Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
84277/18.3YIPRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: NEGÓCIOS COM A SOCIEDADE
CONTRATOS CELEBRADOS ENTRE A SOCIEDADE E OS SEUS ADMINISTRADORES
INTERPOSTA PESSOA
ACTO COMPREENDIDO NO PRÓPRIO COMÉRCIO DA SOCIEDADE
VANTAGEM ESPECIAL
MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO
PREJUDICIALIDADE
Data do Acordão: 04/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 621.º DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVIL
ART. 397.º DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I) São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, directamente ou por pessoa interposta, salvo se tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.

II) No conceito de “interposta pessoa” está incluída, designadamente, a sociedade na qual o administrador tem uma participação maioritária ou detida maioritariamente pelo seu cônjuge.

III) A nulidade referida em I) não se aplica quando se trate de acto compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador.

IV) Um negócio está “compreendido no próprio comércio da sociedade” quando seja acto da espécie daqueles em que tipicamente se traduz a actividade que constitui o objecto da sociedade.

V) O negócio não proporciona ao administrador nenhuma “vantagem especial” quando é celebrado em condições idênticas às aplicáveis a qualquer terceiro que celebra com a sociedade negócio da mesma espécie, sem, portanto, qualquer cláusula intuitu personae.

VI) Tratando-se de negócios incluídos nas relações comerciais que se integram na actividade social de ambos os contraentes, não será legítima a invocação da nulidade referida em I) sem a alegação simultânea de que tal transacção tenha envolvido a concessão de qualquer vantagem especial para a contraparte.

VII) Os fundamentos de facto de uma determinada decisão adquirem valor de caso julgado quando haja de respeitar e observar certas conexões entre o objecto decidido e um outro objecto, nomeadamente, em caso de relações de prejudicialidade entre objectos e de relações sinalagmáticas entre prestações.

VIII) Existe prejudicialidade nas situações em que o conhecimento do fundo ou mérito da acção está dependente da prévia resolução de uma outra questão que, segundo a estrutura lógica ou o encadeamento lógico da sentença, carece de prévia decisão.

Decisão Texto Integral:




Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

A…– Minerais Industriais, S.A., intentou procedimento de injunção a prosseguir como ação declarativa sob a forma de processo comum contra:

B…, S.A.,

alegando ter fornecido à ré, no âmbito das respetivas atividades, bens e serviços que se não mostram pagos,

Pedindo, em consequência:

a condenação da Ré no montante de € 314 878,37, correspondente ao capital em dívida de € 300.978,55 €, acrescido de juros de mora vencidos até à presente data no valor de € 13.696,82, da taxa de justiça paga com o presente requerimento, no valor de € 153,00 e do valor que tem direito a receber ao abrigo do disposto no artigo 7.º do D.L. n.º 62/2013 de 10 de maio.

A Ré apresenta contestação, invocando a nulidade, nos termos do art. 397.º, n.º 2 do CSC, ou a anulabilidade, nos termos do artigo 287.º, n.º 2, in fine do CC, e artigos 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC, do contrato de prestação de serviços por se tratar de um negócio celebrado entre a Requerida e o Sr.C…, sendo que o Sr C…, para além de ser administrador de direito da Requerida, é também administrador de facto da Requerente, sendo que a celebração do contrato de prestação de serviços dos autos nunca mereceu o consentimento do Conselho de Administração da Requerida, nem obteve qualquer parecer favorável do Conselho Fiscal.

Conclui pela improcedência da ação.

A Autora apresenta articulado de Resposta, pugnando pela improcedência das invocadas exceções de nulidade e anulabilidade dos contratos em causa.

Procedeu-se à realização da audiência final, vindo a ser proferida a Sentença de que agora se recorre e que termina com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo improcedentes as invocadas exceções, julgo totalmente procedente a ação e condeno a ré a pagar à autora a quantia de € 314 878,37 (trezentos e catorze mil, oitocentos e setenta e oito euros e trinta e sete cêntimos).


*

Não se conformando com tal sentença, a Ré dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem, por súmula[1]:

(…)


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
Apelação
1. (…)
2. (…)
3. Se o Sr. C… era a real contraparte nestes contratos de fornecimento – por si ou por interposta pessoa –, na qualidade de fornecedor, ou se nos encontramos perante meras sociedades com administradores comuns.
Ampliação do Recurso
1. Impugnação da matéria de facto
          (…)
1.b. autoridade de caso julgado relativamente a factos dados como provados na ação 4039/17.9T8LRA
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
(…)
**

(…)

***

3. Se o Sr. C… era a real contraparte nestes contratos de fornecimento – por si ou por interposta pessoa –, na qualidade de fornecedora, ou se nos encontramos perante meras sociedades com administradores comuns

 Na oposição que deduz na presente ação, a Ré sustenta a sua pretensão ao não pagamento dos fornecimentos em causa – fornecimento de argilas pela Autora à Ré a que se referem as faturas datadas de fevereiro a outubro de 2017 – na invocação da nulidade ou anulabilidade de tais negócios ao abrigo do disposto nos artigos 397º, nº2 do CSC e 287º, nº2, do CC, com a alegação de que, tratando-se de um negócio celebrado entre a Requerida e o Sr. C… (então administrador de direito da requerida e administrador de facto da Requerente), foi celebrado sem o necessário consentimento do Conselho de administração da Requerida ou parecer favorável do Concelho Fiscal.

O tribunal a quo veio a julgar improcedentes as invocadas nulidade e anulabilidade, com a seguinte fundamentação:

“Provou-se que o Sr. C…, em conjunto com a sua filha E… , eram membros do Conselho de Administração da ré e que, simultaneamente, e contemporaneamente ao contrato dos autos, o Sr. C… era também administrador de facto da autora. A A… Group era detida por um veículo fiduciário — o J…  — desde 14.09.2012, o que permite que o Sr. C… possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial.

Ora, estabelece o artigo 397.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais (por diante apenas CSC) que “São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria.”

Não se provou a existência de qualquer deliberação a autorizar o contrato e cabia à autora a prova da sua existência.

