Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
376/14.2T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALCINA DE COSTA RIBEIRO
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS NÃO SUFICIENTEMENTE INDICIADOS
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE VISEU – J 1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 308.º, N.º 2, DO CPP
Sumário: A falta de fundamentação do despacho de não pronúncia, nomeadamente a ausência de descrição dos factos tidos por não suficientemente indiciados, consubstancia uma nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.
Decisão Texto Integral:



I. RELATÓRIO

1. Nos autos de inquérito crime, em que é queixoso e assistente, A... , foi proferido despacho de arquivamento relativamente ao crime de falsificação de documento previsto e punido pelo artigo 256º, nº 1, al. d) e nº 3, al. a), do Código Penal e ao crime de falsas declarações previsto e punido pelo artigo 97º, do Código de Notariado.

2. O assistente, não se conformando com o despacho de arquivamento referido em 1, requereu a abertura de instrução e pronúncia dos denunciados, B ... , C ... , D ... , E... , F... , G... e H... , pela prática dos crimes de falsificação de documento e de um crime de burla, previsto e punido, respectivamente, pelos artigos 256º, nº 1, al. d) e nº 3 e 153º, nº 1, do Código Penal.

3. Finda a instrução, foi proferido despacho de não pronúncia dos arguidos, confirmando-se o sentido da decisão de arquivamento do inquérito.

4. Inconformada, recorre a Assistente, extraindo da respectiva motivação as conclusões que se sintetizam:

«1. O despacho recorrido omitiu a decisão fáctica não descrevendo nem especificando quais os factos do requerimento de abertura de instrução que se consideram suficientemente indiciados, por prova documental e/ou testemunhal, limitando-se a enumerar os que como tal não se consideram;

2. Só após tal enumeração, o tribunal a quo podia decidir se os factos indiciados eram ou não suficientes para sujeitar ou não os arguidos a julgamento pelos crimes imputados;

3. Tais omissões acarretam a nulidade do despacho de não pronúncia;

4. Quanto à matéria fáctica o tribunal a quo é muito parco e contraditório com a prova apresentada e não contrariada por nenhuma outra prova, limitando-se a referir que não se mostram indiciados determinados factos, não fazendo qualquer alusão à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida no debate instrutório;

5. O tribunal a quo não valorou a prova documental junta aos autos, designadamente, a carta que comprova a previa preparação de partilhas, os processos de liquidação de impostos sucessórios, onde constam os imóveis que seriam partilhados e que faziam parte do acervo patrimonial dos pais da arguida, B... , além de que estes documentos seriam suficientes para provar a ligação familiar e de hereditariedade com a arguida e seus filhos também arguidos, do conhecimento também dos restante arguidos intervenientes na escritura pública;

6. Perante a prova produzida, o tribunal deveria ter considerado que os arguidos tinham conhecimento de que os factos constantes da escritura de justificação notarial e do prévio edital eram falsos, e bem assim quiserem e tiverem intenção de que estes ficassem a constar em instrumento público e, com isso, prejudicar os restantes herdeiros, obtendo para si um enriquecimento ilegítimo, através dos factos astuciosamente provocados;

7. Nenhuma outra prova foi produzida que contrariasse a prova documental produzida;

8. O indeferimento da audição do assistente não contribui para o apuramento da verdade material;

9. A arguida, B... , quis fazer seus, através da escritura de justificação notarial, teve o firme propósito de obter o registo dos mencionados prédios a seu favor, antecipando-se ao eventual processo de inventário e partilha de bens, prejudicando assim os demais herdeiros de M... e N... , designadamente o assistente;

10. E, para assim, contou com a participação dos outros co-arguidos que, perante oficial público, confirmaram como verdadeiras as declarações que sabiam ser falsas.

11. Apesar de alguma jurisprudência descriminalizar a prestação de falsas declarações perante notário, terá que se verificar, caso a caso, se estamos perante uma situação de dolo por parte dos arguidos, revelado na intenção de causar prejuízo aos restantes herdeiros, obtendo para si ou para outras pessoas, como os filhos, benefícios ilegítimos, o que se verifica no caso sub judice.

12. A escritura pública é um documento falso, por o seu suporte ideológico – realidade que retrata – não corresponder à realidade factual.

5. A arguida B ... e o Exmo. Senhor Procurador defendem a manutenção da decisão recorrida.

6. Nesta Relação, o Digno Procurador – Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

7. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre, agora, decidir.

II. THEMA DECIDENDUM

- Nulidade da decisão instrutória;

- Reinquirição do assistente na instrução;

- Indícios suficientes;

III – A DECISÃO RECORRIDA

A decisão instrutória objecto deste recurso tem o seguinte teor:

«I. RELATÓRIO

No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito instaurado contra os denunciados, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal (fls. 147-153).

Inconformado com a decisão proferida, veio o assistente A ... requerer a abertura da instrução (fls. 183-199), onde pugna pela pronúncia dos arguidos B ... , C ... , D ... , E... , F... , G... e H... , pela prática dos seguintes ilícitos criminais:

– um crime de falsificação de documento, p. p. pelo art. 256.º nºs 1 al. d) e 3 do Código Penal; e

– um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º n.º 1 do Código Penal (a referência ao art. 153.º mais não é do que um lapso).


*

Foi declarada aberta a instrução.

No âmbito da instrução, foram inquiridas três testemunhas indicadas pelo assistente.

Foram juntos aos autos documentos.


*

Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância.

Procedeu-se à realização de debate instrutório com observância do legal formalismo.


*

Questão prévia/nulidade derivada da insuficiência de inquérito:

Nos termos do art. 120.º n.º 2 al. d) do Código de Processo Penal, constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais, a insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

Acrescenta o seu n.º 3 al. c) que as nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.

