Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2210/12.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
ERRO JUDICIÁRIO
ERRO GROSSEIRO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO ADMINISTRATIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PÚBLICAS.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS - DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS PESSOAIS - ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO / TRIBUNAIS / ESTATUTO DOS JUÍZES - GARANTIA DA CONSTITUIÇÃO / FISCALIZAÇÃO CONCRETA DA CONSTITUCIONALIDADE.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Ana C. Carvalho, Responsabilidade Civil por Erro Judiciário, 48 e ss..
- Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, 105 – 107, 209, 210.
- Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial”, RLJ 138-163, 165.
- Carlos Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 210-214, 217, 218, 220.
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I, 429.
- Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 463.
- Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 171, 172, 284 e 285.
- Guilherme da Fonseca e Bettencourt da Câmara, A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, 50 e ss..
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 213.
- Luís Fábrica, Comentário ao RRCEE, 343, 358, 359.
- Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Comentário ao Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 40 e ss..
- Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma, 14 e 15.
- Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade do Estado por Actos Legislativos, 121, 124.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 616.º, N.º2, 696.º
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º, 17.º, 18.º, 22.º, 27.º, N.º 5, 29.º, N.º 6, 202.º, N.º2, 203.º, 204.º, 205.º, N.º2, 216.º, N.º2, 280.º, N.º1, AL.B).
LEI DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL (LTC): - ARTIGO 80.º, N.º 2.
LEI N.º 62/2007, DE 31/12, - REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PÚBLICAS (RRCEE): - ARTIGOS 12.º, 13.º, NºS 1 E 2, 22.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10.02.2004, DE 31.03.2004, DE 29.06.2005, DE 20.10.2005, DE 18.02.2006, DE 21.03.2006 E DE 28.02.2012, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 20.05.2009, DE 02.07.2009, E, DE 23.10.2014.
-DE 08.09.2009, DE 03.12.2009, DE 22.03.2011, DE 28.02.2012, E, DE 22.03.2014, EM WWW.DGSI.PT .
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TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
- ACÓRDÃO Nº 90/84, DE 30/07/84.
- DECISÃO SUMÁRIA, DE 06.10.2009, E ACÓRDÃO SUBSEQUENTE, DE 07.11.2009.
Sumário :

I - Apesar da falta de regulamentação própria, desde há muito se vinha afirmando a responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (fora dos casos específicos da jurisdição penal), com fundamento no art. 22.º da CRP, que se considerava de aplicação directa, sem carecer de mediação normativa para poder ser invocado.

II - O regime aprovado pela Lei n.º 62/2007, de 31-12, concretiza o princípio consagrado no citado art. 22.º sobre a responsabilidade do Estado e demais entidades públicas, considerando as suas diferentes funções: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

III - No que concerne à função jurisdicional, o referido regime distingue os danos ilicitamente causados pela administração da justiça (com destaque para a violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável – art. 12.º) e os danos decorrentes de "erro judiciário", que pode consistir num erro de direito ou num erro de facto (art. 13.º, n.º 1).

IV - O erro de direito deve ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso e indesculpável de qualificação, subsunção ou aplicação de uma norma jurídica; o erro de facto deve ser clamoroso e grosseiro, no que toca à admissão e valoração dos meios de prova e à fixação dos factos materiais da causa.

V - Todavia, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.

VI - Se não se fizer essa prova da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário (art. 13.º, n.º 2, do citado Regime), não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deve necessariamente improceder.

VII - Apesar do seu carácter restritivo, o referido regime não cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado nem o princípio da igualdade consagrados na Constituição (arts. 22.º e 13.º, respectivamente).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA intentou a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária contra o ESTADO PORTUGUÊS.

Pediu que o réu seja condenado a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de €111.270,00, acrescida dos juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Como fundamento, alegou que sofreu danos patrimoniais, em consequência de uma decisão judicial que reputa manifestamente inconstitucional e ilegal e enfermar de erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

O réu, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção, por falta de fundamento legal.

O autor replicou, mantendo a posição expressa na petição inicial.

No saneador, por o estado do processo o permitir, conheceu-se do mérito da causa, tendo sido proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por falta de fundamento legal, tendo o réu sido absolvido do pedido formulado pelo autor.

Discordando desta decisão, dela interpôs recurso o autor, que a Relação julgou improcedente, mantendo a sentença recorrida.

Ainda inconformado, o autor pediu revista, excepcional, nos termos do art. 672º nº 1 a) do CPC, que foi admitida.

Apresentou as seguintes conclusões:

a) Nenhuma das cláusulas do contrato de fls. 222 a 225 poderiam ser aplicadas, porquanto este contrato não foi rescindido pelo então e ora Autor, nem pela BB, sendo certo que este contrato só vigorou até 30 de Setembro de 2003, sendo substituído pelo contrato de fls. 226 a 228, este sim rescindido por iniciativa do Autor por invocada e provada justa causa.

b) Verificando-se, como se verificou, uma situação de rescisão da iniciativa do Autor, com justa causa, a situação regular-se-ia pelo Código do Trabalho ou, como vinha sendo, e foi, entendimento do Supremo, pela Lei 28/98 - nunca por quaisquer normas do contrato colectivo de trabalho ou do contrato individual de trabalho, expressamente afastadas pelas partes contratantes.

c) Todos os titulares dos órgãos que foram chamados a decidir, deram como assente em matéria de facto a revogação do primeiro contrato pelo segundo, ou seja, que a cláusula décima segunda do primeiro contrato foi revogada por aquele segundo contrato, não sendo passível de alteração.

d) Os senhores Conselheiros que votaram o acórdão de fls. 326 a 344, alteraram ilicitamente a matéria de facto, por eles próprios dada como assente, proferindo uma decisão jurisdicional manifestamente inconstitucional e ilegal e injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

e) Na sentença e acórdão recorridos, ao decidir-se como se decidiu, negando fundamento legal ao pedido do Autor, foram violados o artigo 22° da CRP e o artigo 13° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado - aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31/12.

f) O n° 2 do art. 13° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n° 67/2007, de 31/12, na interpretação dada pelas instâncias, enferma de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13° e 22° da Constituição da República Portuguesa.

g) A questão da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do n° 2 do art° 13° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n° 67/2007, de 31/12, como qualquer outra questão em que esteja em causa o respeito pelo disposto na Constituição da República, é uma questão com relevância jurídica, cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e a sentença e o acórdão revogados, condenando-se o Réu Estado no pedido, com todas as consequências legais.

O réu contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se nesta acção a responsabilidade civil do Estado por alegado erro judiciário, colocando agora o Recorrente estas questões:

- Se o respectivo pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão alegadamente danosa, como foi decidido pelas instâncias, com base no nº 2 do art. 13º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei 67/2007, de 31/12;

- Conformidade dessa interpretação com os arts. 13º e 22º da Constituição da República Portuguesa.

III.

Foram considerados provados os seguintes factos:

1) O autor intentou, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente do contrato individual de trabalho, contra "BB", pedindo, além do mais, que a ali ré fosse condenada a pagar-lhe a indemnização de €91.300,00, devida pela resolução com justa causa, que operou, do vínculo laboral firmado entre as partes.

2) Instruída e discutida a causa, veio a 1ª instância a lavrar sentença que, na procedência da acção, condenou a ali ré a pagar ao autor, além do mais, a quantia de €91.300,00, a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa, com o acréscimo dos juros de mora, à taxa legal, desde 16/8/2004 até integral pagamento.

3) A ali ré apelou, sendo que o Tribunal da Relação do Porto confirmou na íntegra a sentença impugnada.

4) Novamente inconformada, a ali ré pediu a revista, que foi concedida por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Maio de 2009, já transitado em julgado, através do qual a referida ré foi absolvida do pedido indemnizatório deduzido pelo autor, revogando-se, nessa parte, o acórdão impugnado.

