Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
136/14.0TBNZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRE REIS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
SOCIEDADE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Data do Acordão: 11/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – LEIRIA – INST. CENTRAL – SEC. CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 13º E 14º DA LEI 67/2007, DE 31/12; 483º C. CIVIL.
Sumário: I - O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada pelo art. 13º da Lei 67/2007, de 31/12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.

II - Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.

III - Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada.

IV - No caso, a matéria indiciada permitiria, fundadamente, concluir, em face da situação concreta, que era o 1º requerido quem, sem aparecer como administrador ou gerente (“homem oculto”), servindo-se do nome do filho, ou seja, actuando através de pessoa fictícia (“homem de palha”), sempre deteve o domínio dos factos e o controlo efectivo da sociedade e que esta apenas serviu como “testa de ferro” para aquele poder desenvolver a respectiva actividade e pôr o seu património a salvo dos credores, actuando através de um gerente ficticiamente designado.

V - Assim sendo, ao reconhecer a existência de abuso da autonomia patrimonial da sociedade, em prejuízo dos credores, mais do que plausível, foi defensável a abordagem fáctico-jurídica que a sra. Juíza engendrou, obtendo, com autonomia e uma racionalidade (também) prático-normativa, um resultado que, não sendo singular nem o único possível, de modo algum, pode ser apodado de “peregrino”.

VI - Por isso, a desconsideração (inversa) ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade A..., por ser uma solução legítima da questão submetida à apreciação da sra. Juíza, não afectou a decisão proferida de manifesta ilegalidade, com a restritiva qualificação que tem este conceito – designadamente sobre o grau da respectiva intensidade –, que é exigida pelo requisito específico da responsabilidade civil exercida nesta acção, traduzido no erro judiciário.

VII - A concreta actuação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades ainda padece de falta de rigor dogmático, desde logo porque não apela “directamente” a concretas normas jurídicas – antes a princípios, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade – e é controversa, porquanto se manifestam entendimentos não inteiramente convergentes quanto à formulação dos respectivos requisitos. Além disso, a decisão judicial aqui reputada de ilícita, por errada, tem que ser vista sem omitir que o juiz não dispõe no seu labor de uma ciência exacta que o oriente e, sobretudo, no concreto contexto de uma figura jurídica em elaboração, característica que, perpassando ou sendo inerente ao direito em geral e à realidade dinâmica em que o mesmo intervém, sobressai ainda mais no campo desta teoria.

VIII - O reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à situação jurídica em apreço, fruto de erro de julgamento, manifesto e indesculpável – teria de ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, fora cometido o erro. Essa opção legislativa, apesar do seu carácter restritivo, compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado e, por isso, não cerceia arbitrariamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade.

IX - Sem mais, a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior, a que o julgamento da questão foi deferido, sobrepondo-se ao de primeira instância, significa, apenas, que foram oferecidas duas diferentes apreciações fáctico-jurídicas – ambas formadas com base nos elementos factuais indiciariamente demonstrados no processo, com sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas no quadro normativo vigente, como manifestações da autonomia quanto ao “dizer o que diz o direito” e do princípio da independência dos juízes – bem como duas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação, ambas igualmente legítimas – ainda que só uma tenha prevalecido, como decorrência da forma como o exercício do poder judicial está estruturado – e não, necessariamente, que a decisão de 1ª instância estivesse errada, muito menos, manifestamente.

X - No caso, pelo contrário, não se constata que a decisão judicial revogada fosse claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave, ou seja, que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado por tal (inadmissível) forma.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

       A...- Imobiliário, Unipessoal Lda propôs a presente acção contra o Estado Português, pedindo a condenação deste a pagar-lhe, a título de indemnização, o montante de € 1.882.524,81, acrescido de juros de mora.

Para tanto, alegou, em suma:

- Em 23.12.2011 J... e mulher, M... instauraram um procedimento cautelar de arresto contra A..., M..., a aqui A (A..., Lda) e B..., SA.

- Nesse procedimento, os aí requerentes alegaram, além do mais, que: os requeridos A... e M... arquitectaram um plano para não liquidar as obrigações que haviam assumido perante aqueles; a sociedade aqui A. havia sido constituída em 4.06.2004 com dinheiro dos requerentes e dos referidos A... e M..., mas apenas em nome do filho destes, T..., único sócio e gerente da ora A., para que aquele A... pudesse prosseguir a actividade de compra, construção e venda de imóveis, a qual sempre foi desenvolvida apenas por este, servindo o nome do seu mencionado filho (unicamente) para esse efeito; o mesmo sucedeu com a constituição da requerida B..., SA, da qual também o referido T... era administrador único, que foi criada apenas para transferir o património dos requeridos A... e M... para a sua titularidade, para se furtarem ao pagamento aos credores. Concluíram, depois de invocarem a figura da desconsideração da personalidade jurídica relativamente à aqui A. e à requerida B..., SA, pedindo o arresto sobre vários imóveis.

- Dessa actuação processual resultou o registo do procedimento cautelar em todos os imóveis pertencentes às demandadas, incluindo a ora A, e com ela os requerentes visavam prejudicar as mesmas e forçar os requeridos singulares a submeter-se à sua vontade, por se tratar de empresas (somente) do filho dos requeridos, tendo pressionado, deliberada e consciente, a paralisação da aqui A.

 - Esse comportamento dos requerentes, com base em manipulação de factos, acabou por frutificar e cumprir esse seu fito primordial, contando com a inesperada complacência do Tribunal, face à decisão que, sem audiência dos requeridos, veio a proferir decretando o arresto nos moldes peticionados, que, no que à A. respeita, incidiu sobre todo o seu património.

- Essa decisão ficou afectada de erro judiciário, em consequência do qual a A. sofreu os prejuízos cuja reparação pretende nesta acção – resultantes directamente da perda do negócio, cessação dos contratos de trabalho e verbas despendidas com a manutenção dos imóveis ([1]) –, porque, para além de incorrer em excesso de arresto, considerou, «pelo menos segundo um juízo indiciário de que estamos perante um caso passível de proceder ao levantamento da personalidade jurídica [das requeridas sociedades], na medida em que, designadamente, o contrato-promessa entre 1.ºs requeridos e a 3.ª requerida foi celebrado com o intuito de prejudicar os requerentes, evitando a cobrança do seu crédito, contrato este indiciariamente simulado (arts. 240.º e 289.º, ambos do Código Civil), sendo que as 2.ª e 3.ª requeridas indiciariamente foram utilizadas com esse objectivo».

- Porém, no âmbito do recurso que a A interpôs dessa decisão, a Relação revogou-a e, consequentemente, ordenou o levantamento do arresto na parte incidente sobre os imóveis da A (recorrente), por ter ponderado: «(…) só é possível equacionar e operar a desconsideração ou levantamento da personalidade jurídica de sociedade comercial no confronto com membro(s) desta – notadamente sócio(s) –(…). E assim sendo, como é, inviável se apresenta efectuar a desconsideração [invertida] da personalidade jurídica da Recorrente “A...” para, mediante essa – como dito – excepcional medida, fazer responder o seu património pelas dívidas passivas de tais Requeridos. (…) daí que não sendo a Recorrente … devedora dos Requerentes, motivo algum existia ou existe … para que os seus bens sejam objecto do vertente arresto que, desse modo, não se pode manter, antes se impondo prover ao respectivo levantamento.».

O R Estado contestou, defendendo que não se retiram dos fundamentos aduzidos pela A nem dos termos do processo o invocado erro grosseiro e evidente da decisão, de modo a poder reputá-la de ilícita, injusta ou indefensável, ao que acresce, quanto ao alegado excesso no arresto, que tal erro não foi previamente reconhecido pelo tribunal de recurso, o que constituiria uma condição da acção. O R também sustentou que os eventuais prejuízos que a A pretende ver ressarcidos resultaram, quando muito, da conduta dos requerentes da providência, não podendo ter ocorrido em virtude da decisão judicial do tribunal.

A Sra. Juíza, julgando improcedente o pedido da A, por entender não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil por erro judiciário, dele absolveu o R.

Inconformada com tal decisão, a A. recorreu, colocando a questão de saber se nesta acção são invocados fundamentos idóneos e suficientes para determinar o prosseguimento dos autos a fim de apurar o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do R. Estado, assente no erro judiciário de direito, manifesto ou grosseiro, cometido na decisão que decretou o arresto no referido procedimento cautelar, nas duas seguintes vertentes: 1ª) errada aplicação da figura da desconsideração da personalidade jurídica da apelante; 2ª) excesso de bens arrestados, mesmo atendendo a que não houve pronúncia do Tribunal Superior quanto a esta segunda concreta matéria ou parte da decisão.

Nos termos do art. 663º nº 6 do CPC, não tendo sido impugnada, nem havendo lugar a qualquer alteração da matéria de facto, remete-se para os termos da decisão da 1ª instância à mesma concernentes, reproduzindo-se aqui, apenas, os seguintes factos considerados indiciariamente assentes na decisão que decretou o arresto ([2]):

«1) Os requerentes foram emigrantes em França até ao início da década de 2000.

2) O requerente marido é irmão do 1.º requerido A...

3) Para além de familiares, os requerentes e 1.ºs requeridos eram muito amigos.

4) O 1º requerido dedica-se à atividade de construção civil, tendo, no passado, sido gerente de outras empresas.

5) Tais empresas deixaram de laborar por existência de dívidas ao Estado e outros credores.

6) Na sequência disso, os 1.ºs requeridos perderam ou ocultaram todo o seu património e não pagaram aos credores.

7) Por esse motivo, deixaram de ser titulares de contas bancárias e de recorrer ao financiamento bancário para o exercício da atividade empresarial.

8) Em consequência do referido em 6) e 7), os 1ºs. requeridos acordaram com os requerentes em desenvolverem em conjunto a atividade de compra, construção e venda de imóveis.

9) A atividade iniciou-se com recurso a capitais dos requerentes e titulada apenas por estes, mas desenvolvida em Portugal pelo 1.º requerido, sendo este que procurava os terrenos onde iam ser construídos os edifícios e dirigia a construção e encontrava os compradores para o produto final.

