violação do disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1,2 e 5 da CRP.

13º - E o que se diz para o Ministério Público na liquidação, diz-se para o Juiz que decide o arresto ou determina a perda de bens, sob pena sob pena de não se assegurar o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório e também ofender outros princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo, assim violando o disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º nº 1, 2 e 5 da CRP.

14º - No caso em apreço, a alegação do Ministério Público, quer na acusação quer na liquidação, para onde remete a decisão recorrida - ou por ser omissa quanto a factos essenciais ou por se ficar pela alegação de expressões meramente conclusivas e sem substrato fáctico que permita concretiza-las e exercer quanto a elas qualquer contraditório próprio do exercício de um direito de defesa - não cumpre aquele dever de alegação de factos concretos e objetivos, referido supra, que permitam perceber como foi calculado o valor do respetivo património global do arguido (na aceção do artigo 7.º da Lei), e bem assim o valor da parte que é congruente com o seu rendimento lícito.

15º - A título de exemplo, apontamos para o ponto 13.º do incidente de liquidação, onde Ministério Público, quando procura demonstrar o “rendimento congruente (lícito) do arguido” remete para um quadro que, alegadamente estará a fls.785 dos autos.

16º - Porém, esse quadro não consta da acusação, não consta da liquidação e não consta de decisão impugnada e é em absoluto desconhecido do arguido.

17º - Por isso, a falta, quer na decisão recorrida, quer na liquidação, quer na acusação um dos termos de comparação que permite determinar qual o valor do património ilícito do arguido, e que permita ao arguido apreciar os termos em que o Ministério Público calculou o seu rendimento licito em ordem a exercer o seu direito ao contraditório como parte do seu direito de defesa.

18º - Na liquidação efetuada pelo Ministério Público, este arranca da alegação feita na acusação, e que serve de base de cálculo, que consiste na presença no apartamento do arguido de 6 mulheres por dia (todos os dias do ano, de dia e de noite, durante 7 anos, incluindo natais e fins de ano).

19º - Porém, o Ministério Público não concretiza quais as mulheres que ali estiveram durante todo esse período de tempo, por forma a ser possível perceber se efetivamente foram sempre - de dia e de noite - seis mulheres que ali permaneceram, e a permitir ao arguido contraditar essa acusação.

20º - Antes pelo contrário, limita-se a descrever o nome de duas ou três das mulheres que ali foram identificadas, e remete-se para expressões inconclusivas e não concretizadas, que não permitem ao arguido exercer o seu direito ao contraditório de defesa.

21º - De resto, é o próprio Ministério Público que admite que as mulheres que poderão ter passado pelo apartamento é “em número desconhecido e cuja identidade não foi possível apurar, dado que de um modo geral, cada uma exercia ali a atividade por um curto período temporal" (cf. ponto 22 da acusação).

22º - E por isso decisão recorrida, ao estribar-se numa acusação e numa liquidação feita pelo Ministério Público, omissa de factos essenciais e repleta de conclusões e conjeturas, não se assegura o direito a um processo justo e equitativo, nem as próprias garantias de defesa do arguido, incluindo o direito ao contraditório, e ofende princípios básicos, como por exemplo o da presunção de inocência e o do in dubio pro reo, assim violando o disposto nos arts. 20.º nº 4 e 32.º, nºs 1, 2 e 5 da CRP, sendo por isso nula, ou devendo, por inconstitucional, ser revogada, e substituída por outra que indeferida o requerimento de arresto apresentado pelo Ministério Público.

23º - E isto porque, todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão mediante processo equitativo; em que lhe sejam asseguradas todas as garantias de defesa, incluindo o recurso; não se olvidando que o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.

24º - Por outro lado, o processo criminal tem estrutura acusatória, estando os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.

25º - No caso em apreço, pelas razões expostas de 6.° a 22.º, a decisão recorrida não respeita estes princípios basilares do processo penal constitucional.