5) Este acórdão tem o conteúdo seguinte:

"1- RELATÓRIO

1.1.

AA intentou, no Tribunal do Trabalho do Porto, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente do contrato individual de trabalho, contra "BB", pedindo, além do mais, que a Ré seja condenada a pagar-lhe a retribuição atinente ao mês de Julho de 2004 - €8.300,0 - e a indemnização de €91.300,00, devida pela resolução com justa causa, que operou, do vínculo laboral firmado entre as partes.

No seu instrumento contestatório, a Ré nega a verificação da justa causa resolutiva invocada pelo Autor, mais aduzindo que, sem embargo de tal, sempre importaria deduzir, à eventual indemnização que lhe fosse devida, o valor correspondente às remunerações que o demandante recebeu, entre Agosto de 2004 e Junho de 2005, ao serviço do CC.

1.2.

Instruída e discutida a causa, veio a 1ª instância a lavrar sentença que, na procedência da acção, condenou a Ré a pagar ao autor:

"- a quantia de €8.300,00 (oito mil e trezentos euros) a titulo de remuneração relativa ao mês de Junho de 2004:

- a quantia de €91.300 (noventa e um mil e trezentos euros) a titulo de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa. A estas quantias acrescem juros de mora, à taxa legal, desde 16/8/2004 até integral pagamento".

Debalde apelou a Ré, porquanto o Tribunal da Relação do Porto confirmou na íntegra a sentença impugnada.

1.3.

Mantendo-se irresignada, a Ré pede a presente revista, onde convoca o seguinte quadro conclusivo:

1- a dedução dos valores referidos no art. 40º do CCT não contraria em nada o regime legal da cessação do contrato de trabalho. Decorre da responsabilidade civil contratual onde radica este regime. Com ou sem cláusula do CCT, à indemnização estabelecida no nº 3 do art. 443º do CT sempre seriam dedutíveis os valores percebidos pelo trabalhador em razão da resolução do seu contrato, como o seriam caso se tratasse do seu despedimento ilícito,

2- na base do art.  443º estão os arts. 562º e segs. do C. Civil, relativos à chamada "obrigação de indemnização";

3- o empregador deve colocar o trabalhador na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pelos benefícios que deixou de obter em consequência da cessação do contrato;

4- este lucro cessante é, precisamente, a perda das retribuições relativas ao período que medeia entre a data da cessação (neste caso, da resolução unilateral) e a data prevista para a caducidade do contrato,

5- O art. 40º do CCT, ao admitir que àquele valor deverão ser deduzidas as retribuições que venha a receber no exercício da mesma actividade, consagra, tão-somente, a regra civilística da "compensatio lucri cum damno", nos termos da qual sempre que o facto constitutivo de responsabilidade tenha produzido ao lesado, não apenas danos, mas também lucros, estes devem compensar-se com aqueles;

6- ao declarar nulo o art. 40º do CCT dos treinadores de Futebol, a sentença recorrida violou os arts. 383º nºs 2 e 3 do CT e 562º e segs. do C. Civil;

7- o art. 40º nº 1 do CCT deve, pois, ser considerado incontroversamente legal;

8- sendo, em consequência, a indemnização que ao recorrido couber deduzida das retribuições que auferiu pela mesma actividade no período em causa, ao serviço do CC. SAD;

9- o que se traduz na inexistência de qualquer indemnização, porque inexistente qualquer dano ou prejuízo;

Mesmo que assim se não entenda,

10- à luz do Ac. deste STJ de 24/1/04, proferido no Processo nº 06S1821, existindo uma lacuna legislativa no que concerne à especificidade da relação laboral desportiva estabelecida com treinadores desportivos profissionais, é, nos termos do art. 10º do Código Civil, aplicável analogicamente aos contratos de trabalho celebrados com estes treinadores o regime jurídico do praticante desportivo, designadamente no que concerne a dois aspectos fundamentais: à temporalidade dos contratos e aos critérios de reparação no quadro da cessação do contrato;

11- o art. 27º nº 1 da Lei nº 28/98, de 26 de Junho (LCTTD) estabelece que no caso de rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo, o empregador "incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo";

12- ou seja, o cômputo indemnizatório decorrerá da comprovação dos danos causados, não podendo ultrapassar (limite máximo) o montante das retribuições vincendas;

13- exactamente o inverso do previsto no art. 443º nº 3 do CT na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão recorrido;

14- ou seja, a indemnização a que o recorrido podia almejar na sequência da sua resolução contratual teria de se fundar na estatuição do art. 27º da LCTTD;

15- assim sendo, a procedência do pedido indemnizatório dependeria da alegação e prova de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo recorrido;

16- ao determinar o "quantum" indemnizatório independentemente da existência e prova, a sentença recorrida violou, pois, o referido preceito legal, aplicável analogicamente, nos termos do mencionado art. 10°;

Termos em que deve ser concedida a revista, revogando-se o Acórdão recorrido e, em consequência, absolvendo-se a recorrente do pedido de indemnização formulado pelo Autor.

1.4.

o Autor contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.

1.5.

No mesmo sentido, e com a expressa discordância da ré, se pronunciou a Ex. ma Procuradora-Geral Adjunta.

1.6.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FACTOS

Sem prejuízo de virem a ser pontualmente convocados os factos tidos por pertinentes, dá-se aqui por inteiramente reproduzida a factualidade firmada pelas instâncias, que não vem censurada nem se afigura passível de alteração – 713º nº 6 e 726° do Código de Processo Civil.

3-DIREITO

3.1.

A controvérsia das partes, nesta fase recursória, mostra-se circunscrita a uma única questão:

- a de saber como deve ser calculada a indemnização devida ao Autor que, na sua qualidade de treinador de futebol profissional, resolveu com justa causa o contrato de trabalho que o ligava à Ré.

Com efeito, é já pacífico, nesta etapa adjectiva, que estamos perante um vínculo laboral a termo e que ao Autor assistia motivo bastante para operar, como fez, a sua resolução.

No que especificamente concerne à vertente indemnizatória, como agora releva, considerou, em síntese, o Acórdão em crise:

- por virtude do disposto no art. 443º nº 3 do Código do Trabalho de 2003, que entendeu convocável no caso, a resolução do contrato de trabalho a termo, acobertado em justa causa subjectiva, confere ao trabalhador uma indemnização que não pode ser inferior à quantia correspondente às retribuições vincendas;

- esse valor mínimo tem natureza imperativa, atento o disposto no art. 383º nºs 1 e 3 do mesmo Código, já que os valores das indemnizações só podem ser regulados por instrumento de regulamentação colectiva dentro dos limites fixados no Código do Trabalho;

- por isso, nos termos conjugados dos arts.14° nº 1 da Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, e 533º nº 1 al. a) do mencionado Código, deve ser considerado nulo o segmento do art. 40º nº 1 do CCT aplicável, na parte em que prevê a dedução, no cômputo indemnizatório das retribuições que o treinador de futebol haja eventualmente auferido durante o período remanescente do contrato resolvido.

Em conformidade com o entendimento assim expresso, confirmou integralmente a sentença da 1ª instância, dado que o valor da indemnização nela fixada respeitou a previsão do falado art. 443º nº 3.