No seu requerimento para abertura de instrução, afirma o assistente, nos pontos 55 e 56, que o inquérito padece de nulidade, uma vez que o Ministério Público “não cuidou de investigar convenientemente o sucedido e, principalmente, por distracção ou omissão, não fez correcta apreciação das provas.”

Ora, com o devido respeito por diferente opinião, não se pode acompanhar este raciocínio, na medida em que foram ouvidas as pessoas que se reputaram de pertinentes para a descoberta da verdade. Por outro lado, o despacho de arquivamento do inquérito é claro nas suas razões e mais não é do que o resultado da ponderação e interpretação, de facto e de direito, que o Ministério Público fez da prova carreada para os autos – o assistente pode até discordar das conclusões a que chegou a investigação, sem que tal, parece evidente, constitua motivo bastante para eivar de nulidade o respectivo inquérito.

Nesta medida, entende-se não existir qualquer insuficiência de inquérito, reservando-se para a presente fase de instrução a recolha de outros elementos de prova que, no entender do assistente, poderão conduzir a um despacho de pronúncia.

Pelo exposto, julga-se improcedente a invocada nulidade.


*

Não se suscitaram nem verificaram outras excepções, nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa – cf. o art. 308.º n.º 3 do Código de Processo Penal.

A instrução está encerrada.

II.FUNDAMENTAÇÃO

A. Considerações gerais

A instrução é uma fase processual com carácter facultativo e que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286.º do Código de Processo Penal.

Se até ao encerramento de instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos ou, caso contrário, profere despacho de não pronúncia, na certeza de que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cf. os art.s 283.º n.º 2 e 308.º nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

O juízo a formular caracteriza-se então por ser, simultaneamente, de ordem retrospectiva (um juízo a fazer da prova realizada em torno de factos passados), bem como de ordem prospectiva (suposição acerca da produção de prova a realizar em julgamento).

O tribunal não pretende ser fastidioso na análise do que por “possibilidade razoável” se deverá entender, porque já muito se escreveu na nossa doutrina e jurisprudência sobre o tema, não deixando contudo de tecer umas breves considerações, sintetizando as três orientações que se podem respigar consoante o grau de exigência a formular:

– há quem entenda que o arguido deve ser levado a julgamento quando há a possibilidade de o mesmo ser condenado, bastando-se assim com a constatação de que é possível a simples ou a mera possibilidade de o arguido ser condenado.

– uma outra medida de indícios suficientes é aquela que se estriba na fórmula da possibilidade preponderante ou dominante da condenação, quase que assente num modelo estatístico, de que é mais provável a condenação do que a absolvição.

– por último, subsiste a tese, mais exigente, de que só deverá ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido, quando haja uma forte e séria possibilidade de a condenação do mesmo vir a ocorrer em fase de julgamento.

A posição que recolhe os favores da esmagadora maioria é precisamente esta última, falando-se, a propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação, ou ainda em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado ou pronunciado.

Nesta linha de orientação, posiciona-se FIGUEIREDO DIAS, que definiu a suficiência indiciária ou probatória quando, já em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. (in Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 133)

E também CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA se pronunciou no mesmo sentido quando defende que apenas “o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de possibilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e que é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo.” (in Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar, Revista do CEJ, n.º 1, págs. 151 a 190)

Na verdade, crê-se que o juízo ou a convicção a estabelecer na fase da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia, há-de ser (quase) equivalente ao de julgamento, quer ao nível da apreciação da fenomenologia, quer na objectividade da indagação fáctica e na apreciação do material probatório, quer ainda na conformação desse material probatório às normas atinentes com as proibições de valoração de prova e na racionalidade lógica em que assenta a apreciação dos elementos probatórios coligidos. A grande diferença de convicção, no momento do inquérito/instrução ou no momento do julgamento, reside, precisamente, no contexto ou na ambiência em que essas provas se produzem, dado que, em audiência de discussão e julgamento, esta fase é marcada pelos princípios da concentração e, sobretudo, pelo princípio do contraditório, enquanto acto de defesa, cuja verificação em inquérito/instrução apenas se descortina em determinadas situações – esta opção surge reforçada pelo indelével carácter criminógeno que representa a indevida sujeição do arguido à fase de julgamento, o que, por imperativos de justiça, deve ser evitado. (cf., neste sentido e entre muitos outros, o Ac. da RP, de 20/1/2010, proc. n.º 25/08.8TARSD.P1, dgsi.pt)

Nesta sequência, dir-se-á que só indícios necessariamente fortes ou de elevada intensidade são suficientes para, findo o inquérito ou a instrução, ser deduzida acusação ou proferido despacho de pronúncia – os indícios podem ser reputados suficientes quando das diligências efectuadas durante o inquérito/instrução resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e o arguido é responsável por ele.

Ou seja e em jeito de resumo, os indícios serão suficientes quando os elementos de facto trazidos ao processo pelos meios probatórios, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, formam um todo persuasivo da culpabilidade do arguido.

B. Os tipos legais de crime

O assistente imputa aos arguidos a prática de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla.

Preceitua o art. 217.º n.º 1 do Código Penal que quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Assim, são elementos constitutivos deste tipo de ilícito:

1. Uso de erro ou engano, astuciosamente provocado, sobre factos.

2. Determinação de outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.

3. Intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo.

4. Existência de prejuízo patrimonial.

O bem jurídico protegido com esta incriminação é, nas palavras de ALMEIDA COSTA, “o património, globalmente considerado”, com o que se afasta das concepções que, de forma isolada ou em conjunto com o património, reconduzem o bem jurídico da burla à lealdade, á transparência, boa-fé ou verdade nas transacções ou na confiança da comunidade nessa mesma lealdade. (in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 275)

Não obstante as dificuldades que se suscitam na formulação deste tipo de crime, particularmente no que concerne aos meios de execução, indiscutível é a necessidade da existência por parte da vítima de erro ou engano sobre determinados factos.