Como vimos, a lei fulmina com a nulidade tal contrato.

No entanto, como resulta do art. 397.º, n. 2 do CSC e tem sido entendimento jurisprudencial ao que sabemos maioritário, e com acerto, que “Sem dúvida que o artº 397º do CSC regula as relações entre as sociedades e os seus administradores, nomeadamente a celebração de contratos entre eles, e que o saneador/sentença bem decidiu não ser aplicável ao presente caso, em virtude de não ter havido qualquer negócio entre uma sociedade e um seu administrador, directamente ou por interposta pessoa.

Simplesmente, a situação prevista nesse normativo é diferente da prevista no artº 261º do Código Civil, já que neste o que está em causa é o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, enquanto naquele é o negócio celebrado pelo representante (administrador) com a sociedade (que tem personalidade própria, distinta da dos respectivos sócios).

No entanto, entendemos que, in casu, não se verifica a existência da figura do negócio consigo mesmo, pelo facto de o contrato ter sido outorgado por um administrador comum à autora A... e à ré B....

É que estas têm personalidade própria, distinta da do aludido administrador, tendo este tido intervenção apenas na qualidade de representante da autora e tendo a ré B... sido representada no contrato por outra pessoa, que não aquele administrador.”

Ou seja, e ressalvado o devido respeito por opinião contrária, não podemos concluir, como a ré, que “as faturas que se discutem resultam de um contrato que foi celebrado entre a Requerida e um seu administrador – o Sr. C… –, ainda que “por interposta pessoa” – a Requerente.”

O que os autos nos revelam é que o contrato foi celebrado entre as duas sociedades, ainda que com administradores comuns (sendo um apenas de facto). Que não são, sequer, administradores únicos.

Não se verifica, pois, a referida nulidade.

A ré invoca, ainda, a anulabilidade do contrato, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 2, in fine do CC e artigos 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC.

Pelas razões já adiantadas – o negócio realizou-se entre duas sociedades com administradores parcialmente comuns – não estamos perante um negócio consigo mesmo, como defende a ré e, em consequência, improcede, também, esta exceção.”

Encontra-se em causa a proibição dos determinados negócios com a sociedade, e que o nº2 do artigo 397º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) comina com a nulidade:

São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por interposta pessoa, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com parecer favorável do Conselho Fiscal”.

E ainda a anulabilidade do “Negócio consigo mesmo”, a que se reporta o artigo 261º do Código Civil (CC):

“1. É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.

2. Considera-se celebrado pelo representante, para o efeito do número precedente, o negócio realizado por aquele a quem tiverem sido substabelecidos os poderes de representação.”

Sintetizando a posição assumida na decisão recorrida, a situação em apreço não se encontra abrangida no âmbito de tal norma, porquanto, da matéria de facto não resulta que o contrato tenha sido celebrado entre a sociedade Ré e um seu administrador, mas apenas que o contrato foi celebrado entre as duas sociedades, ainda que com dois administradores comuns, sendo que, um o é apenas de facto, e que não são, sequer, administradores únicos.

Por sua vez, a Apelante, e apesar das suas alegações e conclusões de recurso se estenderem por várias páginas e 70 conclusões[2], faz assentar as suas discordâncias com o decidido unicamente nos seguintes fundamentos, que aqui se sintetizamos:

- a situação cairia no âmbito o artigo 397º, nº2 do CSC porquanto o C… era (ocultamente) detentor e beneficiário da autora, sendo ele a verdadeira contraparte no negócio, ainda que por interposta pessoa – o C…, em conjunto com a sua esposa, era detentor da J…, veículo fiduciário que detinha 95% da autora – sendo este quem iria beneficiar com o negócio porque era ele que estava por detrás da autora, influenciando-a diretamente e pronto para receber os benefícios resultantes dos negócios – ou seja, o dinheiro pago pelos fornecimentos em causa iria parar aos seus bolsos (conclusões 37 a 41);

-  encontrar-nos-íamos, ainda, perante um negócio consigo mesmo porque o C… era indiretamente – por interposta pessoa – a contraparte nestes contratos de fornecimento; era este o beneficiário efetivo da transação, o que resultaria da materialidade constante dos pontos 10 e 11.

Antes de mais, vejamos se a realidade invocada pela Apelante se encontra refletida na matéria de facto dada como provada ou, ainda que dela não conste, se encontra suportada nas certidões de registo juntas aos autos relativamente a tais sociedades.

Encontra-se demonstrada a seguinte factualidade, relativamente à titularidade e administração da sociedade autora, interveniente nos negócios em causa, na qualidade de fornecedora –A… – Minerais Industriais, S.A.:

10. Por seu lado, a autora é integralmente detida pela A… Group, S.A. (“A… Group”), sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo; 95% do capital social da A… Group era detido por um veículo fiduciário –J…– desde 14.09.2012, o que permite que o Sr. C… possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial.

11. O Sr. C… é também administrador de facto da Requerente.

Sendo a afirmação final constante do ponto 10. – (…) o que permite que o Sr. C…  possa ser, como é, de forma oculta, um dos detentores deste grupo empresarial” – completamente conclusiva, deixa-nos sem saber qual a efetiva participação que o mesmo possa ter na sociedade autora, sendo que, não é irrelevante ele ser detentor de 10% do capital ou de uma posição maioritária, assim como, não será indiferente que a titularidade de tal capital recaia sobre a sua mulher e filhos ou sobre si próprio, situações que serão objeto de distinto tratamento ao nível do direito.

Por outro lado, também a questão de facto sobre se o C… era, ou não administrador da autora, assumirá relevância para a decisão em apreço.

Ora, a Apelada/Autora, em sede de Ampliação de recurso e para a hipótese de procedência das alegações da Apelante, vem deduzir impugnação à decisão proferida precisamente quanto à matéria contida em tais pontos.

Como tal, por facilidade de raciocínio e por se tratar de matéria de facto central para a questão da nulidade/anulabilidade dos fornecimentos em causa, começaremos por apreciar a impugnação deduzida pela Apelada/Autora.