Censura a recorrente a tese sufragada pelo Acórdão, coligindo, para tal, a seguinte fundamentação:

- como o regime geral da responsabilidade civil - onde se insere a vertente indemnizatória plasmada no Código do Trabalho - consagra o princípio nuclear de que a entidade patronal deve colocar o trabalhador na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pela perda das retribuições atinentes ao período que medeia entre a data da cessação e a data prevista para a caducidade do vínculo, sempre seriam dedutíveis, no cômputo indemnizatório, os valores entretanto percebidos pelo trabalhador em momento ulterior à resolução operada;

- o art. 40º do CCT limita-se a consagrar essa dedução, devendo ser considerado, por isso, "incontroversamente legal":

- sem embargo - e na esteira do Acórdão deste Supremo Tribunal de 24/1/07 (revista nº 1821/06) - por aplicação analógica, ao caso vertente, do regime jurídico do praticante desportivo, a indemnização devida ao Autor teria de se ancorar no art. 27º nº 1 da Lei nº 28/98, de 26 de Junho, segundo o qual não poderá tal indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo;

- como o sobredito preceito estabeleceu um valor ressarcitório máximo, a indemnização a que o Autor poderia almejar dependeria da alegação e prova - que ele não tez - dos danos patrimoniais e não patrimoniais efectivamente sofridos.

3.2.

Antes de enfrentar a questão que nos é colocada, importa coligir a factualidade, pacificamente firmada pelas instâncias, que com ela se conexiona directamente:

a) Por documento escrito denominado "contrato de trabalho desportivo" e datado de 1/7/2003, que constitui o documento de fls. 10, cujo teor se dá por reproduzido, o autor obrigou-se a prestar, ao serviço e em representação da ré, a sua actividade de treinador, para exercer as funções de treinador de guarda-redes, durante duas épocas desportivas, com início em 1/7/2003 e termo em 30/6/2005;

b) em contrapartida, a ré obrigou-se a pagar ao autor a remuneração mensal ilíquida de €7.000,00 (sete mil euros), perfazendo o valor total de €168.000,00 (cento e sessenta e oito mil euros), estando já incluídos os subsídios de férias e de Natal;

c) em aditamento ao contrato referido em a), e na mesma data, a ré, através dos documentos escritos juntos a fls. 11 e 12 dos autos, cujo teor se reproduz, comprometeu-se a providenciar um apartamento até ao valor mensal de €1.300,00, e uma viagem Lisboa/Newark/Lisboa para o autor, esposa e filhas por cada época desportiva;

d) com data de 1/10/2003, o autor e a ré outorgaram documento escrito, denominado "contrato de prestação de serviços", que constitui o documento de fls. 72 a 74, cujo teor se dá por reproduzido, pelo qual acordaram que o autor prestaria os seus serviços como treinador de guarda-redes junto da equipa principal da Ré, mediante remuneração no montante global de €174.300,00, pelo período do contrato, em vinte e uma prestações mensais, iguais e sucessivas, a serem liquidadas no último dia útil do mês a que dissessem respeito;

e) acordaram ainda através do documento referido em d), que o contrato teria o seu início no dia 1/10/2003 e o seu termo no dia 30/6/2005, revogando o contrato referido em a);

j) o autor continuou a exercer a sua actividade de treinador de guarda-redes junto da equipa principal, sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, nos mesmos termos que vinha exercendo;

g) no dia 16/8/2004, o autor enviou à ré, via fax, a carta que constitui o documento de fls. 13 e 14, cujo teor se reproduz, resolvendo o contrato com efeitos a partir da recepção da carta, com fundamento na falta culposa de pagamento da retribuição de Julho de 2004, na violação de garantias legais e convencionais, na lesão de interesses patrimoniais e na ofensa à sua integridade moral, honra e dignidade:

h) por contrato escrito que constitui o documento de fls. 175 a 177, cujo teor se reproduz, o autor comprometeu-se a prestar à CC, SAD, em regime de exclusividade, os seus serviços corno técnico-adjunto da equipa de futebol sénior, mediante o pagamento da quantia global ilíquida de €120.000,00 por época desportiva, em doze prestações mensais, por duas épocas desportivas, com início em 19/8/2004 e termo em 30/6/2006;

i) no período compreendido entre Agosto de 2004 e Junho de 2005, a CC, SAD pagou ao autor as quantias descriminadas nos documentos de fls. 188 a 198, cujo teor se reproduz.

3.3.1.

Até à fase alegatória da presente revista, sempre as partes - e também as instâncias - enquadraram normativamente a questão indemnizatória mediante um simples confronto entre o CCT aplicável (Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Associação Nacional de Treinadores de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional) e o Código de Trabalho de 2003, em cuja vigência temporal se operou a questionada resolução vinculística.

Com efeito, só nas vertentes alegações recursórias é que a Ré - convocando o já citado Acórdão deste Supremo de 24/1/2007 - veio admitir, pela primeira vez, a aplicação analógica do novo "regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo", condensado na Lei nº 28/98, de 26 de Junho. Estando, patentemente, no domínio da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nada impede a incursão deste Supremo Tribunal (que até seria sempre oficiosa - art. 664º do Código de Processo Civil) neste confronto alargado sobre o bloco normativo efectivamente atendível.

O sobredito Acórdão de 24/1/2007 (subscrito por quatro adjuntos, nos termos do art. 728° nº 1 e 2 do CPC, entre os quais o ora relator e o Ex.mo Conselheiro Pinto Hespanhol) começa por afirmar que o contrato de trabalho do praticante desportivo constitui uma espécie própria de vinculação laboral, cujo regime normativo - a anunciada Lei nº 28/98 - consagra as especificidades da relação jurídica que se propõe regular.

Logo após, e sem embargo de entender que um treinador de modalidades desportivas não deve ser qualificado como praticante desportivo, nos termos e para os efeitos enunciados no aludido diploma, acaba por sufragar o entendimento de que a falta de regulação própria para os contratos de trabalho de outros agentes desportivos, designadamente dos treinadores, não determinava, sem mais, a aplicação da lei geral do trabalho, antes impunha, face a uma reconhecida lacuna de previsão, o recurso aos instrumentos de integração previstos no art. 10º do Código Civil e, por via deles, a aplicação, a tais agentes, do regime vertido na Lei nº 28/98.

Nesse sentido, ali se exarou como segue:

"... a existência de uma verdadeira lacuna de previsão resulta do facto do próprio legislador reconhecer (...) as especialidades que a actividade desportiva comporta neste preciso domínio e a manifesta dificuldade do regime geral do contrato de trabalho para dar cabal resposta a essas especificidades, o que convoca, por força dos princípios gerais, o recurso aos instrumentos de integração previstos no art. 10º do Cod. Civil e, por esta via, ao regime especial do CTPD, por valerem na situação em causa as razões justificativas da concreta regulamentação normativa da Lei nº 28/98".

Em abono da solução alcançada, discorreu-se que o universo desportivo constitui uma realidade socialmente diferenciada, que tem vindo a ser regulada, numa prática constante e generalizada, em termos que se afastam, nos aspectos fundamentais, das leis gerais do trabalho (seja quanto à temporalidade do vínculo, seja quanto à inexistência do direito à reintegração em caso de despedimento sem justa causa, seja mesmo quanto ao cálculo da indemnização em caso de ruptura unilateral).

Continuamos a subscrever por inteiro a tese acolhida pelo Acórdão em análise e, transpondo-a para o concreto dos autos, somos a rejeitar liminarmente a aplicabilidade ao caso do Código do Trabalho, havendo antes que convocar a normação da Lei nº 28/98.

3.3.2.

Sob a epígrafe "Cessação do Contrato de trabalho desportivo", dispõe o artigo 26° daquela Lei:

"1- O Contrato de trabalho desportivo pode cessar por:

a) (...);

b) (...);

c) Despedimento com justa causa promovido pela entidade empregadora desportiva;

d) Rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo;

e) (...);

f) (...);

g) (...).

2- (...).

No tocante à "Responsabilidade das partes pela cessação do contrato", preceitua, por sua vez, o sequente artigo 27º:

"1- Nos casos previstos nas alíneas c) e d) do nº 1 do artigo anterior, a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo.

2- (...).

3- Quando, em caso de despedimento promovido pela entidade empregadora, caiba o direito à indemnização prevista no nº 1, do respectivo montante devem ser deduzidas as remunerações que, durante o período correspondente à duração fixada para o contrato, o trabalhador venha a receber pela prestação da mesma actividade a outra entidade empregadora desportiva".