26º - Na ânsia de conseguir uma base de cálculo o mais alargada possível, numa lógica de "quanto mais melhor" o Ministério público, quer na acusação, para onde remete no incidente de liquidação, quer no próprio incidente de liquidação, acaba por cair em incongruências e a alegação de factos falsos, que revela as fragilidades e inverosimilhança do cálculo efetuado.

27º - Existem nos autos provas que demonstram que o regime de turno rotativo composto por 6 ou 7 mulheres que se prostituíam todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos, desde 2006 a 2013,ou nunca existiu; ou se existiu, pode bem suceder que não tenha sido o arguido a instituí-lo; que as raparigas não usavam os quartos do apartamento do arguido só ou apenas para a prática da prostituição; e bem assim que essa regularidade - dois turnos, três mulheres por turno, todos os dias da semana, todos os meses do anos, e todos os anos, não corresponde à verdade do sucedido.

28º - E todavia, o Ministério Público serve-lhe dessa presunção teoréticas e infundada como base de cálculo da sua liquidação, a qual acabou por ser assumida acriticamente pela decisão recorrida na remissão que faz para os termos daquela liquidação.

29º - Falhando o cálculo do valor do património do arguido, na aceção do artigo 7.º, n. 2 da Lei n.º 5/2002, de 11.01; e bem assim, sendo a liquidação omissa acerca do cálculo do património lícito do arguido, não poderia a Sr.ª Juíza de Instrução ter confiado naquela liquidação e decretado o arresto que lhe era requerido, e antes deveria tê-lo indeferido.

30º - Ao não ter procedido dessa forma a decisão recorrida violou o disposto no artigo 7.º, ex vi artigo 10.º, n.ºs 1, 2 e 3, ambos da Lei n.º 5/2002, de 11.01.

31º - A decisão recorrida deixou-se inquinar dos vícios apontados á liquidação e à acusação nos termos referidos em 2.2.2., porque não fez qualquer analise critica da prova arrolada pelo Ministério Público com vista a fixar a matéria de facto provada e não provada.

32.º - E por isso, a referida decisão é nula.

33º - A Lei nº 5/2002 "estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado" (o que decorre desde logo do nº 1 do seu art. 1º), relativamente a um "catálogo de crimes" que indica, sendo um deles (alínea m) do nº 1 do mesmo artigo 1) o de lenocínio, mas neste caso (tal como os restantes indicados nas alíneas j) a m) do referido art. 1), se o crime for praticado "de forma organizada".

34.º - Ou seja: não basta a simples prática do crime de lenocínio para se aplicar o referido regime especial, sendo antes necessário que se prove que o mesmo foi praticado de forma organizada, não se podendo confundir essa exigência legal - a da prática do crime de forma organizada - com a "atuação profissional", que é elemento típico do crime de lenocínio.

35º - No caso em apreço, basta ler os termos em que está feita a acusação e a subsequente liquidação, ambas vistas à luz das incongruências referidas em 2.2., para se concluir que, a ter sido cometido algum crime de lenocínio pelos arguidos – o que não se concede - essa prática não teve o tipo de organização e sofisticação pressuposta pelo legislador quando criou o regime especial da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro.

36º - E como tal, na falta deste pressuposto legal - o da prática organizada do crime imputado aos arguidos - que não se confunde nem com profissionalismo, nem com reiteração, não deveria o Ministério Público ter feito uso deste especial regime previsto na Lei n.º 5/2002,de 11.01, promovendo a liquidação e o arresto que lhe serve de garantia, nem a Sr.ª Juíza de Instrução deveria ter deferido o arresto que lhe foi requerido com base no aludido regime.

37º - Ao faze-lo, a decisão impugnada é ilegal, por violadora do disposto no nº 1 do artigo 1º da Lei nº 5/2002,de 11.01, e como tal deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o requerimento do Ministério Público.