3.1. Impugnação à decisão proferida quanto aos pontos 10. e 11. da matéria de facto dada como provada

(…)

Como tal, na procedência parcial da impugnação, haverá que introduzir as seguintes alterações ao ponto 10 da matéria de facto dada como provada:

10. A autora é integralmente detida pela A… Group, S.A., sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo.

10.a. Aquando da sua constituição, a 28 de fevereiro de 2012, o capital social da A… Group foi subscrito pela seguinte forma: i) por F… , com uma participação de 95%, por  G… com uma participação de 1,6 %, por H…, com uma participação de 1,6 % e por E…, com uma participação de 1,6% (doc.5 junto com a P.I, fls. 22 a 41)

10.b. A 14 de agosto de 2012 por C… e sua mulher F… foi constituído um Fundo Fiduciário – J…, com uma contribuição em dinheiro de 5.000 € por parte de C… e por 95% das ações da A… Group, S.A., por parte da sua mulher, Fundo este do qual C… e  F… eram os Primeiros Beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos os beneficiários finais.

10.c. Extinto o Fundo em 2017, as 95% das ações da A…. Group (1.663.678[3]) detidas por tal Fundo passaram a ser detidas pela seguinte forma: a) p1.488.553 ações pela F… ; b) 58.375 ações pela E… ; c) 58.375 ações por H… ; d) 58.375 ações da A…. Por G… ;

Haverá ainda que aditar o seguinte facto, alegado no artigo 14 da Resposta e que se encontra demonstrado pela certidão de casamento então junta como doc. 2.,

10.b. C… é casado com  F… sob o regime de comunhão de adquiridos, desde 19 de setembro de 1981.


*

(…)

A Apelante/B…, sustenta ainda que, ao contrário do defendido pela Apelada na sua ampliação de recurso, “a decisão dos presentes autos encontra-se numa relação de prejudicialidade em relação ao processo de destituição”, “tendo em conta que entre estas duas ações existe uma especial conexão relativamente aos factos essenciais que fundamentam a nulidade dos contratos em apreço”, pelo que a decisão final transitada em julgado no Processo de Destituição, que considerou provado que o Sr. C… é administrador de facto e beneficiário efetivo da recorrida, opera um efeito de autoridade de caso julgado relativamente a esses mesmos factos que se discutem na presente ação.

Não podemos dar razão à apelante.

Antes de mais, ao contrário do que se possa concluir pela alegação da Apelante, na identificada ação – Proc. nº 4039/17.9T8LRA – não foi dado como provado que o C… fosse, então, administrador de facto da A… – Minerais Industriais, S.A.. Percorridos os factos dados como provados em tal ação, relativamente à sua intervenção relativamente a tal empresa ou ao Grupo de que esta faz parte, consta apenas: “160. O 1º. R. tem sido, por vezes, chamado pelos Bancos para prestar garantias pessoais relativas a dívidas da A… o”, circunstância que não demonstra, por si só qualquer relação de liderança da A… ou do Grupo, uma vez que tal solicitação poderia decorrer tão só do facto de ser o cônjuge da detentora maioritária da A… , sendo situação corrente as instituições bancárias exigirem o aval não só dos administradores e titulares das empresas, mas igualmente dos respetivos cônjuges.

De qualquer modo, nem o facto dado como provado nessa ação, ou mesmo ao facto de o C… “apresenta-se em público e comercialmente associado à sua actividade, especialmente para efeitos de angariação de clientela e tratando aspetos financeiros e administrativos da gestão da A…, como seja o relacionamento com a banca”, dado como provado noutra ação cujas certidão se encontra junta aos autos[4], podem ter qualquer eficácia vinculativa nos presentes autos.

Na referida ação (Processo nº 4039/17.9T8LRA), instaurada por L…, SGPS contra C…  e   E…, foi proferida sentença a determinar a destituição dos RR. do cargo de administradores da sociedade I…– Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A., decisão que veio a ser confirmada por Acórdão da Relação[5].

Ora, se o caso julgado, na sua vertente positiva de autoridade de caso julgado, e dentro da tríplice identidade que lhe é associada – identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – (artigo 581º, CPC) pode prescindir da inteira coincidência do pedido e da causa de pedir, o que ele não pode, nunca, prescindir é da identidade de sujeitos.

O efeito positivo do caso julgado tem unicamente por sujeitos os destinatários da decisão – as partes da relação processual –, abrangendo unicamente os sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objeto da decisão[6].

A aqui autora não teve qualquer intervenção em tal ação (nem na identificada 1281/18.9T8LRA-A), da qual não foi parte, principal ou acessória, pelo que a valoração do teor de tais decisões na presente ação, relativamente à qual a autora não participou no seu processo de formação, violaria o princípio do contraditório contido no artigo 3º do CPC.

Quanto à questão da extensão da eficácia do caso julgado relativamente aos fundamentos de facto ou de direito, a alegação da Apelante requer uma análise mais aprofundada, para além do já a tal respeito aqui afirmado em sede de apreciação da impugnação ao ponto 10.