Como se vê, o transcrito preceito parifica, no seu nº 1, as situações de despedimento e de resolução pelo trabalhador, onerando o prevaricador com o pagamento de uma indemnização à parte lesada "pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato".

Mas vai mais longe: consagra um limite indemnizatório máximo, enquanto guarda absoluto silêncio sobre um seu eventual limite mínimo.

Idêntica paridade já não se antolha, porém, no seu nº 3: a dedução remuneratória aí prevista vem circunscrita ao "... caso de despedimento promovido pela entidade empregadora".

É altura de referir que as partes inseriram, no convénio inicialmente aprazado, uma cláusula do seguinte teor:

"Décima segunda"

"Aos casos omissos no presente contrato aplicam-se as disposições do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Associação Nacional dos Treinadores de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional".

Sucede que esse CCT (publicado no BTE, 1ª Série, nº 27, de 22/7/97 e com PE no BTE, 1ª Série, nº 37, de 10/10/97) estipula, no seu art. 40º nº 1:

"A rescisão do contrato com fundamento nos factos previstos no nº 1 do artigo anterior confere ao treinador o direito a uma indemnização correspondente ao valor das retribuições que lhe seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo, deduzidas das que eventualmente venha a auferir pela mesma actividade durante o período em causa".

Não se vê que esta norma convencional, no confronto com o art. 27º nº 1, possa ser entendida como mais penalizante para o trabalhador:

- sendo embora certo que manda operar a dedução contemplada na sua parte final - e o texto legal não o faz - não é menos verdade que quantifica expressamente o montante da indemnização, fazendo-o sempre pelo limite máximo estabelecido no mencionado preceito.

Por outro lado, ainda que o art. 27º nº 3 reserve a sua previsão dedutiva para os casos de despedimento, também se não alcança que a Lei nº 28/98 contenha alguma normação imperativa que impeça as partes de subscrever, em regulamentação convencional, regime idêntico para os casos de resolução com justa causa por banda do trabalhador.

De resto, sendo notória a similitude entre as situações factuais que suportam um despedimento ilícito e uma resolução com justa causa - ambas se ancoram num comportamento infraccional do empregador - mal se entende que a lei, ao menos expressamente, tenha reservado a faculdade dedutiva para as situações de despedimento.

Somos a concluir, pois, pela directa aplicação da falada norma convencional. Sendo assim, resta recuperar a factualidade atendível, de onde se evidencia que o Autor:

- auferia, ao serviço da Ré, um vencimento mensal líquido de €8.300,00 até ao termo do contrato, previsto para 30/6/05, pelo que a indemnização a seu favor ascenderia a €91.300 (€ 8.300 x 11) como, de resto, vem peticionado;

- auferiu, ao serviço do F.C.P., entre 1 de Agosto de 2004 e 30/6/05, a quantia global de €77.357, 75, à qual importa adicionar o valor dos "vales" descontados durante o mesmo período, num total de €44.455,14.

O confronto das duas verbas evidencia que as retribuições auferidas pelo Autor, durante o período relevante, excederam o valor da indemnização que lhe era devida pela Ré.

Como assim, nada por esta lhe é devida.

3.3.3.

Mas, a nosso ver, a situação não seria diferente se fosse de convocar apenas o regime legal, enunciado no art. 27º nº 1 da Lei nº 28/98.

Nesse caso - já o sabemos - teríamos apenas um tecto para o cômputo indemnizatório mas, ao invés, não teríamos um limite mínimo.

Esse quadro normativo consequencia, naturalmente, que sobre o demandante recaía o ónus de alegar e provar os danos, patrimoniais e não patrimoniais, efectivamente suportados, pois só assim poderá o tribunal conferi-los, relevá-los e quantificá-los.

No caso dos autos, o Autor limitou-se a aduzir, na petição inicial, que:

"18º

"Os comportamentos da R., que ficaram descritos, constituem justa causa de resolução do contrato pelo A. - art. 441°, 2 do Código de Trabalho:

- falta culposa do pagamento pontual da retribuição;

- violação culposa das garantias legais e convencionais do A.;

- lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;

- ofensa à honra e dignidade do A.

Em consequência,

19°

E nos termos do art. 443°, 3 do Código do Trabalho, tem o A. direito a uma indemnização não inferior à quantia correspondente às retribuições vincendas, isto é, a Euros 91.300,00 (8.300,00 x 11), acrescida de juros de mora à taxa legal contados da data da citação".

Como se vê, o Autor não dá a menor notícia dos danos sofridos, quiçá por haver invocado o art. 443º nº 3 do Código do Trabalho de 2003 e por certamente entender que, à luz desse normativo, a indemnização reclamada decorria, em quantitativo legalmente taxado, do mero reconhecimento de que a resolução se produzira com justa causa.

Mas, com o devido respeito, não é assim.

Por um lado, os danos previstos no art. 443º são apenas os danos conexos com a perda do emprego, havendo que destrinçar entre estes e aqueles que, servindo embora de fundamento à resolução do contrato, emergem de factos ilícitos e culposos causados pelo empregador (cfr. Júlio Vieira Gomes in "Direito do Trabalho", 2007, 1º vol., pág. 1063).

O mesmo sucede com os danos ressarcíveis à luz do art. 27º nº 1 da Lei nº 28/98.

Por outro lado, consigna este preceito que "... a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato ...". Comentando tal normativo, escreve João Leal Amado:

"Somos assim remetidos para as disposições civilísticas, designadamente para os arts. 562 e ss. do C.Civil, relativos à chamada "obrigação de indemnização ", sendo que, de acordo com o principio nuclear consagrado nesse art. 562°, "quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação". Vale isto por dizer que o empregador deve colocar o praticante na situação em que este se encontraria se o contrato fosse exactamente cumprido, maxime indemnizando-o pelo lucro cessante, isto é, pelos benefícios que o praticante deixou de obter em consequência do despedimento ilícito (v. o art. 564º/1 do C. Civil)" (in "Vinculação Versus Liberdade O Processo de Constituição e Extinção da Relação Laboral do Praticante Desportivo", págs. 304 e 305).

Mais esclarece este Autor que consiste " ... este lucro cessante, basicamente, na perda das retribuições relativas ao período que medeia entre a data do despedimento [ou, dizemos nós, da resolução justificada] e a data prevista para a caducidade do contrato".

No caso vertente - e à míngua de qualquer alegação que justificasse posicionamento diferente apenas sabemos que a perda das retribuições, decorrente da resolução vinculística, foi compensada pelos proventos auferidos, durante o mesmo período, pela prestação de actividade laboral similar a favor de outra entidade desportiva.

Da assinalada insuficiência probatória sempre haveria de se ressentir a pretensão do Autor - art. 516° do CPC - onerado que estava com o respectivo ónus - art. 342º nº 1 do CC.

4-DECISÃO

Em face do exposto:

A- concede-se a revista;

B- absolve-se a Ré do pedido indemnizatório deduzido pelo Autor, revogando-se, nessa parte, o Acórdão impugnado, que confirmara, no que a tal respeita, a sentença da 1ª instância.

Custas da Revista pelo Autor e, nas instâncias, por ambas as partes, na proporção do seu decaimento".

IV.

1. A responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional tem sido objecto de longa controvérsia. Desde logo, fora dos casos específicos da jurisdição penal – decorrentes das situações de privação injustificada da liberdade e de sentença penal condenatória injusta, previstos nos arts. 27º nº 5 e 29º nº 6 da CRP – no que respeita à sua fundamentação legal, por falta de regulamentação própria expressa.

Apesar disso, foi-se manifestando uma tendência crescente no sentido do reconhecimento da referida responsabilidade, com fundamento no art. 22º da CRP[2].