Por erro, deve entender-se a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento do ofendido. Ao seu lado, e como meio de execução da burla, coloca-se também o engano que equivale a uma simples mentira (neste sentido, MARQUES BORGES, in Crimes Contra o Património em Geral, pág. 22).

Todavia, e ao lado de um dolo já de per si específico, em que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo, é essencial que o erro ou o engano tenham sido astuciosamente provocados pelo agente da infracção através da utilização de um meio engenhoso, afastando-se assim a punibilidade a título de negligência.


*

Por seu turno, o crime de falsificação de documento surge tipificado no art. 256.º do Código Penal, aqui se transcrevendo o que agora nos interessa.

1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

Acrescenta o seu n.º 3 que se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267º, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.

O crime de falsificação de documentos, visando salvaguardar a confiança no tráfico jurídico, protege um interesse colectivo que se consubstancia na credibilidade que a comunidade neles deposita e na segurança que, enquanto privilegiados meios de prova, possuem.

Sendo o crime de falsificação de documento um crime formal ou de mera actividade, visto não exigir a produção de um qualquer resultado, é também aquilo que a doutrina considera um crime de perigo abstracto ou presumido, uma vez que, sendo o perigo apenas “motivo de proibição” e a razão de ser da aplicação da lei, não é, porém, o elemento constitutivo do tipo legal, presumindo o legislador, jure et de jure, que, sendo uma actividade perigosa, a simples falsificação de documento é suficiente para preencher a conduta objectivamente típica.

Existe, portanto, uma punição do chamado âmbito pré-delitual, originando como que uma antecipação da punibilidade justificada pela importância primordial que o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação de documento assume no seio da sociedade.

Neste ilícito criminal, a lei não se basta com o conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime, exigindo, ainda, uma particular intenção de praticar o crime - elemento subjectivo específico do ilícito -, ou seja, uma especial “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo”.

Assim, só é punido aquele que agiu com dolo específico; estamos perante o que a doutrina designa como crime intencional ou de tendência interna transcendente, em que basta a intenção de atingir um determinado resultado para preencher o tipo de ilícito, não sendo necessário o efectivo alcance ou verificação para que o agente seja punido.

C. Os indícios

O assistente entende que os arguidos praticaram um crime de falsificação de documento e um crime de burla.

Para tanto e em síntese, afirma que os arguidos B ... , por si e como procuradora do seu marido O...., na qualidade de 1.os outorgantes, e os arguidos C ... , D ... e E... , na qualidade de 2.os outorgantes, na escritura de justificação notarial celebrada no dia 12 de Abril de 2011 no Cartório Notarial de (...) , prestaram falsas declarações e/ou atestaram a veracidade das mesmas.

O assistente afirma que os arguidos bem sabiam que as declarações que prestavam e/ou atestavam não correspondiam à verdade, colocando desta forma em causa a fé pública e a credibilidade de que goza uma escritura notarial. Com este procedimento, pretendeu a arguida B... adquirir a propriedade de bens imóveis que sabia não lhe pertencerem, visando os arguidos enganar e prejudicar os restantes herdeiros, obtendo para aquela um benefício patrimonial a que sabiam não ter direito.

Mais afirma que a arguida B... , numa tentativa de omitir o procedimento que sabia ilegal, decidiu transmitir os bens imóveis que havia adquirido falsamente, aos seus filhos, os outros arguidos F... , G... e H... , os quais tinham conhecimento de que os bens imóveis eram dos seus falecidos avós e subsequentemente pertenciam à herança destes, o que não os impediu de agirem conjuntamente com a sua mãe, apenas buscando alcançar um benefício económico para si próprios, em prejuízo dos seus tios, designadamente do ora assistente.

O tribunal, na apreciação que faz dos indícios, começa por dizer que o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público é por demais esclarecedor na sua motivação, quase sentindo tentação de acompanhar na íntegra os respectivos fundamentos.

Com efeito, afirma o assistente que os outorgantes foram expressamente advertidos pelo Sr. Notário de que incorriam em responsabilidade criminal, nomeadamente na prática de um crime de falsas declarações, se prestassem ou confirmassem declarações não verdadeiras (pontos 24º e 25º do RAI).

Nos termos do art. 97.º do Código do Notariado, os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura.

Porém, como bem salienta o Ministério Público, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2015, de 3 de Março, declarou este normativo legal inconstitucional com força obrigatória geral, pelo que, tal como resulta do disposto no art. 282.º da Constituição da República Portuguesa, deixou de vigorar no ordenamento jurídico português.

Pode ler-se na respectiva fundamentação:

“A segurança jurídico-criminal e a preservação do princípio da igualdade só ficam satisfeitos quando a decisão individualizada e concreta de condenação se pode fundar numa previsão normativa definidora, de forma certa e determinada, não só dos pressupostos, mas também da medida da punição.

Não cumpre, manifestamente, esta exigência contida no princípio da legalidade criminal a remissão para a pena do crime de falsas declarações perante oficial público. Do catálogo de crimes tipificados não faz parte nenhum com esta designação. Os tipos mais próximos são os previstos nos artigos 359.º e 360.º do Código Penal. Mas não seria certo, desde logo, qual destas previsões - a que cabem molduras penais diferenciadas - estaria mais vocacionada para fixar a punição de uma conduta incriminada ao abrigo do artigo 97.º do Código do Notariado. [...]

Como se vê, são múltiplas e inultrapassáveis as barreiras que obstam à objetiva determinabilidade, com um mínimo de certeza, da pena que cabe a uma conduta sujeita a incriminação pelo artigo 97.º do Código do Notariado. Em consequência, é de ajuizar que esta norma viola o princípio da legalidade penal, consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da CRP.”

O assistente defende a prática de um crime de falsificação de documento.

No entanto, também neste caso, já anteriormente se entendia que não se mostravam preenchidos os pressupostos de que depende a verificação do crime.