Vejamos então, se, e em que circunstâncias, a força ou autoridade do caso julgado se estende aos pressupostos de facto de uma decisão[7].
O instituto ou eficácia do caso julgado tem sido apreciado pela doutrina[8] sobre duas vertentes:
a) enquanto impedimento, proibição de que a mesma causa volte a ser apreciada pelo tribunal – aquilo a que se vem chamando de efeito negativo do caso julgado;
b) força ou autoridade de tal decisão, enquanto vinculação do tribunal à decisão proferida – efeito positivo do caso julgado.
A nossa jurisprudência tem vindo a associar esse efeito negativo, enquanto inadmissibilidade da segunda ação, à exceção de caso julgado[9], caso em que não prescinde da verificação de coincidência quanto aos três elementos – sujeitos, pedido e causa de pedir, fazendo corresponder o efeito positivo, enquanto imposição da primeira decisão como pressuposto indiscutível da segunda, à autoridade ou força de caso julgado (e aqui a coincidência já não terá de ser perfeita)[10].
Já Castro Mendes[11], aos conceitos de eficácia direta/eficácia reflexa exceção/autoridade de caso julgado, prefere a seguinte distinção: a) efeitos do caso julgado quando a eadem quaestio inter esdem personas se suscite no processo ulterior como thema decidendum do mesmo processo[12]; b) efeitos do caso julgado quando a eadem quaestio inter esdem personas se suscite no processo ulterior como questão de outra índole, fundamental ou mesmo tão-somente instrumental.
Segundo aquele autor, uma vez que a autoridade do caso julgado, quando se não faz valer através da exceção, será necessariamente exercida em processos em o objeto, o thema decidendum, não é o mesmo, não é exigível entre os dois processos identidade do objeto (pressupondo-se precisamente que a questão que num processo constituiu thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), sendo tão só necessário que a questão decidida se renove no segundo em termos idênticos.
Assim, podemos assentar em que, enquanto a identidade das ações é um requisito ou pressuposto da exceção de caso julgado, já o não será do caso julgado no seu referido efeito positivo, enquanto autoridade de caso julgado.
Determinando o artigo 621º do NCPC (antigo 673º) que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga”, foi já entendimento unânime que o caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão contida na sentença – por ex., a condenação ou absolvição do réu ou o indeferimento da providência solicitada –, e já não sobre a respetiva motivação[13]”. Tal princípio não era visto como absoluto, admitindo-se que os fundamentos da decisão influirão na determinação do caso julgado como elementos de interpretação da decisão que lhes serve de substrato, ou seja, na determinação da decisão em sentido material[14].
Diferente deste efeito reflexo da fundamentação (enquanto elemento interpretativo da decisão), será a questão de saber se, e em que medida, as afirmações singulares de facto e de direito, que fundamentam a decisão, gozam elas mesmas, de força e autoridade de caso julgado, sendo que, por motivos da decisão final se entendem os pontos prejudiciais controvertidos, que ao tribunal cabe considerar e resolver para decidir a pretensão do autor.
A doutrina[15] tende a responder que, por regra, os fundamentos de facto não adquirem, enquanto autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado. Estes fundamentos não valem por si mesmos, isto é, não são vinculativos quando desligados da decisão, pelo que eles valem apenas enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta. Ou, nas palavras de Castro Mendes, “os pressupostos da decisão transitada em julgado são indiscutíveis como pressupostos da decisão, e só nessa medida[16]”.
Como afirma Castro Mendes[17], os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que o que esteja contido na sentença e que não seja essencial ao iter judicandi.
Contudo, alguma doutrina reconhece que, em certos casos marginais, e independentemente do artigo 96º, nº2, do CPC, os fundamentos de facto ínsitos na sentença final, só por si, podem adquirir, valor de caso julgado.
A doutrina identifica duas das situações em que os fundamentos de facto adquirem valor de caso julgado: estes fundamentos possuem valor próprio de caso julgado sempre que haja de respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e um outro objeto, nomeadamente, em caso de relações de prejudicialidade entre objetos e as relações sinalagmáticas entre prestações[18].
Existirá uma relação de prejudicialidade quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como localizada dentro do objeto da primeira ação[19].

Existe prejudicialidade nas situações em que o conhecimento do fundo ou mérito da ação (ou seja, para se prover sobre o petitório formulado) está dependente da prévia resolução de uma outra questão que, segundo a estrutura lógica ou o encadeamento lógico da sentença, carece de prévia decisão[20].

No caso em apreço, a alegada relação de prejudicialidade não existe – na anterior ação pedia-se a destituição do referido C… de administrador da Ré B…, com base na alegação de que este (e uma sua filha também Ré) vinham a delapidar o património do Grupo K…e de que o referido C… atuava como administrador de facto do Grupo A… e de um outro Grupo empresarial, M…, para os quais têm vindo a desviar matérias primas, segredos industriais, recursos materiais, financeiros e humanos, oportunidades de negócio e clientela das empresas do Grupo K….

A prejudicialidade refere-se a hipóteses de objetos processuais que são antecedente da apreciação de um outro objeto que os inclui como premissas de uma decisão mais extensa[21].

Ora, no caso em apreço, o único ponto de intercessão entre as duas ações reside no alegado facto de o C… ser administrador de facto do Grupo A… .

A circunstância de em tal ação se terem discutido alguns factos que integram matéria de exceção nesta ação – sem que haja qualquer coincidência, ainda que parcial, no thema decidendum – não integra qualquer relação de prejudicialidade entre as duas ações, sendo que, também a autoridade de caso julgado não prescindiria nunca da identidade de sujeitos, que, como já referimos, aqui não se encontra preenchida.

Concluindo, a circunstância de, noutras ações, nas quais a aqui autora não teve qualquer intervenção, terem sido dados como provados factos relacionados com uma eventual relação de administração de facto da A… por parte do C… , não é suscetível de produzir quais efeitos na presente ação.


*

Regressando à apreciação da impugnação ao ponto 11., era à Ré, enquanto facto impeditivo, que incumbia a prova dessa alegada “administração de facto” da A… por parte do C.. , sendo que, a dúvida sobre tal facto resolve-se contra a parte a quem ele aproveita (artigo 414º do CPC)

Como tal, é de julgar procedente a impugnação, alterando-se a decisão relativamente à matéria do ponto 11, para “não provado”.


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São os seguintes, os factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas, na sequência da impugnação deduzida pela Apelada:

1. A autora é uma sociedade que se dedica essencialmente à extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias-primas para cerâmicas, compra e venda de imóveis, bem como prestação e serviços de transporte rodoviário nacional e internacional.

2. No âmbito da sua atividade, a autora celebrou com a ré contrato de prestação de serviços.

3. Na sequência desse contrato a ré obrigou-se a pagar o respetivo preço, tendo sido emitidas as seguintes faturas:

- FA 2017/669, emitida a 23/06/2017, com vencimento a 21/09/2017, no valor de € 16.137,56;

(…)

4. O que totaliza a quantia de € 301.989,51.

5. Ao longo do período supra descrito foi ainda emitida a seguinte nota de crédito: - NCV 2017/64, no valor de € 1.010,96.

6. A autora procedeu ainda ao pagamento do montante devido de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros) referente à taxa de justiça paga com o requerimento de injunção.