Assim, tudo visto e ponderado, de facto e de direito, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que, ou julgue legalmente inadmissível a aplicação ao caso do regime excecional previsto nos artigos 7.º e ss. da Lei n.º 5/2002, de 11.01, por falta dos pressupostos ali previstos para o efeito; ou julgue o requerimento de arresto do Ministério Público apresentado á Sr." Juíza de Instrução, se fará justiça!»

4. O Mº Pº em 1ª instância não respondeu.

Já neste Tribunal da Relação, a Ex.mª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumprido o art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal(de futuro, apenas CPP), o arguido reiterou o seu requerimento de recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

5. O MÉRITO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 412º nº 1 do CPP. [[1]]

Perante a decisão recorrida, atrás transcrita, suscitam-se como QUESTÕES A RESOLVER:

  • Inconstitucionalidade dos arts. 7º e 9º da Lei nº 5/2002, por violação de direitos e garantias constitucionais de defesa do arguido
  • Se o juiz de instrução era incompetente para a decisão e, em caso afirmativo, quais as consequências legais
  • Nulidade da decisão por omissão de factos e falta de análise crítica
  • Omissão dum pressuposto legal para o arresto

5.1. OBSERVAÇÕES PRÉVIAS

Comecemos por analisar o regime traçado pela Lei nº 5/2002, de 11.01 (com as alterações decorrentes da Lei nº 19/2008, de 21.04), que estabelece um “regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado” relativamente a determinados crimes, aí especificados.

Um dos crimes aí previstos é o de lenocínio [art. 1º nº 1 al. i)].

No caso destes crimes, ditos de catálogo, a lei estabelece uma presunção iuris tantum [[2]]: “presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (art. 7º nº 1).

E, mais do que isso, estabelece critérios para se chegar a tal valor, elencados nos nº 2 e 3 desse art. 7º, considerando património do arguido:
· o conjunto dos bens que estejam na sua titularidade, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
· o conjunto de bens que tenham sido transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
· o conjunto de bens recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como tal, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
· consideram-se sempre como vantagens de actividade criminosa os juros,  lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111º do CP.

Esse valor patrimonial é liquidado pelo Mº Pº aquando da dedução da acusação ou até ao 30º dia anterior à primeira audiência de julgamento, podendo ser também alterada até esta data (art. 8º nº 1 a 3).

Quer a liquidação, quer a sua alteração, são notificadas ao arguido, que pode responder na contestação à acusação ou em 20 dias após a liquidação, se esta for posterior (art. 8º nº 4 e 9º nº 4).

O arguido pode então demonstrar a origem lícita desse património (art. 9º nº 1).

Por fim, para garantia do montante liquidado, pode o Mº Pº, a todo o tempo, requerer o arresto de bens do arguido em valor correspondente (art. 10º nº 1 e 2).

Deste conjunto de preceitos, cremos resultar clara a existência de dois incidentes que, ainda que interligados, são autónomos e com finalidades diversas.

Assim, o incidente de liquidação:
1) tem de ser deduzido na acusação ou até 30 dias antes da data designada para a primeira audiência de julgamento
2) tem uma natureza descritiva, no sentido de que o Mº Pº apenas tem que alegar/elencar:
a) qual o rendimento que advém ao arguido de actividades lícitas
b) e qual o valor de todos os bens, rendimentos e outras vantagens/benefícios que estejam na sua titularidade (ou tenha o seu domínio ou benefício) à data da constituição como arguido ou posteriormente, bem como o que ele tenha transferido para terceiros nos 5 anos anteriores ou que tenha recebido no mesmo período

Posteriormente, será o Tribunal a estabelecer a conexão entre ambos, de forma a poder concluir se a diferença entre um e outro é congruente com o rendimento lícito do arguido.

Já o incidente de arresto, diz a lei poder ser deduzido “a todo o tempo” (art. 10º nº 2).

Consideramos porém que a lei necessita aqui de uma interpretação restritiva, no sentido de se entender a expressão “a todo o tempo” como até à data designada para a primeira data de julgamento.