Nas palavras de HELENA MONIZ, “não existe, pois, actualmente, no sistema jurídico português, nenhum tipo legal de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa-fé para inserir no documento elementos inexactos ou falsos. E quanto a nós correctamente, visto que a actividade de falsificação irá ser integrada no tipo legal de crime que temos vindo a analisar, e apenas a indução em erro parece não ser punida, sendo certo que irá ficar sujeita aos mecanismos de invalidação dos actos jurídicos do direito civil”. (in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 679)

E várias são as decisões dos nossos tribunais superiores que já se pronunciaram neste mesmo sentido.

O tribunal cita, a título meramente exemplificativo, os seguintes arestos, alguns deles igualmente mencionados no despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público: 

Ac. da RP, de 14/4/2010, proc. n.º 5316/04.4TDPRT.P1: A declaração inverídica perante o notário, no acto da celebração da escritura pública de dissolução de sociedade, segundo a qual esta não tinha qualquer passivo a liquidar não é susceptível de constituir o crime de falsificação de documento do artigo 256º do Código Penal.

Ac. da RC, de 19/2/2014, proc. n.º 45/12.8TATMR.C1: Não comete o crime de falsificação, na modalidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º, do CP, quem presta, perante o notário, que as faz consignar em escritura de justificação, falsas declarações relativas à propriedade e posse de um prédio urbano.

Ac. da RC, de 26/3/2014, proc. n.º 18/10.5TATND.C1:I - O segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do CP - “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” - apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção, consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade, que exige concomitantemente a feitura do documento.

II - Deste modo, a declaração de factos falsos destinados a escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, al. d), do CP.

Ac. da RP, de 2/7/2014, proc. n.º 4741/10.6T3SNT.P1:I - Antes da entrada em vigor das alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n° 19/2013, de 21/2, não é criminalmente punida a conduta do arguido que intervém numa escritura pública de compra e venda e de cessão de posição contratual, na qualidade de procuradora de alguém que bem sabia já ter falecido, mesmo que a procuração não tenha sido outorgada em seu benefício, e omite a morte do Mandante ao Notário.

II - Após a entrada em vigor de tal lei, tal conduta poderá, se reunidos os restantes elementos do tipo, segundo alguma doutrina, ser subsumível ao crime de falsas declarações previsto no art.º 348º-A do C. Penal.

Ac. da RC, de 18/3/2015, proc. n.º 768/12.1TAVIS.C1: O segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante” apenas inclui a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento, e não a mera declaração de factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem.

A fundamentação destas decisões afigura-se clara.

Aliás, não é por acaso que o legislador sentiu necessidade de introduzir alterações no Código Penal, aditando o art. 348.º-A através da Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, mas esta alteração, logo se vê, é posterior à data da prática dos factos que agora nos ocupam.

Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, tem-se por não verificado o crime de falsificação de documento.

E o mesmo se diga relativamente ao alegado crime de burla.

Com efeito e com o devido respeito por diferente opinião, a celebração da escritura de justificação notarial não encerra em si mesmo, de modo algum, a utilização de alguma manobra astuciosa ou ardilosa, susceptível de provocar algum engano na alegada vítima sobre determinados factos; ao invés, o ora assistente logo se insurgiu contra o que, na sua opinião, não passa de uma tentativa de enriquecimento ilegítimo – só que este eventual comportamento deve ser objecto de apreciação nas competentes instâncias cíveis.


*

Por fim, o tribunal, nem depois de ouvir as testemunhas inquiridas em sede de instrução, tão pouco se convenceu de que as declarações constantes da escritura de justificação não correspondem à verdade, porque bem se vê que estas possuem um interesse reflexo em todo este processo, não lhes sendo indiferente, na qualidade de familiares dos falecidos M... e N... , o resultado da lide – se o tribunal der por assente a falsidade dos factos justificados na escritura, também eles sem beneficiados.

Todas estas questões, repete-se, deverão ser objecto de análise e ponderação, depois de sopesadas as provas produzidas, mas numa acção cível que venha a ser instaurada por aqueles que pretendam fazer valer os direitos que pensam assistir-lhes.


*

O tribunal, em resumo, pode portanto concluir que não se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:

– os arguidos B ... , por si e como procuradora do seu marido O... , na qualidade de 1.os outorgantes, e os arguidos C ... , D ... e E... , na qualidade de 2.os outorgantes, na escritura de justificação notarial celebrada no dia 12 de Abril de 2011 no Cartório Notarial de (...) , prestaram falsas declarações e/ou atestaram a veracidade das mesmas;

– os arguidos bem sabiam que as declarações que prestavam e/ou atestavam não correspondiam à verdade, colocando desta forma em causa a fé pública e a credibilidade de que goza uma escritura notarial;

– a arguida B... pretendeu desta forma adquirir a propriedade de bens imóveis que sabia não lhe pertencerem, visando os arguidos enganar e prejudicar os restantes herdeiros, obtendo para aquela um benefício patrimonial a que sabiam não ter direito;

– a arguida B... , numa tentativa de omitir o procedimento que sabia ilegal, decidiu transmitir os bens imóveis que havia adquirido falsamente, aos seus filhos, os outros arguidos F... , G... e H... , os quais tinham conhecimento de que os bens imóveis eram dos seus falecidos avós e subsequentemente pertenciam à herança destes, o que não os impediu de agirem conjuntamente com a sua mãe, apenas buscando alcançar um benefício económico para si próprios, em prejuízo dos seus tios, designadamente do ora assistente;

– todos os arguidos agiram de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Por tudo, forçoso é concluir que não existem suficientes indícios da verificação dos crimes, pelo que será proferido despacho de não pronúncia.

III - DECISÃO INSTRUTÓRIA

Pelo exposto, o tribunal decide não pronunciar os arguidos B ... , C ... , D ... , E... , F... , G... e H... pela prática do crime de falsificação de documento e burla que o assistente lhes imputava».