7. Após o vencimento das faturas e interpelada para o efeito, a ré não efetuou o seu pagamento.

8. A ré pertence a um grande grupo empresarial da indústria da cerâmica portuguesa e internacional – o denominado “Grupo K…” –, que é liderado pela sociedade holding I…– Sociedade Gestoras de Participações Sociais, S.A. (“K…”). Embora, até 2013, o Sr. C… tenha sido o sócio único da K…, deixou de o ser a partir de então, pois a  K… foi objeto de uma Restruturação Financeira, protagonizada pelo Fundo de Reestruturação Empresarial, FCR (“FRE”), que se dedica à reestruturação de empresas sobreendividadas e que, através de uma sociedade por si detida, a L…, SGPS, S.A. (“L…”), adquiriu 50% do capital social da K….

Por sua vez, a K… é titular da totalidade do capital social da ré.

9. Até ao passado dia 2 de outubro de 2017, momento em que foram destituídos com justa causa, o Sr. C…, em conjunto com a sua filha E… , eram membros do Conselho de Administração da ré. O Sr. C…e a sua filha  E… eram os membros executivos do Conselho de Administração, sendo que a gestão corrente da ré – e também do Grupo K… – estava concentrada, essencialmente, no Sr. C….

10. Por seu lado, a autora é integralmente detida pela A… Group, S.A. (“A… Group”), sociedade constituída de acordo com as leis do Luxemburgo;

10.a. Aquando da sua constituição, a 28 de fevereiro de 2012, o capital social da A… o Group foi subscrito pela seguinte forma: i) por G…, com uma participação de 95%, por G… com uma participação de 1,6 %, por H…, com uma participação de 1,6 % e por E… , com uma participação de 1,6% (doc.5 junto com a P.I, fls. 22 a 41)

10.b. A 14 de agosto de 2012 por C…e sua mulher F… foi constituído um Fundo Fiduciário – J…, com uma contribuição em dinheiro de 5.000 € por parte de C…e por 95% das ações da A… Group, S.A., por parte da sua mulher, Fundo este do qual C… e F… eram os Primeiros Beneficiários (fundadores), sendo os seus filhos os beneficiários finais.

10.c. Extinto o Fundo em 2017, as 95% das ações da A… Group (1.663.678 ) detidas por tal Fundo passaram a ser detidas pela seguinte forma: a) p1.488.553 ações pela F… ; b) 58.375 ações pela E… ; c) 58.375 ações por H…; d) 58.375 ações da A… por G… ;

10.d. C…é casado com F… sob o regime de comunhão de adquiridos, desde 19 de setembro de 1981.

11. (eliminado)

12. Na ação n. 4434/19.9T8LRA a aqui ré, conjuntamente com outras sociedades, pede a condenação da aqui autora no pagamento de quantias devidas pelo fornecimento, entre 31.5.2017 e 20.10.2017, de matérias primas.

Teremos ainda em consideração, o seguinte facto que se encontra demonstrado pela certidão junta como doc. 3, com a contestação[22]:

13. A Ré B… , S.A., tem por objeto a preparação de argilas e matérias primas para cerâmica.


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Regressemos, então, à subsunção dos factos ao direito.

3.2. Se o(s) contrato(s) que estiveram na base dos fornecimentos em causa são nulos ou anuláveis

Encontrando-nos perante o fornecimento de materiais argilosos por parte da autora, A… – Minerais Industriais, S.A., (no âmbito da sua atividade de extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias-primas para cerâmicas), à Ré, B… Soluções Cerâmicas, S.A., a decisão recorrida considerou não se tratar de um negócio entre a sociedade Ré e um seu administrador, mas apenas de um contrato celebrado entre as duas sociedades, ainda que com administradores comuns, sendo que um deles o é apenas de facto, não sendo, sequer, administradores únicos.

A Apelante/B…  insurge-se contra o decidido, alegando encontrarmo-nos perante um “negócio consigo mesmo” porque o Sr. C… era – indiretamente “por interposta pessoa” – contraparte nos contratos de fornecimento, sendo ele (em conjunto com a sua esposa o beneficiário efetivo, comportamento este proibido através do artigo 397º, nº2 do CComercial.

Vejamos assim se, por parte do fornecedor, nos encontraríamos perante um negócio celebrado por “interposta pessoa”, ou se poderemos estar perante um “negócio consigo mesmo”, sendo que, para ambas as qualificações a Apelante se socorre exatamente dos mesmos factos – o facto de o referido C…, por si só ou juntamente com o seu cônjuge, serem os detentores maioritários da A… Group, empresa que detém integralmente a Sociedade autora.

A interposição fictícia de pessoas verifica-se quando um negócio jurídico é realizado simuladamente com uma pessoa, dissimulando-se nele um outro negócio (real) de conteúdo idêntico ao primeiro, mas celebrado com outra pessoa, ou seja, celebrado o contrato entre as partes, o outorgante aparente no negócio (testa de ferro ou homem de palha) figurará apenas como titular aparente, titular nominal, com o objetivo de subtrair ao conhecimento de terceiros o nome de uma das partes envolvida no contrato ou de violar a lei[23].

Regulamentando a lei algumas situações de negócios por interposta pessoa – proibição de cessão de créditos (artigo 579º CC) e venda a filhos ou netos (artigo 877ºCC), a doutrina vem adotando, para efeitos do nº2 do artigo 397º do Código Comercial um conceito mais alargado do que a simples interposição fictícia de pessoas.

Raúl Ventura, sustenta o recurso a critérios legais civilísticos,  nomeadamente os fornecidos pelo artigo 579º, nº2[24], Código Civil, por força do qual se considerará que o administrador atua por interposta pessoa quando a contraparte da sociedade for: i) o cônjuge do administrador; ii) qualquer pessoa de quem o administrador seja herdeiro presumido, iii) qualquer pessoa com quem o administrador tenha um acordo com  vista à transmissão posterior da prestação cumprida pela sociedade[25].