Aí se dispõe:

O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.

Esta norma consagra o princípio da responsabilidade patrimonial directa do Estado e das entidades públicas pelos danos causados aos cidadãos.

Tratando da previsão de direitos de natureza análoga a direitos fundamentais, está sujeita ao regime destes (art. 17º da CRP) e, nessa medida, é directamente aplicável (art. 18º da CRP), não carecendo de mediação normativa para poder ser invocada pelos lesados: "os particulares, cujos direitos, liberdades e garantias foram violados ou sofreram prejuízos na sua esfera jurídico-subjectiva, podem, observados os pressupostos gerais da responsabilidade civil, acionar judicialmente o Estado com o objectivo de obter a reparação pelas lesões ou prejuízos sofridos"[3].

Por outro lado, entendia-se que o referido princípio da responsabilidade era aplicável às acções ou omissões praticados no exercício da função jurisdicional, desde que verificados os indispensáveis pressupostos da culpa, ilicitude e nexo de causalidade[4]. Com efeito, as acções ou omissões praticadas são aí referidas sem quaisquer restrições e a própria letra do preceito inculca esse entendimento, ao aludir a funções, que abrangem naturalmente todas as funções do Estado, incluindo a função jurisdicional.

Reconhecia-se aqui, todavia, a dificuldade de conciliar os princípios da independência do poder judicial e da irresponsabilidade dos juízes, garante do desempenho imparcial da sua função e a responsabilidade do Estado por actos ilícitos do juiz.

Neste sentido, apesar da orientação de alguns países no sentido de consagrar a responsabilidade dos magistrados por actividade dolosa ou gravemente negligente, preconizava-se aqui "um regime particularmente cauteloso", como refere Gomes Canotilho, "sob pena de se paralisar o funcionamento da justiça e perturbar a independência dos juízes", "afastando, desde logo, qualquer hipótese de responsabilidade por actos de interpretação das normas de direito e pela valoração dos factos e da prova".

No entanto, acrescenta, "podem descortinar-se hipóteses de responsabilidade do Estado por actos ilícitos dos juízes e outros magistrados quando: (1) houver grave violação da lei resultante de «negligência grosseira»; (2) afirmação de factos cuja inexistência é manifestamente comprovada pelo processo; (3) negação de factos, cuja existência resulta indesmentivelmente dos actos do processo; (4) adopção de medidas privativas da liberdade fora dos casos previstos na lei; (5) denegação da justiça resultante da recusa, omissão ou atraso do magistrado no cumprimento dos seus deveres funcionais"[5].

Foi este o caminho trilhado pela jurisprudência deste Tribunal.

Afirmava-se que "assume efectivamente proeminência no exercício desta função (jurisdicional) o parâmetro da independência dos tribunais e da subordinação do juiz à Constituição, à lei e aos juízos de valor legais que brotam do art. 203º do diploma fundamental e do art. 4º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, propiciando compreensivelmente divergências de interpretação e aplicação aos casos da vida (…)".

Porém, "não basta a discordância da parte que se diz lesada, nem sequer a convicção que, em alguns processos, sempre será possível formar, de que não foi justa ou a melhor a solução encontrada: impõe-se que haja certeza de que um juiz normal e exigivelmente preparado e cuidadoso não teria julgado pela forma a que se tiver chegado, sendo esta inadmissível e fora dos cânones minimamente aceitáveis".

Assim, "os pressupostos da ilicitude e da culpa, no exercício da função jurisdicional susceptível de importar responsabilidade civil do Estado, conforme o art. 22º da Constituição, só podem dar-se como verificados nos casos de mais gritante denegação da justiça, tais como a demora na sua administração, a manifesta falta de razoabilidade da decisão, o dolo do juiz, o erro grosseiro em grave violação da lei, a afirmação ou negação de factos incontestavelmente não provados ou assentes nos autos, por culpa grave indesculpável do julgador".

Sublinhava-se ainda que "a autonomia na interpretação do direito e a sujeição exclusiva às fontes de direito jurídico-constitucionais são manifestações essenciais do princípio da independência dos juízes, pelo que os actos jurisdicionais de interpretação de normas de direito e de valoração jurídica dos factos e das provas, núcleo da função jurisdicional são insindicáveis.

Em consequência, o erro de direito praticado pelo juiz só poderá constituir fundamento de responsabilidade civil quando, salvaguardada a essência daquela função jurisdicional, seja grosseiro, evidente, palmar, indiscutível, e de tal modo grave que torne a decisão judicial uma decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas"[6].

Importa ainda notar que o instrumento normal para corrigir o erro judiciário seria sempre, primacialmente, o recurso ordinário, assim se evitando que a respectiva decisão se tornasse irrecorrível e consolidada.

Esgotado esse meio, ou não sendo ele possível, a admissibilidade da responsabilidade do Estado teria como limite o princípio constitucional (implícito) do caso julgado: "a faute não pode ser demonstrada contra uma decisão que beneficia da indiscutibilidade, por força da lei"[7].

Se a sentença não é recorrível ou se é desconforme com a verdade dos factos ou com as regras de direito aplicáveis, mesmo após o último recurso admissível, não haveria, em princípio, meio de reacção, ressalvado o caso do recurso extraordinário de revisão[8].

Neste sentido, afirma-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84, de 30/07/84:

"Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um acto jurisdicional «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos".

2. A situação anteriormente descrita sofreu profunda alteração com a publicação da Lei 62/2007, de 31/12, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, diploma que, de forma global e sistemática, passou a contemplar o exercício das diferentes funções estaduais: administrativa, jurisdicional e político-legislativa.

No que concerne à responsabilidade por actos da função jurisdicional, o legislador avançou no sentido do alargamento da responsabilidade civil do Estado, numa opção que qualificou de "arrojada": "a de estender ao domínio do funcionamento da administração da justiça o regime da responsabilidade da Administração, com as ressalvas que decorrem do regime próprio do erro judiciário (…). No que se refere ao regime do erro judiciário, para além da delimitação genérica do instituto, assente num critério de evidência do erro de direito ou na apreciação dos pressupostos de facto, entendeu-se dever limitar a possibilidade de os tribunais administrativos, numa acção de responsabilidade, se pronunciarem sobre a bondade intrínseca das decisões jurisdicionais, exigindo que o pedido de indemnização seja fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente"[9].

São estas, no essencial, as inovações introduzidas neste domínio.

Distingue assim o novo diploma entre:

- "os danos ilicitamente causados pela administração da justiça" (com destaque para a "violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável"), com o regime previsto no art. 12º, aos quais é aplicável o "regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa" – arts. 7º a 10º; e

- os danos decorrentes de "erro judiciário", com o regime previsto no art. 13º.

Dispõe este art. 13º:

1. Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2. O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Prevê o nº 1 os pressupostos materiais da responsabilidade por erro judiciário (fora dos casos de condenação penal injusta e de privação ilegal da liberdade) e deles decorre, como refere Cardoso da Costa, que a responsabilidade é aqui, "limitada às situações de erro grave, ou porventura muito grave, do ponto de vista da percepção do direito ou dos factos exigível ao decisor jurisdicional, já que apenas poderá caber nos casos em que tal percepção contrarie, de modo manifesto, o sentido normativo da Constituição ou da lei, ou se traduza numa análise grosseiramente errada dos factos"[10].

O erro judiciário pode, assim, consistir num erro de direito ou num erro de facto.

O erro de direito, como sublinha Carlos Cadilha, "deverá revestir-se de um suficiente grau de intensidade, no sentido de que deverá resultar de uma decisão que, de modo evidente, seja contrária à Constituição ou à lei, e por isso desconforme ao direito, e que não possa aceitar-se como uma das soluções plausíveis da questão de direito. Deverá tratar-se, nestes termos, de uma decisão proferida contra lei expressa e que, em si, represente um comportamento anti-jurídico susceptível de gerar, nos termos gerais, um dever de indemnizar".

