Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/08.4TBVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
IMOBILIZAÇÃO DO VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: VILA NOVA DE FOZ-CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 566.º, 2; 563.º, 3 1305.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: A mera privação do uso do veículo sinistrado, mesmo sem a demonstração da sua negativa repercussão no acervo patrimonial do lesado, é susceptível de fundar a obrigação de indemnização, mesmo que, em concreto, não se tenha provado que dessa privação resultou o específico prejuízo patrimonial invocado.
Decisão Texto Integral:          Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


         A.... intentou, em 7 de Fevereiro de 2008, contra “B....Companhia de Seguros, S.A.” a presente acção com processo sumário, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 29.680,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
         Alega que, em consequência de um acidente de viação ocorrido no dia 8 de Maio de 2005, da responsabilidade do segurado da ré, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais: danos no veículo cuja reparação ascendeu ao valor de € 2070,00;
danos com a provação do uso do veículo (que quantifica no valor de € 25.100,00 - 1004 dias x € 25,00 = € 25100,00) com a privação do uso da sua viatura, imobilizada desde a data do embate até à apresentação em juízo da petição, já que utilizava diariamente essa viatura para satisfazer as suas necessidades de deslocações profissionais e pessoais e passou a socorrer-se dos veículos de pessoas amigas e dos transportes públicos; a desvalorização comercial do seu veículo no valor de € 1.000; e angústia, dor e desespero com o embate, que ainda hoje o fazem ter receio de conduzir, para o que pede uma indemnização no valor de € 1.500,00.
         Contestou a ré “ B...Companhia de Seguros, S. A.”, impugnando a versão do acidente e os danos alegados.
         Efectuado julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto, que não sofreu qualquer reclamação.

          Seguiu-se a sentença que concluiu assim:

          “Em face do exposto, julgo a acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

            a) Condeno a ré “ B...Companhia de Seguros, S. A.” a pagar ao autor A...:

            - A quantia de € 1.040,00 (1/2 de € 2080,00), a título de danos patrimoniais emergentes sofridos pelo autor;

            - A quantia de € 4.532,00 (1/2 de € 9.064,00), a título de danos causados ao autor pela privação do uso do veículo PI-23-13;

            - Os juros de mora devidos sobre as quantias supra descriminadas, calculados à taxa legal de 4% desde a citação da ré até integral pagamento (cfr. Portarias n.º 291/03, de 08.04).

            B) Absolvo a ré “ B...Companhia de Seguros, S. A.” do pagamento ao autor da quantia de € 1.000,00, a título de desvalorização comercial do veículo PI-23-13.

            C) Absolvo a ré “ B...Companhia de Seguros, S. A.” do pagamento ao autor da quantia de € 1.500,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo autor.

            Custas pelas partes, na proporção dos respectivos decaimentos (cfr. artigo 446º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

            Registe e notifique.”

         Desta decisão interpôs a ré recurso de apelação, rematando a respectiva alegação com as seguintes conclusões:

            “A) O Tribunal Recorrido, condenando a Ré a pagar ao Autor 1133 dias de paralisação quando este pede na acção 1004, decide para além do pedido, o que determina a nulidade da sentença — art 668 n° 1 ai e) C.P.C.

            B) do documento dois junto pelo A com a petição inicial, consta que a peritagem ao veículo foi efectivada condicionalmente em 2 1/09/2005, pelo facto de a culpa na produção do acidente ser discutível, facto que veio a ficar demonstrado na sentença recorrida quando repartiu a culpa a 50% entre Apelante e Apelado

            C) A partir da peritagem efectivada em 21/09/2005 o A poderia mandar reparar o veículo, podendo nesta acção vir a peticionar juros de mora sobre o valor que pagasse pela mesma.

            D) Ao ser fixado judicialmente o período de paralisação, o mesmo deveria conter-se ao espaço temporal objectivo desde 8/05/2009 até 2 1/09/2005, ou seja 176 dias, a que acresceria o tempo da reparação que equitativamente se deveria fixar em cinco dias atentos os poucos danos demonstrados nos autos.

            E) Assim, obteríamos um período de reparação de 181 dias, o que, ao valor unitário de 8,00 €, que se aceita, conferia uma indemnização pela paralisação de 1.448,00 €, o que, repartido a 50% conferia ao A uma indemnização a este titulo de 724,00 €.