10) Na sequência do referido em 8) e 9), no desenvolvimento da atividade de construção, no ano de 2003, os requerentes adquiriram um terreno para construção sito na Rua da ..., no ...

11) O objetivo era construir naquele terreno um edifício destinado a habitação e comércio com três andares e garagens e vinte e sete frações, com recurso a financiamento bancário.

12) A construção do edifício foi concluída encontrando-se o prédio descrito na conservatória do registo predial da ...

13) Por escrito intitulado “contrato nº... (com hipoteca)”, datado de 11 de Julho de 2005, os requerentes solicitaram e obtiveram do Banco B..., SA, “crédito no montante de 1.000.000,00€ (um milhão de euros) (…) a qual vai ser utilizada na construção dos edifícios a implantar nos prédios adiante descritos e hipotecados.

(…) Cláusula 9ª:

Um – Para garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, designadamente amortização do capital mutuado, pagamento de juros, encargos contratuais ou prémios de seguro que a “IC” venha a pagar em substituição do mutuário, este constitui hipoteca sobre os seguintes imóveis:

Prédio descrito sob o nº... da freguesia de ..., da Conservatória do Registo Predial da ..., inscrito na respetivamente matriz predial rústica sob o artigo ... A referida hipoteca encontra-se já inscrita provisoriamente a favor da “IC” pela inscrição C-1”.

14) A sociedade “A... – Imobiliário, Unipessoal, Ldª.”, encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial da ---, com o NIPC ..., mediante a Ap. 27/20040604, com o objeto social de arquitetura, engenharia, design, marketing, bem como consultadoria e formação profissional e não profissional em todas as áreas atrás descritas; conceção e acompanhamento de obras, edifícios ou objetos em todas as vertentes das áreas atrás descritas; construção civil e obras públicas; compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; promoção imobiliária, com o capital de 5.000,00€, com o seguinte sócio: T..., com uma quota de 5.000,00€, cabendo a este a gerência, doc. de fls. 50 e ss., quando este concluiu a licenciatura em arquitetura, para continuar a atividade de compra, construção e venda de imóveis desenvolvida pelos requerentes e 1ºrequeridos, utilizando para o efeito capitais pertencentes a estes. [Provado indiciariamente ainda que o] referido T... é filho dos 1ºs requeridos.

15) Os requerentes, os 1ºs requeridos e o único sócio da 2ª requerida acordaram que a referida sociedade titularia negócios dos requerentes e 1ºs requeridos em proporção que concretamente não foi possível apurar.

16) A partir de então, os negócios tanto podiam ser titulados pelos requerentes como pela 2ª requerida.

17) Sempre foi o 1.º requerido marido quem negociou e contratou os empreiteiros de todas as obras da 2.ª requerida.

18) É a ele que todos os trabalhadores e fornecedores conhecem, sendo que o nome do filho apenas serviu para que pudesse prosseguir com os negócios.

19) É igualmente o 1.º requerido marido quem faz todos os pagamentos da 2.ª requerida.

20) A sociedade “B..., SA”, encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de ..., com o NIPC ..., mediante a Ap. 25/20101229 com o objeto social de prestação de serviços de arquitetura, engenharia, design, marketing e consultadoria das referidas áreas. Formação profissional. Acompanhamento, direção e fiscalização de obras. Construção civil e obras públicas, promoção imobiliária. Compra e venda de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Administração e gestão imobiliária. Com sede na rua de ..., com o capital de 50.000,00€, sendo administrador único: T..., residente na rua ...

21) Os 1ºs requeridos e a 3ª requerida redigiram o escrito referido em 35) apenas com o objetivo dos primeiros se furtarem ao pagamento das quantias a que se tinham obrigado no âmbito das transações mencionadas em 30).

22) As relações entre os requerentes e os 1ºs requeridos degradaram-se ao ponto de os mesmos cortarem relações entre si há cerca de 4 a 5 anos.

23) Tal sucedeu depois dos requerentes terem sabido que T... tinha guardado para si um cheque de 80.000,00€ (oitenta mil euros) que lhes era destinado.

24) Após o mencionado desentendimento, requerentes e requeridos propuseram uns contra os outros várias ações judiciais, com objetos e pedidos diversos.

25) Em 25 de outubro de 2007 T... apresentou participação crime contra o Requerente, designadamente pela prática de um crime de injúrias, ameaças e abuso de confiança, conforme doc. de fls. 236 e ss..

26) Tal queixa deu origem ao Proc. nº..., que correu termos no Tribunal Judicial da ...

27) Os primeiros requeridos propuseram contra os requerentes o procedimento cautelar de restituição provisória que correu os seus termos neste tribunal sob o n.º..., pedindo que fossem restituídos na “posse do edifício composto por cave, rés-do-chão, primeiro e segundo autores, constituído por três unidades para comércio, sete fogos do tipo T1 e nove fogos do tipo T2, construído no prédio urbano sito na ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...

28) Os primeiros requeridos propuseram contra os requerentes a ação ordinária n.º..., que correu termos neste tribunal, pedindo a condenação dos requerentes no reconhecimento de que na construção do edifício referido fora constituída uma sociedade irregular entre eles, na qual os primeiros tinham ¾ e os últimos ¼ e que, como tal, o prédio pertencia em ¾ aos 1.ºs requeridos e ¼ aos requerentes; que os requerentes fossem condenados a restituir aos 1.ºs requeridos a posse do mesmo edifício; que fosse declarada nula ou anulada e de nenhum efeito a constituição da propriedade horizontal; fossem cancelados todos os registos provisórios ou definitivos de venda de cada uma das frações entretanto constituídas e que os requerentes reconhecessem a propriedade integral por parte dos 1.ºs requeridos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º... da mesma freguesia.

29) Em 2010 os requerentes propuseram contra os 1.ºs requeridos e 2.ª requerida acção declarativa com processo ordinário que correu termos neste tribunal sob o n.º..., na qual pediram a condenação dos aqui 1.ºs requeridos a reconhecerem que na aquisição e construção do prédio da ..., com a descrição n.º..., foi constituída uma sociedade irregular, na qual os requerentes detinham metade e os 1.ºs requeridos metade e, como tal, o direito de propriedade sobre o referido prédio pertencia a ambos na proporção de metade para cada um; que a aqui 2.ª requerida fosse condenada a reconhecer que entre ela e os aqui requerentes fora constituída uma sociedade irregular na qual estes tinham a participação de metade na aquisição/construção dos prédios com as descrições ... e ainda das frações A, B, C, D, F, G, H, J, K, L, N, O, S, T, U, V, W, X, Y, e Z do prédio com a descrição ... da freguesia de ..., sendo como tal os requerentes proprietários de metade dos referidos prédios; pedindo ainda a condenação dos 1.ºs e 2.ª requerida a permitirem aos requerentes o acesso aos imóveis em causa e ainda que fosse ordenada a inscrição no Registo Predial do direito de propriedade dos requerentes sobre metade de cada um dos imóveis referidos (cfr. doc. de fls. 122 e ss.).

30) No âmbito da ação mencionada em 29), em 22/10/2010 os aqui requerentes, 1.ºs requeridos e 2.ª requerida lavraram termo de transação com o seguinte teor:

Cláusula Primeira

Os réus A... e mulher M... reconhecem a propriedade exclusiva dos autores sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º...

Cláusula Segunda

Os autores desistem de todos os pedidos formulados contra a ré A... – Imobiliário, Unipessoal, Lda.

Cláusula Terceira

As partes prescindem expressamente do prazo de recurso. (…)”

O qual foi homologado por sentença proferida em 26/10/2010, transitada em julgado em 27/10/2010 (cfr. doc. de fls.122 e ss).

E no âmbito da ação mencionada em 28), em 22/10/2010, os aqui requerentes e 1.ºs requeridos lavraram termo de transação com o seguinte teor:

“(…) Cláusula Quinta

Os autores e os réus J... e esposa M... transigem entre si sobre o objeto do processo nos termos seguintes:

a) Autores e Réus concordam que constituíram uma sociedade irregular com vista à construção do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o número ...;

b) Os Réus J... e mulher M... reconhecem a propriedade exclusiva dos autores sobre as frações autónomas designadas pelas letras “N”, “P” e “Q” do prédio urbano referido na alínea anterior;

c) Os autores reconhecem a propriedade exclusiva dos réus J... e mulher M... sobre as restantes frações do prédio;

d) Os autores reconhecem ainda a propriedade exclusiva dos mesmos réus sobre o prédio descrito na Conservatória do registo Predial da ... sob o número ...;

e) Autores e Réus ficam responsáveis pelo pagamento das quantias referentes aos distrates das hipotecas que incidem sobre os prédios ou frações que por via do presente acordo couberam a cada uns pagando o valor que para cada uma delas está fixado ou vier a ser fixado pelos bancos credores;

f) No que toca às frações “N”, “P” e “Q”, os juros referentes ao empréstimo serão suportados na íntegra pelos réus J... e mulher M... até 31.12.2010, correndo por conta dos autores a partir dessa data;

g) Os autores comprometem-se a obter o distrate da hipoteca que incide sobre as fracções “N”, “P” e “Q” até ao final de Abril de 2011 e a pagar os juros que entretanto se tiverem vencido até 3 (três) dias antes do vencimento respetivo, através de depósito na conta bancária dos réus junto do banco credor;

h) Os réus entregam nesta data aos autores as chaves das três supra referidas fracções autónomas;

i) Os réus entregam as frações autónomas em causa no estado de novas como actualmente se encontram;

j) Os réus obrigam-se a não perturbar por qualquer forma o acesso dos autores às referidas frações autónomas (…)”

O qual foi homologado por sentença proferida em 26/10/2010, transitada em julgado em 27/10/2010.

31) O Banco credor repartiu o capital em dívida proveniente do empréstimo referido em 13), sendo que da Certidão do Registo Predial do prédio identificado em 12), mediante a Ap. 7 de 2005.04.20, consta inscrita a hipoteca voluntária a favor de Banco B..., SA, crédito: 1.000.000,00€, montante máximo assegurado: 1.370.000,00€.

32) O Banco ... – credor hipotecário – não interveio nos processos, nem na transação e não deu o seu acordo prévio à mesma.