Para Alexandre de Soveral Martins, “por interposta pessoa” abrange os casos em que o negócio é celebrado indiretamente através de outrem e, citando Beleza dos Santos, afirma que interpostas pessoas são “as que figuram nos negócios jurídicos como simples intermediários entre aqueles a quem esses atos interessam diretamente e sem terem qualquer interesse próprio nos atos que realizam. O seu fim é apenas permitir que se efetuem indiretamente por seu intermediário, os negócios jurídicos que se não querem ou não podem diretamente realizar[26]”.

Para efeitos do artigo 397º, nº2, incluir-se-ão, não apenas as referidas no artigo 579º, nº2, mas ainda outros sujeitos, singulares ou coletivos, próximos dos administradores em causa – todos os sujeitos que os administradores possam influenciar diretamente (v.g., uma sociedade de que o administrador é sócio maioritário)[27].

Propondo J. Sousa Gião que o critério de interposição de pessoas se deve bastar com a “interposição de interesses dos administradores”, tal critério tem vindo a ser considerado demasiado lato e vago pela doutrina[28].

Também não será possível dizer que é contrato por interposta pessoa todo aquele do qual o administrador retira uma vantagem (por ex. se é sócio dominante da contraparte)[29].

No caso em apreço, temos que a contraparte do negócio – a fornecedora dos serviços e materiais – é uma sociedade detida pelo seu cônjuge e filhos, (ou, eventualmente, maioritariamente por um Fundo de que eram beneficiários o C… e o seu cônjuge, uma vez que desconhecemos a data exata da transmissão das ações do Fundo para a F… e filhos), do então administrador da Ré, C….

Será que o facto de o fornecedor se tratar de uma sociedade detida na sua quase totalidade pelo seu cônjuge (ou por ambos) é suficiente para se considerar que a contraparte era o C…, por si ou por interposta pessoa, sendo que, a sociedade tem personalidade jurídica distinta dos detentores do seu capital?

Seguindo a corrente mais alargada, para a qual no conceito de “interposta pessoa” se encontrarão incluídos os negócios celebrados por terceiro (sociedade) na qual o administrador tem uma participação maioritária[30] ou detida maioritariamente pelo seu cônjuge, poderíamos considerar que, no caso em apreço se encontraria preenchido o requisito da celebração do negócio pelo administrador ou por “interposta pessoa”: o outro contraente é uma sociedade na qual ele e o seu cônjuge, ou eventualmente, apenas o seu cônjuge, detêm uma posição maioritária.

Contudo, segundo o disposto no 5 do artigo 397º do CSC, a proibição prevista no nº2 “não se aplica quando se trate de ato compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador”.  

Um negócio está “compreendido no próprio comércio da sociedade” quando seja ato da espécie daqueles em que tipicamente se traduz a atividade que constitui o objeto da sociedade. Daí que deva estar compreendido nesse comércio, não incluindo todo o ato necessário para prosseguir esse comércio, como seja, por ex., a contratação de um empréstimo[31].

E nenhuma “vantagem especial” o negócio proporciona ao administrador quando é celebrado em condições idênticas às aplicáveis a qualquer terceiro que celebra com a sociedade negócio da mesma espécie, sem, portanto, qualquer clausula intuitu personae[32].

E, se alguns autores sustentam que os requisitos para a dispensa de autorização previstos no nº5 são de verificação cumulativa[33], José Ferreira Gomes defende que de acordo com o seu teor literal, o artigo 397º abrange apenas os negócios que, concedendo vantagens especiais ou não sendo compreendidos no próprio comércio da sociedade (diretamente ou por interposta pessoa) sejam celebrados com accionistas que sejam simultaneamente administradores da sociedade[34]”.

De qualquer modo, ainda que se considerem de verificação cumulativa, entender-se-á que, tratando-se de negócios incluídos nas relações comerciais que integram na atividade social de ambos os contraentes, não será legítima a invocação da nulidade sem a alegação simultânea (independentemente da questão posterior do ónus da prova), de que tal transação tenha envolvido a concessão de qualquer vantagem especial para a contraparte.

Ora, no caso em apreço, os serviços em causafornecimento e transporte de caulinos e outros compostos etc., a que se reportam as faturas juntas aos autos datadas de maio a outubro de 2017 – foram feitos pela autora à Ré no “comércio próprio da sociedade” e no âmbito das respetivas atividades típicas  (de extração e exploração de argilas especiais, comercialização de matérias primas para cerâmicas, por parte da autora e de preparação de argilas e matérias primas para cerâmica), faturas que a Ré não quer pagar alegando ter descoberto que o seu administrador era beneficiário e administrador de facto da autora, invocando a nulidade do artigo 397º, nº2, sem que alegue qualquer irregularidade relacionada com a contratação de tais fornecimentos, nomeadamente que a Ré possa ter sido prejudicada com os mesmos por não respeitarem as condições correntes de mercado.

Aliás, atentar-se-á que, no âmbito das atividades que constituem o respetivo objeto social, a autora e a Ré manteriam relações comerciais bilaterais, ou seja, no âmbito das quais, não só a autora efetuava fornecimentos à Ré, como, também esta, efetuava fornecimentos/prestava serviços à autora, encontrando-se, aliás, pendente, uma ação interposta pela Ré contra a Autor peticionando o pagamento do preço de determinadas faturas (como afirma a testemunha Carina, a Autora era um fornecedor da Ré, mas nem sequer era o único).

José Ferreira Gomes, referindo-se à aplicação de tal regime para além do teor literal do artigo 397º do Código Comercial, por ex. à posição do terceiro insider que contrata com a sociedade (e.g., a acionista controlador, a sociedade controlada pelo administrador ou a sociedade na qual o administrador também exerce funções de administração), o que se pretende evitar é “o perigo de oportunismo decorrente da ligação especial à sociedade, para com esta contratar em circunstâncias «fora do mercado» (não acessíveis a outros terceiros) e com potencial prejuízo para a sociedade[35]”.