            F) Na fixação dos dias de paralisação não é observado pelo Tribunal Recorrido o invocado recurso à equidade, na medida em que até excede os dias peticionados pelo Autor desde a data do acidente até à data da propositura da acção (quase três anos).

            G) Não se encontra demonstrado nos autos que o veículo acidentado não pudesse circular ainda que amolgado, tendo a Ré alegado que não sofreu danos estruturais.

            H) A fixação de indemnização pela paralisação em 1133 dias (mais de três anos) excede em muito o valor do veículo antes de acidentado, constituindo para o Autor um enriquecimento à custa do empobrecimento da Ré.

            I) A fixação “equitativa” de 1133 dias de paralisação pelo Tribunal, traduz um manifesto abuso do direito na medida em que excede manifestamente o fim económico do direito do Autor, ultrapassando quatro vezes o valor da reparação.

            J) Foram violados, entre outros, o disposto nos arts 668 n° 1 al e) C.P.C., 334, 483, 494 todos do C. Civil.”

         Pede, a final, que a sentença seja revogada e substituída por outra que condene a ré pelo dano decorrente da privação do uso em apenas € 724.

         O apelado sustentou a improcedência do recurso.
         Colhidos os vistos, cumpre decidir:

         A matéria de facto dada como provada na 1ª instância é a seguinte:

         “1º No dia 8 de Maio de 2005, cerca das 18h53m, na estrada nacional (EN) n.º 331-1, concretamente ao km 7,100, concelho de Vila Nova de Foz Côa, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias, marca Mitsubishi, matrícula PI-00-00e o veículo ligeiro de passageiros, marca Ford Fiesta, modelo 1.1., matrícula RG-00-00.

         2º O veículo PI pertence ao autor e, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), era conduzido por este, no sentido Cedovim-Sequeira.

         3º O veículo RG pertence a C... e, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), era conduzido por este, no sentido Sequeira-Cedovim.

         4º A via, com 5,50 metros de largura, descrevia uma curva à esquerda, atento o sentido de marcha Cedovim-Sequeira, e possuía duas faixas de rodagem, afecta cada uma a um sentido de marcha.

         5º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), o autor circulava com o PI na faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, tendo para o efeito transposto o traço longitudinal descontínuo que separa as duas faixas de rodagem.

         6º Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1), o condutor do veículo RG circulava no eixo da via, concretamente invadindo com o rodado esquerdo desse veículo a faixa de rodagem contrária.

         7º Ao aperceberem-se da presença na via um do outro, os condutores do PI e do RG travaram as respectivas viaturas, tendo o autor guinado o veículo PI para a direita, a fim de retomar a sua faixa de rodagem.

         8º Os veículos PI e RG circulavam a uma distância reduzida e foram embater no eixo da via.

         9º Com o embate referido em 1) o veículo PI foi atingido no guarda-lamas, no pára-choques, num farolim, no pára-brisas, na porta esquerda, no vidro da porta esquerda e no capôt.

         10º A ré ordenou a realização de peritagem ao veículo PI.

         11º A peritagem referida em 10) concluiu que a reparação ascendia ao valor de € 2.070,00.

         12º A ré não ordenou a reparação do veículo.

         13º O veículo PI ficou imobilizado desde a data referida em 1) até cerca de Junho de 2008.

         14º O veículo PI era utilizado pelo autor nas deslocações profissionais e pessoais, sempre que pretendia sair de casa.

         15º Na sequência do embate referido em 1), o autor recebeu tratamento no Centro de Saúde de Vila Nova de Foz Côa.

         16º Na data referida em 1), o autor tinha 80 anos de idade.

         17º A distância entre eixos dos rodados do RG é de 1,20 metros.

         18º A travagem do rodado direito do veículo RG está a 1,70 metros da berma do lado direito, atento o sentido de marcha deste veículo.

         19º O autor é titular de carta de condução desde 13/06/2003.

         20º O ano do veículo PI é de 1988.

         21º O autor pagou a quantia de € 10,00 para obter a certidão da participação de acidente de viação junta aos autos a fls. 10-13.