33) Em 14 de Outubro de 2011, os montantes em dívida para obter o distrate da hipoteca que onerava as três frações que cabiam aos 1ºs requeridos ascendiam a 226.591,92€, que estes não liquidaram.

34) Por documento escrito datado de 29/12/2010, denominado de “Contrato de Sociedade Anónima”, os 1.ºs requeridos, T..., este por si e em representação da A... - Imobiliário, Unipessoal, Lda., e C..., cujas assinaturas foram reconhecidas presencialmente, acordaram entre si:

Artigo 1.º

Tipo e Firma

1. A sociedade é comercial, adota o tipo de sociedade anónima e a firma B..., S.A.

2. A sociedade tem o número de pessoa coletiva ... e o número de identificação na segurança social ...

Artigo 2.º

Sede

1. A sociedade tem a sede em ...

(…) Artigo 4.º

Capital

O capital social, integralmente realizado em numerário, a depositar no prazo legal de cinco dias úteis, dividido em 500 ações do valor nominal de 100 euros, pertencentes a:

a) 150 ações pertencentes a T..., solteiro, (…) residente em Rua de…;

b) 5 ações pertencentes a C…;

c) 150 ações pertencentes a A…;

d) 150 ações pertencentes a M…;

e) 45 ações pertencentes a A... – Imobiliário, Unipessoal, Lda.

(…) Os sócios declaram que procederão ao depósito do capital social no prazo de cinco dias úteis, nos termos legalmente previstos. (…)”.

35) Por documento escrito datado de 30/12/2010, denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, cujas assinaturas foram reconhecidas pela Conservatória do Registo Predial/Civil/Comercial da ..., os 1.ºs requeridos declararam prometer vender a B..., S.A., representada por T..., declarou prometer comprar, as frações N, P e Q) identificadas em 30), pelos preços respetivos de 90.000,00€, 90.000,00€ e 70.000,00€, nos seguintes termos: “(…) O preço global da transação é de 250.000,00€ (duzentos e cinquenta mil escudos), e será pago pela segunda outorgante aos primeiros outorgantes da seguinte forma:

a) Com a celebração do presente contrato promessa de compra e venda será pago pela segunda outorgante aos primeiros outorgantes a quantia de 180.000,00€ (cento e oitenta mil euros).

b) Na data da outorga das escrituras públicas, será paga pela segunda outorgante, aos primeiros outorgantes a quantia restante de 70.000,00 (setenta mil euros).

(…) Sexta

Os Primeiros Outorgantes entregarão os prédios livres de ónus ou encargos.

Sétima

Nesta data, trinta de Dezembro de 2010, os primeiros outorgantes entregam desde já à segunda outorgante as chaves das frações aqui prometidas ceder.(…)”.

36) Mediante a Ap... de 10/03/211, a 3.ª requerida requereu o registo provisório de aquisição das três referidas frações a seu favor.

37) Mediante a Ap... de 15/09/2011, a 3.ª requerida requereu a renovação da inscrição da Ap... de 10/03/2011.

38) Em 19/09/2011 a 3.ª requerida desistiu do registo de renovação e, mediante a Ap... de 19/09/2011, requereu o registo provisório a seu favor das referidas três frações.

39) Os 1ºs. requeridos comem, dormem e recebem os amigos e familiares na Rua de...

40) A cláusula 4.ª do contrato promessa previa a realização da escritura até ao dia 28 de Fevereiro de 2011, conforme doc. de fls. 67 e ss..

41) Atualmente, para além das frações identificadas em 35), aos 1ºs. requeridos não são conhecidos outros bens móveis ou imóveis.

42) Em novembro de 2011 o empréstimo perante o Banco apresentava um saldo devedor de 709.329,00€, conforme doc. de fls. 84 e ss.

43) Por escrito intitulado “Dação em cumprimento”, datado de 04 de novembro de 2011, os requerentes “para pagamento total das suas responsabilidades, dão em cumprimento ao Banco B..., SA, pelo valor de setecentos e nove mil trezentos e vinte e nove euros, livre de pessoas”, as frações “A”, “B”, “C”, “G”, “H”, “I”, “J”, “M”, “O” “(…) todas as frações autónomas fazem parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na rua da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., com a aquisição das referidas frações autónomas registadas a favor dos devedores, conforme a apresentação ..., de doze de Dezembro de 2003 e ... de dezassete de Fevereiro de 2012, prédio inscrito na matriz da freguesia da ... sob o artigo ...”, dação que o banco aceitou, ficando liquidada igualmente a parte que onerava as frações dos 1ºs requeridos.

44) As referidas frações “N”, “P” e “Q” encontram-se descritas na Conservatória do Registo Predial da ... sob o nº..., a favor dos 1ºs requeridos, mediante a Ap..., de 2011/02/17, por decisão judicial, e mediante a Ap... de 19/09/2011, provisoriamente a favor da 3.ª requerida.

O prédio urbano composto por dois edifícios sito na Rua ..., encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º... em regime de propriedade horizontal mediante a Ap..., e a titularidade das frações “A”, “B”, “C”, “D”, “F”, “G”, “H”, “J”, “K”, “L”, “N”, “S”, “T”, “X”, “Y”, e “Z” encontra-se registada a favor da 2.ª requerida mediante a Ap..., e sobre tais frações encontra-se ainda registada mediante a Ap... hipoteca voluntária a favor da C..., S.A., para garantia de abertura de crédito e outras responsabilidades aí identificadas, até ao limite de 1.700.000,00€ sendo o montante máximo assegurado de 2.555.950,00€.

O prédio urbano sito na Rua ..., encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o n.º..., em regime de propriedade horizontal mediante a Ap..., e a titularidade das frações “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “N”, “O”; “P”, “Q”, “R”, “S”, “T”, “U” e “V” encontra-se registada a favor da 2.ª requerida mediante a Ap..., e sobre tais frações encontra-se registada mediante a Ap..., hipoteca voluntária a favor da C..., S.A., para garantia de empréstimo no valor de 1.600.000,00€, sendo o montante máximo assegurado de 2.405.600,00€.

...

45) Todos os imóveis dos requeridos se destinam à venda e todos estão à venda em diversas agências imobiliárias.

46) No ano passado, os requeridos encetaram negociações com o Grupo I... com vista à venda de todos os seus imóveis».

Importa apreciar a questão enunciada e decidir.

1. Introdução.

A Sra. Juíza decretou o arresto, tal como vinha requerido, por ter considerado indiciariamente demonstrados os respectivos requisitos, designadamente por ter concluído – quanto ao que releva para o conhecimento do objecto deste recurso –, muito em suma, que, face aos pontos 14), 20), 21), 32), 34), 35), 39) dos factos dever-se-ia superar ou ultrapassar a autonomia pessoal e patrimonial da ora apelante (e, também, da 3ª requerida), com a intervenção da figura da desconsideração da respectiva personalidade colectiva.

Perante tal factualidade, a Sra. Juíza manifestou não ter dúvidas, pelo menos segundo um juízo indiciário, de que também a ora apelante fora utilizada com o intuito de prejudicar os requerentes, evitando a cobrança do crédito dos requerentes.

Para justificar essa asserção, a Sra. Juíza evocou vários entendimentos doutrinais e jurisprudenciais, em que emergem diversificados argumentos que vêm sendo aduzidos para evidenciar a necessidade do recurso a tal conceito em determinadas situações tipificadas, entre as quais se destacam as seguintes: o exercício inadmissível de posições jurídicas verificado a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva, com abuso do instituto da personalidade colectiva desta; a utilização da pessoa colectiva para contornar uma obrigação legal ou contratual individualmente assumida, ou para encobrir um negócio contrário à lei, funcionando aquela como interposta pessoa.

Esta Relação não sufragou a interpretação fáctico-jurídica perfilhada em 1ª instância por ter entendido que, neste caso, seria inviável efectuar a desconsideração (invertida) da personalidade jurídica da ora recorrente, porque tal medida (excepcional) só seria equacionável no confronto com os respectivos membros, qualidade de que não dispunham os 1ºs requeridos, pelo que pelas dívidas destes não poderia responder o património da mesma, pois não era devedora dos requerentes.

2.1. O erro judiciário - pressupostos.

A questão suscitada pela apelante impõe uma breve averiguação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, assente no erro judiciário (de direito), em que assenta a pretensão a que a mesma se arroga na acção.

A responsabilidade patrimonial do Estado por erro judiciário tem como fundamento constitucional o princípio que decorre directamente do disposto no artigo 22º da CRP e que veio a ser plasmado na lei ordinária, através dos arts. 12º e 13º da Lei 67/2007 de 31/12 (RRCEE), que estatuem:

 Art. 12º (Regime geral)

«Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, …o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa».

Art. 13º (Responsabilidade por erro judiciário)

«1 (…) o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais (…).

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.».

A consagração da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário é a grande novidade introduzida pelo regime criado pela citada lei, assim assumindo como certa a ideia, hoje consensual, de que o Estado deve ressarcir os danos decorrentes de acto ilícito e culposo cometido no exercício da função jurisdicional por um dos seus servidores, tal como sucede com os provocados no âmbito das demais funções estaduais ([3]).

Todavia, a «particular compreensão constitucional da função jurisdicional do Estado, aliada à consagração do princípio da irresponsabilidade dos juízes – “os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as excepções consignadas na lei” (artigo 218.º n.º 2 da Constituição) –, apontavam para a necessidade de criar uma legislação cuidada» ([4]) sobre a responsabilidade do Estado por erro judiciário, no quadro de um regime próprio, como logo patenteia o teor do dispositivo acima citado.

Esse regime específico próprio é justificado pela especificidade da função jurisdicional, face às diversas incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que sobressaem o sistema de recursos e da hierarquia das instâncias, que contribui para o sucessivo aperfeiçoamento das decisões, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta.

Ora, tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso (cf. art. 14º do RRCEE) –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela «necessidade de contenção do direito à indemnização ou da imposição de limites que conduzam a esse resultado, por não ser de impor um maior sacrifício à generalidade dos cidadãos, traduzido em suportar financeiramente os encargos com as indemnizações» ([5]).

