Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6029/08.3TBVNG-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: CESSÃO DE QUOTA
AVALISTA
DECLARAÇÃO
Data do Acordão: 02/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 45º/1-C) DO CPC, 236º/1 E 237º DO CC
Sumário: A declaração, aposta por terceiro, num contrato de cessão de quotas, segundo a qual esse terceiro declara que, como garantia, se coloca como avalista da compradora quanto aos valores e condições neste instrumento estabelecidas, constitui-o na obrigação de garantir as responsabilidades ali assumidas por esta, sendo título executivo.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A...., residente na ..., interpôs recurso do saneador sentença que, no âmbito do processo de oposição à execução, julgou a mesma improcedente.

   Formula as seguintes conclusões:

1- A sentença deve ser fundamentada mediante discriminação dos factos que o julgador considere como provados, não se bastando com a indicação ou remissão genérica para articulados constantes do processo ou para documentos que dele façam parte.

2- Na sentença revidenda não se encontram discriminados os factos que o julgador considerou provados, o que viola o Artº 659º/2 e 3 do CPC, constituindo a nulidade prevista no Artº 668º/1-b) do CPC.

3- Resulta do título dado à execução que o mesmo teve por objecto a “cessão da quota-parte na sociedade B..... (...) pertencente à sócia C...., maior, capaz (...)”.

4- O capital social de uma sociedade por quotas encontra-se dividido em quotas (Artº 197º do CSCom.) e não em “quotas-partes”.

5- Por isso a definição do objecto do dito contrato viola o disposto no Artº 280º do CC, assim inquinando o contrato de nulidade e, em consequência, determinando a respectiva inexequibilidade.

6- Resulta do título dado á execução que a cessionária era (é) “casada sob o regime de comunhão de bens adquiridos com D.....”.

7- Por isso, seria necessária a intervenção deste no contrato dado à execução, designadamente autorizando a venda/cessão da quota – parte detida pela sua esposa.

8- Do contrato dado á execução não consta a intervenção do marido da cedente, pelo que o contrato está ferido de nulidade, assim determinando a inexequibilidade do mesmo contrato.

9- O oponente é demandado no âmbito dos autos de execução apensos porquanto teria assinado o contrato em apreço na qualidade de avalista.

10-A função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário, sendo essa responsabilidade de garantia primária, por isso o aval acaba por se apresentar como uma garantia cambiária que se destina a garantir ou a caucionar o pagamento do valor inscrito no respectivo título de crédito.

11-Jamais o oponente podia ser demandado na qualidade de avalista, porquanto não estamos perante um título executivo consubstanciado num título de crédito.

12-Do contrato dado à execução também não resulta que o oponente se tivesse vinculado de outra forma perante a exequente.

13-A sentença revidenda violou, entre outras, as normas dos Artº 55º/1, 659º/2 e 3 do CPC; Artº 280º do CPC; Artº 197º e 228º do CSCom e Artº 30º, 31º e 77º da LULL.

   C...., Exequente, residente na ....., não contra-alegou.


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   Façamos um breve resumo do processo a fim de melhor enquadrarmos as questões a decidir.

   C.....INstaurou execução contra E......, F.... e A...., aquela na qualidade de devedora principal, estes na de garantes do cumprimento das obrigações assumidas pela primeira.

   Apresentou como título executivo um documento particular denominado “Contrato de Cessão de Quotas”.

   O ora Recrte. deduziu oposição à execução alegando, em síntese, que a definição do objecto do contrato de cessão de quota parte na sociedade viola o disposto no Artº 280º do CC, sendo nulo, o que acarreta a inexequibilidade do título, que resultando do texto do contrato que a Exequente é casada em regime de comunhão de adquiridos, e não tendo o marido tido intervenção no mesmo, o contrato está ferido de nulidade e que, sendo demandado na qualidade de avalista, e não se estando em presença de qualquer título de crédito, jamais pode ser demandado, não resultando do contrato que se tivesse vinculado de outra forma perante a Exequente.

   A Exequente não contestou.

   Foi proferido saneador sentença que julgou a oposição improcedente por não se verificarem os respectivos fundamentos.