IV. DO MÉRITO DO RECURSO

1. Nulidade da decisão instrutória

O recorrente aponta à decisão instrutória o vicio de nulidade, por omissão da descrição e especificação «dos factos do requerimento de abertura de instrução que se considerem suficientemente indiciados, apenas se limitando a enumerar os que como tal se não consideraram, e atendendo á prova documental e testemunhal constante dos autos existem factos que deveriam ser considerados como indiciados».

Esta questão não é nova e sobre ela já tomámos posição, enquanto Adjunta, no Acórdão desta Relação de 12 de Junho de 2015 relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador Luís Coimbra, onde então se escreveu:

«É por demais consabido que a decisão de pronúncia, tal com a de não pronúncia, assume a natureza de acto decisório, porquanto assim são definidos os despachos dos juízes, quando, não se tratando de sentenças, puserem termo ao processo, nos termos do artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Além disso, tal como decorre do artigo 308º do CPP, o despacho de não pronúncia (aquele que aqui tem relevo) tem de conter os elementos referidos no artigo 283.º, n.ºs 2 e 3, sem prejuízo da 2.ª parte do n.º 1 do artigo 307.º, do CPP, em que se consagra que o juiz pode fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.

Com efeito, de modo a permitir que o Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela decisão de pronúncia ou não pronúncia, torna-se necessário saber qual a base indiciária tida por assente pela 1.ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido.

Por isso, o despacho de não pronúncia há-de elencar, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de prova indiciária.

(…)

Torna-se, pois, claro que a decisão sob recurso não deu cumprimento ao determinado no artigo 308.º, n.º 2, do CPP.

E qual a consequência que daí deve ser retirada?

A propósito desta questão, entendemos por bem citar o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 26/10/2011, Processo n.º 199/10.8GDCNT.C1, relatado por Alberto Mira, e publicado in www.dgsi.pt, onde pode ser lido o seguinte:

“Neste domínio têm existido profundas divergências na jurisprudência dos Tribunais da Relação.

Versando concretamente o despacho de não pronúncia, há quem entenda que se trata de uma irregularidade que pode ser conhecida oficiosamente, por aplicação ao caso do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Diversamente, referem outros tratar-se de uma nulidade oficiosamente cognoscível em sede de recurso].

Quanto a nós, seguimos, ao “pé da letra”, a posição assumida no Ac. da Relação do Porto de 07-07-2010, importando distinguir os casos de despacho de pronúncia com falta de narração dos factos indiciados dos casos de despacho de não pronúncia deficientemente fundamentado por não conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência de indícios.

A nulidade que se vislumbra decorre do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º, reportada ao n.º 2 do artigo 308.º, do CPP.

É de admitir que, quando referida a uma acusação ou ao despacho de pronúncia, tal nulidade, por omissão de narração dos factos imputados ao arguido, pelos quais deverá responder em julgamento, seja considerada insanável, tendo em vista a lógica do sistema e o princípio da acusação.

Efectivamente, nesta situação, se a falta de descrição dos factos na acusação pode ser conhecida oficiosamente, determinando a rejeição desta como manifestamente infundada [artigo 311.º, n.º 3, al. b) do CPP], seria destituído de todo o sentido que a falta de factos do despacho de pronúncia não consubstanciasse nulidade de conhecimento oficioso.

Dito de outro modo: os casos elencados no n.º 3 do artigo 311.º que se contêm na previsão das diversas alíneas do n.º 3 do artigo 283.º constituem uma forma de nulidade “sui generis”, insanável e de conhecimento oficioso.

Os demais casos do n.º 3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.

Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação se traduza numa nulidade que é sanável e, assim, dependente de arguição.

Consequentemente, deveria ter sido suscitada, pela assistente, perante o tribunal a quo (e não em recurso), no prazo de 10 dias (artigo 105.º, n.º 1, do CPP), contados a partir da notificação ao arguido do despacho de não pronúncia. Porque assim não sucedeu, está sanada”».

Mantemos esta orientação.

No caso em apreço, nem o assistente, nem o Ministério Público, em primeira instância, arguiram a nulidade da decisão instrutória de não pronúncia, encontrando-se, por isso, sanada, nos termos sobreditos.

Mas mesmo que, assim, não se entenda, a forma como foi elaborada a decisão instrutória obedece ao dever de fundamentação das decisões judiciais consagrado constitucionalmente.

Com efeito, o despacho de não pronúncia, após proceder ao saneamento do processo, de conhecer as nulidades arguidas pelo assistente e de tecer as considerações legais sobre os ilícitos imputados aos arguidos, faz a análise dos indícios, em relação aos factos caracterizadores dos crimes de falsificação e de burla.

Para tanto, analisa concretamente a factualidade que, ao caso interessa e descrita no requerimento de abertura de instrução (fls. 285), para concluir (fls. 285 a 287) que a conduta dos arguidos (ainda que todos os factos imputados aos arguidos fossem julgados como indiciados) não integraria os elementos típicos dos crimes de falsificação e burla.

Porém e não obstante este entendimento, ainda assim, aprecia as declarações das testemunhas inquiridas para concluir que os factos elencados a fls. 289 e 290 não se mostram indiciados.

A forma como está estruturada a decisão instrutória, encontra-se, assim, devidamente fundamentada, sendo claramente perceptível quais os factos indiciados e não indiciados, não se lhe podendo apontar o vício da nulidade de conhecimento oficioso.

2. Reinquirição do assistente na instrução

Ao alegar, na Conclusão nº 12, que o recorrente deveria ter sido reinquirido, no âmbito da instrução, com vista a colmatar as deficiências ou insuficiências das declarações decorrentes da omissão do inquiridor nas questões colocadas ao assistente, coloca em crise o despacho proferido em 11 de Abril de 2016, que indeferiu a tomada de declarações complementares ao assistente.