Pode consistir num erro de qualificação, de subsunção ou de estatuição jurídicas ou ainda na aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional; mas "não se basta com a mera constatação, em sede de recurso, por um tribunal superior, de uma errada interpretação e aplicação do direito, tornando-se ainda exigível que se trate de um erro evidente que, por ser evitável segundo a normalidade das coisas, tenha desnecessariamente gerado prejuízos a uma das partes"[11].

O erro na apreciação dos pressupostos de facto releva se for um erro grosseiro, circunscrevendo-se "aos casos em que houve um clamoroso erro de avaliação dos meios de prova"; erro que "tanto poderá respeitar a um erro na apreciação das provas, isto é, um erro sobre a admissibilidade e valoração dos meios de provas, como a um erro sobre a fixação dos factos materiais da causa"[12].

A caracterização do erro relevante, que decorre do novo diploma, como lei concretizadora do princípio consagrado no art. 22º da CRP, não se distancia, assim, substancialmente, do entendimento que anteriormente era seguido com base neste.

O erro de direito terá de ser manifestamente inconstitucional ou ilegal: não basta a mera existência de inconstitucionalidade ou ilegalidade, devendo tratar-se de erro evidente, crasso, indesculpável, que o magistrado tem a obrigação de não cometer.

O erro na apreciação da matéria de facto deve ser grosseiro e, por isso, também indesculpável, inadmissível e sem justificação, que só por desatenção ou desleixo foi cometido.

3. Exige-se no nº 2 do citado art. 13º que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Trata-se de opção do legislador derivada da necessidade, já acima aflorada, de compatibilizar o instituto da responsabilidade civil com a segurança e certeza jurídica do caso julgado.

Assim, o erro de julgamento deve ser demonstrado no próprio processo judicial em que foi cometido e através dos meios de impugnação que forem aí admissíveis; não na acção de responsabilidade em que se pretenda efectivar o direito de indemnização.

Não pode, pois, "atribuir-se qualquer relevo a um alegado erro judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto"[13].

Constituiria, na verdade, evidente ilogismo institucional, como acima se referiu, que uma decisão jurisdicional consolidada, por não ter sido impugnada, pudesse vir a ser posteriormente "desautorizada" por outro tribunal, porventura de diferente espécie ou da mesma espécie mas de grau inferior.

Acompanhando Cardoso da Costa, pode acrescentar-se que a revogação da decisão danosa há-de constar de uma decisão definitiva, isto é transitada em julgado, e é aí que terá de ser reconhecido o pressuposto substantivo da responsabilidade – "o carácter manifesto do erro de direito ou o carácter grosseiro do erro na apreciação dos factos". Por outro lado, a revogação deve emanar de um tribunal superior em via de recurso ou do próprio tribunal que proferiu a decisão questionada, quando tal seja admissível (através de reclamação ou pedido de reforma – cfr. art. 616º do CPC).

"Onde não caiba ou não seja viável qualquer destes instrumentos processuais, ficará também precludida a possibilidade da acção de responsabilidade"[14].

Podemos, pois, concluir que, "se não se fizer a prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil, da revogação da decisão que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria em causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil"[15].

4. Na sentença da 1ª instância, proferida nestes autos, que o acórdão recorrido confirmou integralmente, adoptou-se, no essencial, o entendimento acima exposto sobre o regime consagrado no art. 13º nºs 1 e 2 do RRCEE.

E, assim, apesar da insistente alegação de verificação, no caso, de um relevante erro judiciário – que, na perspectiva do autor, foi cometido pelo Acórdão do STJ de 20.05.2009, de "modo grosseiro, crasso, palmar, indiscutível" –, tendo-se constatado que essa decisão se tornou definitiva, por ter sido indeferida a reclamação contra ela deduzida (Acórdão de 02.07.2009) e, bem assim, o recurso interposto para o Tribunal Constitucional (Decisão sumária de 06.10.2009 e Acórdão subsequente de 07.11.2009), concluiu-se pela falta de verificação do pressuposto legalmente exigido para fundar o direito de indemnização, ou seja, a falta de prévia revogação da decisão danosa, julgando-se, por isso, improcedente a acção.

Perante esse fundamento da sentença, ficou naturalmente prejudicada a apreciação da alegação do autor respeitante à existência do erro judiciário invocado: considerando a falta daquele pressuposto, o direito de indemnização não poderia ser accionado, não tendo cabimento, nesse contexto, aquela apreciação.

O Acórdão recorrido aderiu integralmente ao assim decidido, "entendendo, para além disso, que essa fundamentação é, por si só, suficiente para justificar a absolvição decretada - que aqui se mantém e igualmente se sufraga -, ficando deste modo, prejudicadas e assim se tomando dispensáveis, por impertinentes e inúteis, quer a apresentação de outras justificações para esse julgamento, quer, muito menos, a discussão sobre se o Acórdão do STJ transcrito no ponto 3.5) do presente acórdão padece ou não dos vícios apontados pelo Autor - isto a admitir, o que não é o caso, que este Tribunal da Relação estaria habilitado e seria competente para exercer uma tal pronúncia (a referida em último lugar, entenda-se)".

Decorre do exposto que, no acórdão recorrido, como na sentença da 1ª instância, não se apreciou a existência do erro judiciário invocado pelo autor. Apesar de nesta decisão se ter enunciado os princípios que enformam o regime de responsabilidade aprovado pela Lei 62/2007, designadamente quanto à caracterização do erro relevante de direito ou de facto como fundamento da responsabilidade por erro judiciário, não foi aplicada ao caso essa nova disciplina, como se disse, por não se mostrar satisfeito o requisito da prévia revogação ou reforma da decisão danosa, que se entendeu constituir condição para o exercício do direito de indemnização.

Não se vê, assim, como pode o Acórdão recorrido ter violado as normas dos arts. 22º da CRP e 13º nº 1 do RRCEE.

Por outro lado, a norma do nº 2 deste art. 13º foi aplicada com o sentido objectivo e literal que acima se deixou indicado e, por isso, sem merecer, parece-nos, qualquer censura.

O Acórdão do STJ de 20.05.2009 – a decisão alegadamente danosa – não foi alterado, apesar da reclamação para o próprio Tribunal e do recurso para o Tribunal Constitucional, tornando-se definitiva e consolidada. Não pode, por consequência, vir a ser demonstrado o invocado erro de julgamento, ficando precludida a acção de responsabilidade que se pretendia exercer com base nesse erro.

A questão que pode discutir-se, posta também pelo Recorrente, é a da conformidade constitucional desse art. 13º nº 2, nomeadamente com as normas dos arts. 13º e 22º da CRP.

5. Sustenta o Recorrente, a este respeito, que o art. 13º nº 2 do RRCEE, na interpretação adoptada nas instâncias, seria manifestamente inconstitucional, por violação do art. 22º da CRP, uma vez que este não distingue entre juízes da 1ª e 2ª instância e juízes do Supremo: pelas acções e omissões de uns e outros, quando delas resulte violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrem, é o Estado solidariamente responsável.

Por outro lado, a referida interpretação violaria também o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, por não ser possível conceber que o Estado seja civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisão jurisdicional danosa, se esta for revogada, e não possa ser responsabilizado civilmente quando da mesma decisão jurisdicional não há recurso.

Sobre esta questão, afirmou-se no Acórdão recorrido:

"No que respeita a esta segunda questão jurídica de que cumpre conhecer nesta sede de recurso, é com muita dificuldade que se acolhe o raciocínio desenvolvido pelo apelante quanto ao que neste momento se discute.