         22º Por acordo escrito celebrado em 10/09/2003, entre a ré “ B...Companhia de Seguros, S. A.” e C...., titulado pela apólice n.º 003167902, a primeira declarou assumir todos os riscos inerentes à circulação do veículo automóvel RG-00-00 até ao montante de € 1.000.000,00.”

         Nulidade da sentença:

         Considera a apelante que a sentença é nula, nos termos do art. 668, nº 1, al. e) do CPC, por ter decidido além do pedido, ou seja, por ter condenado ré a pagar ao autor 1113 dias de paralisação quando este pediu apenas 1104.

         Mas não tem razão.

         É certo que o autor alegou que o seu veículo esteve imobilizado desde a data do acidente 8.5.2005 até à data da propositura da acção, em 7.2.2008, num total de 1004 dias; e que, a título de indemnização de privação do uso do veículo, pediu a quantia de € 25.100 (1004 x € 25).

         E também é certo que, invocando um critério de equidade, a Sr. ª Juiz considerou adequado fixar em 1113 o número de dias de paralisação do veiculo PI-00-00 (contados desde 8.5.2005 até 15.6.2008) e em € 8 o quantitativo diário pela privação do uso de veículo, assim atingindo a indemnização de € 9064, que, por virtude da culpa do autor de 50% no acidente, reduziu para € 4.532.

         Porém, e apesar de ter considerado 1113 dias de paralisação, a Sr.ª Juiz conteve-se não só dentro dos limites do pedido parcelar (tinha pedido, a título de indemnização por este dano € 25.100)        como do pedido global (condenou na quantia total de € 5.572, abaixo do pedido global de € 29.680).

         Bastava, aliás, que o tivesse feito, como fez, de resto, dentro dos limites do pedido global (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, 3ª ed., pág. 183; Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 1984, pág. 657).

         O facto de ter considerado 1113 de paralisação e não apenas 1004 não envolve condenação além do pedido.

         Significa, apenas que a condenação se baseou num fundamento diferente daquele que foi alegado.

         Matéria de facto:

         Como se disse, a Sr.ª Juiz fixou indemnização pela privação do uso do veículo, tomando por base 1113 dias de paralisação do veículo PI-23-13, contados desde 8.5.2008 até 15.6.2008.

         Teve, naturalmente, em vista o facto provado em 13.

         Sucede, no entanto que o autor alegou, apenas, que o veículo sinistrado esteve imobilizado desde a data do acidente, 8.5.05, “até à presente data” (a petição deu entrada em 7.2.2008), pelo que a Sr.ª Juiz, ao dar como provado que “ o veículo PI ficou imobilizado desde a data referida em 1 [8 de Maio de 2005] até cerca de Junho de 2008”, deu como provado mais do aquilo que era objecto de prova.

         É certo que a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos que se produziram posteriormente à proposição da acção (art. 663, nº 1 do CPC)

         Porém, esses factos só podem ser atendidos se forem introduzidos de acordo com as normas processuais em vigor, ou seja, “ sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições nomeadamente quanto ás condições me que pode ser alterada a causa de pedir” (art. 663, nº 1ª parte); e através de articulado superveniente (art. 506 do CPC) 

         Ora, a causa de pedir não foi alterada nem ampliada mediante qualquer articulado superveniente (nem o podia ser sem acordo, uma vez que, atenta a forma de processo, não havia lugar a réplica).

         O facto provado (imobilização do veículo depois da propositura da acção) não foi, pois, alegado, pelo que a resposta dada é naturalmente excessiva, devendo ter-se o excesso por não escrito (Lebre de Freitas, CPC anotado, volume 2º, pág. 607 e 630).

         Assim, deve dar-se como provado apenas que “ o veículo PI ficou imobilizado desde a data referida em 1 [8 de Maio de 2005] até à data da propositura da acção (7.2.2008)”, aceitando-se a demais dada como provada na 1ª instância.

         Indemnização pela privação do uso do veiculo:

         Argumenta a apelante que o autor podia mandar reparar a partir da peritagem de 21.9.2005, data em que declinou a responsabilidade pelo facto de a culpa do acidente ser discutível, como de resto se demonstrou na sentença quando esta repartiu a culpa em 50%, pelo que, considera, a paralisação se devia conter no espaço temporal entre a data do acidente e a da peritagem, ou, seja 176 dias, com mais 5 dias, que seria o tempo estimado para a reparação.