Realmente, como defende Gomes Canotilho ([6]), «sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer acto de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova» (sublinhado nosso). E daí que, acrescenta o mesmo Autor ([7]), «salvo os casos de dolo ou culpa grave, a ‘culpa do juiz’ tem de se integrar na ideia de ‘funcionamento defeituoso do serviço de justiça’», também sob pena de se pôr «em causa as dimensões fundamentais do ius dicere (autonomia e independência)» ([8]).

Como dissemos, a pretensão invocada na acção convoca os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, regulada nos termos gerais dos arts. 483º e ss do CC ([9]), conformativos de um regime que, como se sabe, impõe ao lesado a prova, quer do carácter ilícito da conduta geradora dos danos, quer da culpa do agente ([10]).

Quanto à ilicitude e, portanto, ao erro judiciário – de direito, o que aqui releva, por ser o que vem sugerido –, numa primeira abordagem, não pode olvidar-se que há muito está abandonada a concepção do juiz passivo, de mero aplicador ou “boca” da letra da lei, pois que, ao invés, o juiz é instado a fornecer «soluções concretas, não meramente automáticas de aplicação da literalidade, geral e abstracta da lei e, como consequência, de modo a alcançar o desiderato da justiça material, alarga-se o âmbito de intervenção pessoal ou individualizado da actividade jurisdicional» ([11]).

É o que ensina Castanheira Neves ([12]): «(…) os códigos, em lugar de se poderem ter por qualquer raizon écrite, mostravam-se obras legislativas precárias condenadas a serem historicamente ultrapassadas cada vez com maior rapidez e irremediavelmente lacunosas. O “fétichisme de la loi écrite et codifiée” (Gény) cessou com o reconhecimento da distinção entre o direito e a lei, na intenção normativa, nos critérios hermenêutica-normativos, indispensável integração e no aberto desenvolvimento extralegal da normatividade jurídica — e do mesmo modo a jurisprudência, bem longe de ser “la bouche de la loi”, revelava-se antes um poderoso e indispensável protagonista na histórica constituição do direito. A metodologia jurídica deixou de se esgotar na interpretação e esta passou a ser fundamentalmente problemático-normativo e teleológica-material. O Direito compreendeu-se não apenas como um estatuto dogmático-formal de uma racionalidade axiomática, mas com uma intenção prática de uma racionalidade também prática (prático-normativa) em que concorriam coordenadas axiológicas, políticas, sociológicas, etc. E era este direito, não outro, que os juristas haviam de compreender e assumir e as Faculdades de Direito eram chamadas a investigar e a ensinar.».

Mas, como imediatamente se alcança, à complexidade inerente ao que, nesse quadro conceptual, se exige do juiz, acresce a cada vez maior dificuldade dos processos judiciais, a falta de simplificação e a imoderada produção legislativa – com bastos diplomas avulsos, de pouca clareza e de qualidade técnica, por vezes, discutível – e a proliferação de regimes e de institutos jurídicos, com normas a carecer de preenchimento.

Portanto, se é certo que muitas são as causas que propiciam o surgimento do erro judiciário, não o são menos as frequentes circunstâncias de serem oferecidas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação ou para situações com contornos fácticos semelhantes ou, ainda, a de, em recurso, não ser sufragada a solução adoptada pelo tribunal inferior, sem que qualquer dessas divergentes propostas e decisões possa ser, necessariamente, considerada errada.

«Assim, encontra-se subtraído do conceito de erro juridicamente relevante para efeitos de responsabilidade civil, a simples diferença de interpretação da lei, pois julgando o juiz segundo a sua convicção, formada com base nos elementos factuais demonstrados no processo e no quadro normativo vigente, essa interpretação na grande maioria das vezes não é singular, não sendo a única possível» ([13]).

«Ademais, a ciência do Direito não é exacta. Faz parte da sua essência a controvérsia, a argumentação e a interpretação. Por outro lado, o número de casos excederá sempre o número de leis e como não vivemos num mundo perfeito, também o legislador não é capaz de prever todas as hipóteses possíveis, nem os tribunais conseguem sempre, na prática, adequar sem distorções as leis às situações da vida que lhes compete apreciar. Tudo isto para dizer que, sendo a verdade absoluta inatingível, tem de admitir-se a hipótese de ocorrência de erros na decisão jurisdicional, quer de facto, quer de direito, porque nenhum dos intervenientes processuais, começando pelas partes e seus advogados, passando pelas testemunhas e peritos e terminando nos juízes, tem o dom da infalibilidade. (…) Demonstrada está, pois, a dificuldade de conciliar o princípio da independência dos tribunais, necessária ao desempenho imparcial da sua função soberana, com o princípio da responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes, hoje aceite nos ordenamentos jurídicos mais avançados.» ([14]).

Também o Ac. do STJ de 8/7/1997 (in CJSTJ, 2º-153) ponderou:

«(…) considerando a multiplicidade de factores, endógenos e exógenos, determinantes da opção final que o juiz toma – atentemos, desde logo, na variedade de critérios, por vezes de sentido divergente, que o próprio art. 9º do CC nos dá sobre a interpretação da lei –, bem se compreende que seja com grande frequência que se manifestam sobre a mesma questão opiniões diversas, cada uma delas capaz de polarizar larga adesão, e com isso se formando correntes jurisprudenciais das quais, se se pode ter a certeza de que não estão ambas certas, já difícil ou impossível será assentar em qual está errada. Daí que a própria reapreciação de decisões judiciais pela via do recurso não signifique, em caso de revogação da decisão recorrida, que esta estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.

Dentro deste quadro, a culpa do juiz só pode ser reconhecida, no tocante ao conteúdo da decisão que proferiu, quando esta é de todo desrazoável, evidenciando um desconhecimento do Direito ou uma falta de cuidado ao percorrer o “iter” decisório que a levem para fora do campo dentro do qual é natural a incerteza sobre qual vai ser o comando emitido. A circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito não significa necessariamente, face à problemática da responsabilidade extracontratual do Estado, que um deles terá agido com culpa, embora se não saiba qual; as mais das vezes, significará apenas que em ambos os casos funcionou, de modo correcto, a independência dos tribunais e dos juízes, contribuindo para o progresso do Direito através da dialéctica estabelecida entre opiniões e modos de ver que se confrontam e interinfluenciam, a exemplo do que se dá na doutrina.

(…) Fique, pois, claro que para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção, que em processo como o presente sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada no julgamento que vier questionado. Impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria nunca julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis» ([15]).

Por outro lado, se o RRCEE não fornece uma noção de tal erro, o certo é que, ao circunscrever a responsabilidade do Estado aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais indica as características e o grau de intensidade que esse erro deve assumir para poder gerar aquela responsabilidade.

 A utilização do conceito manifestamente, que, sendo indeterminado, também é imediatamente valorativo, traduz «uma elevada relevância ou importância, não bastando qualquer erro, o erro banal, corrente ou comum, mas antes aquele que o magistrado tem a obrigação de não cometer, por ser crasso e clamoroso» ([16]).

«No âmbito do erro manifesto devem caber as situações em que o erro de direito é indesculpável, aquele em que não é de conceder, de modo algum, que a solução encontrada se possa apoiar na interpretação da lei, assim como as situações de aplicação de lei revogada ou de lei inaplicável, por ser totalmente estranha à situação jurídica, quando seja evidente que a decisão é contrária à Constituição e à lei e desconforme ao Direito. (…) Não deverão caber nesse conceito as interpretações possíveis ou plausíveis da lei, nem a utilização dos vários institutos legais com conexão para o caso, já que essa actividade se incluirá na liberdade de julgamento. (…) Como salienta KARL LARENZ, não existe “uma interpretação «absolutamente correcta», no sentido de que seja tanto definitiva, como válida para todas as épocas”, devendo entender-se a sua correcção, não como “uma verdade intemporal, mas correcção para esta ordem jurídica e para este momento”. Assim, para efeitos de responsabilidade civil por erro judiciário, releva apenas o erro manifesto ou grosseiro, extraído do juízo relativo à relevância jurídica do dano, de proporcionalidade e de repartição dos custos e encargos com o sistema de justiça (o dano indemnizável), sem prejuízo da relevância de qualquer erro para efeitos de revogação da decisão danosa.» ([17]).

«A responsabilidade do Estado só ocorre quando fundada em erro judiciário manifesto, patente, indesculpável, das decisões judiciais quanto à aplicação de normas constitucionais ou da legislação ordinária, não bastando uma interpretação mais ousada, peregrina da lei para fazer incorrer o Estado em responsabilidade civil. Os erros de interpretação e de aplicação da lei corrigem-se, por regra, através dos recursos, ordinários ou extraordinários, podendo ainda sanar-se através da arguição de nulidades.» ([18]).

Quanto ao juízo sobre a culpa, relevam, sobretudo, padrões de diligência funcional média no exercício da actividade, aferidos «por um standard de actuação e rendimento normalmente exigível» ([19]). Por outro lado, a responsabilidade do Estado, assentando numa especial e, por isso, restritiva qualificação do erro, ou seja na comprovação da ilegalidade manifesta (nos termos daquele art. 13º), tem também subjacente a necessidade de demonstração, no mínimo, da culpa grave do juiz, não bastando a culpa leve ([20]).

2.2. A prévia revogação da decisão jurisdicional.

«O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente» (citado art. 13º nº 2) ([21]).

Para que o erro fundamente o direito à reparação do lesado, tem de ser reconhecido por decisão jurisdicional transitada em julgado. Tal pressuposto processual «tem o significado de salvaguardar a autoridade da sentença e o instituto do caso julgado, por o juiz da acção de responsabilidade não se pronunciar sobre a bondade intrínseca da decisão jurisdicional proferida, deixando-a intacta, tal quale» ([22]).

Trata-se de uma opção do legislador que a nossa jurisprudência, naturalmente, tem acatado, pois que a mesma compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado, preservando a paz social, não sendo, por isso, arbitrária. Foi o que sucedeu com o decidido pelo já mencionado Ac. do STJ de 24/2/2015: «(…) o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização. Se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário (art. 13.º, n.º 2, do citado Regime), não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deve necessariamente improceder. Apesar do seu carácter restritivo, o referido regime não cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade consagrados na Constituição (arts. 22.º e 13.º, respectivamente).».