Ou melhor, não se acolhe e antes se repudia totalmente esse entendimento, uma vez que a norma em questão ("O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente") se aplica indistintamente a todos aqueles que interagem no comércio jurídico - o que salvaguarda inteiramente o cumprimento do princípio da proibição da desigualdade injustificada garantido pelo art. 13° da Constituição da República - e também porque, não estando expressamente definidos no art. 22° dessa Lei Fundamental, os termos concretos em que o Estado e as demais entidades públicas podem ser responsabilizados civilmente pelas acções ou omissões praticadas pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas respectivas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem, tal significa, para um qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art. 236º nº 1 do Código Civil), que o Legislador Constitucional quis deixar totalmente ao critério do Legislador Ordinário a tarefa de clarificar em que específicas condições esse direito dos lesados resultante desses actos e omissões podia ser exercido - e qual exacta medida do ressarcimento que poderia ser almejado e alcançado por esses titulares de tal direito.

E o estatuído no Regime Jurídico aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, mais não é do que o cumprimento dessa obrigação do Legislador Ordinário, a qual, para este Tribunal Superior, pode e deve ser entendida como equitativa e proporcionada, logo e consequentemente, como não violadora de qualquer preceito constitucional, nomeadamente os invocados pelo apelante ou até o consubstanciado no nº 4 do art. 20° da Constituição da República que, em conjugação com o estatuído nos art°s 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217 A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6° nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa, assegura e garante a todos, com força obrigatória directa e geral (art.° 18° nº 1 da Constituição da República), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso (fair and unbiased) e mediante processo equitativo.

Claro que a posição aqui assumida por este Tribunal Superior, como acontece com (quase) todas as opiniões humanas, pode ser objecto de crítica.

Mais, há até que admitir que pode ser considerado razoável afirmar que é eticamente questionável ou reprovável exigir que, para que esse direito a uma indemnização possa ser exercido, a decisão danosa tenha sido previamente revogada pela jurisdição competente e que essa revogação tenha como fundamento a declaração de que se verificam in casu os vícios enumerados no nº 1 do art. 13° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado em análise, já que, por essa via, existirão Tribunais que, por decidirem em última instância, escapam a esse controle por parte de uma qualquer outro órgão jurisdicional.

O que significaria - e essa é a posição sustentada pelo ora apelante - que, em tais situações, ficaria por cumprir o preceito constitucional inscrito nesse aludido art. 22° da Lei Fundamental.

Todavia, mais do que relativamente ao STJ e até às Relações, quando julgam em definitivo por dos seus acórdão não ser admissível recurso para o Supremo (isto deixando de fora a jurisdição administrativa e fiscal) - ou à 1ª instância, quando o valor da causa é inferior à alçada desse Tribunal e a matéria não permite recurso para a respectiva Relação -, essa ausência total de controlo jurisdicional nacional existe e é manifesta no caso do Tribunal Constitucional, porquanto, relativamente aos demais é sempre formalmente admissível (porventura, em certos casos, com diminutas hipóteses de sucesso porque nem todos os erros de julgamento da matéria de facto e/ou quanto à interpretação e aplicação da norma jurídica reguladora do concreto litígio em apreço são inconstitucionais) a interposição, para este último Tribunal, de recurso contra essas decisões ou deliberações.

Ora, o acórdão criticado foi proferido pelo STJ e, teoricamente, existia uma outra instância de recurso que não foi chamada a apreciar o objecto da lide e na qual esses vícios poderiam, em abstracto, ser declarados verificados.

E, objectivamente, não o foram.

Deste modo, por tudo o exposto, julgam-se igualmente improcedentes as conclusões e) - na parte aplicável - e f) das alegações de recurso do apelante e declara-se que não é inconstitucional a interpretação do nº 2 do art. 13° do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n° 67/2007, de 31 de Dezembro, feita pelo Mmo Juiz a quo na decisão recorrida e que aqui se sufraga".

6. Tem de reconhecer-se que a norma do art. 13º nº 2 do RRCEE, interpretada nos termos acima indicados – afastando o exercício do direito de indemnização nos casos em que não seja possível a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente –, comporta uma compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP, restringindo o direito subjectivo de reparação que, como se referiu, se entende conferido directamente por esta norma.

Apesar disso, é reconhecida ao legislador ordinário uma larga margem de conformação quanto à densificação da norma do referido art. 22º, mormente no que toca à definição dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado[16].

Por outro lado, será de admitir a aludida compressão pela necessidade de compatibilizar o referido regime de responsabilidade com outras normas constitucionais, para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (cfr. art. 18º nºs 2 e 3 da CRP), como adiante se verá.

É certo que, como tem sido sublinhado, a referida liberdade de conformação do legislador tem de "atender ao sentido da norma de proibição que o art. 22º também transporta e que se traduz na garantia de responsabilidade directa do Estado e das demais entidades públicas (…), sendo vedado ao legislador excluir, por via de lei, essa garantia". Ou seja, a lei não pode restringir "arbitrária ou desproporcionadamente" o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no art. 22º[17].

Não é esta, porém, a situação que decorre da exigência do pressuposto previsto no art. 13º nº 2 do RRCEE.

Recorde-se que, como se prescreve no nº 1 desse preceito, o erro de direito deve ser manifesto e, por isso, especialmente qualificado e intenso e, por outro lado, o erro na apreciação dos pressupostos de facto deve ser grosseiro.

Ora, qualquer destas situações é sanável, podendo o erro ser reparado ou eliminado através do competente recurso ordinário da decisão. Será este, como acima referimos, o instrumento normal para superar a incorrecção da decisão judicial, não a acção de responsabilidade.

Mas, mesmo que a decisão danosa seja irrecorrível – em razão da alçada ou por o tribunal decidir em última instância[18] –, é ainda admitida amplamente a possibilidade de reparação do erro. Com efeito, nos termos do art. 616º nº 2 do CPC, qualquer das partes pode requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

Por outro lado, pode o erro de direito consistir na aplicação de norma tida por inconstitucional (com infracção do disposto na Constituição ou dos princípios nela consignados – art. 204º). Mas de tal decisão pode ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional (art. 280º nº 1 b) CRP) que, em caso de procedência, pode revogar a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade e ordenar que o tribunal recorrido proceda à reforma dessa decisão para se conformar com a decisão daquele Tribunal quanto à questão de constitucionalidade (art. 80º nº 2 da LTC).

Não é de excluir, por fim, a relevância do recurso extraordinário de revisão, como meio de obtenção da revogação da decisão jurisdicional danosa, nas situações previstas nas als. d) – se a confissão não era no caso admissível, e) – nulidade ou falta de citação que o juiz tem de verificar, e f) – no caso de erro por violação do direito europeu, do art. 696º do CPC[19].

Mas, como se afirmou, a compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP é resultado também da necessidade de harmonizar o regime de responsabilidade com outros preceitos constitucionais, como é o caso dos que respeitam à função jurisdicional, em especial no que toca à independência dos tribunais e à força do caso julgado.

Aos tribunais incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses (art. 202º nº 2 da CRP) e tais competências só podem ser prosseguidas se houver independência dos tribunais (art. 203º) – a implicar o princípio da irresponsabilidade do juiz pelas suas decisões (art. 216º nº 2) –, e se os litígios forem definitivamente resolvidos por decisões dotadas de especial autoridade e estabilidade (art. 205º nº 2 da CRP).

Daí que, quanto aos pressupostos substanciais de responsabilidade, se impusesse um regime particularmente cauteloso, como acima se notou.

Mas, por outro lado, como também se sublinhou, o tribunal diz o direito do caso e a sua declaração perdura plenamente válida se e enquanto não for revogada. Assim, "nenhum outro órgão pode invocar a lei para contestar a solução dada ao caso, pois o sentido dessa lei nas circunstâncias do caso concreto não lhe cabe a ele defini-la, mas sim ao tribunal com competência para decidir o caso"[20].