Na verdade, o arresto destina-se a garantir o pagamento do valor da “diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito” (art. 10º nº 1 e 7º nº 1), valor esse que tem de ser liquidado nos termos do nº 2 do art. 8º, liquidação essa que o Mº Pº apenas pode fazer até à data designada para a primeira data de julgamento (art. 8º nº 1 e 2).

Portanto, se para acionar o arresto o Mº Pº necessita de ter já esse valor liquidado, e se só pode fazer a liquidação até à data designada para a primeira data de julgamento, este momento deverá servir como preclusão do direito, sob pena de se desvirtuar a cominação do art. 8º nº 1 e 2.

Acresce que a perda de bens a favor do Estado tem de ser decretada na sentença condenatória, pelo que o arresto (medida cautelar de natureza preventiva), tem de lhe ser naturalmente anterior.

O art. 10º da referida Lei regula assim o arresto:

1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do nº 1 do artigo 7º, é decretado o arresto de bens do arguido.

2 - A todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa.

3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.

4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.

Este regime diferencia-se, em vários aspectos, do arresto preventivo previsto no art. 228º do CPP.

Assim, o arresto preventivo do art. 228º do CPP
• Pode ser requerido pelo Mº Pº ou pelo lesado
• Tem como fundamento a não prestação da caução económica fixada
• Pode estar em causa qualquer tipo de crime
Como refere Germano Marques da Silva [[3]]: «O arresto preventivo tem natureza subsidiária relativamente à caução económica e por isso só pode ser decretado quando não tenha sido prestada a caução económica anteriormente imposta e é revogado logo que seja prestada a caução (…).».

            Assim sendo, temos de concluir que o arresto preventivo previsto no art. 228º do CPP tem também como fundamento/pressuposto a existência de “fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento (…) de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime (…)”, pois este é um requisito fundamental à caução económica e o arresto preventivo depende da não prestação desta.

            Já o arresto previsto no art. 10º da Lei nº 5/2002
• Só o Mº Pº tem legitimidade para o requerer
• Tem como fundamento acautelar que as “vantagens da actividade criminosa”, para efeito de posterior perda a favor do Estado
• Só para os crimes elencados no art. 1º da Lei 5/2002 e Lei 36/94

Portanto, aqui não se trata de acautelar o património do devedor para que de futuro se possa saldar um crédito.

Na hipótese do art. 10º da Lei nº 5/2002 não há qualquer crédito a acautelar. Do que se trata aqui é de preservar um património que, no pressuposto de ter proveniência ilícita, se pretende de futuro declarar perdido a favor do Estado, em conexão com o art. 111º nº 2 e 3 do CPP.

Ora, a perda de bens que tenham sido adquiridos ilicitamente constitui «(…) uma providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança. Análoga, pelo menos, no sentido em que é sua finalidade prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito; e que, por isso mesmo, esta instauração se verifica com inteira independência de o agente ter ou não actuado com culpa.». [[4]]

Cabe então perguntar: a presunção estabelecida no art. 7º nº 1, a obrigar o arguido à demonstração da proveniência lícita dos seus bens, contende com os princípios constitucionais da presunção da inocência ou do seu corolário in dubio pro reo?

5.2. (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 7º E 9º DA LEI nº 5/2002 (conclusões 6ª a 13ª)

Atendendo à presunção iuris tantum atrás referida, com a consequente inversão do ónus da prova, invoca o Recorrente a inconstitucionalidade desses preceitos, com fundamento na violação dos princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo.

O art. 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa (de futuro, apenas CRP) consagra como direito fundamental o de que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.

Como referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, não sendo “fácil determinar o sentido do princípio da presunção de inocência do arguido”, dúvidas não haverá de que deve fazer parte do seu conteúdo a “proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido”. [[5]]

É preciso também ter-se também em conta que “direito fundamental” não é sinónimo de “direito absoluto”.