Esta exigência da prévia revogação da decisão alegadamente danosa pelo tribunal competente foi enfatizada pelo entendimento precisado pelo Ac. do mesmo Tribunal de 3/12/2009 ([23]), fazendo apelo ao entendimento expresso por M. Cardoso da Costa, em artigo publicado na Revista Decana:

«1ª – A “revogação” da decisão danosa, exigida pelo nº 2 do artigo 13º, há-de ser naturalmente uma revogação definitiva, ou seja, constante de uma decisão transitada em julgado.

2ª – Tal revogação há-de, por via máxima, provir de um tribunal superior, e ser obtida através de recurso, não sendo de excluir que possa provir deste próprio que proferiu a decisão questionada, quando isso seja admissível processualmente.

3ª – Há-de ser na decisão revogatória que terá de reconhecer-se o carácter «manifesto» do erro de direito ou o carácter grosseiro na apreciação dos factos, que são pressupostos substantivos da responsabilidade do Estado.».

Por sua vez, também o T. Constitucional no seu recente Ac. de 9/7/2015 (nº 363/2015-Pedro Machete) decidiu não julgar inconstitucional a norma do citado art. 13º nº 2, por entender que as exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária ([24]).

3.1. A desconsideração da personalidade.

Como aproximação à concretização da averiguação sobre os apontados pressupostos no caso em juízo, cumpre agora enunciar alguns apontamentos quanto à figura da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva.

A atribuição de personalidade jurídica à pessoa colectiva faz emergir um novo centro de relações jurídicas, autónomo em relação aos seus membros e às pessoas que actuam como seus órgãos. Trata-se de uma ficção jurídica que, no que concerne às sociedades comerciais, visa dotar a chamada iniciativa privada, enquanto manifestação do direito de propriedade, de um instrumento de propulsão da actividade económica, através da consequente separação e limitação da responsabilidade que a autonomia invoca. Por assim ser, o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e, quando estejam em causa práticas ilícitas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros, a personalidade colectiva não pode ter uma finalidade redutora, não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção dessas mesmas práticas. «Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva» (Menezes Cordeiro, que sugere, ainda, como sub-hipótese particular, o recurso a ‘testas de ferro’ que autorizaria a procurar o real sujeito das situações criadas ([25])).

Devido a comportamentos abusivos e fraudulentos, que não são substancialmente da sociedade mas dos que estão por detrás da sua autonomia (ficcionada) e a controlam (ou ao invés), a mesma pode ser utilizada desonestamente e, funcionalmente, ao arrepio do seu fim social ou com desvio da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, para servir de véu para encobrir uma realidade ou para mascarar uma situação. Com a liberdade que o julgador tem na concretização daquilo que é o direito ([26]), tal resultado não pode ser tolerado, por se traduzir, afinal, no desrespeito pelo princípio da autonomia e da separação que a atribuição da personalidade deveria prosseguir ([27]). Em tese geral, justifica-se, nesses casos, a desconsideração, o levantamento ou a superação da personalidade jurídica da pessoa colectiva, por imposição dos ditames da boa-fé. Esta figura, criada originariamente pela jurisprudência, na busca da justiça, e, depois, sistematizada e aperfeiçoada com o contributo da doutrina, intervém – hoje pacificamente – para obviar aos esquemas de fraude, em casos de comprovado abuso da personalidade jurídica para a obtenção de interesses estranhos ao fim social da empresa.

Segundo informa Paulo Ferreira Guedes ([28]), na Europa a doutrina tem o seu primeiro momento numa decisão do 3º Senado do Reichsgericht (RG) de 22/6/1920, responsabilizando o sócio único de uma sociedade unipessoal, com a declaração de que «O juiz deve dar mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que à construção jurídica». Essa decisão foi assim comentada por Menezes Cordeiro ([29]): «Na sua simplicidade, esta decisão é apontada como a certidão de baptismo, no Continente, do levantamento da personalidade colectiva» ([30]).

Escreveu Fredie Didier Jr. (Professor da Universidade Federal da Bahia), em “Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica”:

«É forçoso admitir que, nesses casos, assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a consequente limitação da responsabilidade que ela invoca, a própria ordem jurídica deve encarregar-se de cercear os possíveis abusos, restringindo, de um lado, a autonomia e, do outro, a limitação. É nesse cenário, portanto, que desponta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando corrigir essa eventual falha do direito positivo. Trata-se, pois, de uma sanção à prática de um ato ilícito.

É como diz o pioneiro RUBENS REQUIÃO (“Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine)”. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, 1969, n. 410, p. 15):

“Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através do seu uso.”

Ainda RUBENS REQUIÃO (ibidem, p. 14):

“O mais curioso é que a ‘disregard doctrine’ não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas e os bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos”».

Por sua vez, Armando Triunfante e Luís Triunfante ([31]) sustentam a necessidade de invocar a desconsideração da personalidade colectiva (também) em dois tipos de casos:1) os de condutas em que o «cerne da questão não reside na confusão patrimonial, mas coloca-se verdadeiramente ao nível da confusão de pessoas», reflectindo tal conduta «uma acção contrária a normas ou princípios gerais e acarrete o prejuízo de terceiros»; 2) «os casos em que a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e alguns dos seus sócios», hipótese em que a imputação de actos devidos em primeira linha à sociedade deva ser reconduzir-se a um terceiro estranho à sociedade».

Estes Autores esclarecem esta última afirmação, por este modo: «Estranho do ponto de vista de que não assume a qualidade de sócio. Estranho total nunca há-de ser, tendo mesmo necessariamente uma ligação próxima, pois, caso contrário, nunca estaria numa situação que conduzisse a uma situação de confusão. Terá de estar normalmente numa posição de poder controlar a gestão da sociedade cuja personalidade se vai desconsiderar». E, depois ([32]), concretizam assim o seu entendimento:

«Por outras palavras, nem sempre se mostra necessário derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam, para que estes possam também ser responsabilizados. Já a verdadeira desconsideração deverá ficar limitada para outras hipóteses em que a resposta anterior não é suficiente, designadamente nos casos em que a confusão seja mais intensa (ao nível da própria esfera jurídica e não envolvendo somente aspectos patrimoniais) ou quando o agente seja alguém que não um sócio. Por outro lado, serão normalmente patrimoniais e ao nível da responsabilidade os efeitos mais comuns da desconsideração. Todavia nem sempre será assim, deve ser promovida, dentro do espírito do sistema, a consequência que melhor inibir as sequelas do evento gerador da desconsideração

Pedro Cordeiro ([33]) define “homem oculto” como «aquele (ou aqueles) – pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) – que pode (m) formar “de per si” a vontade social, desfuncionalizando a sociedade” e salienta que o «homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta» ([34]).

Como se sabe, não existe no nosso ordenamento jurídico positivo um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica ([35]), embora a figura não deixe de encontrar arrimo em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do abuso de direito, e também possam ser vistos como seus afloramentos concretos alguns casos tipificados de responsabilidade dos sócios, como são os previstos, p. ex., nos arts. 58º nº 1 a), 58º nº 3 e 84º do CSC ou, até, no art. 378º do CT.

No entanto, a jurisprudência nacional tem equacionado a doutrina da desconsideração e é um facto que, por essa via, foi já recebida no seio do nosso ordenamento jurídico. Cita-se aqui, apenas e a título de exemplo, extractos dos seguintes arestos:

- Ac. (sumário) da RL de 3/3/2005 ([36]):

«Existe abuso da limitação da responsabilidade, quando alguém invocar e insistir na autonomia patrimonial da Sociedade usando e abusando da limitação da responsabilidade dela em seu favor e em prejuízo dos credores da Sociedade, desrespeitando e limitação da responsabilidade, através de alguém que realiza na prática os negócios controlando a Sociedade, sem aparecer como administrador ou gerente (homem oculto) actuando através de pessoas fictícias “Offshores”, ou de gerente ficticiamente designado, o marido da sua empregada domésticas (homem de palha). Era a directora clínica da Sociedade que através de procuração com todos os poderes, para tudo poder fazer, que actuava em nome da Sociedade.

 As Sociedades Rés não possuem património. Todos os bens que nela existem, são locados. São Sociedades descapitalizadas. Apesar disso, a 2.ª Ré, contraiu encargos de largos milhares de contos e actuou através e em benefício da 3.ª Ré (pessoa singular), verdadeira dona das Sociedades Rés e dos investimentos nelas efectuados.

Tendo a 3.ª Ré usado as 1.ª e 2.ª, constituídas em seu benefício próprio numa posição de domínio absoluto através de “offshores”, e servindo-se de procuração com poderes que lhe permitiam actuar no interior delas como melhor convinha aos seus interesses individuais, misturando os patrimónios, a limitação da personalidade das pessoas colectivas envolvidas não deve manter-se.» ([37]).

- E o já referido Ac. do STJ de 10/1/2012 expendeu: «Justifica-se o levantamento da personalidade colectiva de sociedade que outorgou escritura de compra e venda em 21-12-1995, constatando-se que essa sociedade era mero testa de ferro do oculto comprador, seu sócio dominante com 85% do capital, considerando-se, por via do levantamento ou desconsideração da personalidade dessa sociedade, celebrado o contrato entre o oculto comprador e os demais intervenientes na compra e venda».

Merece também registo o facto de, actualmente, ter já algum estágio de amadurecimento a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, mediante a quebra da autonomia patrimonial, com que se busca responsabilizar a sociedade no tocante a dívidas ou actos praticados pelos sócios, sempre que for apurado o uso abusivo, simulado ou fraudulento da pessoa jurídica, isto é, que estejam suficientemente caracterizados nos factos o desvio de bens, a fraude ou abuso de direito por parte dos que detêm o controlo da sociedade, que se utilizam da personalidade jurídica para transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores ou terceiros.

«Como exposto na doutrina e jurisprudência, a desconsideração inversa da personalidade jurídica possui como um de seus efeitos o efectivo alcance dos bens patrimoniais da sociedade, quando esta for utilizada como “esconderijo” de bens que eram antes de propriedade do sócio e sua família e também nos casos, onde o sócio em questão detém o absoluto controle da sociedade. Isto ocorre, contudo, em decorrência de manobras fraudulentas, visando assim, acobertar o seu património pessoal, transferindo-o para uma pessoa jurídica, maculando o princípio da autonomia patrimonial([38]).