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   Das conclusões supra exaradas extraem-se três questões a decidir:

1) Nulidade da sentença por omissão de fundamentação de facto;

2) Nulidade do contrato e consequente inexequibilidade do título

a) por indeterminabilidade do seu objecto

b) por ilegitimidade da cedente

3) inexistência de qualquer obrigação que vincule o oponente.


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   Comecemos pela primeira das elencadas questões, a saber, a nulidade da sentença.

   Exarou-se na sentença que “consideraremos como assente a matéria alegada no requerimento executivo (que não foi impugnada pelo aqui oponente), conjugada com o teor do título executivo de fls. 12 a 18 dos autos principais, tudo o que aqui damos por reproduzido”.

   Partiu-se, após, para a análise das questões jurídicas suscitadas na oposição.

   Conforme decorre do que dispõe o Artº 659º/2 do CPC, a sentença comporta uma parte na qual devem ser exarados os fundamentos de facto – os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão e os que o tribunal deu como provados.

   Em parte alguma a lei processual autoriza que a sentença remeta para os articulados os fundamentos de facto, excepto no caso da previsão contida no Artº 784º do CPC, aqui não aplicável.

   A sentença em apreço não contém a fundamentação de facto.

   Nessa medida, e conforme decorre do que dispõe o Artº 668º/1-b) do CPC, é nula.

   Passamos, assim, e por força do que dispõe o Artº 715º/1 do CPC, a apreciar as demais questões suscitadas no recurso.

   Exaremos, contudo, e previamente, os factos decorrentes dos autos por força de prova documental:

   1 – Por escrito datado de 28/05/2007, C...., denominada Vendedora, e E...., denominada Compradora, declararam, a 1ª vender e a 2ª comprar o bem descrito como cessão da quota-parte na sociedade B...., com ...., pertencente à sócia C....... que neste acto a transfere à Compradora, mediante o preço e condições abaixo estipuladas.

   2 – Do escrito consta que “a quota acima descrita é, neste acto, vendida pela quantia líquida de € 57.500,00” nas seguintes condições: a) 18 parcelas mensais e consecutivas de € 2.000,00, vencendo-se a 1ª no dia 10/06/2007 e as 17 parcelas restantes em cada dia 10 dos meses subsequentes. Os 500 euros remanescentes serão pagos no acto da assinatura deste contrato.; b) 3 parcelas semestrais de € 7.000,00 com vencimento em 20/12/2007 a primeira, 20/06/2008 a segunda e 20/12/2008 a terceira”.

  3 – Consta ainda que o não pagamento nas datas estabelecidas, das prestações contratualmente fixadas, gera o direito da Vendedora a juros de mora fixados em 1%.

   4 – Do escrito consta que “como garantia, não obstante as responsabilidades legais da Compradora, F....... e A....... declaram neste acto colocar-se como Avalista da Compradora, quanto aos valores e condições neste instrumento estabelecidos, assinando o presente contrato em todas as suas vias”.

   5 – O escrito a que nos reportamos está assinado por C...., E...., F.... e A...., ambos na qualidade de representantes da sociedade e de avalistas, e G....  e duas testemunhas.

   6 – Foi instaurada execução contra E.... e A.... e F.... com vista ao pagamento da quantia de € 54.491,17 e juros de mora.


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   Passemos, então, à análise da 2ª das enunciadas questões, ou seja, a nulidade do contrato de cessão.

   A Recrte. assenta o primeiro dos fundamentos de nulidade no disposto no Artº 280º do CC sem qualquer outra especificação.

   A sentença analisou a questão enquadrando-a na indeterminabilidade do objecto do contrato consignando que “o contrato dado á execução configura claramente um contrato de cessão de quota em determinada sociedade comercial em que a cedente e aqui exequente declara ceder a (totalidade da) quota que lhe pertence nessa sociedade”, o que resulta do ponto II do contrato.

   O Artº 280º/1 do CC dispõe que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário á lei ou indeterminável.

   O Recrte. limita-se a alegar que o capital social de uma sociedade por quotas encontra-se dividido por quotas e não em quotas-partes, pelo que, por isso, a definição do objecto do dito contrato (cessão da quota-parte na sociedade) viola o disposto no Artº 280º do CC.

   Conforme supra se exarou exequente e executada declararam, a 1ª vender e a 2ª comprar o bem descrito como cessão da quota-parte na sociedade B...., com sede na ....., pertencente à sócia C..... Mais se exarou que “a quota acima descrita é, neste acto, vendida pela quantia líquida de...”.