Isso mesmo se extrai do art. 18º nº 2 da CRP: os direitos, liberdades e garantias podem ser restringidos nos casos expressamente aí previstos, por virtude da necessidade de salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Os crimes de catálogo previstos na Lei nº 5/2002 integram um tipo de criminalidade muito específica, quer pelas dificuldades de investigação ao nível da obtenção de prova, quer por se tratar de actividades criminosas que se protelam no tempo, seja pelos efeitos perniciosos para os valores sociais, seja pelos consabidos grandes lucros que geram.

Atentos estes aspectos da realidade, cremos não ser uma medida excessiva ou desproporcionada impor a um cidadão o ónus de provar a origem lícita do seu património.

Por isso, com José M. Damião da Cunha, «Julgamos que a gravidade e o desafio que o tipo de criminalidade em causa coloca ao Estado de Direito democrático pode justificar alguma limitação a esses princípios tradicionais. Mas, como sempre, julgamos que isso não deve implicar uma “abolição” desses princípios, mas tão só uma restrição “adequada” e constitucionalmente fundamentada.». [[6]]

Sobre o tema, já o Tribunal Constitucional (TC) se pronunciou nos seguintes termos: «Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como consagrados no artigo 32º, n.º 2, da Constituição.

Não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos princípios enunciados, e aceitando que este possa representar, no ponto em que mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar como elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186º, se venha a determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos probatórios, quer porque, na decisão final, se considere não verificada a prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos.». [[7]] [[8]]

Oferece-se-nos que a dita inversão do ónus da prova seria intolerável no domínio da prova da culpabilidade, ou seja, do cometimento do crime.

Mas, no caso não estamos perante uma decisão final, uma sentença condenatória.

Estamos no âmbito de um procedimento cautelar que, como se sabe, é puramente instrumental relativamente à decisão a proferir na ação principal e em que, acima de tudo, “nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final (…), têm qualquer influência no julgamento da ação principal” (art. 364º nº 4 do CPC).

«Com efeito, e no pressuposto de que esta sanção não é penal e que o processo autónomo em que ela é aplicada não é processo penal, não nos parece existir qualquer inconstitucionalidade quando se imponha ao condenado um certo dever probatório, conquanto que isto não implique a transferência integral de todo o ónus probatório.». [[9]]

Posto é que - como refere o Recorrente nas suas conclusões 10ª a 13ª, entendimento a que damos inteiro acolhimento -, não se esqueça que o “constrangimento” ou compressão dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo só ganha legitimação desde que efectuado na justa medida dos princípios da adequação e da proporção entre os fins visados pela norma, por um lado, e o mínimo de beliscadura nos direitos fundamentais atingidos, por outro lado.

Quer-se com isto referir que os direitos do contraditório e a uma defesa eficaz não podem resultar minimamente beliscados.

Nesta perspectiva, e com o enquadramento exposto, entendemos não se verificar a inconstitucionalidade dos referidos preceitos da Lei nº 5/2002.

5.3. NULIDADE DA DECISÃO POR INCOMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO (conclusões 1ª a 5ª)

Trata-se de saber qual é o juiz competente para apreciar o incidente de arresto previsto no art. 10º da Lei nº 2/2002, de 11.01.

O Recorrente entende não poder ser o Juiz de Instrução, por tal não estar previsto nos artigos 168.º, 169.º, 170.º e 287º do CPP, seja porque, no caso em concreto, tal decisão foi tomada já após a dedução da acusação.

Antes de mais, compete registar que certamente houve lapso de escrita na indicação dos preceitos legais, uma vez que nenhum dos referidos artigos se reporta à competência, seja do juiz de instrução, seja de qualquer outro.

Como segundo apontamento, e segundo se colhe dos autos:
· o Mº Pº procedeu à liquidação concomitantemente com a acusação do arguido, nos termos do art. 8º nº 1 da Lei nº 5/2002, de 11.02
· o arguido, ora Recorrente, requereu abertura de instrução.

Resulta da conjugação dos arts. 283º, 286º e 287º nº 1 do CPP que, uma vez deduzida a acusação, o processo deve aguardar por 20 dias a eventualidade de o arguido, ou o assistente, requerer a abertura de instrução.