         Argumenta, ainda, que não se encontra demonstrado nos autos que o veículo acidentado não pudesse circular ainda que amolgado (a recorrente alegou na contestação que o veículo não sofreu danos estruturais), considerando que a fixação de 1133 dias de paralisação pelo Tribunal traduz um manifesto abuso do direito.

Vejamos.

         Como se sabe, do princípio da reconstituição natural, que emana dos art. 562 e 566 do CC, resulta que o lesante tem a obrigação de restituir o lesado na situação em que se encontrava antes do acidente, devendo ser responsabilizado pelos prejuízos de não ter ordenado a reparação do veículo em devido tempo (cfr. Ac. STJ de 16.9.2008, Garcia Calejo, Ac. STJ de 29.11.2005, relatado por Araújo de Barros, in Col. STJ 2005, Tomo III, pág. 151 e os Ac. STJ de 4.11.2004, relator Custódio Montes, de 22.6.2004, relator Lopes Pinto e de 16.10.2003, Ferreira de Almeida, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

         Como assim, o facto de uma parte da culpa pelo acidente (50%) recair sobre o lesado, não exime o lesante da obrigação de indemnização e, por conseguinte, se bem que não se lhe impusesse a obrigação de mandar reparar o veículo, já lhe era inteiramente exigível que facultasse ao lesado a verba para a reparação correspondente à culpa que lhe competia, exigência que se mantinha, mesmo depois de a seguradora ter declinado a responsabilidade após a peritagem condicional.

         Em linha recta com este princípio, não sufragamos o sempre respeitável entendimento segundo o qual, tendo o acidente ocorrido em 8 de Maio de 2005, e não tendo o autor alegado que a ré tivesse demorado a definir a sua responsabilidade pelas consequências do acidente, se impunha outra diligência do autor no sentido de intentar a acção para exercer perante a ré o seu direito à reparação (cfr. em tal sentido, Ac. do STJ de 29.11.2005, Col. STJ 2005-III- 151 e seg.).

         É verdade que o autor apenas intentou a presente acção em 7.2.2008, qualquer coisa como 2 anos, 8 meses e 29 dias depois do acidente. Mas nada o determinava a fazê-lo antes, uma vez que com toda a legitimidade aguardava a todo o tempo uma tomada de posição da seguradora no sentido da assunção da respectiva responsabilidade (ainda que parcial). A mora, nesta acepção, é ainda imputável à conduta do lesante, não à vítima. É a actividade ou a conduta desta que causa o dano imediato ou inicial, concretamente traduzido nos estragos produzidos no veículo do A., mas também é essa mesma conduta que provoca todo o dano subsequente, no qual se tem de incluir a privação do A. do uso da viatura, privação que deriva do teor dos estragos nela produzidos. Ao prolongar a inércia, consubstanciada na não reposição ou restauração in natura do património do lesado, o lesante – e, por força do contrato de seguro, a ora ré e apelante – demora em não promover a eliminação do dano imediato. Tardando em fazer cessar este dano, acaba por agravar o dano subsequente, avolumando os danos globais do lesado. Esta particular mora na restauração natural do veículo não conduz ao efeito típicamente indemnizatório da mora no cumprimento da obrigação pecuniária - não coincide assim com o conceito de mora que é objecto do art.º 805, nº 3, do CC - porque desencadeia o relevante agravamento do dano subsequente da privação do uso.

         Ainda que inicialmente por informação do segurado, ré não podia deixar de ter consciência da dilação que causava no período de imobilização do veículo e do eventual agravamento dos custos da paralisação, não estando impedida de providenciar por pôr à disposição do lesado o montante correspondente à sua responsabilidade, possibilitando-lhe as condições para avançar para a reparação. Importa censurar a conduta de muitas seguradoras que prolongam o dano da imobilização, com o único objectivo de retirarem vantagens da necessidade da vítima de lançar mão da competente acção para adquirir os meios financeiros indispensáveis à reparação da sua viatura.