   Em face desta declaração, não perfeitamente transmitida, é certo, conclui-se sem sombra de dúvida que se pretendeu vender a quota detida pela ora Exequente naquela sociedade, pelo que é perfeitamente determinável o objecto do contrato.

   Nenhuma censura, merece, pois, a sentença na abordagem que fez a esta questão.

   Invoca-se ainda a nulidade do contrato decorrente da ilegitimidade da Exequente que, por ser casada em comunhão de adquiridos, deveria, segundo o Recrte. fazer-se acompanhar do marido para dispor da sua quota.

   Também aqui não assiste razão na crítica que o Recrte. faz da sentença.

   Na verdade, pretendendo valer-se da circunstância de o marido da transmitente não ser parte no negócio, sempre teria o Recte. que alegar, na sua oposição, o regime de bens e os factos dos quais se pudesse concluir que a quota estava abrangida por alguma limitação na respectiva disposição.

   O Recrte. não alegou qualquer desses factos na sua oposição, pelo que, tendo concluído pela improcedência da questão assim suscitada, a sentença não violou qualquer normativo, devendo manter-se.

   Resta a última das enunciadas questões, subsumível à inexistência de título executivo.

   Funda-se o Recrte. na circunstância de o aval ser um negócio cambiário, aqui não evidenciado, pelo que nenhuma obrigação resulta para si do contrato que assinou.

   Efectivamente o aval é uma garantia associada a obrigações cambiárias e é um facto que o título executivo não assume tais características.

   Decorrerão, do título, obrigações para o Recrte.?

   De acordo com o disposto no Artº 45º/1-c) do CPC, à execução podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.

   Por outro lado, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (Artº 236º/1 do CC).

   A questão em apreço não pode deixar de analisar-se a esta luz, ou seja, que sentido assume a expressão aposta no documento e, mais concretamente, até, se ela é duvidosa, pois se o for determina o Artº 237º do CC o sentido em que há-de interpretar-se a declaração.

   Conforme supra se exarou do documento assinado também pelo ora Recrte. consta que “como garantia, não obstante as responsabilidades legais da Compradora, F....... e A....... declaram neste acto colocar-se como Avalista da Compradora, quanto aos valores e condições neste instrumento estabelecidos...”.

   Por outro lado, e não menos importante, é a circunstância de o documento ter sido assinado em duas distintas qualidades – primeiro na qualidade de representante da sociedade adquirente e, após, na qualidade de avalista.

   Esta declaração, proferida em moldes não absolutamente perfeitos do ponto de vista dos conceitos jurídicos, revela que o Recrte. se constituiu na obrigação de garantir o pagamento das quantias assumidas pela sociedade, o que é acentuado pela expressão “garantia” usada no documento. E, a assunção da qualidade de avalista, só pode ter o significado, de que, os que como tal se vinculam, assumem o cumprimento das obrigações da sociedade.

   Não se regista, assim, qualquer equívoco na expressão utilizada.

   Na verdade, e como consta da sentença em recurso, o termo avalista, não obstante ter um conteúdo marcadamente jurídico, “adquiriu também um significado próprio e aproximado na própria linguagem corrente, como sendo aquela pessoa que assume uma obrigação juntamente com a pessoa que directamente a contrai, assumindo-se assim como garantia do bom cumprimento”.

   Significa isto que o documento assinado pelo Recrte. é título bastante para a execução, visto traduzir a assunção, por si, de obrigações pecuniárias.

   No sentido que ora propugnamos, também o Ac. da RC de 10/12/2002, de acordo com o qual “não obstante se referir no contrato assinado pelas partes que o embargado aceita ser avalista no empréstimo, deverá entender-se que essa garantia integra uma fiança, já que não restam dúvidas que foi essa figura a que o garante tinha em mente ao assumir a sua obrigação (www.dgsi.pt).

   Não despiciendo é, ainda, sublinhar que o ora Recrte. não invocou ter usado aquela expressão com outro qualquer significado.

   Termos em que improcede também a conclusão em apreciação.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

a) declarar a nulidade da sentença e

b) confirmar a decisão recorrida.

   Custas pelo Recrte..

   Notifique.