Só após esse período de 20 dias, ou após um despacho de pronúncia, os autos podem e devem ser remetidos ao juiz de julgamento: art. 311º do CPP.

Portanto, mesmo no caso de não ter sido deduzido requerimento de abertura de instrução, os autos devem aguardar 20 dias, contados da notificação da acusação, antes de serem remetidos ao juiz de julgamento.

O art. 17º do CPP regula a competência do juiz de instrução, em termos de lhe competir “proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento”.

Ou seja, até à remessa dos autos a julgamento, qualquer questão que contenda com decisão jurisdicional terá de ser proferida pelo juiz de instrução, como será o caso, por exemplo, do reexame dos pressupostos da prisão preventiva se o prazo legal para o efeito coincidir com esse período de 20 dias.

Indubitavelmente que um arresto só pode ser decretado por um juiz, e isso mesmo refere o art. 10º nº 3 da referida Lei nº 5/2002.

Saber qual o juiz competente para o efeito dependerá da fase processual em que se suscita a oportunidade da decisão: até ao momento da remessa dos autos ao tribunal de julgamento, a competência é do juiz de instrução; a partir desse momento, a competência é do juiz de julgamento.

No caso, o processo ainda não havia sido remetido a julgamento, encontrando-se a aguardar o prazo de 20 dias sobre a acusação.

A decisão do arresto estava, portanto, sob a alçada da competência do juiz de instrução.

Concluindo, não se verificou violação das regras de competência do juiz nem a consequente nulidade insanável prevista no art. 119º al. e) do CPP.

5.4. NULIDADE DA DECISÃO POR OMISSÃO DE FACTOS E POR FALTA DE ANÁLISE CRÍTICA (conclusões 14ª a 32ª)

Um dos requisitos duma sentença é a «(...) fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal»: art. 376º nº 2 do CPP.

            A relevância de tal fundamentação fica demonstrada com o facto de a lei cominar com a nulidade a sentença que não obedeça a tal comando: art. 379º nº 1 al. a) do CPP.

            Na verdade, no tocante à matéria de facto, o julgador terá de referir-se a todos os factos alegados, dando-os por provados ou não provados, bem como ponderar e valorar todas as provas produzidas.

            Nessa ponderação e valoração da prova entendeu a lei conferir-lhe liberdade de apreciação.

Mesmo que o CPP não o referisse, essa necessidade de fundamentação resultaria, por imposição directa, do art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP): as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

Com a exigência de fundamentação, pretende-se garantir o mérito e a legalidade dos actos dos magistrados, bem como o respectivo controlo.

            Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do acto.

            Só uma clara explicitação de quais as razões e qual o raciocínio seguido para se decidir num ou noutro sentido, permitem ao cidadão (seu primeiro destinatário) ficar munido dos elementos essenciais para poder impugnar a decisão: só sabendo quais os factos concretos considerados, ele pode argumentar se eles se verificam ou não; só conhecendo os critérios valorativos do julgador sobre esses factos, ele pode discuti-los, apresentar outros ou até valorá-los doutra forma.

Da mesma forma, só em função dessa explicitação dos factos e dos motivos/razões fica o Tribunal de recurso habilitado a exercer a sindicância do bem ou mal julgado.

            Pretende-se, portanto, que fique bem claro não só “o que” o juiz decidiu, mas também quais os motivos, o “porquê” de ter decidido nesse sentido.

            E nesse “porquê” se cifra, afinal, a análise crítica da prova.

           

O Recorrente ataca a decisão numa dupla vertente: omissão de factos e de análise crítica da prova.

Seja no âmbito do processo civil, seja no processo penal, é absolutamente necessário que na decisão se indique os factos provados e não provados (ainda que indiciariamente, como compete aos procedimentos cautelares), bem como a análise crítica das provas: art. 362º nº 1, 365º nº 1, 295º (ex vi do art. 365º nº 3) e 607º nº 2, 3 e 4 (ex vi do art. 295º), todos do CPC, bem como arts 194º nº 6 al. a) e 374º nº 2 do CPP.