3.2. O erro quanto à desconsideração da personalidade.

Segundo pensamos, resulta de tudo o exposto que, em virtude de todo o longo caminho entretanto percorrido e do esforço desenvolvido pela doutrina no aperfeiçoamento da teoria, estão hoje razoavelmente sistematizadas as manifestações de conduta societária reprovável que ao interessado na desconsideração da personalidade compete provar.

Ainda assim, como se viu, a concreta actuação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades padece de falta de rigor dogmático, desde logo porque não apela “directamente” a concretas normas jurídicas – antes a princípios, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade – e é controversa, porquanto se manifestam entendimentos não inteiramente convergentes quanto à formulação dos respectivos requisitos ([39]).

Ora, a decisão judicial que a apelante reputa de ilícita porque eivada de erro tem que ser vista sem omitir que o juiz não dispõe no seu labor de uma ciência exacta que o oriente e, sobretudo, no concreto contexto de uma figura jurídica em elaboração, característica que, perpassando ou sendo inerente ao direito em geral e à realidade dinâmica em que o mesmo intervém, sobressai ainda mais no campo desta teoria ([40]).

Nessa decisão, a Sra. Juíza entendeu que devia ser desconsiderada a personalidade jurídica da apelante para que o património inscrito em seu nome também respondesse pelo crédito dos requerentes, na medida em que a factualidade indiciada apontava para que aquela tinha sido utilizada pelos requeridos com o objectivo de evitar a cobrança de tal crédito.

Muito em suma, resulta dessa matéria de facto:

Os 1ºs requeridos e pais do único sócio da apelante, na sequência de dívidas ao Estado e outros credores, perderam ou ocultaram todo o seu património e não pagaram aos credores, deixando de ser titulares de contas bancárias e de recorrer ao financiamento bancário para o exercício da actividade empresarial. Em consequência disso, os 1ºs requeridos acordaram com os requerentes em desenvolverem em conjunto a actividade de compra, construção e venda de imóveis, a qual se iniciou com recurso a capitais dos requerentes e titulada apenas por estes, mas desenvolvida e dirigida somente pelo 1º requerido.

Entretanto, foi constituída a apelante, que tem como sócio único e gerente o filho dos 1ºs requeridos, para continuar essa actividade e titular negócios dos requerentes e 1ºs requeridos, mas sempre foi o 1º requerido marido quem negociou e contratou todas as obras da apelante e quem fez todos os pagamentos desta, servindo o nome do filho apenas para que pudesse prosseguir com os negócios. Mais tarde, foi registada a 3ª requerida, com sede, tal como a apelante, na residência dos 1ºs requeridos, onde também reside o filho destes, que é, igualmente, o único administrador da 3ª requerida.

Os 1ºs requeridos lavraram o suposto contrato promessa referido em 35) apenas com o objectivo de se furtarem ao pagamento das quantias a que se tinham obrigado perante os requerentes e, actualmente, para além das fracções identificadas em tal escrito, não lhes são conhecidos outros bens.

Donde, a matéria indiciada permitiria, fundadamente, concluir, com base numa summario cognitio ([41]), que: em face da situação concreta, era o 1º requerido marido quem, sem aparecer como administrador ou gerente (“homem oculto”), servindo-se do nome do filho, ou seja, actuando através de pessoa fictícia (“homem de palha”), sempre deteve o domínio dos factos e o controlo efectivo da apelante; e esta apenas serviu como “testa de ferro” para aquele poder desenvolver a respectiva actividade e pôr o seu património a salvo dos credores, actuando através de um gerente ficticiamente designado.

Assim sendo, ao reconhecer a existência de abuso da autonomia patrimonial da sociedade apelante, em prejuízo dos credores, mais do que plausível, foi defensável a abordagem fáctico-jurídica que a Sra. Juíza engendrou, obtendo, com autonomia e uma racionalidade (também) prático-normativa, um resultado que, não sendo singular nem o único possível, de modo algum, pode ser apodado de “peregrino” ([42]). Por isso, perante tudo o que acima se discorreu, a desconsideração da personalidade jurídica da A, por ser uma solução legítima da questão submetida à apreciação da Sra. Juíza, não afectou a decisão proferida de manifesta ilegalidade, com a restritiva qualificação que tem este conceito, designadamente sobre o grau da respectiva intensidade, que resulta dos termos acima explicitados para o erro judiciário, enquanto requisito específico da responsabilidade civil exercida na acção pela apelante.

É certo que a decisão não vingou porque, em sede da sua reapreciação pela via do recurso, o Tribunal hierarquicamente superior, a que o julgamento da questão foi deferido, sobrepondo-se ao de primeira instância, decidiu de modo diverso. Ora, tendo perfilhado diferente entendimento, a Relação, ao revogar aquela decisão, considerou-a errada, nesse estrito sentido.

Como se viu, o reconhecimento do fundamento do direito à reparação pretendida pela A – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à situação jurídica em apreço, fruto de erro de julgamento, manifesto e indesculpável – deveria ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória e proferida no processo judicial em que, alegadamente, fora cometido o erro. Porém, o certo é que dos termos da decisão revogatória nada se colhe que permita, validamente, sustentar esse reconhecimento.

Por outro lado, a mera revogação, sem mais, significa, apenas, que foram oferecidas duas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação, ambas igualmente legítimas – ainda que só uma tenha prevalecido, como decorrência da forma como o exercício do poder judicial está estruturado – e não, necessariamente, que a decisão de 1ª instância estivesse errada, muito menos, manifestamente.

Pelo contrário, não se demonstra que a decisão judicial revogada foi claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave, ou seja, que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado por tal (inadmissível) forma.

Assim, salvaguardada que deve ser a essência da especificidade da função jurisdicional, estamos, apenas, perante actos de interpretação do direito e valoração dos factos, que conduziram a duas diferentes apreciações fáctico-jurídicas, ambas formadas com base nos elementos factuais indiciariamente demonstrados no processo, com sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas no quadro normativo vigente, como manifestações da autonomia quanto ao “dizer o que diz o direito” e do princípio da independência dos juízes.

Por conseguinte, está excluída a responsabilidade extracontratual do Estado.

3.3. O erro quanto ao excesso de bens arrestados.

Relembramos que, nos termos expressos pela lei (citado art. 13º nº 2), para que o erro fundamente o direito à reparação do lesado, tem de ser reconhecido por decisão jurisdicional transitada em julgado, o que, neste caso, não ocorreu quanto ao invocado erro de que teria advindo o alegado excesso de bens arrestados, porquanto a Relação não se pronunciou sobre tal questão, por ter considerado prejudicado o respectivo conhecimento face à solução dada à matéria anteriormente referida.

É claro que poderá considerar-se controversa a conformidade constitucional de uma opção do legislador que exige, como pressuposto substantivo da responsabilidade do Estado, o reconhecimento na decisão revogatória do carácter “manifesto” do erro de direito, quando interpretada como também aplicável numa situação – como a dos autos – em que a possibilidade de tal reconhecimento ficou arredada pela normal actuação das regras que disciplinam a apreciação dos recursos.

Já observámos que a mencionada opção legislativa, apesar do seu carácter restritivo, compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado e não cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do estado nem o princípio da igualdade. Todavia, mesmo que assim não se entendesse, neste particular, constata-se – ainda com maior acuidade e linearidade do que em relação ao imputado desacerto anteriormente aludido – que jamais se poderia vir a ter por demonstrado o putativo erro – para mais manifesto, ou seja, com os requisitos já latamente analisados – acerca da proporcionalidade e adequação dos bens arrestados.

Com efeito, a questionada decisão proferida pela primeira instância na parte atinente à necessidade de ser determinado o arresto dos bens, concluiu que o procedimento cautelar deveria proceder na sua totalidade, «atendendo ao valor do crédito (mais de 200.000,00€), e à queda dos preços no mercado mobiliário (sendo previsível que actualmente as fracções N, P e Q já não valham o valor porque estavam oneradas), a que acresce o facto das frações dos prédios descritos sob os n.º ... já se encontrarem onerados por hipotecas de elevado montante, e as reduzidas áreas dos restantes prédios».

Ora, é indubitável que, face ao disposto na citada decisão, estamos perante um normalíssimo acto de interpretação do direito e valoração dos factos indiciados, para os quais a solução definida se mostra apropriada. Perante os termos da decisão e respectivos fundamentos, não se divisa, sequer, como seria possível encará-la como sendo totalmente estranha à situação jurídica em apreço, desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave.

Improcedem, pois as conclusões de recurso.

Síntese conclusiva.

1ª - O regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados por erro judiciário, consagrada pelo art. 13º da Lei 67/2007 de 31/12 (RRCEE), é justificado pela especificidade da função jurisdicional, em relação às demais incumbências do Estado, traduzida na respectiva natureza e na independência dos juízes, mas também na forma como o respectivo exercício está estruturado, em que se realça o sistema de recursos.

 2ª - Tais natureza e estrutura, embora não possam vedar a possibilidade de responsabilização efectiva, tanto do Estado como dos juízes – estes, por via de acção de regresso –, exigem a concepção do aludido regime como estando balizado pela necessidade de contenção do direito à indemnização e da imposição de limites.

3ª - Nessa senda, está excluída a responsabilidade do Estado por actos de simples interpretação do direito e valoração dos factos, com uma intenção prática de uma racionalidade prático-normativa, porque inseridos na essência da especificidade da função jurisdicional, que, por isso, deve ser salvaguardada.

4ª - No caso, a matéria indiciada permitiria, fundadamente, concluir, em face da situação concreta, que era o 1º requerido quem, sem aparecer como administrador ou gerente (“homem oculto”), servindo-se do nome do filho, ou seja, actuando através de pessoa fictícia (“homem de palha”), sempre deteve o domínio dos factos e o controlo efectivo da sociedade e que esta apenas serviu como “testa de ferro” para aquele poder desenvolver a respectiva actividade e pôr o seu património a salvo dos credores, actuando através de um gerente ficticiamente designado.