Tal despacho foi notificado ao recorrente, através de carta registada com prova de depósito em 16 de Abril de 2016, não tendo sido objecto de reclamação ou de impugnação, por via de recurso.

Ora, os despachos, depois de proferidos, só podem ser modificados, por duas vias de impugnação: recurso e reclamação.

«Pode definir-se o recurso como o meio processual destinado a provocar a reapreciação da sentença por forma a corrigir certas imperfeições que, pela sua importância, não consentem uma forma de remédio mais solene.

Trata-se, pois, do meio processual destinado a sujeitar a decisão judicial a uma nova apreciação jurisdicional por um tribunal superior.

O recurso representa um pedido de revisão da legalidade ou ilegalidade da decisão judicial, a fazer por órgão judicial diferente (superior hierarquicamente) em face de argumentos especiais feitos valer;

A reclamação representa um pedido de revisão do problema sobre que incidiu a decisão, a operar pelo mesmo órgão judicial e sobre a mesma situação em face da qual decidiu. (…)

Dito de uma forma simples e abreviada, a decisão transita quando se torna firme, imutável, definitiva» - Manuel Simas Santos e Manuel Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, pág. 20 a 22.

  No caso dos autos, a decisão que indeferiu a tomada de declarações complementares ao assistente consolidou-se no momento em que se tornou insusceptível de impugnação (cf. artigo 291º, do Código de Processo Penal), não podendo, assim, ser reapreciada nesta instância.

      

3.Os indícios

3.1. Factos imputados aos arguidos

No requerimento de abertura de instrução, o assistente imputa aos arguidos os seguintes factos:

- Os arguidos B ... , por si e como procuradora do marido O... , na qualidade de primeiros outorgantes e os arguidos C ... , D ... e E... , na qualidade de segundo outorgantes, declararam perante o notário que, os primeiros arguidos com exclusão de outrem, desde 1986, eram donos e legítimos possuidores dos prédios sitos na Figueira, tendo-os adquirido por doação verbal feita por M... e N... , estando na posse dos mesmos, desde, pelo menos, o ano de 1986.

Os restantes arguidos declararam a veracidade e confirmaram estas declarações.

Os bens constantes da escritura faziam parte do acervo hereditário de M... e N... , pais da arguida B... .

Desde há algum tempo que se pretendia efectuar o respectivo inventario e partilha dos bens que compunham aquela herança, facto que é do conhecimento dos arguidos.

Decidiram os denunciados transmitir os imóveis que haviam adquirido falsamente, aos seus filhos, F... , G... e H... .

Porém, os factos declarados são falsos, por não corresponderem à verdade.

Os arguidos bem sabiam que as declarações que prestavam e/ou atestavam não correspondiam à verdade, colocando desta forma em causa a fé pública e a credibilidade de que goza uma escritura notaria.

Com este procedimento, pretendeu a arguida B... adquirir a propriedade de bens imóveis que sabia não lhe pertencerem, visando os arguidos enganar e prejudicar os restantes herdeiros, obtendo para aquela beneficio a que sabiam não ter direito.

A arguida B... , numa tentativa de omitir procedimento que sabia ilegal, decidiu transmitir os bens imóveis que havia adquirido falsamente, aos seus filhos, os outros arguidos F... , G... e H... , os quais tinham conhecimento de que os bens imóveis eram dos seus falecidos avós e subsequentemente pertenciam à herança destes, o que não os impediu de agirem conjuntamente com a sua mãe, apenas buscando alcançar um beneficio económico para si próprios, em prejuízo dos seus tios, designadamente, o ora assistente.

3.2. Meios de prova

Com vista ao apuramento dos factos, tomaram-se declarações ao assistente, a K...., C ... , D ... , E... , F... , G... e H... , no âmbito do inquérito.  

O assistente que confirmou os factos participados.

K... confirmou ter advertido os declarantes que poderiam incorrer na prática de um crime de falsas declarações, desconhecendo os justificantes ou as testemunhas.

C ... , D ... , E... afirmaram que acompanharam a arguida B... ao notário a fim de testemunhar que a mesma e marido já tratavam dos terrenos pertencentes aos pais da mesma, há mais de 20 anos, o que é verdade, sendo que unicamente prestaram juramento para este facto, desconhecendo os contratos existentes entre os familiares bem como os termos em que passaram para a sua posse.

F... declarou ter herdado dos seus pais, em 2012, uma parcela de terreno que os avós tinham deixado aos pais, sendo que na altura o assistente recebeu terrenos dos pais dele, os quais tinham o mesmo valor.

G... referiu, também, ter herdado o que os pais lhe deixaram, sendo que os avós em vida há mais de 26 anos doaram quase todos os terrenos aos filhos, sendo que na altura, o assistente recebeu os dele, de igual valor.

H... afirma ter herdado uma parcela de terreno dos seus pais, à qual chegou à posse deles por doação dos avós maternos, sendo que os avós em vida, há mais de 26 anos, doaram quase todos os terrenos aos filhos, sendo que, na altura, o queixoso também recebeu os dele, os quais tinham o mesmo valor.

Já na fase da instrução foram ouvidas as testemunhas, I... , J... e L... , respectivamente, irmã, cunhado e sobrinha da arguida B... .

Encontram-se juntos aos autos os documentos aludidos pelo assistente na peça recursiva.

3.2. Análise dos indícios

Perante as declarações prestadas no inquérito, concluiu o Ministério Público, no despacho de arquivamento, no que toca ao conteúdo das declarações quanto à transmissão do prédio, existir a versão do queixoso e contra a dos denunciados, não credibilizando nenhuma delas.

De igual modo, o juiz de instrução, teve dúvidas sob a forma como os terrenos chegaram à posse da primeira arguida. Não se convenceu «que as declarações constantes da escritura de justificação não correspondem à verdade» porque as testemunha inquiridas na instrução «possuem um interesse reflexo em todo o processo, não lhes sendo indiferente, na qualidade de familiares dos falecidos M... e N... , o resultado da lide, se o tribunal der por assente a falsidade dos factos justificados na escritura, também eles beneficiados».