No caso, estamos perante um regime especial, regulado na Lei nº 5/2002, sendo que o art. 10º nº 3 apenas refere: “O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime”.

O preceito nada diz quanto aos requisitos da sentença, antes remetendo para as regras do processo penal (nº 4) que, como já vimos, impõe a indicação dos factos provados e não provados, bem como a análise crítica das provas.

À primeira vista poderia parecer que o juiz apenas teria de olhar aos “indícios da prática de crime”.

Mas tal não se afigura ser a interpretação mais correcta.

Como pensamos ter deixado claro no ponto 5.1. desta peça, não se pode esquecer que o arresto está em íntima conexão com o incidente da liquidação.

Como aí se disse, o arresto destina-se a garantir o ”pagamento do valor determinado nos termos do nº 1 do art. 7º”.

Para acionar o arresto o Mº Pº necessita de ter já liquidado esse valor (art. 10º nº 1 e 7º nº 1), o que é feito através do incidente de liquidação.

Esse “valor” constitui, portanto, mais um dos requisitos ou pressupostos do arresto.

E como qualquer requisito/pressuposto, também este necessita de ser estribado em factos para se demonstrar a sua ocorrência.

Acresce ser necessária a alegação/demonstração do requisito de existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo.

Para chegar a uma tal conclusão, o juiz tem de referir quais os factos considerados (de entre os alegados), bem como a ponderação de provas que indiciariamente os sustentem (análise crítica)?

Como atrás se referiu, o “constrangimento” dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo só ganha legitimação desde que efectuado na justa medida dos princípios da adequação e da proporção entre os fins visados pela norma, por um lado, e o mínimo de beliscadura nos direitos fundamentais atingidos, por outro lado.

Ou seja, não se pode descurar a inteira observância do princípio do contraditório(aqui ainda de maior relevância, atenta a inversão do ónus da prova) para se assegurar uma defesa eficaz ao arguido (a exercer, querendo, na oposição ao arresto decretado, nos termos do art. 366º nº 2 e 6 do CPC).

Voltando então à decisão recorrida, temos que aí apenas se diz: «4. Em face da prova testemunhal, em conjugação com a prova documental constante dos autos, resulta fortemente indiciada a factualidade imputada ao arguido na acusação deduzida pelo Ministério Público, tendo os arguidos auferido, com a imputada actuação ilícita a quantia global de € 223.200,00.».

Aceita-se que uma decisão proferida num procedimento cautelar não tenha o mesmo grau de exigência de fundamentação e/ou de exaustiva análise das provas apresentadas.

Contudo, os factos considerados assentes têm de ser expressamente descriminados, sendo inaceitável uma simples remissão (sem sequer se aludir aos números ou letras sob que cada facto é alegado nessa acusação) para o que consta da acusação (onde, não se esqueça também, podem existir conclusões de facto e/ou direito, que ao juiz compete expurgar).

«I - Não satisfaz os requisitos do artigo 374 n 2 do Código de Processo Penal - enumeração dos factos não provados - a remissão confusa para linhas e artigos de diversas peças processuais.

 II - Isto, porque este preceito obriga a uma indicação completa e inteligível, sem necessidade de recurso a quaisquer outras peças processuais, dos factos cuja enumeração é exigida por lei.». [[10]]

No caso, há pois que concluir ser a decisão recorrida totalmente omissa quanto à indicação dos factos que considerou indiciariamente provados (atento o grau de probabilidade inerente aos procedimentos cautelares).

O mesmo se diga quanto à análise crítica dos meios de prova apresentados.

Dizer-se que se consideram provados os factos em função da “prova testemunhal, em conjugação com a prova documental constante dos autos” é totalmente inócuo, na medida em que deixa o cidadão e o Tribunal de recurso na completa ignorância de qual a relevância e credibilidade conferida aos elementos de prova, bem como do raciocínio lógico subsumptivo seguido.