Sem embargo do desequilíbrio que possa existir entre essa prestação indemnizatória relativamente ao concreto custo da reparação (repare-se que o dano da imobilização ou privação foi estimado na sentença em € 9.064, enquanto a reparação do veículo orçou apenas € 2.080).

Levanta apelante a questão de os danos não terem afectado a estrutura do veículo, não o impedindo de andar.

Certo é que o veículo esteve imobilizado após o acidente (facto provado em 13).

É exacto que não deflui da factualidade provada que os danos mencionados em 9 dos factos provados obstassem à mobilidade mecânica do veículo.

Só que esses danos são de tal vulto e visibilidade que não tornavam exigível ao autor a continuidade da utilização da viatura, pela incomodidade e constrangimento que a imagem dos danos e o aspecto da mesma naturalmente lhe provocariam.

O proprietário de um veículo esteticamente desfigurado pelos danos[1] ocasionados por facto de terceiro não está obrigado a utilizá-lo nessas condições, ainda que de um ponto de vista puramente mecânico esse veículo esteja apto a circular. Em tal hipótese, é legítimo que o seu detentor não o queira utilizar, podendo invocar a privação do respectivo uso.

De toda a maneira ficou provado – facto provado em 13 – que o PI esteve imobilizado desde a data do acidente (8/05/2005) até à data da propositura da acção (7/02/2008). Essa imobilização apresenta-se, pois, como plenamente justificada.

Em causa está aqui – ainda - a debatida questão da indemnização do dano da privação do uso do veículo para a vítima de acidente de viação.

        

Não se ignora a corrente jurisprudencial e doutrinária que, para a fixação de tal indemnização, considera necessária a prova da existência de um dano efectivo decorrente da imobilização durante o período de imobilização ou privação do veículo. Só então o autor teria direito à indemnização da privação do uso do veículo.

No caso dos vertentes autos, apenas não ficou provado um determinado dano específico, decorrente do período de imobilização que justificaria a indemnização: não se provou que o autor tivesse necessidade de recorrer a veículos de pessoas amigas e a transportes públicos. Mas ficou provado que o veículo PI era utilizado pelo autor nas suas deslocações profissionais e pessoais, sempre que pretendia sair de casa – cfr. o facto provado em 14. Ora a simples impossibilidade de voltar a dar este tipo de uso ao veículo, representa, a nosso ver, um desvalor patrimonial para o autor, uma vantagem a que foi forçado a renunciar – renunciando a algumas deslocações, deslocando-se menos vezes, ou eventualmente, sendo isso possível, efectuando todas ou algumas das referidas deslocações a pé - independentemente de se ter socorrido ou não dos veículos de pessoas amigas ou mesmo dos transportes públicos.

Isto é, no confronto da matéria apurada, cremos que já seria defensável a tese de que o A. sofreu um dano com a privação do uso do PI.

Ainda que assim não se entendesse, sempre optaríamos pela corrente jurisprudencial que valoriza a existência de um dano autónomo de natureza patrimonial consistente na pura e simples privação do uso do veículo do lesado, independentemente da prova de prejuízos concretos e quantificados.

Segundo esta corrente, a privação do uso comporta um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado (estão em causa os seus poderes de fruição do bem de que é proprietário) que fica, em regra, numa situação patrimonial diversa daquele que, sendo titular de um bem idêntico, não sofreu, contudo, qualquer privação, sendo que esse prejuízo deve ser ressarcido com recurso à equidade, nos termos do art. 566, nº 3 do CC (cfr. Abrantes Geraldes, in Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª edição, pág. 45 e seg. e as referências que aí são feitas; Ac. STJ de 9.5.2002, processo nº 935/02, relatado por Faria Antunes e o Ac. STJ de 4.12.2003, relatado por Oliveira Barros, citados na mesma obra, a pág. 125 e 155, respectivamente, estando este último publicado também no site www.dgsi.pt, com o documento nº SJ200312040030307; ver, ainda, Ac. STJ de 5.7.2007, Santos Bernardino, também no mesmo site e o Ac. STJ de 7.2.2008, in Col. 2008-I-90).