Defende, agora, o recorrente que se atender aos documentos juntos aos autos, está demonstrada a falsidade das declarações prestadas pelos arguidos na escritura de justificação judicial.

Será assim?

Sobre a constituição do direito de propriedade dos terrenos justificados, existem duas versões, a dos arguidos, alegando que os adquiriram não só por doação verbal dos primitivos donos, mas também por usucapião e a do assistente, segundo o qual, aqueles bens faziam parte da herança dos pais da arguida B... .

Perante cada uma destas versões - confirmadas por depoimentos interessados na decisão – importa averiguar se, no caso concreto, foi alegado e demonstrado pelo assistente que a herança de M... e N... era a legítima proprietária dos bens constantes da escritura de justificação, na data em que esta foi realizada.

Como é sabido, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei, nos termos do artigo 1316°, do Código Civil.

Sabendo que a sucessão por morte constitui um modo derivado de aquisição do direito de propriedade e que, como resulta do velho brocardo “nemo plus iuris in aliud transferre potest quam ipse habet”, deve o adquirente (neste caso a herança) alegar um dos meios de aquisição originária do direito, por forma a garantir-se a certeza jurídica de que o bem transmitido para a herança existia na titularidade patrimonial do autor da sucessão.

Não estando demonstrado nos autos a existência de título válido de aquisição do direito de propriedade dos terrenos por parte de M... e N... , incumbia ao assistente alegar e provar os factos materiais e concretos caracterizadores de um dos modos de aquisição da propriedade previstos no citado artigo 1316º, do Código Civil, nomeadamente a usucapião, (artigos 1287º e 1316º do citado diploma).

Dispõe o artigo 1478º, do Código Civil:

«A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião».

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

Vale isto para dizer, que, estando em causa a falsidade da aquisição do terreno por parte da arguida B... (doação e/ou posse há mais de 20 anos), não basta ao assistente alegar que os arguidos prestaram declarações falsas na escritura de justificação notarial (conclusão e matéria de direito), devendo, também, que demonstrar que a doação verbal do terreno e/ou a do mesmo há mais de 20 anos, por parte da arguida B... , não ocorreram, sendo, por isso, falsas.

Segundo o recorrente, as declarações são falsas, porque os terrenos pertenciam à herança de M... e Maria, incumbia-lhe, descrever os factos constitutivos do direito de propriedade que estes detinham sobre os terrenos, o que não aconteceu.

Note-se, que o assistente se limita à afirmação de que os terrenos pertenciam à herança, sem qualquer alusão aos actos de posse originária e ininterrupta dos bens, por parte de M... e N... , desde a aquisição até à data da morte destes, não se podendo, por isso, concluir, como faz o recorrente que aqueles terrenos pertenciam à herança daqueles.

E, nem os documentos juntos pelo assistente indiciam o contrário.

Com efeito, a carta datada de 8 de Fevereiro de 2010 entregue pelo Exmº Sr. Solicitador P... ao Recorrente, transmitindo a intenção de alguns herdeiros em procederem à partilha, por acordo e por escritura pública extrajudicial e solicitando ao assistente «que informe se também aceita esta forma de partilha, que mais não será do que atribuir a cada um no papel, os bens que, de comum acordo, receberam, ainda em vida dos vossos pais» sugerindo, que os ditos terrenos, à data da morte de M... e N... , já tinham sido transmitidos para os filhos, contrariando, assim, a versão do recorrente.

As declarações de cabeça-de-casal que originaram os processos de liquidação do imposto sucessório por óbito de M... e N... , instaurados, respectivamente, em 28 de Junho de 1993 e em 14 de Julho de 2003, só por si, mostram-se insuficientes para indiciar que todos os bens relacionados eram, à data da escritura de justificação, propriedade herança.

Perante as versões contraditórias do assistente e dos arguidos, instalou-se uma dúvida razoável sobre se os fatos declarados arguidos na escritura de justificação judicial são falsos, dúvidas essas que não foram removidas por outros meios de prova, designadamente, a denominada carta prévia de partilha e os processos de liquidação de impostos sucessórios, insuficientes para demonstrar que os terrenos não foram doados verbalmente à arguida, B... , nem esta os cultivou, «zelando pela sua conservação, considerando e sendo considerando como seus únicos dono, na convicção de que não lesavam quaisquer direitos de outrem, tendo a sua actuação e posse sido de boa-fé, sem violência ou oposição e com conhecimento da generalidade das pessoas que vicem na freguesia onde se situam os prédios, por lapso de tempo superior a 20 anos».

Em relação a esta factualidade, como já se disse, limita-se o recorrente a afirmar, em jeito conclusivo, que os terrenos faziam parte da herança dos falecidos pais.

Esta alegação não sustentada por factos materiais e concretos (actos de posse ininterrupta por parte dos autores da herança durante mais de 20 anos) seria, sempre, manifestamente insuficiente, para se aquilatar que os factos relatados na escritura eram inverídicos e, por isso, falsos.

De igual modo, não se logrou apurar qual foi a intenção com que os arguidos agiram, sendo que esta não se presume de nenhum outro facto indiciado.

Bem andou assim o tribunal recorrido em julgar não indiciados os factos impugnados pelo recorrente.

 

4. Qualificação jurídico-penal dos factos indiciados

Chegados aqui, resta, agora, saber se a conduta dos arguidos traduzida nos factos indiciados, integra, em abstracto, um crime de falsificação e um crime de burla.

Como já se disse, no decurso do inquérito e da instrução, não se logrou apurar, que as declarações prestadas pelos arguidos no que concerne à doação verbal do terreno e à posse do mesmo pela arguida B... , há mais de 20 anos, fossem inverídicas.