5ª - Assim sendo, ao reconhecer a existência de abuso da autonomia patrimonial da sociedade, em prejuízo dos credores, mais do que plausível, foi defensável a abordagem fáctico-jurídica que a Sra. Juíza engendrou, obtendo, com autonomia e uma racionalidade (também) prático-normativa, um resultado que, não sendo singular nem o único possível, de modo algum, pode ser apodado de “peregrino”.

6ª - Por isso, a desconsideração (inversa) ou levantamento da personalidade jurídica da sociedade A, por ser uma solução legítima da questão submetida à apreciação da Sra. Juíza, não afectou a decisão proferida de manifesta ilegalidade, com a restritiva qualificação que tem este conceito – designadamente sobre o grau da respectiva intensidade –, que é exigida pelo requisito específico da responsabilidade civil exercida nesta acção, traduzido no erro judiciário.

7ª - A concreta actuação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de sociedades ainda padece de falta de rigor dogmático, desde logo porque não apela “directamente” a concretas normas jurídicas – antes a princípios, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade – e é controversa, porquanto se manifestam entendimentos não inteiramente convergentes quanto à formulação dos respectivos requisitos. Além disso, a decisão judicial aqui reputada de ilícita, por errada, tem que ser vista sem omitir que o juiz não dispõe no seu labor de uma ciência exacta que o oriente e, sobretudo, no concreto contexto de uma figura jurídica em elaboração, característica que, perpassando ou sendo inerente ao direito em geral e à realidade dinâmica em que o mesmo intervém, sobressai ainda mais no campo desta teoria.

8ª - O reconhecimento do fundamento do direito à reparação da responsabilidade do Estado pelos danos causados por erro judiciário – ou seja, de que a decisão de primeira instância seria totalmente estranha à situação jurídica em apreço, fruto de erro de julgamento, manifesto e indesculpável – teria de ser patenteado pelos termos da própria decisão revogatória proferida no processo judicial em que, alegadamente, fora cometido o erro. Essa opção legislativa, apesar do seu carácter restritivo, compatibiliza adequada e proporcionadamente o instituto da responsabilidade civil com a garantia da segurança e da certeza jurídica do caso julgado e, por isso, não cerceia arbitrariamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade.

9ª - Sem mais, a mera revogação da decisão, em sede da sua reapreciação pela via do recurso pelo tribunal hierarquicamente superior, a que o julgamento da questão foi deferido, sobrepondo-se ao de primeira instância, significa, apenas, que foram oferecidas duas diferentes apreciações fáctico-jurídicas – ambas formadas com base nos elementos factuais indiciariamente demonstrados no processo, com sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas no quadro normativo vigente, como manifestações da autonomia quanto ao “dizer o que diz o direito” e do princípio da independência dos juízes – bem como duas diferentes soluções jurídicas para uma mesma situação, ambas igualmente legítimas – ainda que só uma tenha prevalecido, como decorrência da forma como o exercício do poder judicial está estruturado – e não, necessariamente, que a decisão de 1ª instância estivesse errada, muito menos, manifestamente.

10ª - No caso, pelo contrário, não se constata que a decisão judicial revogada fosse claramente desrazoável, arbitrária, assente em conclusões absurdas, fruto de indiscutível erro judiciário, manifesto e revelador de desconhecimento do direito e de uma actuação com culpa grave, ou seja, que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso nunca teria julgado por tal (inadmissível) forma.

Decisão.

Pelo exposto, negando provimento ao recurso, decide-se confirmar a decisão recorrida.           

Custas pela recorrente.

                   Coimbra, 03/11/2015


Alexandre Reis
(Relator)
Adjuntos:
1º - Jaime Ferreira
2º - Jorge Arcanjo

***

[1] A A também aludiu à demora na tramitação do procedimento cautelar, atenta a sua natureza urgente, reconhecendo, todavia, que tal matéria se encontra reservada para discutir em sede da jurisdição administrativa e fiscal, pelo que disse circunscrever os presentes autos à discussão do erro judiciário cometidos pelo Tribunal Judicial.

[2] Já com a correcção do lapso de escrita apontado no Ac. da Relação ao ponto 44).

[3] «A ideia fundamental é a de que nada do que acontece em nome do Estado e no suposto interesse da colectividade, mediante as acções ou omissões das suas instituições, pode ser imune ao dever de reparar os danos provocados aos particulares. Podem discutir-se as condutas relevantes, os danos ressarcíveis, as circunstâncias, a profundidade, as condições e os limites da reparação, mas já não o princípio» (Fátima Galante “Erro judiciário: a responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional” p. 21).

[4] Idem, ibidem, p. 20.

[5] Ana Celeste Carvalho “Responsabilidade civil por erro judiciário”, Cadernos do CEJ, Julho 2014.

[6] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 7.ª ed., 2013, p. 674.

[7] Citado por Fátima Galante, na ob. já referenciada, p. 19.

[8] É o que também anotou João Caupers (“A Responsabilidade do Estado e Outros Entes Públicos, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa): «Já quanto ao erro judiciário, a questão é mais complexa e delicada (...).Por outro lado, existe um mecanismo específico para procurar evitar a consumação de decisões judiciais erradas: o sistema de recursos. A ideia, razoável, é a de que a possibilidade de erro se vai reduzindo à medida que mais magistrados são chamados a pronunciar-se sobre uma questão. Não admira, pois, a formulação restritiva da lei: somente são susceptíveis de engendrar responsabilidade para o Estado as decisões judiciais manifestamente inconstitucionais ou ilegais …».

[9] A integração da responsabilidade por deficiente funcionamento da justiça, designadamente por erro judiciário, no regime da responsabilidade aquiliana retira-se, imediata e linearmente do teor dos arts. 12º e 13º do RRCEE.

[10] Como parece evidente, perante o disposto no segmento inicial do citado art. 12º, não pode intervir no campo do erro judiciário qualquer das presunções relativas ao pressuposto consistente na culpa previstas no precedente art. 10º do diploma. Neste sentido, Celeste Carvalho, na ob. citada.

[11] Celeste Carvalho, ob. citada.

[12] DIGESTA “Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, Da sua Metodologia e Outros”, V. 2.º, Coimbra Editora, 1995, p. 191.

[13] Celeste Carvalho, ob. citada.

[14] Fátima Galante, na ob. já citada, p. 26.

[15] Este pontificante Aresto, também evocado na obra acabada de citar, emitido no p. 97A774 e relatado por Ribeiro Coelho, tem também o respectivo sumário publicitado em www.dgsi.pt: «Para o reconhecimento, em concreto, de uma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, por facto do exercício da função jurisdicional, não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis».

A demais jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, publicada na mesma base de dados, tem caminhado idêntico percurso. Assim:

- Ac. de 31/3/2004 (51/04 -Nuno Cameira): «A autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionalmente reconhecidas são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes. Os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis. O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil na jurisdição cível quando, salvaguardada a essência da função jurisdicional referida no ponto IV, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas.».

- Ac. de 20/10/2005 (2490/05 - Araújo Barros): «(…) o dever de indemnização a cargo do Estado … pode e deve estender-se a outros casos de culpa grave, designadamente no que respeita a grave violação da lei resultante de negligência grosseira … a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei …. Isto é … não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou melhor a solução encontrada: impõe-se que haja a certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis. A mera revogação de uma decisão judicial não importa, à partida, um juízo de ilegalidade ou de ilicitude, nem significa que a decisão revogada estava errada; apenas significa que o julgamento da questão foi deferido a um Tribunal hierarquicamente superior e que este, sobrepondo-se ao primeiro, decidiu de modo diverso.».

- Ac. de 8/9/2009 (368/09.3YFLSB - Sebastião Póvoas): «Para que não se corra o perigo de entorpecer o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes, impõe-se um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova. Certo, ainda, que nesta perspectiva, o sistema de recursos, e a hierarquia das instâncias, contribuem, desde logo, para o sucessivo aperfeiçoamento da decisão, reduzindo substancialmente a possibilidade de uma sentença injusta. (…) O erro grosseiro é o que se revela indesculpável, intolerável, constituindo, enfim, uma “aberratio legis” por desconhecimento ou má compreensão flagrante do regime legal.».

- Ac. de 15/12/2011 (364/08.0TCGMR.G1.S1 - João Trindade): «A responsabilidade civil extracontratual do Estado-Juiz assenta na culpa do juiz, motivo pela qual não se verificando este requisito não há lugar a responsabilidade objectiva do Estado. O erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil do Estado quando seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de uma actividade dolosa ou gravemente negligente.».

- Ac. de 28/2/2012 (825/06.3TVLSB.L1.S1-Nuno Cameira): «Os actos de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional, são insindicáveis. O erro de direito só constituirá fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a referida essência da função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas».

- Ac. de 23/10/2014 (1668/12.0TVLSB.L1.S1-Fernanda Pereira): «O erro de direito, para fundamentar a obrigação de indemnizar, terá de ser “escandaloso, crasso, supino, procedente de culpa grave do errante”, sendo que só o erro que conduza a uma decisão aberrante e reveladora de uma actuação dolosa ou gravemente negligente é susceptível de ser qualificada como inquinada de “erro grosseiro”».

- Ac. de 24/2/2015 (2210/12.9TVLSB.L1.S1-Pinto de Almeida): «O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca á admissão e valoração dos meios de prova e á fixação dos factos materiais da causa.».

[16] Celeste Carvalho, ob. citada. Também Carlos Alberto Fernandes Cadilha, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, Coimbra Editora, pp 277, disse: «O legislador exige uma especial qualificação do erro de direito, não se bastando, para efeito do funcionamento do dever de indemnizar, com a mera existência da ilegalidade ou inconstitucionalidade da solução jurídica adoptada na decisão Judicial, quando esta tenha vindo a ser revogada por decisão de tribunal superior».

[17] Acrescenta Celeste Carvalho, na ob. citada.

[18] Fátima Galante, na ob. já citada, p. 37.

[19] Cf. Carlos Alberto Fernandes Cadilha, na ob. citada, pp 197 e s.