Como salienta Alexandre Soveral Martins, “não há uma proibição geral de celebrar negócios com partes relacionadas. Nem faria sentido que assim fosse uma vez que tais negócios não são sempre prejudiciais para a sociedade e/ou para os credores desta e/ou para os sócios minoritários”. As vantagens económicas no seio dos grupos podem ser consideráveis. Muitas vezes também, a sociedade (sobretudo a pequena sociedade) só pode sobreviver graças aos negócios com partes relacionadas[36].”

Não alegando a Ré que tais negócios tenham envolvido a concessão de quaisquer vantagens especiais ao outro contraente (nem estas sobressaindo da materialidade dada como provada), terá de improceder a invocação da nulidade ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 397º CSC.


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Quanto à anulabilidade por se tratar de um “negócio consigo mesmo”, encontra-se prevista no artigo 261º do Código Civil (norma que a Apelante não invoca como fundamento de recurso):

1. É anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses.

2. Considera-se celebrado pelo representante, para o efeito do número precedente, o negócio celebrado por aquele a quem tiverem sido substabelecidos os poderes de representação.

Nestas situações, o representante assume um duplo papel, surge simultaneamente em ambos os lados do contrato ou, num negócio unilateral, como declarante e declaratário, situações em que uma única pessoa faz de ambas as partes, que suscitam o perigo de preterição consciente ou mesmo inconsciente do interesse do representado ou de um dos representados, em proveito próprio ou dano primazia a um deles[37].

No caso em apreço, não só, não ficou demonstrado que o C… fosse administrador de facto da autora, como, ainda que o fosse, tratando-se de contratos não sujeitos à forma escrita, que se enquadram no âmbito da atividade que constitui o objeto social de cada uma das sociedades, sociedades estas governadas por órgãos plurais (sociedades anónimas), se desconhece, inclusivamente, se o referido C… teve intervenção direta em algum dos lados da contratação, sem que algo indicie que estes fornecimentos tenham tido alguma particularidade que os distinga dos fornecimentos que a autora efetuava aos demais clientes.

Como salienta José Ferreira Gomes[38], a preocupação do legislador que entendeu inexistir um perigo para a sociedade decorrente de contratos inseridos no comércio próprio da sociedade em que nenhuma vantagem especial é concedida ao administrador, insere-se num contexto mais vasto da redução teleológica das normas que prescrevem a nulidade ou a anulabilidade dos “negócios consigo mesmo”, de forma a excluir do seu âmbito de aplicação os negócios que não envolvem conflitos de interesses entre representante e representado.

 A Apelação é de improceder.


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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em, julgando a Apelação improcedente, confirmar a decisão recorrida.

Custas a suportar pela Apelante.