De igual modo, não se demonstrou que os terrenos estiveram, durante mais de 20 anos, na posse dos autores da herança e assim se mantiveram na dita herança aberta por óbito daqueles, nem que a doação verbal referida nas declarações prestadas na escritura não existiu.  

Falecendo este pressuposto fáctico, no qual assentou toda a construção jurídico-penal formulada pelo recorrente, inverificados estão os elementos objectivos do crime de falsificação e/ou de burla, não podendo, por isso, serem os arguidos pronunciados, pela prática dos crimes de falsificação e burla.

Mas, ainda que assim não se entenda, sempre se dirá, que os factos praticados pelos arguidos nos termos propostos pelo assistente, não integrariam, em abstracto, os crimes que lhe são imputados.

Vejamos:

Está assente que, não podendo a conduta dos arguidos ser integrada na previsão do artigo 97º do Código de Notariado (foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 96/2015, de 3 de Março), ou na punição do artigo 348º A, do Código Penal (introduzida com a Lei nº 19/2013, não vigorando, à data da realização da escritura de justificação judicial), afastada fica a punibilidade dos arguidos pela prática de um crime de falsas declarações.

A questão que se coloca é, assim, a de saber, se a conduta dos arguidos integra, em abstracto, em concurso real, um crime de falsificação e burla.

Sobre o crime de falsificação, já se pronunciou esta Relação em vários Arestos (aliás citados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento e na decisão recorrida), tendo vindo a ser decidido que a declaração de factos falsos para constarem em escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação.

Os argumentos constam, entre outros, no Acórdão de 18 de Março de 2015 (www.dgsi.pt), a saber: 

«No acórdão que relatámos proferido no processo 18/10.5TATND, publicado em 26.3.2014, citando parecer de Paulo Dá Mesquita enviado ao Ministério da Justiça para ser tido em consideração na reforma de 2013 do Código Penal (também citado pelo TC) referimos entre o mais que:

“Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …»

Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.

Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação …»

Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.

Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro.

(…)

Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).»

E citando o acórdão desta Relação relatado pela Exmª Desembargadora Maria José Nogueira, de 18.12.2013, publicado em www.dgsi.pt mais referimos que:

“Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores».

De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe:

«1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» (…).

Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado."

Mais mencionamos que posteriormente esta mesma orientação foi seguida nos Acórdãos de 19.02.2014, da mesma Relatora e do Relator, Exmº Desembargador Luís Coimbra, mas já anteriormente no Acórdão de 19.06.2013 do Exmº Desembargador Brízida Martins havia decidido no mesmo sentido nesta Relação.

Em suma e sintetizando, o segmento normativo da alínea d) do nº 1 do artigo 256º do Código Penal "fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante" apenas pode incluir a acção de quem tem o domínio de facto ou de direito sobre a produção do documento e não de quem declara factos falsos para que constem de documento elaborado por outrem. Esta última acção consistente apenas em declarar facto falso para que conste em documento, extravasa a tipicidade que exige concomitantemente a feitura do documento.

Com efeito, o que o tipo de crime de falsificação prevê e pune é a falsa declaração de quem materialmente a incorpora em escrito.

Do que decorre que a acção dos arguidos de declararem factos falsos para constarem em escritura de justificação lavrada por notário não integra a prática do crime de falsificação (…)».

Quanto a nós, seguimos esta orientação.

Ou seja, mesmo que existissem indícios da falsidade das declarações prestadas pelos arguidos perante o notário, ainda assim, a conduta dos arguidos não integrava o crime de falsificação de documento.

O mesmo se verifica em relação ao crime de burla. Também aqui a conduta dos arguidos não consubstancia a prática do ilícito previsto no artigo 217º, do Código Penal, que reza assim:

«Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».

« (…) A burla cobre situações em que o agente, com intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo, (próprio ou alheio), induz outra pessoa em erro, fazendo com que a última, por esse motivo, pratique actos que causem a si mesma (ou a terceiro) prejuízos de carácter patrimonial. (…)

A burla constitui um crime de dano, que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo da infracção ou de terceiro. (…)

A burla constitui (…) um crime material ou de resultado, cuja consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infracção (…).

Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultem prejuízos patrimoniais ou alheios. 

Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie causa efectiva da situação de erro em que se encontra o individuo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais (…).

Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim, por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) 1) e, depois, entre os últimos e a efectiva verificação do prejuízo patrimonial 2)». - A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbrincense do Código Penal, pág. 275, 276, 292, 293.

A intenção do agente obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; por meio erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou; determinando outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outro prejuízo patrimonial [Ac. STJ de 12.04.2007 (www.pgdlisboa.pt/jurel/stj)]  são os elementos tipos do crime de burla, cuja consumação exige, ainda, um duplo nexo causal, entre a acção  enganadora do agente e o erro do enganado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial.

«(…) O engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos actos de que decorrem prejuízos patrimoniais». Acórdão da Relação de Coimbra de 10.09.2008 (www.dgsi.pt).

A consumação do crime não depende exclusivamente da intenção e da actuação do agente, mas carece de uma intervenção da vítima em momento posterior, que deve contextualizar-se num estado de erro ou engano a que está submetida.

Para a verificação do crime de burla, não basta, pois, que os arguidos tivessem querido fazer seus os bens, através da escritura de justificação notarial, com o firme propósito de obter o registo dos mencionados prédios a seu favor, antecipando-se ao eventual processo de inventário e partilha de bens, prejudicando os demais herdeiros, sendo, também necessária a intervenção do enganado – o assistente – em contexto de engano a que tenha sido submetido, o que não sucede no caso concreto.

Bem andou assim, o tribunal a quo em não pronunciar os arguidos,

V. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao Recurso interposto por A ... .

Custas pelo Assistente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCS.

Coimbra, 16 de Fevereiro de 2016

(Alcina da Costa Ribeiro – relatora)

(Elisa Sales – adjunta)