[20] Neste sentido, Celeste Carvalho, na ob. citada: «É de associar o erro grosseiro e manifesto à culpa grave, não fazendo sentido falar, quer em presunção de culpa, quer em culpa leve». Deve aqui reiterar-se que está arredada, como já se disse, a intervenção de qualquer presunção neste campo e que, na esteira do citado Ac. do STJ de 8/7/1997, não constitui indicador de culpa, muito menos grave, a «circunstância de dois juízes decidirem em sentidos opostos a mesma questão de direito».

[21] Como se sabe, a formulação restritiva da norma não tem sido pacificamente recebida (como regista Fátima Galante, na ob. já citada, p. 44 e s). Entre algumas das críticas que têm sido dirigidas ao preceito realçaríamos a manifestada por Luís Fábrica in “Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2013, pp 357 e ss), que sustenta a sua inconstitucionalidade, por violação do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva, nos casos em que, por razões várias, a decisão não é susceptível de recurso, o que considera mais chocante por estarem causa em causa danos resultantes, não de ilícitos comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros.

Guilherme da Fonseca e Miguel Bettencourt da Câmara, em opinião publicada na revista Julgar nº 11, p. 19, previnem: «O melhor teria sido prever, como pressuposto processual, a exigência de uma séria probabilidade da existência de erro judiciário, pois, a ser como está, pode a norma do n.º 2 brigar com o princípio da tutela judicial efectiva consagrado no art. 20.º da Constituição, conjugado com o direito fundamental à reparação dos danos que assiste a todos os cidadãos (vd. art. 22.º da CRP), nas situações em que se limita o direito de acção ou até se priva esse direito. A menos que se avance pela eliminação das alçadas em todas as jurisdições, o que nos parece ser impensável.».

Parece pertinente deixar, ainda, registo do Ac. da RC de 26/11/2013 (3422/12.0TBLRA.C1-Avelino Gonçalves) que considerou que a norma do artigo 13º nº 2 da Lei nº 67/2007 não tem aplicação, desde logo, quando a decisão em crise não admite recurso ordinário, como é o caso das acções sumaríssimas.

Essas discordâncias têm sido, também, expressas quando está em causa a violação do direito da União por decisões que não sejam susceptíveis de recurso judicial de direito interno, havendo mesmo quem entenda que o preceito se revela em oposição à jurisprudência do TJUE, ao exigir a prévia revogação da decisão considerada violadora do direito comunitário, que será impossível no caso de a decisão ser proferida pelo último grau de jurisdição. Salienta-se, nessa controvérsia, a publicitação do recente Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 9/9/2015 (Ferreira da Silva e Brito), que decidiu:

«O artigo 267.º, terceiro parágrafo, TFUE deve ser interpretado no sentido de que um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado a submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia um pedido de decisão prejudicial de interpretação do conceito de «transferência de estabelecimento» na aceção do artigo 1.º, n.º 1, da Diretiva 2001/23, em circunstâncias, como as do processo principal, marcadas simultaneamente por decisões divergentes de instâncias jurisdicionais inferiores quanto à interpretação desse conceito e por dificuldades de interpretação recorrentes desse conceito nos diferentes Estados-Membros.

O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída.».

[22] Cf. Celeste Carvalho, ob. citada.

[23] P. 9180/07.3TBBRG.G1.S1-Moreira Camilo.

[24] Esse Aresto vincou que são as especificidades do sistema judiciário que «estão na origem de uma orientação seguida por este Tribunal desde o Acórdão n.º 90/84 (subsequentemente afirmada noutros arestos, como, por exemplo, no Acórdão n.º 71/2005), segundo a qual:

“Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz apli­cação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» – o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida (já acima se recor­dou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribu­nal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um ato «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efei­tos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «conso­lidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instân­cia de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.”

Este entendimento assenta numa conceção da função jurisdicional em que o juiz é o mediador necessário do direito:

(…) E daí a defesa do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP:

“[S]endo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado ‘erro’ judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o ‘erro’ (o puro ‘erro’) só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 13.º – e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.”» [citando Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial” in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138.º (2009), N.º 3954, pp. 163-164].

E continua o mesmo Acórdão:

«A doutrina sufragada por este Tribunal desde o mencionado Acórdão n.º 90/84 destaca, assim, e de acordo com este entendimento, o ilogismo institucional – “no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária” – que representaria uma solução que prescindisse de um requisito como aquele que vem estatuído no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP: uma decisão judicial transitada em julgado não deve poder vir a ser posteriormente «desautorizada» – isto é, em concreto afastada ou desconsiderada –, mesmo que só incidentalmente e para efeitos de verificação de erro de julgamento relevante em sede de responsabilidade civil por «facto» da função jurisdicional, por outro tribunal “porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior”».

[25] In “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pp. 122 e s.

[26] «Ao descaracterizar, para os efeitos que estão aqui em causa, as sociedades, o direito está a aproximar-se da vida tal como ela é, e, consequentemente, no caminho do seu próprio aperfeiçoamento» (Ac. do STJ 12/5/2011, p. 280/07.0TBGVA.C1.S1- João Bernardo).

[27] Catarina Serra [“Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)”, Revista “Julgar”, nº 9, Coimbra  Editora, p. 130], preconizou que «É altura de recuperar as palavra (intemporais) de FERRER CORREIA [in “Sociedades fictícias e unipessoais”, Coimbra, 1948, pág. 325)] “[s]aber quando a ideia de separação de personalidades deva ser abandonada, em homenagem aos referidos princípios [da boa fé e do abuso do direito], é problema que só caso a caso poderá resolver-se. Terá aqui um largo papel a desempenhar o prudente arbítrio do julgador, o seu humano sentido da justiça devida às coisas – o seu bom senso. Porque, na verdade, o avaliar das consequências da distinção entre personalidade social e individual é, antes de tudo, uma simples questão de bom senso”».

[28] “Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades por Quotas Subcapitalizadas”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, pp 32 e s.

[29] O Levantamento … p 105.

[30] Como lembra Catarina Serra no estudo citado, «Em Portugal, o afastamento da personalidade jurídica foi invocado pela primeira vez, tanto quanto se sabe, por FERRER CORREIA [na obra referenciada] (sete anos antes de FOLF SERIK ter baptizado e desenvolvido a teoria)» e, na jurisprudência, foi percursor o Ac. da RP de 13/5/1993 (CJ, 3º-199), relatado pelo então Desembargador Fernandes Magalhães.

[31] Em estudo denominado “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial”, publicado na revista “Julgar” nº 9, Coimbra Editora, p. 136.

[32] A p. 145 do mesmo estudo.

[33] In “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais” (2005, 2ª edição., Universidade Lusíada Editora), citado no Ac. do STJ de 10/1/2012 (434/1999.L1.S1- Salazar Casanova).

[34] Também Meneses Cordeiro (O levantamento … p. 107), para além da já aludida hipótese sugerida quanto ao recurso a ‘testas de ferro’, comentou assim uma situação apreciada por um tribunal alemão: «A nível de decisão considerou-se que quem fundasse uma sociedade com recurso a um testa-de-ferro (“homem de palha”...) deveria responder como se fosse sócio».

[35] P. ex., no Brasil, segundo Bárbara Barbizani Caiado “A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Sociedade por Quotas. Uma Perspectiva Comparada entre Portugal e Brasil”), é indubitável que, face ao disposto no art. 50º do CC de 2002, está estabelecida a «teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica», regra geral no sistema brasileiro, exigindo-se, para que se recorra à desconsideração, para além da prova da insuficiência patrimonial, a demonstração do desvio de finalidade (teoria subjectiva) no comportamento dos sócios ou da confusão patrimonial (teoria objectiva) entre pessoa do sócio e ente societário.

Os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica, na formulação subjectiva, são o abuso de direito – o seu exercício irregular ou anormal – ou a fraude ou à lei – o cumprimento apenas formal da letra da lei, mas em divergência com o espírito para a qual ela foi criada e para obtenção de fim contrário a ela (de que é exemplo a conhecida compra por interposta pessoa) – e, na formulação objectiva, a confusão patrimonial.

[36] P. 1119/2005-6 - Gil Roque.

[37] Como se pode concluir, o Tribunal constatou que, quando alguém se socorre da limitação da responsabilidade em seu favor e simultaneamente em prejuízo de terceiros, realizando na prática os negócios em função do controlo que detém da sociedade, seja, através de pessoas fictícias ou através de gerentes ficticiamente designados, tal facto, consubstancia abuso do princípio da limitação da responsabilidade.

[38] Isaura Meira Cartaxo Filgueiras, “Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica”, BuscaLegis.ccj.ufsc.Br, p. 6.

[39] Numa Conferência proferida no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, a 18/12/2003, publicada no Boletim da Ordem dos Advogados nº 30, Janeiro/Fevereiro de 2004, referenciada no Ac do STJ de 26/06/07 (nº 07A1274) -Afonso Correia), ficou dito: «Esta operação complexa não é de fácil interiorização no foro. A técnica não oferece em absoluto segurança a quem decide, desconfortável por não dispor de claros pressupostos de aplicação da medida.».

[40] Aproveitamos para invocar o pensamento do Prof. Castanheira Neves (O actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica - Coimbra Editora 2003 - p. 11), ao explicar que nem sequer será em função da interpretação da lei, «tomada abstractamente ou em si, que havemos de compreender a realização do direito». O mesmo Mestre também ensinou que «o facto não tem existência senão a partir do momento em que se torna matéria de aplicação do direito, o direito não tem interesse senão no momento em que se trata de o aplicar ao facto; pelo que, quando o jurista pensa o facto, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao facto» (Seminário subordinado ao tema “Reexame da Prova em Recurso Especial – Impossibilidade de Separação entre Facto e Direito”, Organizado pela Ordem dos Advogados Brasileira).

[41] A providência cautelar não exige uma prova stricto sensu - mas apenas uma prova sumária do direito ameaçado, ou seja, a probabilidade séria da existência do direito alegado (art. 368 nº 1 do CPC). Esta solução explica-se pela circunstância de este pressuposto específico da providência cautelar constituir simultaneamente objecto da acção principal, na qual o requerente terá de fazer a prova stricto sensu da existência do direito acautelado (cf. P.de Lima e A. Varela, CC Anot. vol. I, 1987, p. 637).

[42] E ainda que o fosse não se alterariam substancialmente os termos da questão.