                                                                 Coimbra, 13 de abril de 2021


[1] Face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, em violação do disposto no nº1 do artigo 639º do CPC.
[2] Nas conclusões 14 a 22 e 23 a 29, perde-se em considerações teóricas sobre o espírito do artigo 397º e sobre as duas situações em que se pode apresentar o negócio consigo mesmo.
[3] Cfr., fls. 667 do suporte físico.
[4] Cfr. ponto 22 da matéria de facto contida na decisão proferida no âmbito da providencia cautelar nº 1281/18.9T8LRA-A, interposta por D…, S.A., e outros contra C…, junta como doc. 10 com a contestação, a fls. 73 e ss. do suporte físico.
[5] Acórdão que se acha junto a fls. 795 a 822 do suporte físico.
[6] Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, Novembro de 2018, http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/ , onde o mesmo afirma: “A autoridade de caso julgado apenas pode ser aposta a quem seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica como vem definido pelo artigo 581º, nº2. Seria absolutamente inconstitucional, por contrário à proibição da indefesa, prevista no  artigo 20º, nº4 da Constituição e no artigo 3º do Código de Processo Civil, que uma decisão vinculasse quem foi terceiro à causa” – cfr., pp. 18-19 e 28.
[7] Reproduzindo o já exposto pela aqui relatora no âmbito dos Acórdãos do TRC de 12 de janeiro de 2016 e de 8 de maio de 2018, proferidos no âmbito dos Proc. n° 393/09.4TBSEI.C1 e Proc. nº 4384/15.T8PBL.C1, disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Neste sentido, entre outros, João de Castro Mendes, “Limites Objectivos do Caso Julgado (…), pp. 38 e 39, José Alberto do Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora 1985, Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, LEX, Lisboa 1997, p. 572.
[9] Segundo Manuel Domingues de Andrade, o que a lei quer significar com a identificação do objeto da ação através do pedido e da causa de pedir, “é que uma sentença pode servir como fundamento da exceção de caso julgado quando o objeto da nova ação, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença; quando o Autor pretenda valer-se na nova ação do mesmo direito (…) que já lhe foi negado por sentença noutro processo – identificado esse direito não só através do seu conteúdo e objeto, mas também através da sua causa ou fonte (facto ou título constitutivo)” – “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora 1993, pág. 320.
[10] Fazendo coincidir as referidas funções positiva e negativa com a distinção entre autoridade e exceção de caso julgado, afirma Rodrigues Bastos: “Enquanto que a autoridade do caso julgado tem por finalidade evitar que a relação jurídica material, já definida por uma decisão com trânsito, possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica, a exceção destina-se a impedir uma nova decisão, inútil, com ofensa do princípio da economia processual – “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. III, Lisboa 1972, págs. 60 e 61.
[11] Obra citada, pág. 42 e 43.
[12] Não sendo possível uma nova ação sobre a mesma questão, e no caso da questio judicata vir a ser objeto de novo processo, o respeito pela res judicata seria assegurado, a título preventivo, pela exceção de caso julgado, e a título repressivo, pela circunstância de a nova decisão ser ferida de inexequibilidade (art. 675º) – cfr., Castro Mendes, obra citada, págs. 44 a 49.
[13] O que adquire a força e autoridade de caso julgado é a posição tomada pelo juiz quanto aos bens ou direitos (materiais) litigados pelas partes e à concessão ou denegação da tutela jurisdicional para esses bens ou direitos. Não a motivação da sentença: as razões que determinaram o juiz; as soluções por ele dadas aos vários problemas que teve de resolver para chegar àquela conclusão final (pontos ou questões prejudiciais) Manuel A. Domingues de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora 1993, pág. 318.
[14] Cfr., neste sentido, João de Castro Mendes, obra citada, pp. 76-77, sendo que, a tal respeito, dá o exemplo da sentença de absolvição do pedido: “desligando-a por completo dos seus fundamentos, a sentença de absolvição aparece-nos apenas com seguinte conteúdo: “o réu é absolvido do pedido formulado contra ele”. Como pode pretender atribuir-se força de caso julgado a esta frase vazia de conteúdo material?” – cfr., p. 101.
[15] “Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos desta decisão, Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Código de Processo Civil”, pp. 578-580.
[16] “Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil”, pág. 152.
[17] Cfr., obra citada, págs. 152 a 159.
[18] Miguel Teixeira de Sousa, “Objeto da sentença e caso julgado material”, in BMJ nº 325, págs. 172 e 173, e Remédio Marques, obra citada, págs. 688 e 689.
[19] Miguel Teixeira de Sousa, dá o seguinte ex. de prejudicialidade para efeitos de caso julgado: a absolvição do réu quanto ao pedido de pagamento do capital com fundamento na inexistência de qualquer contrato de mútuo celebrado entre as partes é vinculativa numa ação posterior em que o mesmo autor pede contra o mesmo réu o pagamento dos juros relativos ao mesmo capital; essa inexistência, que é fundamento da improcedência da ação, deve ser indiscutível na ação subsequente – pág. 581. Segundo Remédio Marques, no caso de o réu ser absolvido do pedido de pagamento à entidade bancária, autora, do capital e dos juros, por motivo de o contrato ser nulo, essa nulidade é vinculativa e indiscutível numa ação posterior em que a entidade bancária peça a resolução do contrato de abertura de conta, por falta de pagamento de capital e dos juros mutuados – obra citada, pág. 690.
[20] Ou, como refere José Lebre de Freitas, entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constituiu pressuposto da formulada – “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 3ª ed., Coimbra Editora, p.535.
[21] Miguel Teixeira de Sousa, “Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado”, in Revista de Direito e Estudos Sociais Out-Dez-1977, Ano XXIV, Nº4, p.306.
[22] Fls. 13 a 18 do suporte físico.
[23] Acórdão do STJ de 09-10-2014, relatado por Fernando Bento, disponível in www.dgsi.pt.
[24] Segundo o qual a cessão é efetuada por interposta pessoa quando é feito ao cônjuge ou por pessoa de quem este seja herdeiro presumido, ou, quando feita a terceiro, de acordo com o interessado, para aquele transmitir a este a coisa ou o direito cedido.
[25] Raúl Ventura, “Sociedades por Quotas, III, Almedina, Coimbra 1991, p. 57, citado por João Sousa Gião, “Conflitos de Interesses entre Administradores e os Accionistas na Sociedade Anónima: Os Negócios com a Sociedade e a Remuneração dos Administradores”, in “Conflito de Interesses no Direito Societário e Financeiro”, Almedina, p.253.
[26] Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores”, Almedina, p. 184.
[27] J. M. Coutinho de Abreu, “Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades”, 2ª ed., IDET, Almedina, p. 27, nota 43, e “Negócios entre sociedade e partes relacionadas (administradores, sócios) – sumário às vezes desenvolvido, in Direito das Sociedades em Revista, Março 2013, Ano 5, N.9, Almedina, p.15.
[28] Coutinho de Almeida, “Negócios entre sociedade e partes relacionadas (…)”, pp. 15-16, nota 7; também Alexandre de Soveral Martins sustenta não ser correto interpretar tal conceito de modo a incluir todos os casos em que o conflito de interesses existe, não sendo possível dizer que é contrato por interposta pessoa aquele do qual o administrador retira qualquer vantagem – “Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade (…), p. 184.
[29] Alexandre de Soveral Martins, “A Aplicação do artigo 397º às Sociedades por Quotas”, in II Congresso, Direito das Sociedades em Revista, Almedina, p.561.
[30] Entre os quais José Ferreira Gomes, segundo o qual “a inclusão deste caso-tipo no âmbito da aplicação do artigo 397º evita o esvaziamento do seu conteúdo útil, dado que em muitos casos (senão mesmo a maioria), os administradores não negoceiam diretamente com a sociedade na qual exercem funções, antes usando uma sociedade (ou outra pessoa) por si controlada para o efeito” – “Conflitos de interesse entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade e o seu acionista controlador”, in “Conflitos de Interesses no Direito Societário e Financeiro, Um Balanço a partir da crise Financeira”, Almedina, pp. 102-103.
[31] Alexandre Soveral Martins, “Administração de Sociedades Anónimas (…), p.186.
[32] Coutinho de Almeida, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Vol. VI, pp. 329-330.
[33] É o caso de Alexandre de Soveral Martins, segundo o qual, mesmo que o ato esteja compreendido no comércio da sociedade, desse ato não podem resultar vantagens especiais para o contraente administrador. O negócio tem de ser celebrado nas condições normalmente verificadas com terceiros (têm de ser as habituais não apenas na sociedade em causa, mas também noutras empresas do sector de atividade – “Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores”, p. 186.
[34] Ainda segundo tal autor, “há todo um universo de self dealing transations objeto de estudo que não estão sujeitas a este mecanismo de controlo, incluindo: i) negócios com accionistas administradores em que lhes são concedidas vantagens especiais, mas compreendidos no próprio comércio da sociedade; iii) negócios com accionistas administradores não compreendidos no próprio comercio da sociedade, mas em que não são concedidas vantagens especiais aos administradores” – “Conflitos de interesse entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade e o seu acionista controlador”, in “Conflitos de Interesses no Direito Societário e Financeiro, Um Balanço a partir da crise Financeira”, p. 102.
[35] José Ferreira Gomes, “Conflitos de interesses entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu acionista controlador”, local citado, p. 109.
[36] “Administração de Sociedades Anónimas e Responsabilidade dos Administradores”, p.176.
[37] Raul Guichard, Catarina Brandão Proença e Ana Teresa Ribeiro, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica Editora, p. 633.
[38] Artigo e local citados, p. 113.