         Subscrevemos, pois, esta posição, a despeito daquela outra segundo a qual a privação do uso do veículo automóvel por virtude do acidente que não implique a demonstração de um prejuízo específico na esfera jurídica de quem de direito não confere direito a indemnização (cfr. os Ac. STJ de 12.1.2006, 5.7.2007, 30.10.2008, todos relatados por Salvador da Costa, o Ac. STJ de 16.9.2008, de que é relator Garcia Calejo, o Ac. STJ de 30.10.2008, relatado por Bettencourt de Faria e o Ac. STJ de 19.11.2009, relatado por Hélder Roque, todos disponíveis in www.dgsi.pt). Prejuízo específico parece significar para esta tendência jurisprudencial o mesmo que perda patrimonial quantificada ou comprovada.

         Na verdade, a privação do uso resulta de um facto ilícito (art. 1305 do CC), pelo que não é o facto ilícito. O facto ilícito é a conduta humana que desencadeia o acidente. A privação do uso é um efeito do facto ilícito.

E, como efeito ou consequência do facto ilícito, constituirá um dano se se traduzir num desvalor objectivo para o utilizador, numa diminuição da sua qualidade de vida, com ou sem repercussão no seu património.

É verdade que a obrigação de indemnização depende da existência de danos e de um nexo de causalidade entre os mesmos e o facto, devendo a indemnização pecuniária ser medida em função da diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566, nº 2 do CC).

A indemnização não prescinde, portanto, do apuramento dos factos que revelem a existência de um prejuízo na esfera patrimonial ou não patrimonial da pessoa afectada.

Ponto é saber se esses factos estão de algum modo patenteados na matéria apurada.

Entendemos que para o detentor ou beneficiário das comodidades do bem o prejuízo é sempre inerente à mera privação do uso desse bem, seja qual for o destino que tivesse em mente fazer dele. Até um coleccionador, porque privado da integralidade do seu objecto de colecção, sofre um dano pelo facto de o bem não poder desempenhar a sua função de colecção - que corresponde à forma do seu uso - como até à lesão acontecia.

Com efeito, considera-se que o proprietário de veículo automóvel dispõe sobre o mesmo dos poderes de uso, fruição e disposição (art. 1305.º do Cód. Civil), sendo que a perturbação ou violação por outrem de qualquer um dos poderes em que o direito de propriedade se desdobra constitui, sem dúvida, violação do direito de propriedade alheio.

Na verdade, quem adquire um veículo automóvel tem o poder e a faculdade de o usar como quiser, podendo, inclusivamente, nem sequer o utilizar. Privá-lo dessa opção é acarretar-lhe uma desvantagem, mesmo que no plano meramente não patrimonial.

Sustentar que o direito de indemnização da privação do uso de um veículo automóvel durante o período em que o mesmo está imobilizado em consequência do acidente e até à sua reparação está dependente da prova da existência de gastos específicos ou efectivos, por exemplo, com o aluguer de um veículo de substituição, acarreta uma diversidade de tratamento perante as várias situações de privação, designadamente conforme o lesado tenha ou não alugado um veículo para substituição do veículo sinistrado, sem que tal signifique necessariamente que num caso houve necessidade de utilização do veículo e no outro não. Pode simplesmente suceder que um determinado lesado, por virtude da sua posição económica mais desafogada, tenha disponibilidade económica para pagar o aluguer de um veículo durante o período de imobilização, e que um outro, mais débil economicamente, a não tenha, porventura por ter adquirido a sua viatura com mais esforço, e por também não conseguir a disponibilização de outra viatura para os mesmos fins.

Por outro lado, tal solução beneficiaria o lesante, que não veria a sua posição agravada pelo facto de, em violação do disposto no art. 562.º e do princípio da reparação natural plasmado no n.º 1 do art. 566.º, ambos do Cód. Civil, não ter posto à disposição do lesado um veículo de substituição ou a quantia necessária à reparação da viatura sinistrada segundo a sua culpa: uma vez que ele somente teria que reembolsar o valor do aluguer ou de outro custo de veículo de substituição nos casos em que o próprio lesado, a expensas suas, providenciasse por essa substituição.