Compreende-se, por conseguinte, que, não tendo sido impugnada a decisão, ela não possa posteriormente vir a ser desautorizada por outro tribunal, porventura, como se disse, de diversa jurisdição ou da mesma jurisdição mas de grau inferior, o que representaria o aludido ilogismo institucional, com derrogação da estrutura hierárquica judicial[21], e postergaria, bem assim, a segurança e certeza jurídica do caso julgado.

Caso julgado que se toma aqui, não no sentido próprio da excepção de caso julgado, por ser evidente a falta de identidade objectiva e subjectiva entre as duas acções (acção em que foi proferida a decisão e acção de indemnização), mas com o significado mais amplo acima apontado, de a decisão alegadamente danosa dizer o direito do caso, resolvendo definitivamente a questão concreta que lhe foi submetida para apreciação[22].

Do que fica exposto, decorre que o regime do art. 13º nº 2 do RRCEE, ao pressupor a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, não exclui, nem cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no art. 22º da CRP, não violando esta norma.

7. Sustenta também o Recorrente que a norma do referido art. 13º nº 2, na interpretação das instâncias, violaria também o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, por não ser possível conceber que o Estado seja civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisão jurisdicional danosa, se esta for revogada, e não possa ser responsabilizado civilmente quando da mesma decisão jurisdicional não há recurso.

Já se afirmou, com efeito, que, da norma do art. 13º nº 2 resultaria a violação do referido princípio da igualdade, "por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objecto de recurso"[23].

Afigura-se-nos, porém, que esse tratamento discriminatório não resulta necessariamente do regime previsto no citado art.13º nº 2 e do facto de a decisão alegadamente danosa não poder ser objecto de recurso ordinário, uma vez que é ainda admitida, nessa situação, uma ampla possibilidade de reparação do erro, como acima se salientou.

Por outro lado, como se afirma no Acórdão recorrido, a norma em questão aplica-se "indistintamente a todos aqueles que interagem no comércio jurídico - o que salvaguarda inteiramente o cumprimento do princípio da proibição da desigualdade injustificada garantido pelo art. 13º da Constituição da República".

O princípio da igualdade exige um tratamento igual para o que é igual e um tratamento diverso para situações diferentes.

Ora, como parece evidente, é bem distinta, podendo ter tratamento diferenciado, a situação de uma decisão transitada em julgado, que não pode ser perturbada na sua eficácia, e uma decisão que pode vir a ser revogada em recurso e que deixa, por isso, de produzir efeitos.

Acresce que, como também se disse, a solução encontrada pelo legislador, no âmbito da sua liberdade de conformação, não é arbitrária nem desproporcionada.

Entende-se, por conseguinte, que tal solução não viola o princípio da igualdade, constitucionalmente garantido.

V.

Em face do exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

                                           

Lisboa, 24 de Fevereiro de 2015

Pinto de Almeida (Relator)

Júlio Vieira Gomes

Nuno Cameira

____________________
[1] Proc. nº 2210/12.9TVLSB.L1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 59)
Cons. Júlio Gomes; Cons. Nuno Cameira
[2] Parte da doutrina e da jurisprudência deste Tribunal entendia, porém, que, na falta de regulamentação específica para efectivação do direito de indemnização, seria de recorrer, como lei concretizadora, às normas legais relativas à responsabilidade civil da Administração, como era o regime do DL 48051, de 21.11.67, na medida em que não contrariassem os princípios constitucionais – cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 213; Aveiro Pereira, A Responsabilidade Civil por Actos Jurisdicionais, 106 e 107 e, entre outros, os Acórdãos de 31.03.2004, de 29.06.2005, de 20.10.2005, de 18.02.2006, de 21.03.2006 e de 28.02.2012, em www.dgsi.pt.
[3] Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Vol. I, 429; no mesmo sentido, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Ob. Cit., 213; Rui Medeiros, Ensaio sobre a Responsabilidade do Estado por Actos Legislativos, 121; Aveiro Pereira, Ob. Cit., 105; Guilherme Catarino, A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça, 171 e 172; Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Comentário ao Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, 40 e segs; Acórdãos do STJ de 08.09.2009, de 03.12.2009, 22.03.2011, 28.02.2012 e de 22.03.2014, em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, a doutrina e jurisprudência atrás citada.
[5] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 463.
[6] Citado Acórdão de 20.10.2005, reproduzindo excertos dos Acórdãos de 10.02.2004 e de 31.03.2004; no mesmo sentido, em geral, os demais Acórdãos acima referidos.
[7] Rui Medeiros, Ob. Cit., 124.
[8] Aveiro Pereira, Ob. Cit., 209 e 210. Reconhecendo também a intangibilidade do caso julgado, Guilherme Catarino afirma que "o princípio da tutela judicial e da responsabilidade do Estado (arts. 20º e 22º da CRP) postula a declaração do erro através de recurso de revisão, ou outro procedimento que apenas altere o efeito lesivo da decisão errada" (mas, como afirmara antes, só através de "nova decisão, provinda de órgão da mesma natureza e com igual autoridade") – Ob. Cit., 284 e 285.
[9] Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios da reforma, 14 e 15.
[10] Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado por actos da função judicial, RLJ 138-162.
[11] Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas Anotado, 210, 212 e 213.
[12] Carlos Cadilha, Ob. Cit., 211 e 214. No sentido indicado, cfr. ainda Ana C. Carvalho, Responsabilidade Civil por Erro Judiciário, 48 e segs; Guilherme da Fonseca e Bettencourt da Câmara, A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, 50 e segs. Também o citado Acórdão deste Tribunal de 23.10.2014.
[13] Cardoso da Costa, Ob. Cit., 163.
[14] Ob. Cit., 165. No mesmo sentido Carlos Cadilha, Ob. Cit., 217 e 218.
[15] Carlos Cadilha, Ob. Cit. 220; no mesmo sentido, Ana C. Carvalho, Ob. Cit., 61 e segs. Era já este, como referimos, o entendimento de Aveiro Pereira no regime anterior, Ob. Cit., 209; cfr. também os citados Acórdãos deste Tribunal de 03.12.2009 e de 23.10.2014.
[16] Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Ob. Cit., 429; também Jorge Miranda e Rui Medeiros, Ob. Cit., 213, e Manuel Afonso Vaz e Catarina Santos Botelho, Ob. Cit., 42.
[17] Cfr. Autores e Obras citados na nota anterior.
[18] Apesar de estas duas situações não serem comparáveis, uma vez que, no primeiro caso, a irrecorribilidade da decisão traduz uma menor relevância jurídica da questão aí decidida perante a ordem de valores estabelecida no ordenamento jurídico.
[19] Neste sentido, Ana C. Carvalho, Ob. Cit., 69.
[20] Luís Fábrica, citado Comentário ao RRCEE, 343, embora em análise crítica da solução para que propendemos.
[21] Cfr. Ana C. Carvalho, Ob. Cit., 62. No citado Acórdão de 03.12.2009 afirma-se que isso seria "subverter toda a lógica que rege a nossa estrutura judiciária".
[22] Daí que, com o devido respeito, nos seja difícil aceitar a afirmação de que a acção de indemnização "é exercida para efectuar um juízo meramente incidental sobre a sentença danosa, apreciada enquanto mero facto – significando isto que a sentença permanece incólume, assim como os efeitos a que vai destinada" – Luís Fábrica, Ob. Cit., 358. O certo é que, apesar de a procedência da acção de indemnização não implicar uma revogação formal da sentença, a questão nesta apreciada é aí reanalisada e revista, o que traduz, substancialmente, em caso de procedência, uma revogação da solução anteriormente dada ao caso, ou seja, do modo como o caso foi definitivamente resolvido pelo tribunal competente (por decisão transitada em julgado).
[23] Luís Fábrica, Ob. Cit., 359.