            «O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.». [[11]]

«I - Na fundamentação da sentença, em processo penal, não basta a indicação das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, mas fundamentalmente a expressão, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto, que fundamentaram a decisão.». [[12]]

            Sendo que, esses motivos de facto que devem constar da fundamentação, «(…) não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.». [[13]]

Concluindo, a decisão recorrida é totalmente omissa quanto análise crítica dos meios de prova apresentados e tidos em consideração.

Essa omissão dos factos e da análise crítica acarreta o vício de insuficiência de fundamentação e de análise crítica da prova, com a consequente nulidade da sentença que decretou o arresto: art. 374º nº 2 e 379º nº 1 al. a) do CPP.

           

            Face ao que acaba de se decidir, fica prejudicado (nos termos do art. 608º nº 2 do CPC, ex vi do art. 4º do CPP) o conhecimento da questão atinente à omissão/inexistência de um dos pressupostos legais do arresto, a que aludem as conclusões de recurso nº 33ª a 37ª.

III. DECISÃO

6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção da Relação de Coimbra em declarar nula a decisão recorrida, por inobservância do disposto nos art°s. 374º, n.º 2, e 379º n.º 1, al. a), do CPP, a qual deverá ser reformada pelo mesmo Tribunal, de forma a suprir o apontado vício de falta de fundamentação/análise crítica da prova.

Sem tributação, atento o provimento do recurso (art. 513.º, n.º 1, do CPP).

                                                                                 

Coimbra, 3 de Dezembro de 2014                                                   

(Isabel Silva - relatora,)

(Alcina da Costa Ribeiro - adjunta)


      [[1]] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 12.09.2007 (processo 07P2583), disponível em http://www.dgsi.pt/, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «III - Como decorre do art. 412.º do CPP, é à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, ou seja, o cerne e o limite de todas de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso estão contidos nas conclusões, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
                IV - As possibilidades de cognição oficiosa por parte deste Tribunal verificam-se por duas vias: uma primeira, que ocorre por necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida previstos no art. 410.º, n.º 2 do CPP, e uma outra, que poderá verificar-se em virtude de nulidade da decisão, nos termos do art. 379.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.».
[[2]]Na medida em que pode ser ilidida por prova em contrário, como resulta do art. 9º nº 1 a 3 da mencionada Lei (cf., também, art. 350º nº 2 do CC).
[[3]] in “Curso de Processo Penal”, II, Verbo, nova edição revista, 2008, pág. 373.
[[4]] Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 3ª reimpressão, pág. 638, § 1014. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 315, bem como José M. Damião da Cunha, “Perda de Bens a Favor do Estado: Artigos 7º-12º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro – Medidas de Combate à criminalidade organizada e económico-financeira”, Centro de Estudos Judiciários, também publicado pela Coimbra Editora, pág. 20.
.
[[5]] In “Constituição da República Portuguesa, Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 518.
[[6]] In obra citada, pág.

[[7]] Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) nº 294/2008, de 29.05.2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt

[[8]] No mesmo sentido já se pronunciou também o STJ: acórdão de 12.11.2008 (processo 08P3180).
[[9]] José M. Damião da Cunha, obra citada, pág. 43.

[[10]] In acórdão do STJ, de 27.10.1994 (processo 046603, nº do Documento: SJ199410270466033). Ou, como se pode ler no acórdão do mesmo STJ, de 15.02.1995 (processo 048194, nº do Documento: SJ199506290481943): «III - Enumerar é mencionar os factos, um a um, e não fazer mera remissão para a acusação ou pronúncia».

      [[11]] Acórdão do STJ, de 25.01.2006 (processo 05P3460). No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 07.04.2011 (processo 450/09.7.JAAVR.S1).

[[12]] In acórdão do STJ, de 18.12.1991 (processo 042261, nº do Documento: SJ199112180422613).
      [[13]] Marques Ferreira, “Meios de Prova”, in “Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 1989, pág. 229/230.