O dano consuma-se logo com a mera imobilização do bem, e, bem assim, com o não disponibilização da quantia que por causa dele é devida ao titular dos respectivos poderes de fruição e uso (e lhe viabilizaria a restauração) circunstâncias que por si sós colocam o lesado numa situação de desvantagem qualitativa diante daquela em que se encontraria se a lesão não tivesse ocorrido. Tal dano não deixa de ser efectivo ou real, mesmo quando o proprietário do bem, em lugar de suprir a respectiva carência, venha a abdicar de um qualquer comportamento subsidiário ou alternativo.

         Assim - e em conclusão - a mera privação do uso do veículo sinistrado, mesmo sem a demonstração da sua negativa repercussão no acervo patrimonial do lesado, é susceptível de fundar a obrigação de indemnização, mesmo que, no caso sub judice, não se tenha provado - como se não provou - que dessa privação resultou o específico prejuízo patrimonial invocado (nomeadamente, o facto alegado de que o autor se viu na necessidade de recorrer a veículos automóveis de pessoas amigas e a transportes públicos foi dado como não provado).

         Bem andou assim o Sr. Juiz a quo ao fixar a indemnização a este título, por reconhecer a existência para o autor de um dano da privação do uso do veículo, servindo-se para o respectivo cálculo de juízos de equidade.

 

         A ré não pugna pela total revogação da sentença nesta parte mas pela redução da indemnização para a quantia de € 724.

Tendo em conta, porém, que, de acordo com a matéria de facto fixada, o período de privação do autor a considerar vai de 8 de Maio de 2005 (data do acidente) à data da propositura da acção (7 de Maio de 2008), ou seja, 1005 dias, sendo razoável a verba de € 8,00/dia equitativamente atribuída na sentença, é de € 8.040 o prejuízo sofrido pelo autor a este título. Sobre tal verba a apelante responde apenas por 50%, por ser essa a proporção à culpa que lhe cabe.

        

         Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e alterar a sentença, reduzindo a quantia em que a ré/ recorrente foi condenada a pagar ao autor/recorrido, a título de indemnização pela privação do uso do veículo, de € 4.532 para € 4.020 (50%x 8.040). Em tudo o mais, vai mantida a decisão recorrida.

Custas por autor e ré, na proporção do decaimento.


[1] Na verdade, o PI foi atingido, além do mais, no guarda-lamas, pára-choques, pára-brisas, porta esquerda e capôt – facto provado em 9.

Declaração de voto

Fiquei vencido relativamente à questão da indemnização pela privação do
veículo automóvel, uma vez que perfilho a posição de que a privação que
não implique prejuízo específico na esfera jurídica de quem de direito não confere
direito a indemnização (cfr. os citados Ac. STJ de 12.1.2006, 5.7.2007,
30.10.2008, 16.9.2008 e 19.11.2009).
Ora, no caso sub judice, não se alegou nem se provou que da privação do
uso do veículo tenha resultado qualquer prejuízo específico para o autor.
Até o facto alegado de que o autor, durante o período em que se viu privado
do uso do veículo PI, se viu na necessidade de recorrer a veículos automóveis de
pessoas amigas e a transportes públicos foi dado como não provado.

Entendia, pois, que não era possível ao Sr. Juiz a quo fixar a indemnização,
com base num juízo de equidade, por este pressupor a existência de dano e servir
apenas para o lculo do respectivo valor (cfr. o citado Ac. STJ de 30.10.2008 e,
ainda, disponíveis no site do ITIJ, os Ac. STJ de 6.5.2008, Urbano Dias e de
17.6.2008, Sebastião Póvoas).
E concla: "Sucede, no entanto, que a ré não pugnou pela total revogação
da sentença nesta parte mas pela redução da indemnização para a quantia de 724.
O que significa que não é possível fixar indemnização superior à pedida. É a
proibição da reformatio in melius: o julgamento do recurso não pode melhorar a
posição do recorrente em termos de lhe conceder mais do que ele solícita (Teixeira
de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 466). Por todo o exposto,
acordam os Jzes desta Relação em julgar a apelação procedente e alterar a
sentença, reduzindo a quantia em que a ré/ recorrente foi condenada a pagar ao
autor/recorrido, a título de indemnização pela privação do uso do veículo, de €4.532 para 724, em tudo o mais se mantendo a sentença.
Custas pelo apelado".